O ceará, a abolição e o racismo no futebol.

Os estudos sobre o futebol, notadamente aqueles que frequentam o imaginário sobre a história desse esporte, ficaram fixados, durante muito tempo, nas experiências vivenciadas no Rio de Janeiro e São Paulo. No entanto, saindo desse eixo, temos um grande número de vivências socioesportivas que poderiam nos ajudar a compreender melhor o fenômeno, não fossem menosprezados.

Diante disso, resolvi “percorrer” o Brasil e tentar validar, ou não, as minhas apreensões sobre o racismo no esporte, em particular no futebol, já realizadas em meus estudos sobre cariocas e paulistas. Nesses novos trajetos, andei por terras gaúchas e baianas. Por lá, constatei divergências e semelhanças que me fizeram expandir a minha compreensão sobre o racismo no futebol.i

Continuando minhas andanças, no post de hoje, resolvi visitar as lindas terras cearenses. Partirei da sua história de emancipação dos escravos, em 25 de março de1884ii, portanto, a primeira do Brasil, e da chegada e desenvolvimento do futebol naquelas terras (1903/04). Nesse contexto de análise, tentarei demonstrar o quanto a luta pela abolição da escravatura não reverberou na luta contra o racismo na sociedade, em particular no futebol. Assim, mais uma vez, farei um esforço para demonstrar a fragilidade dos discursos, também atuais, daqueles que dizem lutar pelo fim do racismo, apenas por questões pontuais marcadas em sua trajetória.

De forma apressada, em geral, associamos aqueles que lutaram contra escravidão há um perfil socialmente mais igualitário e que, por essa aproximação, o racismo subsequente experimentado pela população negra se tornaria incoerência a priori, devido a natureza e o vínculo entre as questões. O que percebemos, nesse caso, é que a parte dos setores envolvidos no processo de emancipação, especialmente a classe média, foram as mesmas que criaram ou aceitaram as distinções existentes no campo esportivo em relação a presença e a desqualificação dos negros no esporte. Vejamos:

A década de 1880 foi um marco no processo de emancipação dos escravos no Ceará. Houve, nesse período, uma organização dos clubes emancipacionistas e, ao mesmo tempo, um avanço nas campanhas da imprensa sobre o tema. Por um curto período, 1881 e 1882, a opção por uma abolição gradual era a mais defendida. Porém, em 1883, houve um recrudescimento no esforço de uma abolição mais rápida.

Entre aqueles que defendiam um processo rápido e aqueles que optavam pela forma gradual, havia um consenso: a inevitabilidade do fim da escravidão. Mesmo a igreja católica que, durante o século XIX defendera e legitimara a permanência do sistema, “mudou” de lado nesse período. Em geral, todos passaram a defender o fim da escravidão.

Nesse momento ainda não tínhamos o futebol no ceará. Porém, esse período foi crucial para a realocação do negro na sociedade cearense. O escravo passaria a homem livre e, teoricamente, passaria a poder frequentar os espaços de sociabilidade do homem branco. É, nesse sentido, que entra o futebol e o racismo experimentado nesse esporte.

Considerando a luta e o resultado pela emancipação dos escravos, antecipada e, sobretudo, vitoriosa em terras cearenses, antes mesmo das principais capitais brasileiras (RJ – SP), poderíamos supor que, de um modo geral, a posição do negro pós-escravidão tenha sido menos segregadora ou desqualificadora das outras capitais. Ledo engano, caro leitor.

O fim da escravidão não gerou cidadania. O fim da escravidão não gerou reconhecimento, acolhimento e, principalmente, acomodação da comunidade negra. Afinal, suas experiências, símbolos e práticas continuaram fora das representações de modelos sociais. Usando o futebol como objeto de análise para o caso, podemos confirmar essa tese.

Assim como noutros cantos do país, o futebol cearense também possui um “mito fundador”. Ainda que, como noutros locais, sobre controvérsias, José Silveira foi o personagem eleito para forjar o mito. Filho de portugueses, aos 22 anos, retornava da Europa (alguns dizem que ele retornava do Rio de Janeiro) com uma bola na sua bagagem. Independente do ponto de origem da sua viagem, foi, mais uma vez, um jovem da elite local que recebeu os méritos pela inserção do futebol local. A história se repete. Mais do que isso, mesmo que as fontes apontem para uma popularização rápida do futebol e, principalmente, colocava essa informação como algo positivo, o modelo a ser seguido permanecia sendo o dos jovens da elite local. Ou seja, o mais do mesmo se confirma, também, no ceará. O futebol da periferia, como noutras capitais estudadas, era apresentado como rude e seus praticantes eram mau educados e grosseiros, como aponta o jornal A Gazeta de Notícias, do dia 11 de agosto de 1927, Ano I, N° 1:

“Durante o dia de domingo, e geralmente às tardes, reúnem-se imnúmeros meninos desoccupados e iniciam o seu inacabável foot-ball. (…) A match acompanha commumente os palavrórios dos mal educados jogadores”.

“O barulho, as palavras indecentes e o fervor tanto dos praticantes como dos espectadores são concebidos como inconvenientes: assobios, gritos e palavras obscenas(das maiores)somos obrigados a ouvir”.

Assim como aconteceu noutras capitais, os clubes populares do ceará, especialmente aqueles que possuíam negros, foram forçados a criarem uma liga e campeonatos próprios. Ainda que o processo de mercantilização do futebol, a partir dos anos 40, tenha gerado uma acomodação de atletas de outras classes sociais e etnias, as distinções, nesses moldes, permaneceram posteriormente.

O futebol da várzea, nesse processo, se confirmava como sendo um caso de polícia, visto que a sua prática, desregulada e desmedida, fragilizava o imaginário de civilização ascendente para elite local. Ou seja, o futebol na capital Cearense, assim como no Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Salvador, seguiu o caminho da exclusão, da estruturação segmentada e, fundamentalmente, da legitimação da elite como modelo dos modus operandi.

Enfim, os mesmos “homens” que se organizaram, lutaram e aboliram a escravidão, em tempo recorde, mantiveram os homens de cor excluídos do que reconheciam como modelos sociais. Ainda que houvesse, em geral, a participação de negros e populares nas práticas esportivas, especialmente como apostadores e espectadores, a posição do grupo seguia como periférica na escala de valor simbólico e real.

A história seguiu, o futebol se desenvolveu e, doravante, acomodou os homens de cor. No entanto, a tese de que clubes lutaram contra o racismo segue mostrando suas fragilidades, ainda que, pontualmente, suas ações tenham gerados algum tipo de conflito e movimentação no campo esportivo. Nesse sentido, entendo que se quisermos, efetivamente, entender e combater o racismo no esporte, precisamos ter clareza dos limites dessas histórias que preencheram nosso imaginário e, mais do que isso, devemos fazer muito além de levar faixas para o centro do campo e acreditar que isso basta para encerrar uma luta de séculos.

i Ver em: SANTOS, Ricardo Pinto dos. Futebol Fora do Eixo: uma história comparada entre o futebol de Porto Alegre e Salvador – 1889-1912. Tese (Doutorado em História Comparada) Instituto de História, Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014).

iiAlguns historiadores consideram que a emancipação no ceará ocorreu em 01 de janeiro de 1883, durante a entrega das cartas de alforrias a 116 escravos, na vila do Acarape, atual município de redenção.

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