Por Maurício Drumond
O estudo de declarações e protestos políticos é tema recorrente na História do esporte. Eu mesmo já escrevi sobre o tema por aqui algumas vezes. Atos como o de Tommie Smith e John Carlos nos Jogos Olímpicos de 1968 são alvos de diversos estudos. No entanto, no último mês o mundo do basquete vivenciou quase que contrário a esse. No que pode ser definida como uma estratégia de contenção a manifestações políticas no esporte, a reação do governo chinês a uma única postagem no Twitter por parte de um dirigente esportivo deixou claro que o regime leva muito a sério suas relações com o esporte e o impacto que os agentes do campo esportivo podem ter sobre o campo político.
O QUE OCORREU?
No dia 04 de outubro, Daryl Morey, gerente geral do Houston Rockets (dirigente responsável pela contratação de atletas e gerência da comissão técnica), publicou uma imagem em sua conta do Twitter com o texto: “Lute pela Liberdade, Apoie Hong Kong” (Fight for Freedom, Stand With Hong Kong). A mensagem já foi apagada da conta de Morey; o que não significa nada, pois ainda é facilmente encontrada na internet.
A mensagem declarava apoio aos protestos que ocorrem há meses no território semiautônomo de Hong Kong, em uma disputa ligada à autonomia do território contra a China continental. A tensão entre o movimento em Hong Kong e o governo chinês se iniciou devido a uma medida legislativa que permitiria que suspeitos de crimes pudessem ser extraditados da ilha de Hong Kong para território continental chinês, ficando fora de sua jurisdição semiautônoma. Vale lembrar que Hong Kong é uma região administrativa especial da República Popular da China (assim como Macau), que detém certa autonomia do governo central e a medida are vista como uma brecha para que a oposição política pudesse ser perseguida e extraditada para a China continental. Como resultado, protestos têm ocorrido há diversos meses, com habituais confrontos com a polícia chinesa.
É importante também notar a força da equipe do Houston Rockets na China, especialmente devido ao astro do basquete Yao Ming. O jogador é um dos maiores nomes do esporte chinês e atualmente comanda a Associação Chinesa de Basquete. Yao jogou na NBA, sempre pelos Rockets, entre 2002 e 2011, ano em que se aposentou devido a lesões. Em 2016, foi nomeado ao Hall da Fama do basquete americano, ato que foi certamente influenciado pela crescente aproximação da NBA com o mercado chinês.

Yao Ming
A REAÇÃO
Foi nesse contexto que a mensagem de um importante dirigente da franquia mais popular da NBA em território chinês foi recebida. A resposta chinesa ao tweet de Morey não tardou, e foi avassaladora. Apenas horas após a mensagem de Morey, Tilman Fertitta, dono do Houston Rockets, publicou na mesma rede social: “Escutem… @dmoey NÃO fala em nome do @HoustonRockets. Nossa presença em Tóquio é somente pela promoção internacional da @NBA e nós NÃO somos uma organização política”.
Não há dúvidas que a NBA busca cada vez mais uma maior inserção no mercado chinês. De acordo com a agência Reuters, o basquete é o esporte mais popular na China atualmente, com supostamente cerca de 300 milhões de participantes. A entidade ganhou cerca de 47 milhões de novos seguidores na Wiebo, a plataforma de rede social chinesa, somente nessa última temporada, e tem mais seguidores lá do que no Facebook ou no Twitter. A NBA tem parceria com diversos canais de televisão e mídia no país, incluindo uma parceria com a televisão estatal CCTV. Em 2008 foi lançada a empresa NBA China, com valor estimado em 4 bilhões de dólares. Recentemente, a NBA e a empresa de mída chinesa Tencent assinaram uma extensão em sua parecria até a temporada de 2024-25, no valor de $1,5 bilhão.
Dessa forma, não é de se espantar que a pressão chinesa tenha se dado principalmente no campo econômico. Em 6 de outubro, dois dias após o tweet, Associação Chinesa de Basquete anunciou que suspenderia todo relacionamento com os Rockets e o consulado geral chinês em Houston pediu que o time “esclarecesse e corrigisse imediatamente os erros”. O principal canal esportivo da TV chinesa, CCTV, anunciou que suspenderia a transmissão dos jogos dos Rockets na televisão e a empresa de mídia Tencent declarou que interromperia o streaming dos jogos da equipe. Na última temporada, cerca de 500 milhões de pessoas assistiram a jogos dos Rockets na plataforma da Tencent e mais de 600 milhões acompanharam o time pela TV.
A NBA buscou uma resposta rápida já no dia 7, declarando que lamentava que a mensagem de Morey tenha ofendido muitos dos fãs e amigos na China, mas que “Ainda que Daryl tenha deixado claro que seu tweet não representa os Rockets ou a NBA, os valores da Liga incentivam indivíduos a estudar e a compartilhar suas visões sobre assuntos que considerem importantes”. Daryl Morey também refirmou em sua conta pessoal que seus tweets eram apenas seus e não representavam os Rockets ou a NBA.
No entanto, a resposta não foi o que os chineses esperavam. Ainda mais quando, no dia seguinte, Adam Silver, comissário da NBA, publicou que “A NBA não se colocará em uma posição de regular o que jogadores, empregados e dirigentes esportivos dizem ou não”. Ele complementou afirmando: “Sei que existem consequências para a liberdade de expressão; teremos que viver com essas consequências. Para aqueles que questionam nossas motivações, isso vai muito além do que o crescimento de nosso negócio” (fonte).

Adam Silver
Em reposta à mensagem de Adam Silver, Tencent e CCTV anunciaram que interromperiam a transmissão de todos os jogos da pré-temporada da Liga na China, afirmando: “expressamos nossa forte insatisfação e oposição ao declarado apoio de Silver à liberdade de expressão de Morey. Acreditamos que comentários que questionam a soberania nacional e estabilidade social não pertencem à categoria de liberdade de expressão” (Fonte).
No dia seguinte, 9 de outubro, todos os 11 parceiros oficiais da NBA na China suspenderam suas relações com a NBA, removendo todas as referências à entidade de basquete estadunidense de seus websites, campanhas de marketing e patrocínios. Tudo isso menos de uma semana após o tweet inicial de Morey.
Astros da NBA foram a público tentar reaproximar a franquia de basquete do público chinês. Jams Harden, uma das grandes estrelas da NBA e jogador dos Rockets, declarou em entrevista que “amamos a China, amamos jogar lá”. LeBron James foi ainda mais enfático em sua defesa à relação com a China. “Não quero entrar em uma discussão com Daryl Morey”, ele falou, “mas acre
dito que ele não tinha conhecimento sobre a situação em questão e se pronunciou”. LeBron ainda afirmou que “Todos temos liberdade de expressão, mas por vezes existem ramificações para os problemas que podem ocorrer quando você não está pensando nos outros e está pensando apenas em você mesmo” (Fonte).
CONCLUSÃO
As disputas continuam e as pontes queimadas ainda não foram reconstruídas. Adam Silver aposta na participação de Yao Ming para realizar essa ligação, mas o astro do basquete ainda não se pronunciou nesse sentido. No entanto, a reação chinesa a um único tweet, rapidamente apagado, de um dirigente esportivo (e não de uma grande estrela) podem nos oferecer elementos para algumas relevantes considerações.
Primeiramente, é possível perceber a força do esporte como um importante veículo de propaganda e mobilização. A ação coordenada dos diversos agentes chineses na reação ao tweet de Morey, inicialmente focada no Houston Rockets, mas posteriormente difundida para toda NBA devido aos comentários de Adam Silver, demonstram uma organização política de contenção a posicionamentos politicamente indesejáveis. Como um tiro de canhão para matar um mosquito, a reação chinesa acabou por chamar mais atenção ao fato, que passaria largamente ignorado em grande parte do mundo. Mas que pode ser vista também como exemplo para a prevenção de manifestações futuras não apenas nos esportes, mas no campo do entretenimento em geral. A reação chinesa é, sem dúvidas, um recado para protestos futuros.
Além disso, também é importante notar o papel desempenhado pela força econômica como meio de pressão política sobre os agentes do campo esportivo. Tanto atletas como dirigentes, clubes e federações, a própria NBA, foram diretamente atingidos pela força da resposta financeira ao incidente. A fala de LeBron descrita acima revela as preocupações de um atleta com vínculos financeiros estabelecidos através de contratos de imagem e de patrocínios com fornecedoras de material esportivo, por exemplo. Clubes e Federações perdem taxas de transmissão, parcerias, patrocínios e ganhos com vendas de material oficial, que podem somar bilhões de dólares. Políticos chineses não se manifestam e a reação se dá, aparentemente, de forma espontânea por parte de empresas e da opinião pública chinesa. Ao buscarem reafirmar a velha máxima de que esporte e política não se misturariam, a resposta chinesa tenta se vestir de uma aparência também apolítica, no sentido de uma política oficial de governo.
Entre pedidos de demissão de Deryl Morey vindos das redes sociais e de pressões contra a capitulação da NBA por parte de políticos de ambos os partidos do governo estadunidense, a história ainda não se encerrou. Assim como os protestos.
Você precisa fazer login para comentar.