Por Rafael Fortes
Em maio, participei do X Congresso Anual da Associação Europeia para a Sociologia do Esporte (EASS, na sigla em inglês). Este texto vai em primeira pessoa, mas a comunicação que apresentei estava relacionada a trabalho desenvolvido com dois colegas: Victor Andrade de Melo e Cleber Dias.
Pela primeira vez, a programação de um congresso me reservou a oportunidade de expor numa sessão dedicada exclusivamente ao surfe. Ela foi composta por uma pesquisadora britânica, Belinda Wheaton, referência nas pesquisas sobre esportes radicais publicadas em inglês; e por Adrián García Perdigón e Yurena González González, da Universidade de La Laguna (Ilhas Canárias, Espanha).
Tendo coberto um conjunto significativo de temas relativos aos esportes radicais, Wheaton propôs questões inovadoras para avançar o conhecimento sobre o surfe, como a participação de adeptos a partir de certa idade – silver surfers – e as implicações em termos de consumo, imagem (de si, dos outros e da cultura do surfe), articulação com valores do neoliberalismo, discursos que propugnam atividade física e envelhecimento saudável etc. Uma questão que me interessou – brevemente apontada, mas não desenvolvida pela pesquisadora – diz respeito às diferenças (e, quiçá, conflitos) entre os surfistas de meia idade e idosos, quando se leva em conta se começaram a surfar recentemente ou se o fazem há décadas. (Nota: é sempre bom ver alguém usar tranquilamente o termo neoliberalismo ao expor determinadas características de nosso tempo.)
O trabalho dos pesquisadores canários, ainda incipiente, apresentou indicações valiosas para trabalhos posteriores, sejam no contexto do arquipélago ou em outros lugares. Para não me estender muito, cito quatro temas que me vieram à cabeça durante a exposição:
1) A relação entre escolinhas de surfe estabelecidas por locais (canários) versus escolinhas de surfe coordenadas por estrangeiros e por empresas internacionais/multinacionais.
2) O papel da certificação, regulação e formação (dos instrutores/professores) para estabelecer um padrão de qualidade e de reconhecimento das escolinhas. Havendo centenas de escolinhas para locais e turistas, como no caso das Ilhas Canárias, é certo existirem serviços duvidosos do ponto de vista ecológico, econômico, ético, da saúde etc.
3) Uma discussão ética, política e econômica sobre reserva de mercado e geração de emprego e renda. Tendo em vista o cenário de turismo do arquipélago, com 2 milhões de habitantes e, para nós, brasileiros, impressionantes 12 milhões de turistas ao ano (dados informados pelos pesquisadores na exposição), é razoável deixar as escolas de surfe, com ampla procura de estrangeiros, livres para as empresas e empresários internacionais? Me parece claro que não.
4) Discussão sobre o que fazer com os lugares propícios para a prática do surfe (praias, ondas etc.), a partir de, pelo menos, três dimensões: esportiva, ecológica e turística.
a) Esportiva: quem pode surfar? Em que horários e dias? Que critérios usar para tomar tais decisões? Quem decide? Como garantir o cumprimento das determinações? Que medidas tomar para evitar o crowd ou mantê-lo em níveis aceitáveis? Como contrapor medidas que, pensadas para atender a demanda turística – como a construção de marinas -, inviabilizam a prática do surfe?
b) Ecológica: a construção de atracadouros para barcos e navios, além de acabar com o surfe, pode levar à poluição (portos tendem a poluir o mar – quanto maiores as embarcações, pior). Que atividades priorizar? Qual o impacto sobre fauna e flora, marinha e terrestre?
c) Turística: substituir um lugar limpo e com ondas com outro com infra pra barcos e iates de luxo (necessariamente) melhora o turismo? Hoje, o que atrai mais turistas? Conforto ou natureza preservada? Um lugar confortável e imundo ou um lugar com menos conforto e natureza razoavelmente preservada? Mas, e no futuro? Que tipos de atividade turística e de turista se deve privilegiar? Além disso, a atração de turistas é deve ser o principal (único?) parâmetro para medir prioridades e investimentos? Onde ficam expressões do vocabulário básico do neoliberalismo, como sustentabilidade, desenvolvimento local e geração de emprego e renda?
Quando lanço estas perguntas, questões econômicas dialogam diretamente com o aspecto turístico. Evidentemente não estou entrando no mérito de ser bom ou ruim tamanho volume de gente circulando (e o consequente impacto causado…). No atual cenário de crise capitalista, o senso comum enxerga claramente o turismo como uma das atividades para salvar a Espanha.
Ainda de acordo com os pesquisadores, que atuam na Federação de Surfe das Canárias, o governo espanhol já percebeu que é preciso fazer algo em relação ao surfe, inclusive regulamentando o uso das praias. O dilema é não saber bem o que fazer, nem como.
É triste, é chato, mas…
Não poderia fechar este texto sem uma nota sobre a questão dos idiomas. Embora o congresso tenha se realizado na bela Córdoba, na Andaluzia, o idioma único e obrigatório para envio de resumos e apresentação de trabalhos era o inglês. Em outras ocasiões, já escrevi sobre o quão limitadora e imperialista considero essa imposição do inglês. (Abordei o tema aqui e aqui, por exemplo; recomendo ainda este texto de Maurício Drumond.) No mínimo, o idioma principal do país, o castelhano, deveria ser também língua oficial do evento.
Parte desta postura etnocêntrica dos monoglotas anglófonos se revela na ignorância em relação a tudo que é produzido fora deste idioma. É como se, fora do inglês, não fosse ciência, não contasse. Impressionante como certas pessoas conseguem tomar parte (os trabalhos sobre certo tema) como todo. E boa parte delas considera que o problema não está nelas próprias – por sua limitação de dominar a leitura de um único idioma -, mas nos demais, que não dominam a escrita (ou a fala) do inglês.
Porém, ao contrário do que eu pensava até recentemente, no exterior o quadro não parece ser muito diferente. A gente tende a achar que é, mas, muitas vezes, está enganado. Isso pode ser percebido pelas afirmações e críticas presentes no texto de Paul Dietschy e Richard Holt que será publicado na edição de junho agora da Recorde. No duro, no duro, a bibliografia em inglês – quase toda escrita pelos que nasceram falando inglês, ou que foram viver em países falantes deste idioma e o adotaram como língua profissional – é lida por quem fala e escreve em inglês (muitos dos quais monoglotas, repito), ao passo que o que é escrito em cada outra língua é lido apenas pelos que escrevem na mesma: português por português, italiano por italiano etc. Não sei como funciona com árabe, persa, japonês e mandarim, por exemplo, mas não tenho razões para acreditar que a situação seja muito diferente.