Novembro de 2008, dia 11. O parlamento iraquiano aprova o pacto de segurança para que as tropas norte-americanas saiam do país até dezembro de 2011. O acordo, proposto pelo presidente George Bush, vinha sendo discutido há algum tempo e contava com forte oposição do grupo sunita iraquiano, praticamente alijado do poder desde a queda de Sadam Hussein e do acordo do grupo xiita com os EUA. Apesar de uma saída “lenta, gradual e segura”, pela primeira vez o governo norte-americano sinalizava a retirada de suas forças armadas do país árabe ocupado. Era chegado o momento para um balanço da investida dos defensores da tal da “freedom”, um conceito muito particular para boa parte dos norte-americanos.
Há muito uma série de ações vinham sendo organizadas nos EUA contra a manutenção das tropas norte-americanas no Iraque. Grupos de oposição organizaram passeatas e até mesmo greves contra a guerra, como a do trabalhadores das docas da Costa Leste do país em 1º de maio de 2008:
No video a seguir, podemos ver até mesmo ex-combatentes do Iraque fazendo uma demonstração de situações de guerra no meio das ruas de Denver, em setembro do mesmo ano, quando houve a convenção do partido democrata do estado de Colorado:
Mas o que tudo isso tem a ver com esporte? Aparentemente, nada. Mas para quem é um apaixonado por esporte e um atento observador dos entrelaçamentos entre o esporte, a política e a economia, como é o meu caso, tem tudo a ver. Dia 10 de dezembro de 2008, lá estava eu e milhões de outros apaixonados pelo “Mixed Martial Arts” (MMA- algo como Artes Marciais Misturadas) mundo afora nos preparando para ver mais um evento da maior organização deste esporte no mundo, o UFC, Ultimate Fighting Championship. No entanto, este não era mais um UFC como outro qualquer. Este era um evento que, ao invés de trazer o número da edição, como é tradicional (ontem tivemos o UFC 131, por exemplo), tinha o seguinte nome: “UFC: Fight For the Troops” (luta pelas tropas). O evento foi transmitido em televisão aberta nos EUA, no canal Spike TV, e para todo o mundo em canais de televisão à cabo e em sistema de “pay-per-view”. O “UFC: Fight for the Troops” foi organizado para angariar fundos para o Intrepid Fallen Heroes Fund, fundação que ajuda tanto soldados, quanto as famílias de soldados feridos em guerra, com centros de recuperação, fisioterapia e psiquiatria. As lutas aconteceram no Crown Coliseum, em Fayeteeville, North Carolina, cidade conecida como “All American City”, um dos berços da independência norte-americana e sede da famosa base militar de Fort Bragg.
O evento durou três horas e conseguiu angariar 4 milhões de dólares em doações feitas por telefone e pela internet para a manutenção do Centro de Recuperação.
Quatro dias depois, o então presidente George Bush assinava o acordo de saída das tropas norte-americanas do Iraque com o primeiro-ministro do país ocupado, Nuri al-Maliki, levando uma sapatada depois do ato.
O que pode parecer uma mera coincidência de datas revela, na verdade, uma perniciosa ligação, cada vez mais explícita, entre os organizadores do UFC e as Forças Armadas norte-americanas. E essa é uma reflexão que todos precisamos fazer, pois a marca UFC está cada vez mais presente nas prateleiras brasileiras (em cadernos, canetas, canecas, camisetas, bonés, estojos) e principalmente na televisão. Há inclusive um canal especializado em lutas que transmite todos os eventos do UFC para o Brasil, além de programação em canais à cabo e em televisão aberta. Nos próximos meses, essa situação deverá ficar ainda mais evidente no Brasil, com a edição do UFC Rio, em27 de agosto de 2011, com transmissão, muito provavelmente, em televisão aberta.
A questão é que o UFC é um dos eventos esportivos de maior audiência no mundo, aliado ao fato de ser também dos eventos com maior crescimento de interesse entre aqueles que apreciam o esporte profissional nos EUA. A empresa que possui os direitos do UFC é a Zuffa, de propriedade dos irmãos Joe e Lorenzo Fertitta e de Dana White, presidente do UFC. Este último é o homem que está à frente do processo de expansão do UFC. O evento é transmitido para mais de 130 países e já aconteceu em quase todos os estados norte-americanos além de Inglaterra, Canadá, Alemanha, Abu Dhabi, Australia e, pela segunda vez, depois de muitos anos, aterrissa no Brasil.
Em dezembro de 2006 foi a primeira vez que o UFC fez um evento em conjunto com as Forças Armadas dos EUA, no UFC Fight Night 7. Todo o dinheiro arrecadado foi doado à Marine Corps Community Services Quality of Life Programs for the Marines and Families. O evento aconteceu em uma base militar norte-americana de Miramar em San Diego, California e a audiência foi praticamente formada por soldados do exército dos EUA.
Em 2007, pela primeira naquele país, as vendas de “pay-per-views” para os eventos do UFC (4,885,000 de compras totalizando US$ 194,5 milhões) ameaçavam o reinado do boxe (4,795,000 de compras totalizando US$239,75 milhões) entre os esportes com maior vendagem na televisão. Como podemos ver, apesar de não bater os valores das vendas, o UFC teve maior número de compras. Além disso, de acordo com o site compete.com, o UFC apresentava o maior crescimento de interesse entre os espectadores daquele ano.
Nos anos seguintes, o UFC não parou de crescer. Em 2009, dos dez eventos com maior venda de “pay-per-view” nos EUA, seis foram do UFC, inclusive o primeiro colocado, o UFC 100, com 1.600.000 compras do evento (recorde de vendas nos EUA) que despertou o interesse até do gigante canal de televisão ESPN. Em segundo lugar ficou a luta de boxe do lendário Manny Pacquiao contra Miguel Cotto, com 1.250.000 vendas.
Em janeiro desse ano foi a vez do “Fight for the Troops 2”, que aconteceu no Texas e teve, pela primeira vez, as lutas preliminares transmitidas ao vivo pela rede de relacionamento “Facebook”.
Mas o que nem Dana White, com seu discurso de apoio às tropas, esperava é que do meio das Forças Armadas norte-americanas, um ex-combatente da guerra do Iraque, agraciado com a “Silver Medal” pelo esforço em combates no Iraque, ex- membro da “Marine Corp.” e fã do UFC se tornaria um lutador profissional, de excelente nível técnico e que vem sendo considerado uma das promessas para derrubar o campeão da categoria, o brasileiro e quase imbatível Anderson Silva. O nome do ex-“mariner” é Brian Stann.
Brian Stann era o campeão mundial de um outra organização de MMA, a World Extreme Cagefighting, que recentemente foi comprada pela Zuffa e unificada ao UFC. Desde então, o “American Hero”, como é conhecido, vem sendo um dos mais paparicados por Dana White, presidente do UFC.
Veja abaixo a reportagem da CNN com o novo queridinho dos EUA:
Sem dúvida, Stann é um atleta de elevado nível técnico, tem um bom “wrestling”, uma mão pesada e ainda não foi testado no jiu-jitsu, ou “brazilian jiu-jitsu” como dizem os norte-americanos. Pode até mesmo complicar a vida do Anderson Silva, personagem que já esteve presente no Faustão, na Ana Maria Braga e tantos outros programas. O que queria chamar atenção aqui é que estamos diante de um esporte que cresce assustadoramente e que está estranhamente envolvido com o exército americano. Não há um evento do UFC que não seja patrocinado pelo “U.S. Army”. Há propagandas de recrutamento de soldados durante o evento, a organização mantém um site contantemente para a doação de dinheiro para o Intrepid Center (https://www.fightforthetroops.com), os atletas do UFC são constantemente enviados para passar alguns dias juntos das tropas, treinando MMA com os soldados, assim como soldados fazem visitas aos atletas do UFC durante programas de televisão da organização, como no reality show “The Ultimate Fighter”. E agora a ascensão de Brian Stann, que lutou no último UFC 130 no dia 11 de junho, no dia do “Memorial Day”, feriado em que os americanos celebram os mortos nas inúmeras guerras que o país se envolveu em sua história. Antes do evento, um programa especial de uma hora vai ao ar com um especial sobre os lutadores que aparecerão no evento. Stann declarou: “Ninguém quer entrar naquele octógono comigo no Memorial Day. Para ganhar de mim no dia em que celebramos a morte daqueles que nos deram a ‘freedom’, que nos deram a chance de estarmos aqui para praticar esportes como esse, vai ter que me arrancar um braço”. A vítima de Brian Stann foi o brasileiro Jorge Santiago, que era campeão do Strikeforce, outra organização comprada pela Zuffa recentemente. Knock out no 2º assalto e choro pelos mortos na entrevista ao final do combate, ao vivo para mais de 130 países.
E o mariner cravou: “Quero os melhores do mundo. Não vim aqui para bater em qualquer um. Vim para pegar os melhores. Quando terminar minha carreira quero ter a certeza que lutei com os melhores”, batendo continência para o público ao final.
O mais engraçado foi que Stann havia requisitado um lutador específico para essa luta. Ele queria bater em Wanderley Silva, uma lenda do MMA, brasileiro de Curitiba, ex-campeão de outra organização de MMA, o Pride, que também foi comprada pela Zuffa e unificada ao UFC, em mais um exemplo do monopólio que a Zuffa vem criando no setor. Só que Wanderley, o Wand, tem uma academia nos EUA, uma equipe de treinamento, a “Wand Fight Team”, com vários lutadores norte-americanos, tem um carisma enorme por lá e até bonequinho dele vendendo em lojas.
Como não é bobo, Wanderley logo se esquivou da luta. Com aquele inglês pra lá de brazuca, o lutador brasileiro se resumiu a dizer: “This guy is an american hero, he’s from army, he’s a good guy, I like the guy, for me is not a lot of good points”.
A entrevista de Wanderlei mostra que apesar de não falar um inglês com a melhor das pronúncias e de ter levado muito soco na cabeça, de bobo ele não tem nada. Ponto para Wanderlei.
O pessoal da Zuffa tem uma visão para lá de empreendedora e monopolista. Dizem que em anos vão invadir os países com programas próprios e sistemas de captação de lutadores para a organização pelo mundo todo, principalmente no Brasil, terra de muitos dos grandes lutadores do UFC. Vale apena ficar de olho nessa avalanche que vai nos atingir nos próximos meses e para esse discurso unindo o esporte ao ideal imperialista e de guerra dos norte-americanos. E só para terminar: terei o maior prazer, como amante da luta, apreciador do estilo de Anderson Silva e confesso opositor dessa lógica perniciosa de manutenção das guerras por parte dos EUA, em ver nosso brasileiro “dar um pau” no “American Hero”.
João Malaia
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