O FLA-FLU É UM “AI, JESUS”!
Por Edônio Alves
Tal como acontece no futebol, espaço de criação, no esporte, onde existem jogadores geniais convivendo com outros boleiros não tão afeitos ao domínio do bom jogo individual; do bom exercício da criação de jogadas de efeito com a bola aos pés; da fabricação de magia e encantamento ao toque da bola manejada com o talento e com inspiração – enfim: com o jogo bem feito -, há, no mundo da literatura que tematiza esse esporte, os escritores mal resolvidos com a palavra; os escribas pernas de pau, os escrevinhadores que não logram sequer sacudir a torcida (os seus leitores) com a marca de uma jogada bem executada; um lance de nível e de permanência, mesmo que para tal tenham se servido da sorte ou do bom augúrio das musas, vá lá!
Nesse sentido, o conto de futebol analisado a seguir é uma daquelas narrativas em que o seu autor-jogador-escritor tenteou, tentou, tentou, mas ao invés de produzir um lance digno de nota, digno de louvor, conseguiu, no máximo, um cruzamento de bola para a área adversária de tal monta que ninguém (nenhum dos seus companheiros de time) pôde aproveitar para marcar o gol. E nesses casos, já se sabe, alma nenhuma– nem os próprios companheiros, o treinador do time, a torcida, enfim; nem o próprio leitor-torcedor – o perdoa na análise rigorosa que faz do lance. Vejamos, na prática, um caso desses, na leitura que faço do conto Uma vez Flamengo, do escritor Dias da Costa.
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Esse é um daqueles contos de futebol que não trás nenhuma novidade técnico-literária e tampouco investe de forma segura em nenhum dos seus aspectos temáticos mais fascinantes como, por exemplo, os paradoxos de complementaridade e de fundação do jogo da bola. Aqui, novamente é tematizada uma situação que se não for devidamente elaborada de forma que dela se possa extrair um bom rendimento estético, o seu mero registro ficcional pode se tornar inócuo, senão perigosamente clicherizado, como é o caso em questão, de um sujeito que em meio a um fluxo poderoso de emoções díspares, morre em plena arquibancada do Maracanã, vitimado por um ataque cardíaco. Ou seja: o clássico quadro estrutural da reversibilidade semântica do futebol por onde se pode ver que da mais funda alegria pode-se extrair a mais profunda tristeza.
Não que esta narrativa de Dias da Costa não se sustente do ponto de vista estético. O autor até que consegue uma boa empatia do leitor para com os acessos emocionais do seu personagem Luiz, um típico torcedor do Flamengo que depois de muito tempo sem ir a campo, retorna ao Maracanã para ver uma final de campeonato num dia típico de FLA-FLU.
Um tanto baqueado pela idade, condição existencial que, diga-se de passagem, o personagem só vem ter acesso por conta de sua condição de torcedor, Luiz outra vez se vê experimentando o que mais gosta de fazer: assistir ao seu Mengo jogar e disso extrair grande parte do significado da sua vida. Aqui, o futebol é tratado, através de um narrador em terceira pessoa, por um dos seus aspectos sociológicos mais controversos. Como pura evasão, por assim dizer, como “fuga do real, representação imaginária”, o que, nas palavras do historiador Hilário Franco Júnior, inevitavelmente o liga ao mundo das artes, do cinema, do teatro, da literatura; por esse traço do campo artístico não se diferenciando dele de forma alguma.
“Luiz sentiu-se feliz. Naquele momento não estava se lembrando de uma porção de coisas chatas que enchiam a sua semana. Esquecia a luta com o agiota para arrancar mais aquele dinheiro que estava gastando ali, aquele agiota miserável que cobrava dez por cento de juros por semana; esquecia que só tinha aquela roupa de brim que trazia no corpo; esquecia a furunculosa da filha, o gênio ruim da mulher, a conta da padaria, os conselhos do médico do Sindicato, as safadezas do patrão, as discussões bestas na oficina sobre a bomba atômica, o preço dos gêneros, a vida apertada de todo dia”.
Contudo, o problema geral dessa narrativa não é apenas essa visão alienante do futebol que ela deixa, nas entrelinhas, transparecer, numa outra clicherização de fundo temático. A ponto de seu personagem principal não atentar para a recomendação do “médico do Sindicato” e sustentar, por criação do narrador, nesse evento particular, o móvel da sua razão de ser e da própria história. Para o bem e para o mal, há mais que se observar nesta história curta em que Dias da Costa se aventurou glosar ficcionalmente o tema do futebol.
Pelo lado bom, ressalvemos alguns procedimentos narrativos de mínimo efeito estético da forma a se espraiar sobre o conteúdo. O primeiro deles é o narrador fazer coincidir a concepção do tempo da narrativa com o tempo interior vivido pelo personagem. E mais ainda: a passagem do tempo ser medida por índices intrínsecos ao mundo do futebol, o que faz gerar outra coincidência digna de nota, o mundo existencialmente significativo interior do personagem ser aferido pelos dados do mundo exterior do bolapé, como diriam os escritores dos tempos primevos do futebol. Exemplos:
“Que é isso, Luiz, estás ficando velho? Vê lá se tu és torcedor de cadeira. Então estás esquecendo o teu passado? Tu que já andastes por todos os campos da cidade, acompanhando o teu Flamengo… Tu queres agora comprar cadeira no cambista, ficar no bem-bom, longe da torcida boa, dos bofetões, das bandeiras rubro-negras saracoteando, das cabrochas, da girafa – é a maior – das barracas, da charanga, das piadas boas… Tu estás ficando velho, Luiz? Tu que ias pra tudo quanto era campo. Pra Madureira, pra Bariri, pro Alçapão de São Cristóvão que caiu naquele dia, pro Fluminense, pra General Severiano, então, agora queres ir pra cadeira azul? Estás borocochô, Luiz?”
Ou:
“Isso era antigamente. Gostava daquilo tudo. Mesmo agora, imaginando, achava ainda bonito, sem saber bem por quê. Gostava de ver aquela gente toda, barulhenta, alegre, com trajes multicolores, se agitando pelos degraus largos de cimento da arquibancada, no meio daquela paisagem majestosa e calma, enquanto ele ficava lá embaixo, na geral, junto da cerca, junto do campo verde, perto do seu Flamengo, correndo no campo, suando a camisa. Coisa de antigamente.”
Ora, esses dois trechos aí demonstram muito bem a eficácia estética da estratégia do narrador em dramatizar a transição de um tempo feliz vivido pelo seu personagem para um tempo que, no seu peito, se vai apertando, apertando, apertando…até que:
“Voltou ao presente, estava de novo na fila pra comprar a entrada. Não havia pressa. Àquela hora nem o jogo dos juvenis começara. Tinha tempo. É verdade que estava chegando gente pra ‘xuxu’. Mas o Maracanã era grande – o maior do mundo! Tinha lugar pra todos. Pena é que não estivesse acabado, tão feio por fora, que não dava idéia do que era por dentro. Não deviam deixar estragar aquela beleza…”
Esse ir e vir do tempo na cabeça do personagem, sempre pontuado por índices externos afeitos ao universo do futebol (por exemplo: a datação da história sendo feita pelos nomes dos jogadores daquele Fla-Flu, ou pela visão do Maracanã ainda em construção para abrigar jogos da Copa de 50 no Brasil), é um recurso narrativo bastante feliz para um tema que tem no seu aspecto mítico um apelo bastante forte para captar a atenção afetiva do leitor.
“Esperou que os quadros se arrumassem e ficou contente de ver o Flamengo completo. Não faltava ninguém. Ari embaixo dos paus, Joubert e Pavão na zaga, os médios mais na frente, Jadir, Dequinha, e Jordan, e mais espalhados, no centro, Joel, Moacir, Henrique, Dida e Zagalo. Olhou para o outro gol e viu Castilho no arco, o homem da ‘leiteria’, Cacá e Pinheiro – arrumados como Joubert e Pavão do outro lado. Aquilo era bonito, sim, era de deixar a gente maluco, esquecer tudo. Já uma vez ele tinha dito: ‘Para mim três coisas no mundo são sagradas – minha mãe, a memória do doutor Getúlio e o Flamengo”.
Pois bem! Das três coisas sagradas para o personagem-torcedor, o Flamengo de Dida, Dequinha e Pavão, assim como a memória do doutor Getúlio, são realidades perfeitamente datadas que situam efetiva e afetivamente o leitor num tempo por volta do final da década de quarenta, início dos cinqüenta, época muito cara na memória histórico-afetiva-cultural brasileira. E quem não se envolve com uma narrativa que de maneira relativamente bem realizada não desenvolve esse apelo?
Para encerrar, desçamos ao lado, digamos, não muito bem resolvido da narrativa. Esse mesmo passar do tempo tomado na sua função diegética, isto é, na sua tarefa de fazer avançar as ações da história de modo que culminem com o seu desfecho, é aqui exposto de modo bastante lugar-comum, prejudicando o efeito de sentido do conto, tornando-o de final surpreendentemente previsível, o que, para a tecitura de uma estória curta, é absolutamente injustificável. A não ser que haja uma razão de verossimilhança interna plenamente sustentável, o que não é o caso deste causo.
Por fim, usei a expressão “surpreendentemente previsível” para classificar o desfecho final deste conto de Dias da Costa, para intencionalmente indicar outra da suas maiores falhas: o tomar um paradoxo fundante do futebol (a sua fascinante característica de juntar opostos, ou sociologicamente falando, a sua constante estrutural de unir alegria e tristeza, local e universal, individual e coletivo, por exemplo) para “resolvê-lo” literariamente de forma ortodoxa e não paradoxal também, como simetricamente exigiria, a meu ver, essa dimensão antropológica do tema. Pode-se antever literalmente isso pela leitura do segmento textual imediatamente anterior ao seu desfecho:
“Um grande clamor elevou-se nos ares nesse instante. Os morteiros explodiram na tarde clara, mulheres gritaram histéricas, a charanga toucou alto, e o estádio se agitou sacudido num pandemônio. E os locutores anunciaram nos seus microfones o gol do FLAMENGO”
Ressalvando que mulheres não só gritam histéricas, mas também de alegria incontida, assim como esse outro clichê linguístico do “grande clamor elevar-se nos ares nesse instante”, não preciso lembrar, pelo que foi dito no início desta resenha crítica, de que instante está-se tratando aqui para encerrar o conto. Previsibilidade plena. E assim como para o bom jogador no futebol, o que se deve exigir do bom escritor de estórias curtas é um bom grau de imprevisibilidade no trato com a palavra-bola.