Por Ricardo Pinto
Depois de tratar do racismo no futebol em Salvador, comum em todo o Brasil, resolvi apresentar a você, amigo leitor, um evento inusitado, porém, espetacular, que torna a capital baiana um objeto de pesquisa obrigatório para os estudos que tenham como tema a relação entre o futebol institucionalizado, a negritude e domínio do cenário futebolístico.
Em Salvador, mais do que uma curiosidade, temos com o término do ano de 1911 e o inicio da temporada de 1912, um grande momento de ruptura. Na verdade, acreditamos que seja o ponto mais simbólico da história do futebol brasileiro quando tratamos da relação negro e futebol. Foi nesse período que os clubes da elite soteropolitana abandonaram a principal Liga da modalidade e, como consequência, clubes pequenos e médios assumiram de maneira absoluta o futebol “público” na capital baiana[1].
Em nenhuma outra capital, pelo menos não há qualquer pesquisa que aponte para esse cenário, clubes das elites, reconhecidos como os “grandes clubes”, tenham “desistido” do futebol, mesmo que temporariamente, por conta da ação de clubes pequenos e médios ou pela estrutura (precária) em que o futebol se encontrava. Vejamos alguns dados importantes:
Para o Campeonato baiano daquele ano estavam inscritos para a disputa os clubes Victoria, S. Salvador, Santos Dumont, Bahia e Rio Vermelho. Nada incomum até aquele momento. Entretanto, no decorrer do campeonato verificamos que os jogos já não mais despertavam interesse e dedicação dos jogadores dos “grandes” clubes e das suas torcidas. Tal fato, fica explicito em uma matéria do dia 9 de julho de 1912, que traz a seguinte critica:
O encontro dos velhos clubs S. Salvador e Victoria, anteontem, no ground do Rio Vermelho, não teve o interesse que devera despertar um match de campeonato.
Basta dizer que, às 3 horas, quando devia ser dado o kick de 2º teams, ainda não havia, em campo, metade de uma equipe.
E não sabemos como a Liga consente que se esperem jogadores até a hora em que eles queiram entrar no Field, quando as convenções do jogo tal não autorizam.[2]”
Outra importante ação, em 1912, foi à iniciativa do Fluminense Foot-Ball Club em fundar na capital uma liga para, com definiu o periódico, os pequenos clubes S. Bento, Bahiano e White Foot-Ball Club. Essa medida, para além de demonstrar uma organização dos chamados pequenos clubes e o esforço na distinção, ela acaba gerando novas possibilidades para o cenário esportivo, no sentido de apresentar uma nova instituição para a filiação de clubes considerados pequenos, acabando com a exclusividade da Liga principal.
Em agosto de 1912, uma matéria deixa claro o cenário do futebol em Salvador. Vejamos:
Amanhã deveria ser jogado, no ground do Rio Vermelho, 0 11 match para o campeonato de 1912.
Não se realizará, porém, devido a ter o Sport Club Bahia, a quem cabia jogar contra o Rio Vermelho, abandonado a Liga Bahiana.
A retirada brusca do Bahia dessa associação vem bem confirmar, infelizmente, o pouco caso que fazem os nossos sportsmen de fatos como os que se deram no Rio Vermelho, num dos domingos últimos, e de que resultou a questão daquele club, um dos concorrentes aos campeonatos deste ano.
O fato, a que não quisemos aludir na ocasião, a fim de não ecoar fora da capital, depondo dos nossos hábitos, foi grave. Por isso, a atitude do Bahia, que se viu forçado a abandonar o campo, mereceu o apoio dos que ligam importância ao cultivo do sport entre nós.[3]
Verificamos mais uma vez o quanto os grandes clubes estavam desanimados com o formato do “novo futebol”. A atitude do Bahia seria apenas mais uma reação diante da aproximação entre clubes que expressavam valores simbólicos e reais de grupos sociais bem distantes do que representava o clube. Assim, acabaria se tornando compreensível a saída de um clube que expressava de forma clara e contundente, a sua aversão aos negros e ao que eles representavam.
Enquanto isso, a iniciativa do Fluminense em criar uma nova Liga foi tomando força com a chegada de mais clubes, como o Phebo, Olympic, Germânia e S. Bento. Para além da ruptura, vemos também nesse ano de 1912 o aparecimento com certa regularidade e destaque de partidas disputadas entre clubes de fora da “grande” Liga. Partidas como as disputadas entre os clubes União e Aurora, Veloz e Lutador e Herval e Democrata começam a aparecer em um cenário jornalístico que até então estava fechado aos pequenos clubes[4].
Em 1912, o Vitória e o São Salvador também deixaram a Liga Principal. Com isso, o cenário muda completamente, visto que o interesse por parte das elites pelo futebol tinha chegado ao seu ponto mais baixo. Afinal, o cenário que estava sendo forjado com a presença de clubes menores estava causando um desconforto irreversível e, acima de tudo, gerando uma evasão dos sócios dos clubes de elites para outro esporte.
Em geral, as elites passaram a buscar esportes em que as camadas populares não tivessem um acesso tão amplo e, principalmente, não causassem tanto desconforto. O que a princípio pode parecer o fim do futebol em Salvador, já que não havia mais interesse por parte da elite, fez gestar um novo futebol bem mais dinâmico e, sobretudo, democrático, haja vista os diversos campeonatos que passaram a ser disputados nas mais diversas localidades.
As elites, também, não abandonaram o futebol por completo, assim como acontecia em Porto Alegre, apenas passaram a jogar entre os iguais e em seus campos particulares dentro de seus clubes. Esse cenário de exclusividade chegou ao seu ápice com a criação, em 1916, do Bahiano de Tênis, clube que representou durante muito tempo o grande modelo para o cenário esportivo das elites soteropolitanas.
Enfim, a participação, cada vez maior, de clubes populares no futebol de Salvador acabou proporcionando uma vitória expressiva das camadas populares no cenário esportivo. Mesmo que temporariamente, já que a partir de 1919[5] as elites começam um movimento para retomar o poder no futebol, foram os populares que mantiveram vivo o futebol, naquele período, em Salvador.
Bibliografia
FERNANDES, Florestan. A integração do Negro na Sociedade de Classes: volume 1 e 2. São Paulo: Globo, 2008.
MAIA, Aroldo. Almanaque Esportivo da Bahia. Salvador: Helenicus. 1944.
SANTOS, Henrique Sena dos. Pugnas Renhidas: futebol, cultura e sociedade em Salvador, 1901–1924. Dissertação de Mestrado. Feira de Santana. UEFS – 2012.
[1] Os considerados “grandes clubes” passaram a praticar o futebol apenas dentro de suas instalações, ou seja, de forma privada, não mais nos campos de rua, que tinham o caráter público como principal marca.
[2] Jornal de Noticiais, Bahia, número 9.687. Terça-feira, 09 de julho de 1912, pág. 2.
[3] Jornal de Noticiais, Bahia, número 9.709. Sábado, 03 de agosto de 1912, pág. 2.
[4] Henrique Sena, em sua dissertação, diz que o Fluminense, em 1907, fundou uma Liga com o propósito de acomodar os clubes modestos, a Liga Nacional Sportiva. Para isso, o autor usou como fonte o trabalho de Aroldo Maia. No entanto, em nossas pesquisas, não foi achado nenhum indicio da criação dessa Liga no ano indicado. Somente em 1911, como descrito acima, é que os jornais tratam da fundação de uma Liga de futebol com esse propósito. Não estamos com isso apontando para uma falha no trabalho do estimado pesquisador, apenas, neste caso, estamos tomando o cuidado em apresentar o que as fontes primárias nos possibilitaram aferir.
[5] Para saber mais sobre o retorno das elites ao futebol em Salvador ver em: Dissertação de Mestrado de Henrique Sena.
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