Pandemia, atores do espetáculo esportivo e engajamento político.

Uma discussão importante que vem crescendo nos últimos anos e também durante essa Pandemia tem a ver com o papel político do Esporte e especialmente das declarações e posicionamentos de atores do espetáculo esportivo no Brasil e no mundo

A continuidade das práticas esportivas profissionais mesmo após um período de suspensão temporária no início da primeira onda da COVID, demonstrou que apesar das polêmicas, riscos de contágio e diversas situações específicas inacreditáveis na realização dos torneios, o esporte tanto nas suas modalidades profissionais, quanto na prática cotidiana dos amadores, seja talvez uma das atividades mais presentes na vida pandêmica, mesmo com os estádios, arenas e quadras praticamente vazias.

Apesar da insegurança e dos desvios de conduta cometidos em muitas ocasiões por dirigentes e políticos para o retorno de um “novo calendário” minha impressão é que a atividade esportiva se tornou ainda mais onipresente durante esse difícil período, gerando até uma certa naturalização do perigo quando novas ondas da doença surgem no país e no mundo. Sinto que existe um “novo normal” para as competições de todas as modalidades internacionais e nacionais nem sempre justificadas pela Ciência, mas regularmente aceita pelos amantes do esporte.

O objetivo desse especulativo post não é condenar a realização dos diversos campeonatos   nas diferentes modalidades que servem também de ocupação do tempo de lazer e do psicológico de muitas pessoas, pois eu mesmo já me vejo como um daqueles que naturalizaram a situação para ter o prazer de assistir esporte enquanto estou isolado e de praticar em espaços abertos quando está liberado, mas apontar questões polêmicas que surgiram ao longo desse triste período que na minha visão ajudam a pensar o local de fala do esporte na própria sociedade brasileira e a necessidade de engajamento político e liberdade de expressão dos atletas em todos os sentidos.

Isto posto pretendo mencionar algumas situações específicas que na minha opinião foram emblemáticas nesse momento pandêmico e que podem gerar polêmicas mas também boas reflexões.

A primeira delas foi o retorno dos campeonatos estaduais em um contexto de grande incerteza, de pouquíssimo conhecimento da doença e seus protocolos e de divergência entre autoridades esportivas e sanitárias, ainda no primeiro semestre do ano passado. A triste aliança de alguns dirigentes esportivos de importantes clubes como o Flamengo com o negacionismo explícito do presidente da República para acelerar o retorno  das partidas, chegando a cogitar naquele momento a presença de torcedores nos estádios (fato que é inconcebível praticamente um ano depois) foi ignóbil porém naturalizada aos poucos por torcedores, profissionais da mídia e mesmo apaixonados pelo futebol mesmo sendo ou se considerando de setores progressistas.

Um exemplo recente foi a reação à declaração do técnico Lisca  no início de março contra a retomada da competição da Copa do Brasil. Apesar de usar argumentos racionais como a distância e risco nos translados de equipes por exemplo do Sudeste para o Norte e também emotivos como a referência a colegas que morreram,diversos técnicos, jogadores, torcedores o criticaram veementemente o chamando de hipócrita.

O próprio Lisca afirmou que não foi uma declaração política e que estava apenas dando sua opinião em função do triste momento da Pandemia mas acabou sendo execrado por muitas pessoas, sendo importante lembrar como o número de mortes e casos aumentou  de forma avassaladora nos meses de março e abril. Para maiores informações sobre o caso ver  https://www.terra.com.br/esportes/futebol/lisca-diz-que-desabafo-sobre-pandemia-nao-foi-politico,bd2f10fb799109907cb966face9a2a43vkegyxd4.html

Esse caso também é emblemático em função da temática do engajamento político no esporte. O fato do treinador ter se justificado que o desabafo não teria sido político pode ser visto pela ótica das dificuldades que treinadores e atletas, ainda podem ter para se manifestarem no nosso país. Infelizmente não temos uma cultura política muito engajada na nossa sociedade e obviamente isso se reverbera no meio esportivo.

Entretanto acredito que existem duas faces de uma mesma moeda. Se por um lado os atores do espetáculo esportivo no país se envolvem pouco com política e raramente se manifestam por falta de interesse ou consciência como alguns intelectuais as vezes cobram, por outro, a pressão institucional das Confederações, dos interesses políticos dos clubes podem estabelecer uma espécie de censura invisível muitas vezes difícil de ser rompida.

O recente caso da jogadora de vôlei de praia Carol Solberg ocorrido durante a Pandemia é representativo nesse tema. A tentativa de uma punição exagerada  à  atleta por ter se manifestado contra o atual Presidente da república  foi resultado de uma “cláusula leonina” de impedimento de manifestação dos atletas  imposta no regulamento da competição e  de um Tribunal Desportivo que no Brasil é uma jurisdição anômala e despreparada. A denúncia com um valor muito alto de multa e suspensão por várias partidas entra em choque com o histórico princípio iluminista da “liberdade de expressão” acolhido constitucionalmente e serviria caso se concretizasse para estimular ainda mais a conduta passiva dos atletas no campo político.

A própria advertência aplicada à jogadora apesar de ser factível no âmbito jurídico me parece equivocada a partir de uma perspectiva sociológica e inibe novas manifestações dos atletas, já se configurando como um cerceamento desnecessário. Entendo que a polêmica gerada em torno da situação foi muito importante para refletirmos sobre o local de fala do Esporte e dos esportistas. Para maiores informações sobre o caso ver

https://globoesporte.globo.com/volei/noticia/carol-solberg-e-advertida-por-manifestacao-politica.ghtml

No âmbito da crônica esportiva e também em alguns estudos de História do Esporte recentes, muitos atletas de ponta brasileiros como Pelé, Zico, Nelson Piquet, Oscar Schmidt são criticados por não terem se manifestado politicamente de forma contundente ou pelo teor de suas opiniões, enquanto outros são representados como símbolos de resistência ou de ruptura revolucionária como Afonsinho, Reinaldo, Sócrates, Paulo César Caju, etc. Acredito que possa existir exageros retóricos nos dois lados, sendo que obviamente cada caso específico tem suas peculiaridades, mas a importância é que o debate tanto jornalístico quanto acadêmico pode estimular a participação cada vez maior dos atletas dando a sua opinião.

O engajamento político dos atletas, jogadores, dirigentes esportivos independentemente de que ideias defendam deve ser estimulado em todos os esportes e não deve ser cerceado por cláusulas de comportamentos, argumentos de que as praças esportivas sejam campos neutros, regulamentos internos dos clubes ou oligárquicas Federações e Confederações.  

    Assim como o Esporte mesmo em tempos de Pandemia do Coronavírus se perpetua como Fato Social onipresente nos termos de Émile Durkheim a participação política dos atores do espetáculo esportivo deve ser estimulada, estar cada vez mais presente no nosso cotidiano e nunca cerceada por regulamentos abusivos, jornalistas supostamente neutros, ou lunáticos internéticos valentões digitais.

O local de fala do esportista tem que ser respeitado. Para mim Lisca “Doido”, Carol Solberg ou até mesmo Felipe Melo, também execrado em muitas redes sociais pelas suas convicções políticas que obviamente não compartilho têm que ter o direito  assegurado de se manifestar e fazer política dentro dos gramados, quadras e demais espaços esportivos para que os atores também atuem na defesa da Democracia e não apenas alguns setores de torcidas Antifascistas.

Comentários encerrados.

%d blogueiros gostam disto: