Por Valeria Guimarães
Quando a expansão do uso do automóvel, proporcionada pelo desenvolvimento econômico dos Estados Unidos após a I Guerra se juntou ao desejo dos norte-americanos de ir ver a América explorando as suas novas estradas em direção ao Sul, no início do século XX, formou-se um movimento singular de aventureiros que tinham em comum o gosto pela prática do camping e pelas viagens em seus veículos particulares – adaptados para longas jornadas e convertidos em trailers.
Assim surgiam os Tin Can Tourists, um grupo organizado, cujo nome não se sabe ao certo a razão, mas que tem muita história para ser contada. Especula-se que há alguma referência ao uso de alimentos enlatados nos acampamentos ou, por outra via, que tivesse relação com o popular modelo Ford “T”, apelidado de “Tin Lizzie” (FLORIDA MEMORY, s/d).
Seja como for, esse movimento organizado, que teve seu pioneirismo na Flórida, chama a atenção por diversos motivos, como a sua estruturação em torno de interesses comuns voltados para o desfrute do lazer, a união da viagem em veículos de passeio customizados com a prática do campismo, a força com que atraiu praticantes da classe média americana, o conjunto de valores morais, regras e rituais cultuados pelos adeptos, as novas sociabilidades surgidas, os jogos esportivos, danças e formas de entretenimento, os impactos na comunidade receptora, entre outros fatores que merecem, sem dúvida, ser estudados com profundidade pelos pesquisadores.
Atribui-se a fundação do movimento ao ano de 1919, em Tampa, na Flórida, época em que também começou a crescer vertiginosamente o turismo receptivo na região, com a chegada de turistas vindos das regiões agrícolas do Norte e do Centro-Oeste do país. Os carros desses viajantes eram modificados, adaptados para receberem barris de água potável e de combustível extra, acoplados na parte traseira, enquanto que no seu interior carregavam suas barracas, peças de vestuário, roupas de cama e muitas latas de comida para garantir a sobrevivência fora de casa, que em muitas viagens se estendiam por semanas.
O filme de animação “Tin can Tourist”, de 1937, satiriza toda a parafernália utilizada pelos proprietários desses modernos trailers que viajavam ao menos duas vezes ao ano para os encontros da organização. É o que se vê na cena abaixo, onde o viajante, um fazendeiro chamado “Al Fafa” encontra-se no interior do seu trailer adaptado com toda a tecnologia para lhe prover dos confortos e facilidades da vida moderna na estrada. A cada alavanca acionada, equipamentos automáticos vão surgindo, como fogão, cama, cabideiro, banheira com chuveiro e água encanada e sofá.
O filme, que é mudo, possui algumas cenas e legendas que enfatizam toda a excitação com a experiência moderna da viagem, ao mesmo tempo em que demonstram que o turista não está disposto a ter grandes despesas no período, como na passagem logo após a cena destacada acima, em que aparece a seguinte informação: “Everything’s automatic, Life is filled with trhills, Now we can forget about the – laundry – bills!”
Por outras fontes, como no blog Tin Can Tourist (https://tincantourists.com/blog/2016/02/01/tin-can-tourists-history/), consta a informação de que o consumo de grandes quantidades de comida enlatada foi uma estratégia característica desses viajantes para baratear o preço da viagem, dispensando a alimentação em restaurantes. Também eram escassos (e caros) os meios de hospedagem e os veículos adaptados com barracas para acampamento supriam essas necessidades.
Ainda de acordo com a mesma fonte, os veículos avariados na estrada exibiam uma lata no capô e eram identificados por outros tin can tourists, recebendo ajuda para prosseguirem viagem. O principal lema do movimento era unir fraternalmente todos os “autocampers”, e seus valores propagavam a limpeza dos locais de acampamento, a amizade entre os participantes, a prática de entretenimento saudável e zelar pela segurança entre os membros.
Em 1921, passados apenas dois anos da fundação do movimento Tin Can Tourists, esses já somavam 17.000 membros, entre adeptos dos Estados Unidos e do Canadá, o equivalente a 1/3 da população de Tampa, na Flórida. A movimentação gerou grandes impactos sociais e econômicos na região, inclusive forte especulação imobiliária, apontando para antecipações do turismo de massa, fenômeno frequentemente atribuído ao período pós II Guerra Mundial.
Acusações como a de abrirem negócios e fazerem concorrência com o comércio local, entre outros fatores, fizeram com que, ainda na década de 1920, esses turistas fossem tachados pela municipalidade da Flórida de “indesejáveis” e uma mobilização de moradores locais forçou o fechamento do De Soto Park em 1924 para evitar a presença desses forasteiros, obrigando os Tin Can Tourists a escolher outras sedes para as suas convenções anuais.
Essa história em muito se parece com os conflitos que ocorrem entre população residente e turistas em muitas cidades do mundo, especialmente nos balneários, inclusive nos dias de hoje. E no Brasil não é diferente. Pelas bandas de cá, adota-se de tudo para coibir nossos turistas de lata, desde a cobrança de altas taxas para ônibus de excursão ou mesmo a proibição de sua entrada nas cidades até o desenvolvimento de um planejamento turístico voltado para construir destinos de turismo de luxo, a preços proibitivos para a maior parte dos turistas.
A história do movimento Tin Can Tourist não para por aqui. Estas notas introdutórias têm a pretensão de levantar a bola e estimular, quem sabe, novos estudos que mobilizem buscas nos arquivos históricos, nos sites, filmografia e instituições ainda existentes que possam trazer novas luzes a esse tema ainda pouco conhecido entre nós. Os Tin Can Tourists surgem poucos anos antes do aparecimento de movimentos automobilísticos organizados no Brasil, como o Touring Club e o Automóvel Club. Estes, certamente mais elitizados, são ancestrais da popularização do automóvel por aqui. Mas, se procurarmos bem, encontraremos nossos tin can tourists por toda parte, buscando o prazer de viajar e de experimentar novas relações sociais por meio do turismo.
Termino este post com as cenas do encontro anual dos Tin Can Tourists de 1939, de volta à Tampa, na Flórida. O esporte, como não poderia deixar de ser, estava inserido entre as atrações do evento, com exibições de boxe, ginástica e outras modalidades. Vale a pena conferir:
Para saber mais:
LONG, LONG TRAILERS. British Pathé, 1939. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Rh6zcokUjRg>
TIN CAN TOURIST. Dir. Davis, Mannie, Gordon, George. Estados Unidos: 20th Century Fox Film Corporation, 1937 (10 min.). Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=JASz9B1ROlE>.
TIN CAN TOURIST – Rollying History. Disponível em: <https://tincantourists.com/blog/2016/02/01/tin-can-tourists-history/>
WYNNE, Nick. Tin Can Tourists in Florida 1900-1970. Charleston, South Carolina: Arcadia Publishing, 2003.
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