Esporte na guerra: elemento para preservação da (o) moral das tropas

por Karina Cancella

Durante momentos de mobilização para conflitos, uma das preocupações das lideranças das Forças Armadas (FA) é a manutenção do moral das tropas. Os longos períodos distantes da família e da terra natal e as próprias tensões impostas pelo conflito podem ser extremamente desgastantes para os militares. Essa questão é bastante presente em documentos oficiais das FA estadunidenses ao longo dos anos finais do século XIX e anos iniciais do século XX, por exemplo. Naquele momento, os comandos iniciaram um processo de planejamento de atividades que auxiliassem nos aspectos morais de suas tropas e o esporte ganhou espaço de destaque.

O termo moral, naquele contexto, poderia estar se referindo a dois aspectos distintos: “o moral”, no sentido de ânimo, disposição e “a moral”, como sinônimo de bons costumes. Nas documentações, foi possível perceber a mobilização do esporte como elemento reforçador do moral e da moral dos militares estadunidenses nos contextos de mobilização e atuação em guerras.

Wanda Wakefield, em sua obra “Playing to win: sports and the American Military 1898-1945”, afirma que o esporte foi defendido fortemente pelos comandantes das FA estadunidenses como oportunidade de distração saudável para os militares em campanha, sendo sempre enfatizada a necessidade de afastamento de práticas consideradas ilícitas pelos comandos, como ingestão de bebidas alcoólicas, envolvimento com prostituição e jogos de azar. (WAKEFIELD, 1997).

Utilizando também esse argumento “moralizante” para explicar a introdução do esporte de forma sistemática entre os militares estadunidenses, Joseph Mennell no artigo “The Service Football Program of World War I: Its Impact on the Popularity of the Game” trata especificamente da formação dos programas de esporte para tropas. Mennell afirma que as origens de um programa de competições esportivas como parte do treinamento dos militares estadunidenses se originou por uma situação que chamou de “escândalo sexual”, ocorrida em 1916. Naquele ano, parte do território estadunidense foi invadido por Pancho Villa e coube ao General John Pershing a proteção das terras e a captura de Villa. Para isso, foram enviados grupos de jovens da Guarda Nacional para concentração em Fort San Houston, no Texas, para atuar no policiamento de fronteira. O problema real se iniciou quando os jovens, por não terem atividades para ocupação de seus tempos livres, passaram a visitar as cidades no entorno dos acampamentos em busca de opções de divertimento. No entanto, encontraram de fato “doenças venéreas e álcool barato”. (MENNELL, 1989, p. 251).

Após as notícias sobre esses problemas chegarem a Washington, foram enviados representantes para realizar uma inspeção nos acampamentos e foi confirmado que os jovens militares estariam realmente se envolvendo em diversas formas de vício, hábitos mal vistos pelos comandos, por uma ausência de atividades recreativas controladas no interior dos acampamentos. Para iniciar a solução dos problemas, segundo os informes do relator, foram introduzidos equipamentos esportivos doados por uma Young Men’s Christian Association (YMCA) local. (MENNELL, 1989).

A entrada dos EUA na Primeira Guerra reforçou as preocupações com os momentos de tempo livre das tropas em serviço, uma vez que teriam grandes somas de homens jovens mobilizados para o conflito. Caso não fosse efetivada alguma providência no sentido de elaborar atividades de tempo livre dentro dos acampamentos, poderia ser repetido o escândalo de 1916, fator que causaria grandes prejuízos à imagem do então presidente Woodrow Wilson. (MENNELL, 1989, p. 251).

Após análises dos comandos, identificou-se que a melhor forma de prevenir os vícios dos jovens militares seria com a promoção de atividades recreativas organizadas e controladas. Foi então criada a “Commission on Training Camp Activities” no Exército para supervisionar atividades de lazer, com o esporte integrando seu quadro, sob a direção de Raymond Fosdick. A Marinha dos EUA, pouco depois, criou uma comissão nos mesmos moldes. Para a organização das atividades, foram nomeados diretores esportivos para cada um dos campos. Eles teriam atribuições de localizar treinadores para as modalidades que eles considerassem adequadas para seus militares. (MENNELL, 1989, p. 251).

Reafirmando esse ponto apresentado por Mennell, Wanda Wakefield (1997) lembra a importância da presença também de entidades civis, como a YMCA, no desenvolvimento de atividades nos campos.

Os aspectos da preservação da moralidade defendidos pelos militares foram ainda divulgados entre a sociedade estadunidense como forma de “tranquilizar” as mães que enviaram seus filhos para a guerra. O jornal “The Sun” de 1 de setembro de 1918 publicou uma matéria intitulada “Seu menino está totalmente seguro moralmente na Guerra”, em que apontava o empenho das FA em estabelecer condições para que os jovens tivessem suas concepções morais preservadas durante a atuação no conflito:

Seu menino está totalmente seguro moralmente na Guerra – A disciplina do Exército e o aumento do número de outras salvaguardas tornam sua vida melhor até do que quando está em casa

“Nenhuma mãe precisa ter medo secreto de seu filho ser moralmente contaminado na guerra de hoje. Não há lugar mais seguro para um menino do que o exército ou a marinha. Noventa e cinco por cento dos homens sairão da guerra maiores, melhores e mais limpos mental, moral, e fisicamente do que entraram, e dos 5 por cento, isso não, eu arrisco a dizer que 4 por cento levaram a deterioração da vida civil com eles para a guerra”.

O orador não era um pregador. Ele era um homem da medicina, e ele também era um diretor de esportes para a Divisão da YMCA no Exército, que tem desde o início da guerra vivido, comido, dormido, sonhado e trabalhado com os “meninos” da época em que foram registrados com roupas civis até que eles fossem para as trincheiras na linha de fogo. […].[1]

 

Novamente, é possível perceber no trecho a mobilização de argumentos sobre a importância da manutenção da moralidade no ambiente militar estadunidense. Nesse cenário, como já colocado, o esporte serviu como um instrumento de grande utilidade para os comandos das FA.

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Competição de cabo de guerra realizada nos Jogos Interaliados em 1919, ao final da Primeira Grande Guerra. Fonte: https://interalliedgames.org/category/tug-of-war/

 

Realizando uma rápida pesquisa em buscadores de informações nos dias de hoje, podemos perceber o grande destaque que as práticas esportivas ainda recebem no cotidiano militar nos Estados Unidos, tanto nos períodos de treinamento e preparação quanto nos momentos de atuação efetiva em conflitos ao redor do mundo. Os programas esportivos das Forças Armadas estadunidenses iniciados há mais de 100 anos seguem trabalhando intensamente em diversas regiões ao redor do planeta.

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As Forças Armadas dos Estados Unidos mantêm um setor específico dentro do Departamento de Defesa responsável por toda a gestão e organização esportiva envolvendo militares estadunidenses. Maiores informações, ver site: https://armedforcessports.defense.gov/

 

Fontes:

[1] LAUT, Agnes C. Your Boy Is Wholly Safe Morally in War. The Sun, 1 de setembro de 1918, p. 5.

Referências:

WAKEFIELD, W. Playing to win: sports and the American Military, 1898-1945. Albany: State University of New York Press, 1997.

MENNELL, J. The Service Football Program of World War I: Its Impact on the Popularity of the Game. Journal of Sport History, v. 16, n. 3, p. 248-260, 1989.

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