por Eduardo Gomes
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No último dia 25 de novembro de 2020, o mundo do futebol foi surpreendido pela notícia da morte de Diego Armando Maradona, o maior ídolo do esporte na Argentina. Apesar de já ter passado por diferentes problemas de saúde outrora, a visão quase mitológica acerca do craque argentino era a de que, apesar de tudo, no final ele sempre resistiria e prosseguiria. Dessa vez, no entanto, foi diferente.
Maradona passava por complicações de saúde diversas nos últimos anos, tendo ido a óbito devido um “edema agudo de pulmão secundário a insuficiência cardíaca crônica exacerbada”, segundo a autópsia.

https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2020/10/maradona-chega-aos-60-anos-tao-idolatrado-por-argentinos-como-era-aos-30.s
Sua morte, sem dúvida alguma, marcou negativamente o mundo do futebol, em um ano já extremamente complicado e tomado por incertezas, como foi 2020. E mais do que a repercussão global, a morte de Dieguito deixou principalmente órfãos todos os seus fãs em sua terra natal, onde é idolatrado, literalmente, como um Dios.
Maradona alcançou o status de maior ídolo argentino no esporte, tal como um dos maiores símbolos da história do país. Sua história de percalços, problemas com drogas e indisciplinas, só caracterizam ainda mais essa idolatria, típica da trajetória dos grandes heróis. É o “mais humano dos deuses”, como outrora disse o também gigante Eduardo Galeano.
Não há discussão no país acerca de quem é o maior ídolo argentino na história do futebol. O debate acerca do melhor jogador, ainda continuará por anos. Entre os mais antigos, muitos apontam Alfredo Di Stéfano como o melhor argentino na história do futebol. Para muitos outros, no contexto presente, é indiscutível que Lionel Messi teria superado Diego como o melhor hermano na história do esporte bretão. Porém, para além de fatores do campo (onde Maradona é o único dos três que, até hoje, venceu uma Copa do Mundo pela seleção argentina), o fato de tanto Di Stéfano quanto Messi terem consolidado suas respectivas carreiras na Espanha, atuando respectivamente por Real Madrid e Barcelona, fez com que se afastassem da posição de idolatria e grandeza alcançada por El Pibe em terras argentinas.

Tudo bem, Maradona também rodou. Passou anos na Europa, entre Espanha e Itália, onde atuou por Barcelona, Sevilla e Napoli, esse último onde teve seu auge na carreira em clubes. Mas foi seu desempenho pela seleção nacional, mais especificamente na Copa do Mundo de 1986, que o fez passar da prateleira de grandes ídolos para se tornar um verdadeiro “Dios” para o povo argentino.
O cenário exposto naquele contexto, valoriza tal conquista e justifica tal adoração. Anos antes do mundial, em 1982, a Argentina havia sido derrotada na Guerra das Malvinas para o Reino Unido, o que resultou na morte de mais de 600 soldados argentinos e na perda do território e da soberania nas Ilhas Malvinas. Esse conflito deixou grandes complicações na Argentina daquele contexto, tendo baixado a moral de seu povo ao verem a derrota bélica se consolidando para os britânicos.

https://super.abril.com.br/mundo-estranho/o-que-foi-a-guerra-das-malvinas/
Com tudo isso exposto, a vitória da Copa de 1986 teve um sabor especial. Tudo porque nas quartas de final, a Argentina eliminou a Inglaterra ao vencer pelo placar de 2×1, tendo Maradona anotado os dois gols. Mas não foram quaisquer gols. Em um dos tentos, Maradona usou a mão para marcar. Em tempos que não existia o VAR, o gol foi validado e batizado como “La mano de Dios” pelos torcedores. Depois, o craque ainda fez aquele que para muitos é considerado o gol mais bonito da história das copas, driblando meio time da Inglaterra e anotando a vitória para os argentinos.
Mesmo sabendo que o sucesso em campo não recuperaria o que outrora havia sido perdido na guerra, a vitória, pelo menos, lavou a alma dos argentinos. A partir dali, Diego saia do patamar de humano para o povo de seu país, entrando no panteão dos deuses. Na mesma edição do torneio realizado no México, ainda lideraria a equipe nas vitórias contra a Bélgica, na semifinal, e Alemanha Ocidental, na decisão, para assim garantir o segundo título mundial da Argentina na história, após a primeira conquista em 1978.

Anos se passaram e o cenário pós-1986 foi marcado por altos e baixos na vida pessoal e profissional de Maradona. Grandes feitos pelo Napoli e uma nova decisão de Copa em 1990 (dessa vez sendo derrotado na Itália pela mesma Alemanha Ocidental) caracterizaram seu ápice, enquanto problemas extracampo com o uso de drogas e suspensões por questões de doping, como a ocorrida no calor da Copa do Mundo de 1994 nos Estados Unidos, após confronto dos argentinos contra a Nigéria, marcaram a trajetória do craque, que transitava para seus fiéis torcedores entre a posição de divindade e humano, até o fim de sua carreira.

E foi inspirado nessa concepção divina do humano Maradona, que em 1998 um grupo de torcedores na cidade de Rosário, liderado por Hernán Amez, fundou a Igreja Maradoniana. A concepção de Diego Maradona como o profeta de uma religião é tão grande que seus seguidores afirmam ter um calendário próprio, contado a partir do nascimento do craque em 30 de outubro de 1960. Hoje, por exemplo, estamos no ano 60 DD, ou seja, “Depois de Diego”. Já os anos anteriores ao seu nascimento são classificados como “AD” (Antes de Diego). Além do calendário, Drumond e Pinto destacam, acerca da religião maradoniana, que:
Seus adeptos […] celebram duas datas festivas anuais. A primeira é no dia 22 de junho, celebrando o dia em que o jogador fez o gol contra a Inglaterra na Copa de 1986. A segunda seria o natal da Igreja (chamado de Natividad por seus membros), no dia 30 de outubro – dia do nascimento do jogador. Em uma reportagem para a Reuters, Alejandro Verón, co-fundador da Igreja, faz questão de dessacralizar a cerimônia do “natal maradoniano” do ano de 43 d.D, dizendo: “somos todos católicos romanos, nosotros tenemos un Dios de razón, el cual es Cristo, y un Dios del corazón, que es Diego”. Verón ainda afirma que a Igreja possui por volta de 20 mil pessoas “convertidas” através do sítio da Internet, possuindo “fiéis” por todo o mundo. […] Don Diego, como é conhecido, é uma fronteira viva entre o divino e pagão, entre o bem o mau. Jogador que foi personagem de diversos escândalos relacionados ao universo das drogas, conseguiu mobilizar e encantar milhões de pessoas com a sua genialidade dentro das quatro linhas. Notadamente na Argentina conseguiu muito mais, conseguiu transcender as fronteiras do futebol e atingir em cheio os corações e mentes argentinas (DRUMOND; PINTO, 2007).
A organização da Igreja se tornou cada vez maior no decorrer do tempo, tendo conglomerado fiéis por todas as partes do país e do mundo, com foco nos argentinos e amantes do futebol. Em tempos atuais, Amez, um dos fundadores da igreja, teria dado declarações afirmando que o número de fiéis hoje em dia ultrapassa os 250 mil. Mesmo sem a confirmação desses dados para a escrita deste texto, é inegável que o patamar alcançado pela religião já se faz maior do que o esperado quando foi iniciada em 1998.

Como toda crença, a Igreja Maradoniana segue a risca datas “sagradas”, tal como mandamentos específicos, como os dez estabelecidos e citados abaixo:
Os 10 mandamentos da Igreja Maradoniana:
- A bola não mancha, como disse o D10S em sua despedida do Futebol, em 2001.
- Amar o futebol acima de todas as coisas.
- Declare seu amor incondicional por Diego e pelo bom futebol.
- Defender a camisa argentina, respeitando o povo.
- Espalhar os milagres de Diego por todo o universo.
- Honrar os templos onde ele pregava e seus mantos sagrados.
- Não proclame Diego em nome de um único clube.
- Pregar os princípios da Igreja Maradoniana.
- Tome Diego como segundo nome e dê-o a seu filho.
- Não seja uma cabeça de garrafa térmica e não deixe a tartaruga escapar. (Em referência à uma das frases mais icônicas de Diego.
O advento da morte de Diego Maradona, em 25 de novembro de 2020, gerou uma comoção não antes vista entre os argentinos e, de forma mais específica, entre os seguidores da religião maradoniana. Os fiéis cantaram canções e fizeram orações públicas em nome do ídolo, como a que podemos ler abaixo:
“Eu acredito em Diego
Futebolista Todo Poderoso,
Criador de magia e paixão.
Eu acredito em penugem, nosso D10s, nosso Senhor.
Que foi concebido por obra e graça de Tota e Don Diego.
Nascido em Villa Fiorito.
Ele sofreu sob o poder de Havelange.
Foi crucificado, morto e mal tratado.
Suspenso das quadras.
Cortaram-lhe as pernas.
Mas ele voltou e ressuscitou seu feitiço.
Estará dentro de nossos corações.
para sempre e na eternidade.
Eu acredito em espírito de futebol.
A Santa Igreja Maradoniana,
O golo para os ingleses,
A canhota mágica,
A eterna gambetta diablada,
E em um Diego eterno.
Diego.”
Como divulgado pelos fiéis, os seguidores da crença se reuniram ao redor do Obelisco, em Buenos Aires, para “agradecer que (Maradona) tenha baixado do céu há 60 anos e para desejar um bom regresso ao local a que pertence”, tendo na sequência seguido até o velório público, ocorrido na Casa Rosada. Veremos nos próximos meses como sobreviverá a crença maradoniana sem seu “Deus maior”, não mais vivo enquanto homem mas eternamente presente no coração e mente de todos os devotos que o seguem.

Referências:
DRUMOND, Maurício; PINTO, Ricardo. A deificação de um ídolo: Maradona, entre o divino e o pagão. Lecturas Educación Física y Deportes, v. 113, p. n. 113, 2007.
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