Infelizmente a metáfora contida no hino do América Futebol Clube que é considerado por muitas pessoas a mais bonita melodia dos clubes cariocas, se tornou novamente assustadoramente real com a morte de mais de 70 torcedores egípcios em partida realizada em Port Said entre as equipes do AL-Masry e AL-Ahly na última quarta-feira. Imagens no site http://noticias.r7.com/internacional/fotos/veja-as-fotos-da-tragedia-no-egito-20120201.html.
As imagens chocantes e o contexto sócio-político do país africano me levaram a reflexões sociais e divagações filosóficas ao longo desta semana partindo de uma das mais complexas entre as estúpidas perguntas: “O que é ser um torcedor”?
Primeiramente recorri a Academia para tentar responder racionalmente a questão. Desde o clássico livro de Norbert Elias e Eric Dunning “Esporte e ócio e no processo civilizatório” (1986), o debate sobre a violência no esporte e mais especificamente dos torcedores já se encontra presente sobretudo no capítulo nove.
Lembrei de trabalhos recentes sobre torcidas organizadas como a imprescindível obra de Bernardo Buarque de Hollanda “O clube como vontade e representação:o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas no Rio de Janeiro (1967-1988) fruto da sua tese de doutorado (2010) , Raça-Rubro negra: torcer, lutar, ao inimigo massacrar do antropólogo Rodrigo de Araújo (2003) e mesmo o relato jornalístico de Gustavo Grabia sobre a principal facção da torcida do Boca Juniors “La Doce. La verdadera Historia de la Barra Brava de Boca” (2009) que foram muito úteis para meus pensamentos, porém não me possibilitaram responder a pergunta, até mesmo pois esse não era o objetivo teórico das suas pesquisas.
Resolvi então recorrer a minha experiência empírica. Frequento estádios de futebol desde os 7 anos de idade, na adolescência cheguei a participar de uma facção mirim de torcida organizada mas felizmente meu pai sabiamente me proibiu de continuar indo com a “galera” sozinho para o Maracanã aos treze anos. Continuo presenciando alguns jogos importantes apesar de ter diminuído consideravelmente nos últimos anos meu “animus” de enfrentar as adversidades conhecidas, seduzido talvez pela comodidade da TV fechada na sala de casa ou em bares com os amigos.
Lembrei com uma mórbida emoção de inúmeras confusões em partidas que assisti, gás de pimenta na cara, cacetete de policial nas costas, arquibancada despencando na final do brasileiro de 1992, muita violência e tensão na saída de alguns clássicos, enfim uma adrenalina inebriante, um tesão inexplicável, uma paixão cega. Como isso tudo que relatei pode fazer parte da minha memória afetiva de forma excitante? Pensei na tese do ópio do povo e da alienação que academicamente nunca concordei. Eu seria um alienado? Acredito que não. Na adolescência além de me interessar bastante por política lia vários gênios literários como Gabriel Garcia Márquez, Herman Hesse, Albert Camus, Machado de Assis… Escolhi fazer História e militar na Educação mesmo tendo me tornado advogado posteriormente. Atualmente vou começar o Doutorado e continuo como professor. Mas quando assisto o jogo do meu time realmente não penso em mais nada.
Então seria a tese da válvula de escape, do ócio controlado em face do monopólio da violência pelo Estado? Não entendo que esta teoria isolada explique as tragédias nos estádios e todos os confrontos entre facções organizadas muito menos o que é ser torcedor. Pode ser um elemento importante, mas não está sozinho.
Penso na corriqueira afirmação de que o esporte, e mais especificamente o futebol é um espelho da sociedade. Os acontecimentos no Egito podem até simbolizar isso. Algumas matérias jornalísticas falam da relação com os acontecimentos recentes do país e o próprio desdobramento dos confrontos no retorno dos torcedores apontam para a influência do contexto político do país, mas também acredito que somente isto não explica.
Pesquisando superficialmente algumas das maiores tragédias nos estádios, inclusive a famosa barbárie na final da Copa do Campeões de 1985 entre Juventus e Liverpool não é possível afirmar que foram reflexos diretos de problemas sociais e políticos nos países. Muitos problemas ocorreram devido à superlotação nos campos ou brigas entre torcidas.
Todavia negar a influência do meio social e do momento histórico seria certamente uma estupidez da minha parte. É óbvio que pode existir uma relação entre as tentativas de controle do tempo ocioso dos indivíduos que buscam no ato de torcer um prazer fora do cotidiano com as disputas políticas, econômicas, morais, sociais e étnicas vigentes na época, mas nem sempre as tentativas de coibir o comportamento dos torcedores nos estádios pelas autoridades ou pelo regime logram êxito.
Reproduzirei na íntegra como exemplo uma matéria que encontrei fazendo uma pesquisa na Revista do Esporte, semanário que circulou no país entre 1959 e 1970, no número 287 de 05/09/1964 cujo título era “Em Minas é assim: torcedor que disser 4 palavrões vai preso:
Dizendo que seu objetivo é atrair as crianças aos campos de futebol, a polícia da capital mineira iniciou uma campanha inédita contra os torcedores que dizem palavrões nas praças de esporte de Belo Horizonte. De acordo com a decisão tomada pela polícia mineira somente será levado à prisão, para responder o processo.
1- Disse o Delegado Édson Renault que “com a nossa campanha as mulheres da tradicional família mineira (grifo meu) poderão voltar aos campos. Aliás, decidi prender os mal-educados somente no quarto palavrão”
2- Segundo a mesma autoridade policial é lícito ao torcedor chamar o juiz de “ladrão” contanto que não deixe o árbitro de moral abatida. As palavras da gíria esportiva serão permitidas.
3- Os gestos obscenos serão tão energicamente coibidos quanto os nomes feios e a polícia avisa, 4 gestos indecentes numa partida só levarão o torcedor a cadeia.
4- Para combater a praga dos palavrões foi montado um dispositivo pela polícia mineira. Seis guardas passearão ao longo da pista. 20 pares de Cosme e Damião serão postados em lugares fixos ao redor do alambrado e 100 outros policiais a paisana e usando braçadeiras se espalharão pelas gerais e arquibancadas com os ouvidos atentos.
5- Acreditam os responsáveis pelo policiamento que com isso serão debelados
os focos de xingamento nos campos de Belo Horizonte, e em conseqüência as rendas aumentarão com a volta das mulheres nos estádios.”
Enfim, os anos se passaram e obviamente esta tentativa pseudo-legal tão autoritária como o regime recém-nascido naquele ano não prosperou nos estádios mineiros. Estive presente três vezes no Mineirão e pude saciar minha fome com o tradicional tropeirão, observar a presença ostensiva de mulheres da tradicional família mineira no estádio e proferir “elogios” ao juiz e as péssimas jogadas de atletas do meu time de forma despreocupada.
Mas e a resposta a pergunta inicial? Não consegui com minhas elocubrações teóricas, empíricas e informações da internet chegar a nenhuma conclusão. Uma confluência de fatores: psicológico, sociológico, histórico, político formam o sentimento de torcer por uma agremiação esportiva e podem esporadicamente gerar tragédias brutais como a ocorrida no último dia 01 de fevereiro.
A única certeza que tive com as reflexões para esse post é que assim como os poucos apaixonados pelo simpático América do Rio, eu também hei de torcer até morrer, só não quero que seja asfixiado ou espancado em um estádio ou numa esquina qualquer por estar usando a camisa do meu time.