As antigas e as novas faces do Rio turístico

Por Valéria Guimarães

O post desta semana é dedicado aos novos usos turísticos na cidade do Rio de Janeiro, que passa por transformações profundas para receber os balados jogos esportivos, criticadas de forma muito pertinente nos posts anteriores. Espera-se que um dos “legados” dos jogos na cidade remodelada seja fortalecer a sua imagem turística no exterior, tornando-se um importante destino internacionalmente competitivo. Embora seja a principal cidade do país procurada para o turismo de lazer, é inexpressiva a participação do Rio de Janeiro – e do Brasil – como destino turístico no cenário mundial. Isso se explica pelo mau aproveitamento do potencial turístico da cidade, mal planejada e mal gestada ao longo de toda a história do seu desenvolvimento turístico.

Os novos empreendimentos públicos associados ao capital privado para o setor turístico, embalados pelo reposicionamento e projeção da “marca Rio de Janeiro” na vitrine mundial, concentram-se na exploração do mix de cultura e lazer como produtos, transformando em espetáculo pago as novas opções de turismo e lazer projetadas para a cidade, especialmente aquelas intervenções burguesas, de elevadíssimo custo social, concentradas na área portuária ou na “nova” Lapa.

Como bem analisa Victor Melo , a cidade vivenciou na primeira metade do século XX uma experiência moderna de construção identitária que consagra o uso de espaços públicos, especialmente da praia, como lugar do sujeito carioca. Ficariam para trás os valores sociais e estéticos que elegiam os tipos magros, pálidos e engravatados, para dar lugar aos signos que associavam juventude e modernidade carioca: corpos expostos, atléticos, modelados pela prática esportiva ao ar livre e dourados pelo sol.

As representações historicamente construídas sobre o paraíso tropical, terra de sol e de mar, de gente hospitaleira e mulheres exuberantes, associadas às novas sociabilidades que se manifestavam na urbe, especialmente nos novos usos da praia como espaço de lazer e de uma nova relação com o corpo a ser ali exibido, assumiram por muitas décadas um lugar central no discurso turístico sobre o Rio de Janeiro.

A idéia de uma “vocação natural” do Rio de Janeiro para a prática de um turismo de sol, de mar, de apreciação da floresta urbana, do samba e da mulher bonita de biquíni mínimo foi plenamente incorporada no discurso oficial, nas políticas públicas e privadas para o turismo, e divulgada na folheteria turística, nos guias impressos, nos cartões postais, nos souvenires e nas atrações culturais voltadas para os turistas – particularmente os shows de mulatas.

Os cartões postais de mulheres de biquíni, os preferidos dos turistas internacionais, estão proibidos por uma polêmica lei desde 2005, sob o argumento de vinculação da imagem da mulher e da cidade a um paraíso do turismo sexual. Fonte: http://colees-e.blogspot.com/2009/06/sera-que-e-de-proibir.html

A esse repertório, que compunha a maior parte dos roteiros comercializados pelas agências de turismo, sugeridos pelos guias e espalhados pelo “boca a boca”, somaram-se o futebol e a bossa nova como elementos representativos da cultura de uma cidade para turista ver, coração e síntese da cultura do Brasil. Essa imagem turística do Rio de Janeiro (e por que não dizer do país?), que ganha força na segunda metade do século passado, sem dúvida, amplificada pelo cinema de Hollywood, que construiu e reforçou estereótipos e acentuou no olhar estrangeiro o quanto éramos “sensuais”, “exóticos” e “pitorescos”, imagem esta reproduzida pelo próprio discurso turístico nacional.

O turismo no Rio de Janeiro hoje vem sendo ressignificado não só pelos novos investimentos feitos a pretexto da realização dos megaeventos esportivos e seu “legado”, mas também por uma nova visão de mundo da sociedade a partir das demandas sociais por inclusão das minorias étnicas e culturais e ampliação de seus direitos civis, como o direito à propriedade da terra, por exemplo. Até então invisíveis ao turismo, os bens culturais produzidos por esses grupos socialmente excluídos passam a ser objeto de interesse turístico, alargando consideravalmente o repertório turístico da cidade.

Tamanha é a importância do turismo em favelas na cidade do Rio de Janeiro que o mercado turístico já o reconhece como um “nicho”; outras formas de viver relacionadas à presença histórica de grupos étnicos na cidade – e no estado – também passaram a ser objeto de interesse dos turistas. Você já ouviu falar em “turismo étnico”? É possível hoje hospedar-se em aldeias indígenas de Niterói ou de Angra do Reis, por exemplo. Na cidade, o Mercadão de Madureira, a “Pequena África no Rio de Janeiro”, localizada na região portuária, particularmente o Quilombo da Pedra do Sal, escolas de samba, centros de candomblé e festas religiosas negras passaram a integrar o roteiro de muitos turistas negros, especialmente provenientes dos Estados Unidos, à procura de uma origem comum (“afro-americana”) por eles imaginada. Os novos gringos na cidade já não são identificados apenas pela pele clara e pelos olhos azuis ou pelas coloridas roupas florais.

Fachada de uma das loja de tecidos e roupas de santo do Mercadão de Madureira. A concentração e o movimento nas lojas de artigos para a prática de religiões de matriz africana viraram atrativo turístico. Foto de João Xavi. Fonte: http://www.overmundo.com.br/guia/mercadao-de-madureira

 E quando o turista é o próprio morador, a descobrir a sua cidade? Quem anda pelas ruas do Centro do Rio já deve ter reparado um aumento significativo no número de pessoas que em pleno frenesi dos dias úteis, onde quase somos atropelados se voltarmos para olhar uma banca de jornal, por exemplo, procura apreciar as belezas e os detalhes que os mais apressados nunca tem tempo de notar. Nas redes sociais, grupos de aficcionados pela cidade se organizam para passeios a pé, inventando novos roteiros que fogem aos ícones Pão de Açúcar–Floresta da Tijuca–Praia de Copacabana–Cristo Redentor e gastam muito pouco ou nenhum dinheiro, dependendo do roteiro, se for operado por pequenos empreendedores ou oferecidos de graça.

 

Visitas noturnas ao centro do Rio, promovidas gratuitamente, por iniciativa do Projeto Roteiros Geográficos do Rio (IGEO/UERJ): uma forma original de apreciação estética do Rio de Janeiro e de ocupação da cidade como alternativa à violência. Fonte: youtube=http://www.youtube.com/watch?v=vuyWRIvSmCc

De dia ou de noite, da Pedra do Sal, aqui já citada, ao “território da Daspu” , tudo atrai a atenção dos curiosos, a maioria moradores da cidade, que raramente tem a oportunidade de apreciar um espaço onde nos acostumamos a percorrer marchando ou, literalmente, correndo. E cruzar as fronteiras simbólicas da cidade? Quantos moradores começam, embevecidos, a despertar para o interesse de atravessar o túnel, embarcar num trem em direção ao subúrbio, comer uma feijoada numa quadra de escola de samba, participar de eventos, conhecer territórios simbolicamente impenetráveis?

Vídeo Samba na Pedra, de David Obadia, registra um dia de festa na Pedra do Sal. Fonte: http://www.youtube.com/watch?v=FdKMROSWkGM

O mochileiro, aquele “turista alternativo”, que se hospeda em hostels (os antigos albergues agora com nomes moderninhos) ou na casa de pessoas comuns, no estilo “cama e café”, que vem fazendo bastante sucesso por aqui, há muito tempo aprendeu – talvez até primeiro que muitos de nós – a descobrir e curtir lugares invisíveis à ótica do turismo tradicional. Para muitos deles, mais vale a experiência no contato com os nativos do que a quantidade de atrativos/clichês turísticos criados para serem consumidos pelos turistas.

Enquanto o poder público e o empresariado se unem nas parcerias público-privadas para formatar produtos turísticos com cara globalizada, desenvolvidos para um perfil de consumidor com poder aquisitivo elevado e onde muito poucos ganham muito, a cidade turística mais importante do país, que pleiteia junto à UNESCO o título de Paisagem Cultural da Humanidade , ainda bem, continua oferecendo opções de turismo e lazer alternativos que atraem moradores e turistas interessados em conhecer as outras faces de um Rio que, apesar dos pesares (vide o abandono de nossos bens culturais, como o triste caso dos bondes de Santa Teresa), insistem em sobreviver.

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