Nei Jorge dos Santos Junior
Quando refletimos sobre a constituição das experiências esportivas na cidade do Rio de Janeiro é comum reduzi-la à espaços com maior visibilidade, ou para ser mais exato: centro e zona sul. Todavia, esse pensamento trilha por uma noção particular de lugar, desconsiderando o contraste e a complexidade na demarcação dos territórios existentes em áreas periféricas. Dessa forma, as múltiplas possibilidades de diversão presentes nessas regiões acabam preteridas e, consequentemente, contribuem para o processo de miopia, em que subjuga espaços periféricos, entre eles os subúrbios, a um status de coadjuvante, ignorando a multiplicidade de práticas existentes nessa região.

Carta das linhas da Estrada de Ferro Central do Brasil. Fonte: HEMEROTECA DIGITAL: https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/
De qualquer forma, é crescente o interesse sobre as práticas esportivas e corporais presentes nos subúrbios cariocas. É possível identificar um aumento expressivo no número de estudos que tratam o tema, inclusive aqui no blogue[1]. Vejamos:
As diversões em Bangu são dadas pelos clubs que lá existem. Imagine-se, pois, o que é uma festa ali, onde se reúne o inglês, o francês, o italiano e o brasileiro branco e de cor na mais ampla cordialidade, na mais encantadora harmonia, que não é perturbadora pela distinção de posições sociais e de outros prejuízos abomináveis. Todos ali têm um fim, divertem-se, têm um dever, portarem-se bem; porque lá estão os seus diretores solícitos e prontos, dispensando a todos eles amabilidades, atenções e tanta cousa, tanta que até parecem seus companheiros beber quando são seus dirigentes[2].
No início do século XX já eram muitas as pequenas sociedades voltadas para o esporte nos subúrbios da cidade. Mesmo apresentando uma visão romântica sobre a região, a matéria nos mostra indícios sobre a lógica de articulação inicial desses clubes. A diversão local, a princípio, ficava por ponta das associações, expondo, inicialmente, a importância dessas na construção de elementos na conformação de uma identidade local. Ali frequentavam sujeitos de vários estratos sociais, em clubes espalhados por diferentes bairros, produzindo uma infinidade de práticas, linguagens e costumes. Através delas, podemos desvendar teias de sociabilidades expressivas nas disputas por legitimidade e na atribuição de significados, analisando as tensões latentes sob os sentidos e representações dos esportes à moda suburbana.
Isso significa que a antiga Capital da república, a partir de suas nuances, revelava um fortalecimento de um mercado de entretenimento plural. Não por acaso havia um crescimento significativo de sociedades que se autodenominavam esportivas, recreativas, dançantes, ginásticas, culturais ou carnavalescas. A cidade contava aproximadamente com um número de 1.600 associações, demonstrando que o hábito de associar-se já fazia parte de uma tendência facilmente observável no Rio de Janeiro.
Curiosamente, grande parte dessas associações não estavam localizadas nos bairros mais abastados. Pelo contrário, as regiões central e suburbana reuniam, até mesmo pelo número expressivo de habitantes, a maior parcela das sociedades presentes na cidade. Para se ter ideia, ainda nos primeiros anos de 1910, a região do Grande Andaraí contava com um pouco mais de quarenta associações, fossem elas de caráter esportivo como o Sport Club Andarahy, Andarahy Club e o Andarahy Athletic Club, fossem aquelas diretamente dedicadas às atividades dançantes ou carnavalescas como o Andarahy Club Carnavalesco, o Flor do Andarahy, o Grêmio Amantes da Folia e o Clube Intrépidos Tico-ticos. Em Bangu, no mesmo período, o número era um pouco menor, porém não pouco expressivo, aproximadamente vinte e cinco associações, divididas entre esportivas, Sport Club Americano, Esperança Foot-ball Club e Bangu Athletic Club, ou direcionadas às atividades recreativas como a Flor da Lyra, o Casino Bangu, a Flor da União e o Grêmio Prazer das Morenas, movimentavam as noites arrabaldinas.
Certamente, fossem em espaços privilegiados para a prática da dança, esportes e ginástica, ou, até mesmo, nas agremiações e ruas localizadas nos arrabaldes suburbanos, é notável a consolidação de uma indústria de entretenimento na transição dos séculos XIX e XX. Por isso, a constituição do campo esportivo não pode ser pensada desarticulada das ações sociais dos subúrbios, tampouco podemos entendê-la ignorando a história da mesma. Dessa forma, talvez caiba uma questão final: com esse amplo leque de clubes e práticas corporais é possível afirmar que a cidade do Rio de Janeiro, independente da região, mantinha um mercado de entretenimento consolidado?
[1] Ver: MELO, Victor Andrade de; SANTOS JUNIOR, Nei Jorge. O esporte nos arrabaldes do Rio de Janeiro: o cricket em Bangu (1904-1912). Movimento, Rio de Janeiro, 2017.; MELO, Victor Andrade de. Entre a elite e o povo: o sport no Rio de Janeiro do século XIX (1851-1857). Tempo, Niterói, v. 20, n. 37, p. 1-22, 2015.; MELO, Victor Andrade de. Um hipódromo suburbano: a experiência do Club de Corridas Santa Cruz (Rio de Janeiro – 1912/1918). Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro , v. 20, n. 40, p. 157-184, Apr. 2019 .; SANTOS JUNIOR, N. J. A construção do sentimento local: o futebol nos arrabaldes de Andaraí e Bangu (1914-1923). 2012. 126f. Dissertação (Mestrado em História Comparada) – Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.; SANTOS JUNIOR, N.J.; MELO, V. A. Recrear, instruir e advogar os interesses suburbanos: posicionamentos sobre o futebol na Gazeta Suburbana e no Bangú-jornal (1918-1920). Revista Movimento, v. 20, p. 193, 2013.; MALAIA, J. M. Revolução Vascaína: a profissionalização do futebol e inserção sócio-econômica de negros e portugueses na cidade do Rio de Janeiro (1915-1934). 2010. 489f. Tese (Doutorado em História Econômica) – Departamento de História, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
[2] Gazeta de Notícias, 12 de dezembro de 1907.
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