Uma das atividades centrais do ofício de um historiador é o de interpretar os fatos. Claro, para isso, mergulhamos nos arquivos e nos debruçamos sobre incontáveis fontes que possam nos ajudar no desafio de contar uma certa história. Não digo, com isso, que ao final de uma escrita o historiador considere ter dado um ponto final nas questões possíveis de um determinado objeto de estudos. Na verdade, ao contrário, ao terminar um trabalho, quase sempre, temos a certeza de que poderíamos ter ido mais fundo, ter encontrado mais “vozes” ou mesmo ajustado melhor nossos métodos no tratamento do material encontrado. Mesmo parecendo uma angústia, a de está sempre fazendo um trabalho sem termos definitivos, essa característica também serve como estímulo para seguirmos em frente no desafio de encarar os desafios da nossa profissão.
Por isso, inicio esse texto com uma mea-culpa sobre parte do que escrevi e falei sobre a luta contra o racismo no futebol brasileiro. Na verdade, para não parecer generalista, evitando riscos desnecessários, nesse momento, trato especificamente do Rio de Janeiro e dos, considerados, grandes clubes de futebol da cidade.
Então, para início de conversa, preciso afirmar que: NENHUM CLUBE DE DESTAQUE NO RIO DE JANEIRO LUTOU OU LUTA CONTRA O RACISMO NO FUTEBOL. Ou seja, por mais que ações individuais ou de clubes tenham gerado alguma tensão no cenário esportivo, nenhuma delas pode, a meu ver, ser considerada parte de uma luta sistemática contra o racismo levada a cabo por qualquer que seja o agente/grupo. Quase sempre a luta contra o racismo se resume a entrada em campo por uma equipe com uma faixa declarando serem contrários a esse tipo de acontecimento. Guardadas as faixas, ânimos acalmados, a bola rola e a estrutura segue sendo a mesma. Nenhuma instituição esportiva apresenta/apresentou um programa sistemático para o combate ao racismo no esporte propondo e efetivando punições e, sobretudo, educando jogadores, dirigentes e torcedores para uma nova perspectiva sobre o tema de modo a dirimir os casos em sua base constitutiva.
Sei que a afirmação pode parecer categórica. Porém, decidi encarar o risco a partir dos novos desdobramentos de leituras e trato com as fontes. Para explicar melhor o assunto, devo iniciar apontando para o ajuste que fiz na compreensão da palavra LUTA. Vejamos: considero luta um processo de engajamento atrelado a uma causa na qual o objeto central da questão, nesse caso a luta contra o racismo, esteja no centro do debate e, fundamentalmente, o interesse na sua solução seja parte essencial na formulação das questões apresentadas para os indivíduos ou para as Instituições envolvidas na lide.
Logo, a partir desse novo olhar, posso falar com tranquilidade sobre o Club de Regatas Vasco da Gama e o imaginário criado a respeito do seu engajamento na luta contra o racismo no futebol, forjado no embate entre o Clube e a principal liga de futebol nos anos 20. Tomados por esse exemplo acredito que poderemos dar um salto na compreensão do fenômeno, bem como dos seus desdobramentos reais e retóricos.
Inicialmente, devo reforçar que a famosa carta de 1924, na verdade um ofício enviado a Liga e publicado pela imprensa, conhecida como grande marco na luta contra o racismo no esporte, foi um evento importante para o cenário futebolístico do Rio de Janeiro. No entanto, a partir das novas pesquisas, verificamos que o fato não apresentou nenhuma ressonância fora das fronteiras do estado e em nada tem a ver com a luta contra o racismo, seja no esporte ou fora dele. Na verdade, o documento (“a carta”) visava agir sobre uma demanda interna da instituição que visava manter os bons e vitoriosos jogadores em seus quadros de atletas, atingidos pela solicitação da Liga de retirá-los dos quadros de esportistas do clube.
Ou seja, não podemos afirmar, por que não há indícios comprobatórios que nos possibilite tal coisa, que a questão apontada pela carta tenha gerado desdobramento no futebol de outros estados no Brasil. Ademais, o evento em si não foi resultado do engajamento do clube na causa do negro, mas sim, parte de um processo de mercantilização do futebol que, sem os jogadores apontados na ocasião, causaria um alto prejuízo ao clube em termos esportivos e financeiros e que, naquele momento, teria pouca ou nenhuma outra possibilidade de ser solucionada.
Após a leitura de todos os documentos administrativos disponíveis em arquivo no Centro de Memória do Clube podemos aferir que o racismo, a luta contra o racismo ou qualquer questão relacionada ao negro nunca foi uma temática debatida ou apresentada pelo grupo dirigente da Instituição. Tal fato é constatado na análise das fontes no período anterior e posterior ao da carta. Logo, a Carta de 1924, entendida num contexto maior e, notadamente, pelo seu caráter pontual, não confere ao clube legitimidade no discurso que o define como liderança na luta contra o racismo no futebol brasileiro.
Vale destacar sobre o perfil popular do clube, criado a partir do imaginário de uma instituição que lutou contra o racismo e, por isso, se forjou como clube essencialmente popular, que novas pesquisas já apontam para outra perspectiva sobre essas marcas, ou no mínimo nos dão indícios de suas limitações, vejamos:
Os pesquisadores Victor Melo e Nei Jorge, em artigo publicado (Recrear, instruir e advogar os interesses suburbanos”: posicionamentos sobre o futebol na Gazeta Suburbana e no Bangú-Jornal (1918-1920)- artigo completo em: http://www.seer.ufrgs.br/Movimento/article/view/42863 ), ao tratarem com a chamada imprensa suburbana, confirmam a tese de que os clubes de subúrbio e seus torcedores eram mal vistos pela imprensa de grande circulação e, principalmente, que o mercado de jogadores que tiravam do subúrbio seus melhores atletas gerou ao Vasco, diferentemente do que se afirma, uma imagem muito ruim, visto que os jogadores deixariam de defender os clubes locais e, numa escala maior, o próprio subúrbio para defender um clube “estranho a eles, como o Vasco…” (Op. cit. p.202).
Outro dado importante que merece ser levado em conta quando apresentamos o Vasco como representante da luta contra o racismo está na pesquisa realizada por Victor Pereira (Professor Auxiliar na Universidade de Pau et des Pays de L`Adour – França), parte publicada como capítulo do Livro Esporte, Cultura, Nação, Estado – Brasil Portugal – intitulado Futebol português nas Américas, anos 1890-1960 (2014), quando diz que:
“não era propriamente um sentimento antirracista que guiava os dirigentes do Vasco da Gama, por vezes, por influência do pensamento lusotropicalista criado por Gilberto Freire, se escreveu. Era sobretudo a vontade de ganhar, de vencer os clubes das elites que conduzia os dirigentes do Vasco…” (p. 46).
Somada a essa análise, confirmada pela ausência desse debate nos arquivos do clube, temos também a forma instrumental como o clube foi utilizado pela Ditadura de Salazar (Estado Novo – 1933-1974) como representante de uma Portugal que deu certo e representava a vitória da miscigenação levada a cabo pelos portugueses em terras colonizadas.
Além de falso, esse argumento, experimentado à época do Expresso da Vitória (famosa equipe do clube dos anos 50), forjada nas obras Gilberto Freyre, contava com a anuência dos dirigentes do clube. Na verdade, mais do que aprovação, havia um discurso efetivo de defesa da exploração Portuguesa em terras colonizadas.
Como exemplo, podemos destacar a defesa do processo exploratório de Portugal na África e, principalmente, quando estes mesmos dirigentes, em 1954, defendem a soberania lusa na Índia (2014, p.51). Ou seja, não havia, como não há, uma luta contra o racismo, contra exploração da população negra ou qualquer que seja ação contra esse movimento.
Mesmo com tudo isso, vale ressaltar que o fato do Vasco ter saído da principal Liga de futebol à época foi importante para o aprofundamento das tensões entre os clubes da elite carioca, da mesma forma que colocou em pauta, mais uma vez, a questão do negro no futebol, ainda que de forma secundária. No entanto, a questão não revela nenhuma disposição do clube em lutar pela comunidade negra, ou mesmo apresentar aproximações que pudessem gerar transformações para essa parte da população.
Enfim, A história do racismo no futebol, assim como a história do negro, ainda tem muito pra avançar. A história vive em movimento e esse post é apenas parte desse caminho. Novos desdobramentos de pesquisas realizadas podem, doravante, me fazer voltar atrás em parte ou no todo desses novos escritos. Por enquanto, aponto para essas conclusões.
Bibliografia
PEREIRA, Victor. Futebol português nas Américas, anos 1890-1960. in: MELO, Victor Andrade de, PERES, Fabio de Faria, DRUMOND, Maurício. 1 ed – Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014.