por Karina Cancella
Nos últimos anos, temos observado um movimento de incorporação de atletas nas Forças Armadas (FA) de todo o mundo tanto para a prestação do serviço militar como para participação em competições militares e civis representando tais instituições. No entanto, esse processo de entrada de atletas nas FA não é um fenômeno novo. Ao longo da história, por diferentes razões e demandas dos contextos específicos, atletas passaram a fazer parte das fileiras militares. Nesta postagem, serão apresentados alguns exemplos de atletas que ingressaram nas Forças Armadas dos Estados Unidos da América (EUA) durante a preparação para a participação na Primeira Grande Guerra e que receberam destaque na imprensa da época.
Como já tratado em algumas outras postagens deste blog, o esporte foi elemento importante no processo de preparação dos militares estadunidenses para a atuação na Primeira Guerra. Os campos de treinamento, tanto do Exército quanto da Marinha, utilizaram as práticas esportivas como instrumento de treinamento funcional e também para ações de recreação e celebração (CANCELLA, 2017). O Camp Lewis, primeiro quartel para formação de recrutas estabelecido pelo Exército e fundado em 1917 em Tacoma (Washington),[1] realizou inúmeros eventos e atividades esportivas com os militares ali aquartelados. (DPTMS, 2013).
Diversas modalidades passaram a fazer parte do cotidiano das FA estadunidenses durante a mobilização militar, principalmente por conta do ingresso de atletas de importantes times como reservistas. Essa grande mobilização e o estabelecimento dos campos de treinamento influenciaram a dinâmica da sociedade estadunidense. Foi realizada uma intensa propaganda de convocação para ingresso nas FA e muitos atletas atenderam ao apelo. Esse aspecto foi divulgado de forma ampla pelos jornais e era comumente enfatizada de forma elogiosa a opção de atletas buscarem o alistamento na Marinha e no Exército (CANCELLA, 2017).
O jornal “The Tacoma Times” publicou em 29 de novembro de 1917 uma fotografia de um boxeador acompanhado da seguinte legenda “Frankie Sullivan, inteligente boxeador português-mexicano, se reunirá a Bert Forbes, novo soldado do acampamento Lewis, em um dos principais eventos do Eagles Smoker de hoje à noite”.[2]
The Tacoma times, 29 de novembro de 1917, p. 6.
O mesmo jornal ainda deu destaque nessa edição aos eventos esportivos que seriam realizados em comemoração ao Dia de Ação de Graças:
Eventos esportivos do dia de Ação de Graças terão seu grande clímax esta noite, quando a loja Eagles encena um card com estrelas de boxe no salão Tahoma, na 13a com avenida Fawcett.
Vendas antecipadas de ingressos indicam que o grande salão estará cheio até o teto. Porque esta é a primeira vez desde que Camp Lewis foi estabelecido que um espetáculo de boxe é encenado em Tacoma num dia em que os soldados estão de folga […] soldados têm visto muitos boxeadores amadores em seus quartéis, eles estão ansiosos para ver alguns dos bons meninos da costa em um show de boxe real […].[3]
A presença de atletas nos campos de treinamento na condição de reservistas foi bastante enfatizada pela imprensa ao longo dos anos de 1917 e 1918. Nomes importantes do esporte estadunidense, tanto atletas como técnicos, passaram a integrar os quadros das FA naquele momento e esse fato foi utilizado para fazer campanhas de convocação por meio de notícias nos jornais:
Muitos atletas famosos nas escolas de treinamento
Annapolis. Maryland. 30 de março. Oficiais do Corpo de Reserva da Marinha passam agora por um curso de treinamento intensivo na Academia Naval que irá prepará-los para o serviço ativo no mar ou ao longo das linhas. As classes, que serão aumentadas para mais de 1.000 dentro das próximas semanas, começaram o trabalho ativo nos principais ramos de beisebol, remo e atletismo.
Aliás, uma série de reservistas são ex-estrelas do universo atlético das diferentes universidades e faculdades. Os planos são colocar os jovens oficiais para competir com os aspirantes em todos estes esportes.[4]
Até mesmo atletas estadunidenses que estavam fora do país solicitaram autorização para ingresso nas FA, como o caso de Jack Johnson, primeiro negro campeão mundial dos pesos pesados no boxe, que era considerado um fugitivo da justiça nos Estados Unidos e estava em Madrid. Johnson foi condenado em 1913 por tráfico interestadual de uma mulher branca por estar apenas viajando com sua esposa.[5] O boxeador escreveu carta ao capitão E. H. La Guardia, congressista de Nova York, dizendo que estava disposto a lutar e morrer pela América e “[…] pediu ao capitão La Guardia para fazer o que puder para que ele possa se alistar no exército dos EUA, dizendo que nenhum trabalho será muito difícil para ele. A carta foi encaminhada para o ajudante geral […]”.[6] O Jornal “The Kansas City sun” publicou na capa em 29 de junho de 1918 a seguinte notícia: “Jack Johnson é proibido de entrar no exército”. O texto da notícia explica a decisão:
O deputado La Guardia falou sobre o pugilista de cor e ex-campeão do mundo para o gabinete do ajudante geral aqui. O Ajudante Geral é um sulista, agradável às velhas ideias preconceituosas do Sul com respeito à raça e para o qual o casamento ou a associação de um homem de cor com uma mulher branca é um pecado imperdoável e o mais negro dos crimes. Afirma-se que, quando as autoridades daqui ouviram falar dele, prontamente declararam que uma solicitação de Jack para entrar no exército não seria aprovada, por isso o desejo patriótico de Jack para servir ao seu país não deve se realizar. Se Jack fizer o caminho para a França e se alistar, desconhecido, sob um nome falso, como milhares fizeram na guerra civil e que, sem dúvida, centenas fizeram nesta guerra, e ganhar a Cruz de Guerra, como fizeram Johnson e Roberts, por algum arrojado feito heroico, seria possível que suas “indiscrições da juventude” fossem esquecidas e os Estados Unidos poderiam estender o exílio a uma recepção de volta para casa.[7]
A questão racial não é um ponto de discussão nesta postagem, mas é importante destacar a persistência de decisões e posicionamentos políticos estadunidenses definidos com base na raça (ou nas relações inter-raciais) naquele momento.
O ingresso de outro boxeador no quadro das FA também recebeu destaque da imprensa. Johnny Kilbane, campeão mundial dos pesos pena, ingressou como tenente no Exército em outubro de 1917 e foi designado para o Camp Sherman como instrutor de boxe e baioneta. (JK, 2013). Em abril de 1918, foi publicada notícia sobre as pretensões de Kilbane de estabelecer um sistema de treinamento padronizado para todos os campos do Exército. O atleta buscava com as autoridades militares a autorização para a definição de assistentes em todos os campos para aplicarem seu sistema de treinamento. Kilbane defendia que o boxe era “um agente vital na disciplina de um grande exército”.[8] Na notícia, ainda foi dedicado espaço para enaltecer a virilidade do boxeador e seu patriotismo ao abrir mão de uma vida cercada pelo luxo para servir à nação, como é possível verificar nos trechos a seguir:
Cento e vinte e seis libras de perfeita masculinidade, cujo corte de roupa […] da guarnição esconde o poder inquieto que comanda respeito e admiração de todos os oficiais e do pessoal que usa o cáqui militar no Camp Sherman, Chillicothe.
[…]
Aqueles que passaram a ver o seu sorriso simpático e sua verdadeira sagacidade reconheceram Johnny Kilbane, campeão mundial dos pesos pena. Mas todo o glamour que se passa com tal distinção não desempenha nenhum papel na vida diária presente do campeão. Sacrificando a ambição de uma vida com promessas de ainda maiores riquezas, ele está entre os soldados de Camp Sherman como John Patrick Kilbane, patriota. Quando a guerra estourou Kilbane era um campeão de boxe cujo toque parecia rivalizar com o de Midas e cuja vida limpa, bons costumes e personalidade vencedora sempre mantiveram o bom nome do esporte. Ele era dotado de inteligência […] e instintos de luta de um verdadeiro filho da Irlanda que fizeram dele um favorito nacional. Com os Estados Unidos na guerra, tornou-se determinação de todos os americanos ganhar o mesmo impulso patriótico que moveu John Kilbane a abandonar seu modo de vida. E seja o primeiro entre os campeões de boxe para voluntariar seu serviço em direção à vitória.[9]
The evening world, 22 de abril de 1918, p. 11.
O destaque na imprensa, enaltecendo as supostas características do atleta que poderiam também contribuir para a vida militar, foi acompanhado de duras críticas de Kilbane aos seus colegas de esporte:
[Fala direta de Kilbane na reportagem] “A ideia de alguns instrutores de boxe em participar de lutas enquanto deveriam estar dando o seu serviço ao país é muito além de mim”, disse. “Eu tenho tudo e o que posso fazer é dar todo o meu tempo para os soldados. Eu mal tenho todo o tempo que o trabalho exige e quando o meu dia de trabalho está feito, acredite em mim, estou pronto para ir para a cama”.
Johnny Kilbane é todo homem. Ele é um cidadão do qual a grande cidade de Cleveland está orgulhosa. Ele se faz por si mesmo, é limpo e o que o mundo do desporto classifica como cavalheiresco agressivo. […].[10]
Essa concepção sobre a vida do esportista como pura, limpa, viril, marcada pelo esforço e sacrifício individual requer maiores considerações e análises futuras, que serão compartilhadas em outro momento.
O ingresso de atletas na vida militar foi um movimento presente em diferentes regiões do mundo durante períodos de grandes conflitos armados e também em tempos de paz. Nesta postagem, foram apresentadas brevemente algumas curiosidades sobre a entrada de atletas nas Forças Armadas dos EUA durante a Primeira Guerra. Naquele mesmo período, nações como França, Inglaterra e Irlanda passaram também por movimentos semelhantes. Atletas marcaram suas participações no cotidiano militar tanto nos campos esportivos como nos campos de batalha.
Referências:
CANCELLA, Karina. Para reforço do moral e desenvolvimento físico do pessoal: a prática do esporte nas Forças Armadas estadunidenses e brasileiras em perspectiva comparada (1914-1922). Rio de Janeiro, 2017. Tese (Doutorado em História Comparada) – Instituto de História, Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
DPTMS – Directorate of Plans, Training, Mobilization and Security. Camp Lewis, 1917-1919. Disponível em: <http://www.lewis-mcchord.army.mil/dptms/museum/camp.htm>. Acesso em: 05 dez. 2013.
ESTADAO. Estados Unidos perdoam Jack Johnson 105 anos depois. Publicado em 24 mai. 2018. Disponível em: https://esportes.estadao.com.br/blogs/blog-do-baldini/estados-unidos-perdoam-jack-johnson-105-anos-depois/. Acesso em: 16 mai. 2020.
JK – Johnny Kilbane. Biography. Disponível em: <http://johnnykilbane.com/page2.html>. Acesso em: 10 dez. 2013.
UOL. Sem perdão de Obama, família de boxeador condenado recorre ao Youtube. Publicado em 03 de abril de 2013. Disponível em: <http://esporte.uol.com.br/boxe/ultimas-noticias/2013/04/03/sem-perdao-de-obama-familia-de-boxeador-condenado-recorre-ao-youtube.htm>. Acesso em: 03 dez. 2013.
[1] Segundo o site do Directorate of Plans, Training, Mobilization and Security, o Camp Lewis foi o maior posto militar nos EUA na época. (DPTMS, 2013).
[2] The Tacoma times, 29 de novembro de 1917, p. 6.
[3] The Tacoma times, 29 de novembro de 1917, p. 6.
[4] The Washington herald, 31 de março de 1918, p. 12.
[5] “[…] a família do boxeador recorreu a uma campanha no Youtube para mobilizar as autoridades e restaurar o orgulho. No vídeo divulgado pela internet, a sobrinha-neta de Johnson, Linda Haywood, aparece discursando para a comunidade de Galveston, no Texas, cidade natal do pugilista. ‘Por muitos anos, minha família se envergonhou com o fato de meu tio ter ido para a prisão por essas razões’, argumentou, lembrando que o pugilista foi condenado por um júri composto apenas por brancos. A família de Johnson também tentou convencer o ex-presidente George W. Bush a conceder o perdão póstumo, sem sucesso. Diante do primeiro presidente afro-americano da história, eles acharam que a missão seria cumprida. No entanto, nem a campanha feita no Senado pelo republicano John McCain sensibilizou Obama a atendê-los. O Departamento de Justiça dos Estados Unidos, órgão responsável por esse tipo de solicitação, alegou que há prioridade aos pedidos de clemência a pessoas vivas e que possam usufruir do perdão, já que o processo é demorado”. (UOL, 2013).
Somente em 2018, 105 anos depois, o presidente dos EUA, Donald Trump, outorgou o perdão presidencial póstumo a Jack Johnson. (ESTADÃO, 2018).
[6] New-York tribune, 13 de junho de 1918, p. 12.
[7] The Kansas City sun, 29 de junho de 1918, p. 1.
[8] COPELAND, B. Kilbane Has Plan to Standardize System of Boxing in Army Camps. The evening world, 22 de abril de 1918, p. 11.
[9] COPELAND, B. Kilbane Has Plan to Standardize System of Boxing in Army Camps. The evening world, 22 de abril de 1918, p. 11.
[10] COPELAND, B. Kilbane Has Plan to Standardize System of Boxing in Army Camps. The evening world, 22 de abril de 1918, p. 11.
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