Por Karina Cancella
Segundo o pesquisador britânico Ian Brittain (2012), antes da Segunda Guerra Mundial, a maior parte das pessoas com lesões medulares morriam em um período de três anos após a lesão em decorrência de quadros de sepse, falhas renais e também depressão. Esta última por conta dos estigmas sociais envolvendo as pessoas com deficiência. O surgimento de novos medicamentos e maiores investimentos no tratamento dos lesionados medulares após a guerra fizeram com que as taxas de sobrevivência aumentassem consideravelmente.
Um dos trabalhos compreendido como de grande contribuição para esse movimento foi a atuação do médico alemão Ludwig Guttmann. Proveniente de família judia, o médico neurologista fugiu da Alemanha nazista e se estabeleceu na Inglaterra, em 1939, e passou a trabalhar na Universidade de Oxford. Quatro anos depois de sua chegada, o governo britânico nomeou Guttmann diretor da “Unidade Nacional de Lesões na Coluna Vertebral”, ligado ao “Hospital do Ministério das Pensões”, situado em Stoke Mandeville, Aylesbury. Sua principal atribuição seria tratar o grande número de soldados e civis que sofreram lesões na coluna vertebral durante a guerra. O médico aceitou o cargo sob a condição de ter liberdade para aplicar a abordagem de tratamento que considerasse mais interessante para aqueles pacientes. (BRITTAIN, 2012)
É neste cenário que o esporte surgiu como referência para o trabalho de reabilitação de Ludwig Guttmann. O médico iniciou um programa de tratamento para lesionados medulares a partir de atividades físicas e esportivas. Esse programa tinha como objetivo tratar as limitações que os pacientes apresentavam em decorrência das lesões e também atuar em questões relacionadas à autoestima e ao olhar da sociedade para as pessoas com deficiência. (BRITTAIN, 2012).
Diversas modalidades esportivas passaram a fazer parte do programa de tratamento do Hospital de Stoke Mandeville: dardos, sinuca, ginástica, “punch ball”, boliche, polo em cadeira de rodas (que mais tarde foi substituído pelo basquete em cadeira de rodas) e tiro com arco. (BRITTAIN, 2012).
Em 29 de julho de 1948, mesmo dia da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Londres, foi organizada a primeira edição do evento que ficou conhecido como Jogos de Stoke Mandeville. Esse evento foi uma demonstração de tiro com arco com a participação de duas equipes esportivas representando o Ministério de Pensões: uma pelo “Hospital de Stoke Mandeville“ e outra pela “Casa Star and Garter para veteranos de guerra feridos em Richmond”. (BRITTAIN, 2012).
A competição ocorreu com a participação de 16 arqueiros cadeirantes e esse evento é considerado pelo Comitê Paralímpico Internacional como um dos “berços” do movimento paralímpico.[1] O vídeo a seguir está disponível na página do Comitê Paralímpico Internacional no item “Histórico” e apresenta imagens originais dos Jogos de Stoke Mandeville, do hospital e depoimentos de atletas sobre todo o processo de tratamento e inserção no esporte competitivo para pessoas com deficiência.
O trabalho iniciado ainda na década de 1940 continua sendo desenvolvido atualmente no “Stoke Mandeville Stadium”, um centro esportivo e complexo de lazer com todas as instalações acessíveis que recebe o programa “WheelPower – British Wheelchair Sport” e se autodeclara a “casa do esporte em cadeira de rodas”. O complexo recebe anualmente equipes britânicas e de outras partes do mundo para treinamentos e competições esportivas em diferentes modalidades para pessoas com deficiência.[2]
Stoke Mandeville Stadium (Arquivo pessoal, 2014)
Competição de tiro com arco integrante do programa do 10º Campeonato Mundial Junior da IWAS – International Wheelchair and Amputee Sports Federation (Arquivo Pessoal, 2014)
Na esteira do crescimento do movimento paralímpico ao longo dos séculos XX e XXI, começaram também a surgir alguns investimentos para o desenvolvimento de programas esportivos para pessoas com deficiência dentro das Forças Armadas de diversos países, como o “Military Adaptive Sports Program” (MASP)[3], desenvolvido pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos (EUA), e também eventos específicos como o “Warrior Games”[4] e o “Invictus Games”[5], organizados respectivamente por EUA e Inglaterra com foco em competições esportivas de alto rendimento para lesionados em guerras.
No Brasil, esse tipo de iniciativa é recente. Somente em 2015 foi criado um programa esportivo com foco no atendimento a militares com deficiência. O “Projeto para Valorização Pessoal e Integração Social através do Esporte”, lançado em maio de 2015, era coordenado em parceria pelo então Ministério do Esporte e pelo Ministério da Defesa e apresentava como objetivo “reunir militares reformados por terem sofrido algum tipo de acidente ou enfermidade que limitou suas condições físicas, mas que ainda estão aptos para praticar esportes” (FAB, 2015). Posteriormente, passou a se chamar “Projeto João do Pulo” e apresenta novo formato, estando “direcionado ao atendimento de pessoas com deficiência, priorizando as crianças a partir dos 6 (seis) anos de idade, jovens e adolescentes em estado de vulnerabilidade social” e passou a ter parceria de outros ministérios e entidades esportivas e da sociedade civil. (DEFESA, 2019).
Os atletas com deficiência apenas recentemente passaram a ser contemplados no quadro oficial de modalidades da maior competição esportiva exclusiva para militares em todo mundo: os Jogos Mundiais Militares. Na 6ª edição do evento, realizada em 2015, em Mungyeong (Coreia do Sul), foram inseridas as provas de Tiro com Arco e Atletismo como modalidades teste. Quatro anos depois, na edição de Wuhan (China), as provas passaram a fazer parte do quadro como modalidades oficiais.[6] O Brasil esteve representado na competição deste ano por quatro atletas com deficiência e conquistou três medalhas.
O aspecto que chama a atenção é o fato de o esporte já fazer parte do cotidiano dos militares com deficiência desde a década de 40 do século passado, mesmo que inicialmente tenha sido compreendido como possibilidade de tratamento para reabilitação física e reintegração social, e somente nas duas últimas décadas ter começado a ocupar espaço no cenário competitivo de alto rendimento dentro das Forças Armadas. Sabe-se que muitos atletas de alto rendimento do esporte paralímpico de nações com longa tradição de participação em guerras, como é o caso dos EUA, são oriundos das fileiras militares, uma vez que após a ocorrência de lesões e o processo de reabilitação física por meio do esporte, muitos se envolvem com a prática competitiva de alto rendimento. Os motivos que fizeram as Forças Armadas e o próprio Conselho Internacional do Esporte Militar terem voltado suas atenções para o esporte competitivo para a pessoa com deficiência somente há tão pouco tempo ainda exigem maiores investimentos de pesquisa para que possamos compreender com maior clareza essa mudança de posicionamento institucional.
[1] Vale destacar que o movimento de esportes para pessoas com deficiência já existia em algumas partes do mundo, como no caso dos clubes esportivos para surdos fundados na Alemanha ainda em fins do século XIX (IPC, 2019).
[2] Disponível em: https://www.stokemandevillestadium.co.uk/. Acesso em: 14 dez. 2019.
[3] Mais informações em: https://warriorcare.dodlive.mil/carecoordination/masp/.
[4] Mais informações em: https://dodwarriorgames.com/about/history/.
[5] Mais informações em: https://invictusgamesfoundation.org/foundation/story/.
[6] Mais informações em: https://www.milsport.one/.
Referências:
BRITTAIN, Ian. From Stoke Mandeville to Stratford: A History of the Summer Paralympic Games. Champaign, Illinois: Common Ground Publishing, 2012.
DEFESA – MINISTERIO DA DEFESA. Projeto João do Pulo. Disponível em: https://defesa.gov.br/programas-sociais/programa-forcas-no-esporte/59-programas-sociais/57666-projeto-joao-do-pulo. Acesso em: 14 dez. 2019.
FAB – FORÇA AEREA BRASILEIRA. Forças Armadas iniciam projeto de inclusão para militares reformados. Disponível em: http://www.fab.mil.br/noticias/mostra/22044/. Acesso em: 14 dez. 2019.
IPC – INTERNATIONAL PARALYMPIC COMMITTEE. History. Disponível em: https://www.paralympic.org/ipc/history. Acesso em: 14 dez. 2019.
Você precisa fazer login para comentar.