LITERATURA POLICIAL E FUTEBOL: JOGANDO SEM DEFESA

Por Edônio Alves

Já tratamos, nesse BLOG, da literatura de ficção científica em que o esporte bretão serve como elemento temático a aguçar a inventividade de quem escreve e a imaginação de quem lê. Faremos o mesmo, agora, com a chamada literatura policial, vertente em que o futebol também se insere como tema profícuo e instigador, na medida em que abrange um âmbito que se presta ser repositório do conluio de malfeitores e corruptos de todos os tipos.

A literatura não poderia ficar infensa a esse lado digamos, marginal, do futebol e é isso que veremos na análise a seguir, que fiz dessa boa estória curta que traz o universo noir do jogo de bola aos pés para dentro das malhas das letras. Tenham uma boa leitura!

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luis humberto

                      Foto: Luis Humberto

Sem defesa – conto de Luiz Galdino

Essa é uma estória com estrutura de conto policial e texto enigmático em que um goleiro veterano e negro tem um filho metido no submundo dos vícios e de repente se vê na iminência de perdê-lo por causa de um “justiçamento” ordenado, ao que parece, pelo escalão superior de certa máfia controladora de negócios escusos. Clima de suspense e mistério, conseguido por uma narrativa seca, direta, sem rodeios (como a figurar o campo discursivo nada dialético do universo mafioso) prepondera neste conto sugestivo que coloca o futebol como mais um dos vários tentáculos por onde se espalha a atuação à margem da lei de grupos poderosos que sobrevivem de atividades ilícitas.

O cerne da narrativa, escrita em grande parte em tom indiciário, incide sobre a figura de Diomar, cuja situação difícil na trama já se prefigura na sua caracterização tipológica como personagem: ele é descrito como goleiro, negro e velho, embora em tempos passados tenha conseguido fama por ter jogado na Seleção. Tais circunstâncias o antagonizam de cara com um novo jogador do seu time, o zagueiro Nena, que, nas palavras do narrador onisciente e funcionalmente neutro na história, para emprestar certo distanciamento e deslocamento espacial dos acontecimentos, “viera do Paraná contratado há cerca de dois, três meses, e realizara algumas poucas partidas como titular”.

Como esse antagonismo é primordial para o desenvolvimento e desfecho do enredo do conto, mostremo-lo na sua funcionalidade diegética:

Diomar limitou-se a uma mirada rápida na direção do novato, enquanto tirava as luvas. Como alguém que mal se iniciava na profissão podia se lamentar tanto? Nem ao menos tratava bem a bola. Batia em cima, quebrava embaixo, cometia penalidades infantis; um terror pra qualquer goleiro. No entanto, ele que havia chegado à seleção, nada tinha de seu, enquanto o garotão possuía carro zero e um apartamento no litoral catarinense. Quando lhe roubaram o carro, chorou como uma criança. Só parou quando o clube adiantou dinheiro para o carro novinho em folha”.

E como a enunciação indiciária é neste conto o seu maior trunfo de rendimento estético, o recurso responsável pelo retardamento da sua chave diegética, exemplifiquemo-la através da maneira como o narrador a conduz linguisticamente, por meio de pistas (palavras, sentenças, frases que resumem percepções) que vai soltando e que servem para sugerir o que está ocorrendo na presentificação do tempo narrativo e também do seu devir:

Então vislumbrou os dois sujeitos, ocupando o espaço por onde ele passaria obrigatoriamente e teve certeza de que ali se achava o verdadeiro motivo do seu incômodo. Não era à toa que o filho havia sumido do clube. Percebera, durante o treino, os dois na arquibancada coberta e pressentiu que os conhecia. Debaixo do gol, encharcado de água suja e barro fétido, pedira ao santo que estivesse enganado, que não fossem quem ele pensava”.

Neste momento, o narrador diz que acabou o treino e que, sim, para desespero do goleiro, os dois sujeitos eram mesmo quem ela pensava.

A esta altura também da história, a carga indiciária do texto é transferida eficazmente para os diálogos que passam a concentrar agora a força de impulsionamento da ação narrativa em direção a seu efeito máximo de sentido com o devido clímax no final:

“- Ora, ora, se não é Diomar… – O mulato falou, batendo na aba do chapéu, para livrar a vista, e completou:

-“Esse é o Diomar falado! Presta atenção, Branquinho, que tão logo você não vai ver sujeito de tanta fama!”

Note-se aqui, no diálogo, que o mulato falou pro seu colega de profissão de forma negativa – que ele logo, logo, “não” iria ver sujeito de tanta fama – quando o usual seria usar a sentença afirmativa. Essa pequena inversão é, pois, no texto, sua chave indiciária principal, uma vez que o desfecho da história é revelado também na forma de um diálogo. Quer-se dizer com isso, por conseqüência, que esses pequenos detalhes inseridos no encaminhamento semântico da frase, como a informação de que “não era à toa que o filho havia sumido do clube”, ou que “quando lhe roubaram o carro, chorou como uma criança”, funcionam como índices catafóricos de conteúdo da situação de desfecho do entrecho narrativo, pequenas sugestões que para o leitor mais atento, vai dando dicas de como e por que a história vai ter aquele determinado final. É um recurso amplamente utilizado na chamada literatura noir dado o seu caráter de ser veículo portador de informação a ser completada pela participação do leitor que aí, quase sempre, tem a sua ação de leitura transformada, por obra dos narradores, numa autêntica atividade de detetive.

Nesta história de futebol, portanto, o enigma se repete e é mantido até o final graças às sutilezas retóricas do narrador que vai apenas sugerindo o encadeamento dos fatos. Primeiro, o encontro de Diomar com o novo zagueiro do time, Nena, que, ao se dirigir ao vestiário após o encerramento do treino pelo técnico, faz o seguinte comentário para o goleiro que se demorava numa reza de muita fé:

“- Ô reza cumprida. Pra treinar num campo desses precisa mesmo! É um milagre que a gente consiga sair sem um entorse”.

Depois, é a abordagem dos dois homens que descem da arquibancada em direção ao goleiro: “O mulato de paletó claro afastou o corpanzil a fim de que o zagueiro passasse. O moleque irrequieto procurava por algo indefinível no espaço. Diomar parou a poucos passos e sentiu, no íntimo, uma vontade de se afastar dali, sair correndo sem olhara pra trás”.

E, por fim, mais uma vez a mensagem maior do conto sendo traduzida habilmente na forma direta dos diálogos:

“- Quem quer o seu autógrafo é o doutor, mas ele quer que você vá lá no escritório (…).

– Não tenho nada pra fazer lá!

– Ele acha que tem.

Diomar tentou passar, o outro ocupou o espaço com a barriga. E confirmou para não deixar dúvida:

– Você entendeu? Amanhã, no escritório. De noite.

-Eu não devo nada!

– Vá lá dizer pra ele e pronto… Fica tudo resolvido!”

A resolução de tudo (da situação de Diomar e da história em si) vem logo a seguir, depois de ser esclarecido que já houvera uma outra vez em que Diomar também estivera na presença do tal doutor por causa de uma questão de uma dívida que seu filho não tinha como pagar.“Naquela oportunidade, vendera o automóvel para saldar a dívida e salvar a vida do filho. O que podia fazer? Reinaldo não valia nada; não abandonaria jamais aquela vida de jogo, drogas e mulheres. E por isso ia permitir que lhe metessem um para de tiros na cachola? Ficara a pé, mas o filho se livrara da dívida  e da morte certa”

Desta vez, entretanto, a coisa se desenrolou assim – e os diálogos (reduzidos aqui ao essencial), dizem tudo:

 “- Onde vai? – interrogou o mulato. O jovem tirou a arma da cinta. 

– Vou botar os sapatos.

– Espera aí, Diomar. Se você tem algo a ver com o sumiço do meu carro, vai ter de pagar! – falou o zagueiro, intrigado.

O mulato segurou-o pelo braço e falou:

– Você não ouviu ele dizer agorinha mesmo que desta vez não vai adiantar falar com o doutor?

– Ouvi… Ouvi… Mas o meu ele vai pagar! Ah, vai mesmo!

– E você vai cobrar de quem?

– Ora, vou cobrar dele! Se ele deve… ou o filho!

– Se fosse você, mudava a história. Esse sujeito ainda anda, ainda fala mas não responde mais por nada. Entendeu?”

Só agora é que o narrador da história (como um hábil chutador – melhor seria dizer: matador) faz o zagueiro e o leitor entenderem por que, nesta jogada da sua vida, o goleiro ficara literalmente “sem defesa”.

 

PARA SABER MAIS:

Luiz Galdino nasceu em Caçapava (SP), em 1940. Formado em Artes, sempre atuou na área de Jornalismo e Publicidade, tendo trabalhado em criação nas principais agências do País. Participou de antologias de autores premiados em diversos concursos literários. Escreveu para adultos, mas foi com o público juvenil que encontrou maior receptividade como escritor de ficção. Com sua obra, conquistou inúmeros prêmios. Tem mais de quarenta títulos publicados, inclusive no México e Estados Unidos, entre os quais estão: Primeiro amor; Amigas para sempre e As cruzadas. O conto de futebol, Sem defesa, encontra-se publicado na coletânea, 11 Histórias de futebol, da Editora Nova Alexandria, de São Paulo, que saiu em 2006.

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