Cleber Eduardo Karls
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Em Porto Alegre no final do século XIX, o processo de constituição do esporte assimilou, entre várias características, o caráter civilizador da proposta moderna. Nesse cenário, foi necessário que essas práticas fossem legitimadas enquanto superiores, dignas a tomar o lugar de outras consideradas selvagens e ultrapassadas, como as carreiras, rústicas corridas de cavalo que deveriam ser abolidas dando lugar ao civilizado turfe. Dessa forma, era necessário que os esportes demonstrassem cumprimento as suas regras, sem fraudes ou corrupções, sendo exemplos racionais de competição. Com isso, era grande a repercussão e a tentativa de combate àquilo que era chamado de “linguiça” nos páreos do Rio Grande do Sul. Ou seja, tudo que causava confusão, fraudava normas e que ferisse competições justas, beneficiando alguma parte indevidamente, deveria ser combatido. Essa militância ganhava destaque nos periódicos da época.
Em Porto Alegre, a imprensa se posicionava no sentido de moralização das corridas, solicitando até mesmo intervenção externa, através de denúncias às irregularidades, como registrou a Gazeta da Tarde, de 22 de julho de 1895: “decididamente é preciso que a autoridade intervenha no assunto, socorrendo quanto antes o público espoliado. Não há regulamento que garanta o povo que lá vai. A vontade dos diretores de corrida impera soberana”. Segundo a denúncia, várias irregularidades eram promovidas, começando pelas chamadas das inscrições, onde não havia lealdade e cavalos não relacionados eram inscritos na hora do páreo, destoando daquilo que foi publicado nos jornais.
Além dessa, várias foram as acusações na mesma edição da Gazeta da Tarde: “em um dos páreos realizados, o cavalo ‘Audinot’ ainda não havia chegado e já davam o sinal de partida e isto tão fora de tempo que nem sequer a música começou a tocar, anunciando que o jogo estava encerrado”. O jornal comentou que, mesmo que o prado tenha ressarcido os apostadores do cavalo prejudicado, todos os outros também tiveram prejuízos, pois o percentual das apostas foi diminuído. O artigo apontou que “pouco se importa se o cavalo corra ou não: ele (o prado) ganha de qualquer forma”.
As críticas às linguiças e demais corrupções nos prados não cessavam. Em um artigo intitulado Turf: criação, sport e lavoura forrageira, assinado somente pelo pseudônimo Um criador, em 16 de agosto de 1895, no jornal Gazeta da Tarde, são atacadas veementemente essas práticas. Para o articulista, a luta tem sido árdua, mas improfícua frente ao que ele chamou de “placet fortificador” dos prados. Ele destacou que a desorientação, a imoralidade, a rotina, a ignorância e o egoísmo das sociedades de corrida “aviltam o nosso turfe, envergonham a nossa capital e prejudicam a criação cavalar, da qual, entretanto, dependem a integridade da Pátria, a paz, a segurança, e as tradições gloriosas do Rio Grande do Sul”. (GAZETA DA TARDE, 16/8/1895, p. 3)
Mas as críticas não eram impostas somente a organização dos prados. O público, e até mesmo os jockeys, eram responsabilizados por transformar os hipódromos em um verdadeiro palco de injustiças, onde uma grande variedade de “aproveitadores” passou a agir. Mais uma vez, o jornal clamou pela moralização e o fim das injustiças nos prados. É o que destacou a Gazeta da Tarde, na sua coluna “pelos prados”:
A ladroeira nos prados é enorme. Ali vão gatunos que surrupiam o relógio do incauto; outros há que vendem poules falsificadas, mas não há quem intervenha. A cancha é invadida pela multidão que se aglomera quase debaixo das patas dos cavalos. Os jockeys fazem trapaças de toda espécie. Enfim, é uma balbúrdia incrível. Por melhores que sejam os desejos das diretorias, nada é possível fazer sem polícia.
É necessário que o nosso digno intendente, a quem está afeto este serviço, revise o regulamento dos prados e trate de fazer aplicar severamente as suas disposições, introduzindo medidas que garantam o público contra as patifarias dos srs. jockeys. (GAZETA DA TARDE, 13/4/1896, p. 2)
As famosas linguiças também eram tratadas pelo jornal Correio do Povo. De uma maneira um tanto ácida, o periódico buscou retratar, na sua edição de seis de janeiro de 1897, o que acontecera no Hipódromo Rio-Grandense. De acordo com o impresso, de forma bastante irônica, nada faltou para que aquele local tivesse, no dia anterior, um turno cheio de “desastres: desde a linguicinha bem apimentada e fina, de carne de porco, com bastante salsa e alho, até a linguiça grosseira e detestável, de carne de boi magro, abatido em mês de setembro”. Essa referência às trapaças era dada com tanta ênfase devido ao grande número de irregularidades registradas no páreo: “poules aumentadas na pedra depois de dada a última numeração; cavalos que não haviam vendido poule ganharam corridas e distribuíram dividendos; (…) animais que haviam cansado em corridas de volta e meia, ganharam depois”. (CORREIO DO POVO, 06/01/1897, p. 1)
A denúncia às irregularidades no prado era clara. O jornal declarou que “foi péssima a impressão trazida por quase todos aqueles que foram às últimas corridas do Rio-Grandense”. O artigo se posicionou em defesa do público, segundo ele próprio. Perante os acontecidos, os relatos destacaram que a credibilidade dos prados estava ameaçada e, consequentemente, a frequência dos aficionados:
Reinou geral descontentamento entre os espectadores, notando-se que o mau efeito produzido pelos desastres do Rio-Grandense, em muito prejudicou os outros prados, afastando deles, senão para sempre, ao menos por alguns meses grande número de frequentadores, tal foi o enojamento do público pela verdadeira espoliação de que foi vitima nas últimas corridas daquele prado.
Grande tem sido o número de reclamações que temos recebido de pessoas que assistiram às corridas do Rio-Grandense, pedindo para protestarmos contra os abusos que vimos de referir.
À diretoria daquela associação transmitimos, pois, essas reclamações, esperando que ela, já que não pôde coibir, procure ao menos evitar, esses abusos, si é que não quer contribuir para o desaparecimento do público em suas diversões. (CORREIO DO POVO, 06/01/1897, p. 1)
Na imprensa da época, inúmeras eram as denúncias de fraudes por culpa da incompetência e interesse dos juízes, com a consequente revolta popular. Ao que nos parece, havia uma relação direta entre os diretores dos prados com os devidos árbitros, que transitavam pelos diversos hipódromos da cidade de Porto Alegre. Havia momentos, inclusive, de agressão física dos ditos corruptos. No Correio do Povo, de 17 de julho de 1897, há a descrição de uma dessas confusões, ocorrida no Prado Boa Vista. Após várias denúncias de irregularidades do senhor Azevedo com demais juízes sob sua orientação, o povo partiu para a agressão do responsável, que, num primeiro momento, foi defendido por oficiais da Brigada Militar.
No entanto, a precaução inicial parece não ter surtido efeito posteriormente: “Momento depois, devido, segundo ouvimos, a uma imprudência, a agressão projetada antes tornou-se efetiva, ficando o sr. Azevedo levemente ferido na face e na cabeça, e o seu filho, Raul Azevedo, que acudiu ao local para defendê-lo, também saiu um tanto pisado”. O jornal lamentou esses incidentes por “acusações de procedimentos pouco dignos daquele lugar”.
Como consequência dessa grande quantidade de corrupções nos prados, alguns periódicos relataram a existência de uma decadência das sociedades turfísticas de Porto Alegre, baseada, principalmente, nesse descrédito com a transparência das carreiras. É o que a Gazeta da Tarde destacou, em 30 de janeiro de 1899, quando publicou que “torna-se assunto de comentários a decadência das nossas sociedades turfísticas; não há como negá-lo, o marasmo predomina e o entusiasmo pelo jogo tem cessado”. Em seguida, o periódico tentou esclarecer: “qual a causa? É que o público completamente desnorteado só assiste a escândalos sucessivos”.
O texto argumentou que a maior parte dos páreos, cheios de “bacamartes”, eram disputados indecentemente, com as carreiras fraudadas pelo arranjo e as apostas aumentadas mesmo depois de começadas as corridas, desrespeitando o código de corridas e criando a necessidade recorrente de se solicitar a influência da polícia. Essa decadência foi ratificada quando outro jornal, em 19 de maio de 1900, destacou a festa hípica que se realizaria no Prado do bairro Moinhos de Vento: “é motivo para nos fazer lembrar os bons tempos de outrora em que as reuniões naqueles hipódromos eram de grande animação”. (A REFORMA, 19/5/1900, p.3)
Paralelamente às críticas, existiam as tentativas de moralização dos prados, fator essencial para o sucesso e credibilidade esportiva. Em artigo publicado no jornal Correio do Povo, de 08 de janeiro de 1897, sob o título de Regeneração dos Prados, verificou-se uma tentativa de revitalização das práticas esportivas, para que se expurgassem as ilegalidades. Segundo o jornal, as corridas foram fiscalizadas pela polícia, o que surtiu efeito, “que conseguiu por tudo nos seus eixos, impondo-se ao respeito dos contumazes trapaceiros que fazem desse gênero de diversão o campo vasto de suas especulações indecentes”. Para que isso se efetivasse e consolidasse, uma série de medidas foram providenciadas:
O Sr. Louzada fiscalizou em pessoa todo o serviço de pesagem dos joqueys antes e depois de cada corrida; esteve efetivamente junto aos juízes de chegada e de saída, apreciando de visu o resultado de cada corrida; proibiu o abuso de venda de poules depois de fechada a casa de apostas; intimou os corredores de cavalo a não fazerem mau jogo; tomou, enfim, todas as providências que eram necessárias para garantir a moralidade nos prados e livrar os incautos da espertezas de que habitualmente eram vítimas (CORREIO DO POVO, 08/01/1897, p.1).
O artigo continuou destacando o esforço das autoridades para a moralização dos hipódromos, para que esses locais cumprissem as suas funções, que, segundo a missiva, era “fomentar o aperfeiçoamento da raça cavalar no Estado, e não antros de jogatina indecente, onde se fazem todas as bandalheiras imagináveis”.
Aparentemente, toda essa campanha “educativa” surtiu efeito. Essa premissa pode ser percebida no Correio do Povo, de 27 de agosto de 1897: “É fora de dúvida que o gosto pelo sport está de novo fazendo época aqui na capital, e isso devido as acertadas medidas de moralidade que ultimamente foram tomadas e postas em prática pelos atuais diretores de prados”.
Ao mesmo tempo em que se festejava a volta do público às corridas, novas solicitações visando melhorias nos prados eram requeridas no sentido de aperfeiçoar a estrutura física dos hipódromos e atrair ainda mais pessoas, ou melhor, famílias inteiras. Solicitou-se a colocação de cadeiras no lugar das arquibancadas de madeira, o que atrairia mais público, especialmente “sportswomen, que, com suas graciosas presenças, abrilhantarão as diversões sportivas” (CORREIO DO POVO, 27/8/1897, p. 1). Já que as corrupções estavam sendo combatidas, ao moderno e civilizado esporte se agregaria uma agradável estrutura para que, cada vez mais, a presença do público (especialmente o feminino) fosse efetiva.
O que se buscava em Porto Alegre, na rígida regularização e moralização dos prados que buscavam o fim das “linguiças”, era a perpetuação de um esporte considerado refinado e superior. Justamente por isso, não podiam admitir, na sua prática, atitudes que ferissem a essência da disputa, baseada em regras claras que beneficiavam uma concorrência transparente e imparcial. Além do sucesso entre a população, estava em jogo uma considerável movimentação financeira em apostas, pagamentos e estruturas que esses hipódromos sustentavam. Era necessário, portanto, que se mantivesse e se afirmasse a lisura das disputas.
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