Por Valeria Lima Guimarães
Tempos atrás, numa sessão do Cineclube do Sport, o nosso Laboratório de História do Esporte e do Lazer da UFRJ, tive a honra e o prazer de debater o filme Os Trapalhões e o Rei do Futebol, uma produção de 1986, dirigida por Carlos Manga. Rever e comentar um dos filmes da minha infância décadas depois com um olhar acadêmico foi uma experiência muito interessante. Na ocasião, realizei uma pesquisa sobre a filmografia do quarteto que por décadas divertiu dezenas de milhões brasileiros. Por isso, resolvi revisitar o tema, prolongando o sabor da discussão e registrando nessas mal traçadas linhas um pouco do que conversamos naquele dia.
A filmografia dos Trapalhões é bem extensa e soma quase 50 produções cinematográficas, entre os anos de 1965 (quando os Trapalhões eram apenas Didi e Dedé) e 2008. Mussum e Zacarias se integraram ao grupo no cinema em 1976 (O Trapalhão no Planalto dos Macacos) e 1978 (Os Trapalhões na Guerra dos Planetas), respectivamente. Seus filmes figuram entre as maiores bilheterias do cinema brasileiro. Para se ter uma ideia, dos 50 filmes de maior público, 20 são dos Trapalhões.[1] O sucesso foi tão grande, que os Trapalhões na virada para os anos 1980 passaram a produzir de 2 a 3 filmes por ano.
Muitos diretores trabalharam com os comediantes mais queridos do Brasil, entre eles Carlos Manga, José Alvarenga Jr.,Roberto Farias, Sílvio Tendler, Tizuka Yamasaki, J.B. Tanko e Adriano Stuart, esses dois últimos os mais recorrentes.
Os filmes dos Trapalhões sempre dialogaram com as tendências da cultura de massa da época em que foram produzidos, fórmula que ajudaria a alavancar o sucesso de suas produções no cinema. O primeiro deles, “Na onda do iê-iê-iê” (1965), pegava carona na Beatlemania, em seu auge, e fazia referência também aos festivais nacionais da canção. Como se tornaria de praxe, vários artistas famosos participaram do filme, reunindo diferentes gerações que à época faziam sucesso no rádio, como Sílvio César, Mário Lago, Paulo Sérgio, Wilson Simonal, Wanderley Cardoso, Rosemery, The Fevers e Os Vips. Além das antigas e novas gerações de cantores do rádio, artistas do circo, mais recorrentemente Beto Carrero, do teatro de revista, como José Lewgoy, Wilza Carla e Wilson Grey, artistas de cinema e televisão, como Mário Cardoso, Roberto Guilherme e Eduardo Conde, e jovens atrizes, modelos/manequins conhecidas pela sua beleza, como Mila Moreira, Lucinha Lins, Luiza Brunet, Xuxa e Luma de Oliveira, comporiam os elencos, garantindo ainda mais sucesso aos filmes.
As histórias clássicas da literatura infantil inspiraram muitos filmes dos Trapalhões, que arrancavam boas risadas do público, como as paródias: Ali Babá e os 40 Ladrões (1972); Aladim e a Lâmpada Maravilhosa (1973); Robin Hood, o Trapalhão da Floresta (1974); Simbad, o Marujo Trapalhão (1976); O Cinderelo Trapalhão (1979); Os Três Mosqueteiros Trapalhões (1980); Os Saltimbancos Trapalhões (1981); Os Trapalhões e o Mágico de Oroz (1984), entre muitos outros.
A maior parte das produções atingia um público maior que 2 milhões de espectadores. Era um tempo em que o cinema era uma das principais opções de lazer das massas, especialmente nas férias escolares. Não havia shopping center, os cinemas eram todos de rua e se pagava um ingresso para ver o filme em qualquer altura da sua exibição, podendo-se permanecer por todas as sessões do dia em salas de cinema lotadas, mal ventiladas e com um som sofrível, que mal dava para entender o que os personagens falavam, sem esquecer daqueles fortes estalos característicos do áudio da exibição e de uns risquinhos que apareciam na tela. Não havia combos nem poltronas luxuosas e as salas eram gigantescas, mas sempre lotadas. Várias vezes assisti os filmes em pé, sentada no chão na frente da primeira fila ou na “carcunda” de meu pai, como diria Didi Mocó.
Os filmes dos Trapalhões, em seu conjunto, trazem invariavelmente cenas de muita ação, velocidade e movimento, com fugas, lutas e perseguições em lanchas, carros, motos, veículos improvisados com ferro velho, pedalinho e até jegue, como marca de uma certa “nordestinidade” tão fortemente impressa nos filmes de Renato Aragão, com elementos como humildade, bom humor, bravura, honestidade e persistência.
Outros ingredientes se somam à fórmula que rendeu tanto sucesso ao grupo, como o humor simples e de grande aceitação popular; a escolha das locações; os estereótipos bem marcados, definindo os mocinhos e os vilões, que entram em conflito; a frustração e ingenuidade do protagonista em perder a mocinha para algum tipo bonitão, jovem e urbano, restando-lhe o posto de melhor amigo de sua amada; os temas de grande identificação das massas.
A temática dos esportes, associada às cenas de ação, esteve muito presente nos filmes dos Trapalhões, tendo surgido pela primeira vez em 1967, com o filme Dois na Lona, estrelado por Renato Aragão e pelo lutador ítalo-brasileiro Ted Boy Marino, no auge do sucesso dos programas de Telecatch.
Ted Boy Marino interpreta o papel de um lutador de vale-tudo estreante, descoberto por acaso numa briga num parque. Com a ajuda de seu amigo (Renato Aragão), disputa o cinturão com o campeão da categoria e fica em grande desvantagem até o 9º assalto. Ao ver seus amigos torcendo e gritando o seu nome, num rompante de superação característico do discurso sobre o esporte, o lutador no último assalto passa a lutar extraordinariamente, com coreografias magistrais, numa plasticidade que funciona muito bem no cinema. O personagem vence por nocaute, conquista o público presente na luta, a arbitragem, o cinturão e, pode-se deduzir, os espectadores do filme.
Em O Incrível Monstro Trapalhão (1980), uma paródia das histórias de O Médico e o Monstro, Hulk e dos Super-Heróis, Didi, o Doutor Jegue, inventa um combustível extraído de marmeleiro nordestino e o testa numa corrida de Stock Car em Interlagos, cenário de muitas cenas do filme, inclusive de uma longa sequência de abertura.
No grande dia da corrida, todos os carros partem, mas o do personagem de Didi, uma estranha espécie de carro, “vindo de outra galáxia”, como anuncia o locutor, não consegue largar. Numa divertida sequência, Renato Aragão tenta de todas as formas fazer o veículo partir e utiliza até o triângulo de sinalização em plena pista de corrida, driblando os demais carros que completavam várias voltas. A torcida se desespera. Depois de várias tentativas frustradas, o personagem resolve utilizar uma gota do seu novo combustível e o veículo dispara, ultrapassando todos os demais e, novamente, atingindo a superação das dificuldades e vencendo a competição, num dos clichês mais fortes no que se refere aos filmes populares envolvendo a temática esportiva.
Outro filme que trouxe o esporte em primeiro plano foi Os Trapalhões e o Rei do Futebol (1986), com Pelé no papel-título. O último filme dirigido por Carlos Manga, conhecido diretor de filmes de chanchada da companhia Atlântida, tinha como fórmula a junção de dois fenômenos de massa – O quarteto de comediantes e o futebol, estrelado pelo nosso herói brasileiro de fama mundial. O resultado foi um extraordinário sucesso, com aproximadamente 3.650.000 expectadores, segundo o site Adorocinema.
O filme uniu adultos e crianças para verem dois ídolos dos brasileiros no cinema, em cenas antológicas rodadas no Maracanã, inverossímeis e inesquecíveis, como o lance do Didi cobrando escanteio para si mesmo e fazendo gol de cabeça, e aquele em que Nascimento (Pelé) defende um pênalti e faz gol de tiro de meta.
Embora não figure nas listas de filmes interessantes ao estudo da história de sua época de produção, o filme traz fortes elementos da cultura política do momento, sendo mais um documento alusivo ao contexto do fim da ditadura civil-militar no Brasil, citada diversas vezes entre falas mais sutis e outras mais explícitas, associadas à crítica à cartolagem e à corrupção no futebol brasileiro.
Mas isso é assunto para um outro post, quando retornarei dedicando um espaço exclusivo à análise desse filme sobre futebol que marcou a vida de muita gente, especialmente do público infanto-juvenil de férias naquele inverno de 1986.
Até lá!
[1] Os filmes dos Trapalhões não circularam no exterior, exceto Os Trapalhões no Auto da Compadecida (1987), que foi exibido em Portugal.
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