Esportes nos sertões das Gerais

Cleber Dias

cleberdiasufmg@gmail.com

Recentemente veio à luz o livro Histórias do lazer nas Gerais, organizado por mim e pela professora Maria Cristina Rosa, colega na Universidade Federal de Minas Gerais, publicado pela editora da mesma universidade. O livro traz onze capítulos sobre a história do lazer em Minas Gerais em diversos períodos, do século 18 aos meados do século 20, escritos por diferentes autores e tratando de diferentes aspectos, desde diversões cotidianas como a frequência a bares e botecos, até o teatro, a dança cênica, as festas religiosas ou o turismo em estações termais, em distintas cidades de Minas Gerais. 

Mais alguns detalhes sobre o livro podem ser vistos em matéria publicada no Boletim da UFMG (veja aqui).

Os esportes, como uma das formas mais disseminadas de ocupação do tempo livre desde os princípios do século 20, estão também presentes no livro. Reproduzo abaixo trecho do capítulo dedicado aos esportes no interior de Minas Gerais, escritos por mim; por Euclides de Freitas Couto, professor da Universidade Federal de São João del Rei; por Carlos Fernando da Cunha Junior, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora; por Luciano Pereira da Silva, da Universidade Federal de Minas Gerais; e por Georgino Jorge de Souza Neto, da Universidade Estadual de Montes Claros. 

“O debate historiográfico sobre o lazer relaciona-se de diferentes formas com questões relativas ao progresso e a modernidade. Desde as primeiras pesquisas que estimularam a inauguração de um campo de estudos especializados sobre o assunto, destaca-se uma originalidade ou ruptura fundamental no modo contemporâneo de organizar-se o tempo livre. Além de evidências documentais de fato disponíveis nesse sentido, a assimilação de um quadro teórico particular, concorreu decisivamente para a consolidação deste modo de olhar, logo elevado à condição de paradigma dominante nos estudos do lazer em geral, mas também na sua historiografia, em particular. Mais especificamente, a teoria da modernização serviu, e em larga medida serve ainda, como grade interpretativa através da qual apreendem-se transformações históricas no âmbito do lazer. De acordo com as linhas gerais desta interpretação, a organização social do tempo na modernidade representaria uma mudança radical e mais ou menos abrupta com as suas formas pré-modernas ou pré-industriais.

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Alunos do Ginásio Diocesano de Uberaba praticando esportes. Fonte: ARQUIVO PÚBLICO DE UBERABA. Uberaba: 100 anos de olhares e memórias (primeiro século, 1856-1956). Uberaba: Arquivo Público de Uberaba / NF Editora, 2009.

Coerentemente, são estes os termos por meio dos quais vêm sendo geralmente estudado o desenvolvimento histórico do lazer no Brasil. Para reforça-los, quase a despeito de quaisquer influências teóricas, em inúmeras ocasiões, práticas lúdicas diversas serviram, de fato, como índice de progresso dos costumes e evolução dos comportamentos. O teatro, o cinema, o circo, o baile, a soirée, a retreta, o piquenique, o espetáculo de música ou o passeio na praça ajardinada, foram objetos de uma retórica, quase sempre das elites, que os percebia como prova inequívoca de modernidade. Tudo isso afetou várias diversões públicas e privadas, mas parece ter sido especialmente verdadeiro para os esportes, que foram vistos e representados em toda parte como símbolo acabado de modernidade. Seus novos usos e concepções do corpo, sua codificação gestual peculiar, seu vestuário e mecanismos de comercialização, a excitabilidade emocional das competições, a sociabilidade pública e o espetáculo em si, foram alguns dos elementos que ajudaram a acentuar a percepção de que os esportes dramatizavam o advento de padrões de comportamentos sociais inovadores.

Nos sertões do Brasil, isto é, em cidades do interior, às vezes mais, às vezes menos afastadas dos centros urbanos onde tais transformações se desenrolavam de maneiras supostamente mais intensas, os efeitos de processos ou de ambições modernizadoras parecem ter sido especialmente dramáticos. Nesses lugares, historicamente marcados pelo estigma do atraso e do subdesenvolvimento, frequentemente surgiu uma quase obsessão entre certos grupos com qualquer novidade que pudesse comprovar, ou ao menos representar, a emergência de costumes reiteradamente tidos por “mais modernos” e em conformidade ao que se supunha ser o padrão de outros “centros mais avançados”. As novidades enquadradas neste prisma iam desde o telégrafo até a luz elétrica, passando pela linha férrea, pelos cinemas, mas também pelos esportes, que logo integraram esse corolário. Na verdade, processos modernizadores inauguraram mesmo novas formas de se refletir sobre performances corporais no espaço público. No curso desse processo, o corpo assumiu certo protagonismo nas interações sociais, apresentando-se como instrumento privilegiado para lutas simbólicas, que, literalmente, “incorporaram” a ética e a estética dos novos tempos. Com efeito, a introdução de práticas esportivas parecia ser condição indispensável para o estabelecimento de um novo homem, sintonizado com uma moral.

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Estádio do Athletic Club, Campeonato Municipal de São João del-Rei, 1919. Fonte: Projeto Nas vertentes do futebol. Universidade Federal de São João del-Rei.

Sobre essa temática, a historiografia brasileira produziu nas últimas décadas um volumoso e consistente corpus bibliográfico, que tem desvelado várias nuances do processo de disseminação de práticas esportivas nas grandes cidades brasileiras. No entanto, dada a dimensão continental do Brasil, que comporta uma infinidade de trilhas históricas a serem percorridas, investigar a introdução dos esportes nos sertões se apresenta como empreitada imprescindível. O estudo que ora se apresenta pretende oferecer uma contribuição nesse sentido. Desenvolvido no marco de um projeto que articula investigações de quatro universidades de Minas Gerais (além de outras duas da Bahia), envolvendo pesquisas nos acervos de diferentes instituições, concentramo-nos aqui na descrição e análise do desenvolvimento histórico inicial dos esportes em quatro distintas regiões: a Zona da Mata, o Campo das Vertentes, o Norte de Minas e o Triângulo Mineiro. Cada uma dessas regiões envolve circunstâncias bastante representativas sobre a história do desenvolvimento dos esportes em Minas Gerais, sem esgotar, todavia, toda a sua diversidade, ainda carente de mais pesquisas. Além disso, por diferentes motivos, acabamos por privilegiar também cidades específicas, em geral, as maiores e mais populosas de cada uma dessas regiões, que por isso mesmo desempenharam importante papel social, econômico, cultural e político sobre um espectro geográfico mais amplo. Dessa forma, São João del Rei, Juiz de Fora, Montes Claros e Uberaba ganham aqui visível destaque.

Todavia, ênfases sobre essas cidades não necessariamente implicam em prejuízo a quaisquer outras. Ao contrário, uma das características que se destacam na vida social nos sertões das Minas Gerais em princípios do século 20, quando registra-se o início ou a intensificação das suas práticas esportivas, é um fluxo inter-regional por vezes surpreendente entre diferentes cidades. Alimentos, manufaturas, populações, mas também culturas, incluindo aí os esportes, compunham os elos dessas cadeias complexas e multidirecionais nos sertões das Gerais. Assim, a ênfase sobre apenas algumas cidades, geralmente as maiores ou economicamente mais influentes, onde a documentação frequentemente é mais abundante e também melhor preservada que suas congêneres de menores proporções, deixam entrever acontecimentos desenrolados para além de seus limites mais imediatos, revelando uma trama que em muito as extrapolam. Nesse caso, a inauguração de clubes ou a realização de eventos esportivos em Queluz, Barbacena, Bocaiúva, Araxá, Araguari, Uberlândia, Lavras, Formiga, Ubá, Corinto, Leopoldina, Cataguazes, Curvelo, entre muitas outras cidades, exibem um mundo esportivo vibrante já, embora às vezes modesto, se comparado ao que acontecia em outras cidades ou regiões, mas nem por isso historicamente menos relevante. Não por menos, até anos avançados do século 20, Minas Gerais foi o estado mais populoso do Brasil, com uma economia ao menos razoavelmente desenvolvida para os padrões da época, com uma elite política nacionalmente influente”.

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