Proezas Ginásticas no Rio de Janeiro do século XIX: aproximações de uma história corporal da história da cidade

Por: Fabio Peres e Victor Melo[i]

Em posts anteriores tentamos argumentar que a ginástica – em suas diferentes conotações, formas e tipos – fazia parte da paisagem do Rio de Janeiro do século XIX.  

Mas algo que parece ser central, que constitui ainda um desafio pouco explorado no campo da História do Esporte no Brasil, é corpo per se  tomado como domínio ou objeto de investigação histórica.  

De forma provocativa, podemos dizer que, via de regra, a história das práticas corporais são pouco ou quase nada, com as devidas exceções, corporal.  

No nosso caso, por exemplo, devemos discutir melhor a possibilidade do papel das exibições de ginástica na gestação de um (talvez novo?) ethos corporal na cidade.

A ausência de tipos variados de fontes, sem dúvida, é um obstáculo. Mas será que não haveria formas de se aproximar, mesmo que de maneira ainda incipiente, das representações do corpo?

No decorrer do século XIX, circos que destacavam proezas ginásticas como uma atração se tornaram comuns e muito apreciados na cidade. Mesmo que essa “ginástica-espetáculo” não tivesse grande número de praticantes, sempre cativou um público ávido por novidades; ao que parece de distintos estratos sociais. Temos defendido, inclusive, que antes dos exercícios oferecidos em escolas e agremiações, ela ajudou a gestar uma sensibilidade pública para com a prática.

A especificidade desses espetáculos é que seu poder de sedução estava atrelado diretamente ao próprio corpo, o que incomodava alguns intelectuais, que desejavam anexar à ginástica uma base moral e sanitária.

Devemos lembrar que “a crítica aos exageros do desenvolvimento muscular por ele mesmo e ao funambulismo é ponto passível em todos os educadores que pensaram a educação física escolar nesse momento de transição da sociedade brasileira” (HEROLD JUNIOR, 2005, p. 247).

Para o público, todavia, essa não era uma preocupação. Mesmo quando cresceram as contestações, continuou sendo observável a influência circense nos mais distintos âmbitos.

Se a ginástica era uma das atrações de muitos espetáculos, que tipos de exercícios eram realizados?

Vejamos, por exemplo, a apresentação de Mr. Vally no “Pomposo espetáculo ginástico e dramático, para ser representado perante S. M. o Imperador, o Senhor D. Pedro II, a Augusta Família Imperial”, no Teatro Constitucional Fluminense, em abril de 1838. O “mestre de ginástica de Londres e de Paris” (O Despertador, 27/2/1839, p. 3) prometia executar “na coluna giratória, e nas duas colunas, os mais lindos e delicados exercícios ginásticos, forças, e posições acadêmicas” (O Despertador, 19/4/1838, p. 3).

cap.1.figura 5. O Despertador, 27.2.1839, p. 3.

O Despertador, 27/2/1839, p. 3.

Algumas dessas proezas se tornariam comuns não só nas exibições artísticas como também no cotidiano das sociedades ginásticas e clubes.

Era o caso de números como “A flor da ginástica”, a “Escada perigosa” e o “Salto do Niágara”, “de cujo desempenho deixa o espectador extasiado” (Correio Mercantil, 18/1/1863, p. 4). Em muitas outras ocasiões, os exercícios foram fartamente descritos, um belo retrato de como se organizava a ginástica naquela ocasião).

Vally tornou-se também modelo da Academia Imperial de Belas Artes, em função da sua compleição corporal e por executar as “mais elegantes Estátuas, tiradas da mitologia e da história antiga” (Ver Diário do Rio de Janeiro, 4/4/1839, p. 2.). Vale o registro de como um novo padrão de corpo começava a circular e ser apreciado na cidade, antecipando um movimento que se tornará mais perceptível no quartel final do século XIX e começo do XX (MELO, 2011).

Nos circos melhor constituídos, a ginástica dividia espaço com as atividades equestres e dramáticas, ainda que seja difícil precisar exatamente os limites de cada termo.

Em março de 1840, por exemplo, promoveu um espetáculo João Bernabó, que trabalhara com Chiarini e tinha parcerias constantes com E. G. Mead. Suas apresentações ocorreram em um curro de propriedade de Manoel Luiz Alves de Carvalho, situado no Campo de São Cristóvão, onde também seriam organizadas corridas de touros. A imagem do anúncio, uma parada de mão realizada em um cavalo em movimento, nos permite ver o quanto os exercícios equestres e ginásticos se mesclavam.

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Diário do Rio de Janeiro, 16/5/1840, p. 3.

Outros detalhes conseguimos saber na atuação da Companhia do francês Fouraux, que se apresentou, em 1852, no mesmo Circo Olympico. Na programação das funções de fevereiro, num rol de 11 atividades divididas em duas partes, cinco referem-se a exercícios de equilíbrios, entre os quais “a luta ginástica, e vários saltos perigosos por cima de seis cavalos, executada por todos os artistas da companhia”, e “exercícios ginásticos e salto dos duplos toneis” (Correio Mercantil, 12/2/1852, p. 4).

Uma informação merece ser destacada no que tange à atuação dessa companhia: “O Sr. Fouraux tem a honra de prevenir o público que dá lições de equitação” (ibid.). Na realidade, vários foram os profissionais que trabalharam nos dois âmbitos, no espetáculo e no ensino, importante indício de que houve um trânsito de informações e referências.

Vejamos outro exemplo. Ao comentar a performance de Neal e Rogers, do Circo Grande Oceano, um cronista lembra que muitos amadores buscavam os ginásios para se exercitarem, e que as atividades acrobáticas eram as mais difíceis e apreciadas. Informa que os dois artistas dirigiam uma escola de ginástica própria, além de encantarem por sua exibição:

Uma vez são as provas de uma força hercúlea o que admira a todos, outra a flexibilidade dos seus corpo, como se fossem de borracha, os graciosos movimentos, as transformações incríveis, as posições incompreensíveis (Correio Mercantil, 24/6/1862, p. 4),

Nas exibições ginásticas utilizavam-se implementos diversos: camas elásticas, cordas, pórticos, barras e trapézios, material que também seria adotado em escolas e clubes. Força, equilíbrio, flexibilidade, agilidade eram valências físicas mobilizadas. Coragem e ousadia eram valores destacados. O risco era a dimensão mais comumente exaltada, tida como importante fator de atração de “um público que sabe reconhecer o quanto custa um trabalho cheio de perigos, pela incerteza que há nesta arte”.

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Correio Mercantil, 22/1/1860, p. 4

Vejamos essa longa descrição de um cronista sobre as sensações causadas pelo espetáculo de dois ginastas no Politeama Fluminense:

Todos os corações como que deixam de palpitar; o sangue gela-se nas veias; o sistema nervoso sofre violentas impressões e das mãos frias do espectador dessora uma transpiração gélida e incomoda. Só volta o coração a sua regular oscilação de pêndulo da vida, e o calor se espalha pelo corpo, quando os dois artistas terminaram aquele perigosíssimo exercício. Então as mãos aplaudem freneticamente e o entusiasmo transborda em todos os peitos (Gazeta da Tarde, 30/7/1881, p. 2).

Essas impressões mobilizaram a cidade de tal maneira que chegaram a ser desencadeadas iniciativas de controle por parte das autoridades:

O Sr. Desembargador chefe de polícia expediu circular aos subdelegados determinando que obriguem os empresários de circos ginásticos a usar redes e outros aparelhos de salvação, próprios para guardarem a vida dos artistas que se arriscam em tais trabalhos (O Globo, 1/9/1877, p. 2).

De fato, eventualmente vemos pelos jornais algum incidente, em número bem menor do que fazia crer as propagandas dos circos, que exageravam para atrair o público. Vejamos a notícia de um acidente: “No espetáculo da tarde de ontem no circo Grande Oceano, teve lugar um deplorável acontecimento. O Sr. Julius Buislay teve a infelicidade de cair de um dos trapézios da altura de 30 pés, ficando com o braço direito fraturado em duas partes” (A Atualidade, 13/7/1863, p. 3). Essas ocasiões, de alguma forma, ajudavam a reforçar a ideia de que aquela atividade era mesmo perigosa. Curiosamente, uma das companhias em que mais incidentes foram registrados foi a do Teatro-Circo, que se apresentava como a “nec plus ultra da ginástica”, isso é, “a que não pode ser ultrapassada”. De fato, suas apresentações eram marcadas por números muito arriscados, chamando muito a atenção do público.

Desafiar e superar as condições naturais eram claramente dimensões mobilizadas nos espetáculos, intencionalidades que vão marcar, seja qual for o teor do discurso, a prática da ginástica na Corte. Isso por vezes era mais sutil, por outras era explícito. Vejamos como se anuncia a apresentação de Jeronymo Lauriano da Costa, que sem os braços executava várias proezas somente com os pés: “Prodígio e aborto da natureza” (Correio Mercantil, 5/2/1860, p. 4).

Uma vez mais o circo refletia um dos dramas da modernidade. Era possível superar os limites divinos por um processo de produção racional de conhecimento. Doenças podiam ser superadas pela medicina. Pontes superavam obstáculos naturais. As técnicas permitiam aos homens “flutuar”. A ginástica dos circos transitava por padrões de racionalidade tanto quanto a dos médicos. A diferença era a especificidade do diálogo.

As proezas ganhavam diferentes definições, tais como: “Grandes volteios aéreos, e saltos por cima das tiras, executados pela Sra. Varin”; “Diferentes exercícios de equilíbrio e força, pelo Sr. Francisco”; “Trabalho grotesco de elevações, passando por cima de diferentes objetos e pipas, executados pelo Sr. Joanny Fouraux” (Correio Mercantil, 11/3/1852, p. 4). Da mesma forma, muitas eram as denominações utilizadas: salto ginástico, salto aéreo, elevações ginásticas, volteios ginásticos.

Um exercício muito conhecido era assim descrito: “As argolas volantes, ou os suplícios romanos, trabalho de forças e grande dificuldade, executado pelo Sr. Francisco” (Correio Mercantil, 16/5/1852, p. 4). Voos e saltos eram muito valorizados. Por exemplo, a “Grande luta ginástica e acadêmica” tratava-se da execução de “saltos mortais em diferentes sentidos, por cima de muitos cavalos” (Correio Mercantil, 24/6/1852, p. 4.)

Em muitas ocasiões relacionavam-se as cenas a feitos “históricos” (como “O grego heroico em combate com o mouro rebelde”), “primitivos” (como “o selvagem do norte no exercício da caça) ou “exóticos” (como “a carreira rápida do volteador chinês” e “a carreira veloz da sílfide”). Todas essas atrações integraram a programação do Circo Olympico de 27 de maio de 1860 (Correio Mercantil, 27/5/1860, p. 4).

No decorrer do século XIX vários sentidos se cruzavam ao redor da palavra “gymnastica”, bem como diversos termos tocavam em dimensões que se relacionavam com a prática, tais como “exercício”, “athleta”, “lucta”. Não surpreende, assim, que alguns circos tenham abrigado atividades correlatas.

Por exemplo, em dezembro de 1856, o Circo da Guarda Velha anuncia a realização de “Grande luta de assalto” (Correio Mercantil, 19/12/1856, p. 4), da qual participariam “jovens atletas desta capital”. Tratava-se de uma eliminatória: ao fim do dia sairia o campeão. Os promotores, Duffaud e Hyppolite, não somente convidavam a tomar parte “os amadores destas partidas de ginástica”, como anunciam que “dão lições particulares da luta Chausson, ou de pés e pugilato, ou de socos, etc”.

Enfim, como já apontamos em outras ocasiões, parecia mesmo onipresente no Rio do século XIX, inclusive corporalmente, nossa estimada ginástica.

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[i] Parte deste texto foi publicado originalmente em MELO, Victor Andrade de; PERES, Fabio de Faria. A gymnastica no tempo do Império. Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2014. (Coleção Visão de Campo)

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