“Força pela Alegria” ou o lazer sob o jugo totalitário – o caso da Alemanha Nazista

por Elcio Cornelsen

(cornelsen@ufmg.br)

Introdução

Em regimes totalitários, que procuram controlar todos os âmbitos da vida social, nenhum segmento da cultura permanece incólume a uma intervenção. Sem dúvida, a Alemanha nazista é um exemplo patente de tal processo, inclusive nos âmbitos do esporte e do lazer. Por um lado, o uso propagandista do esporte no contexto dos XI Jogos Olímpicos de Berlim, realizados em agosto de 1936, é uma dessas facetas. Por outro, o lazer, menos estudado se comparado à prática esportiva, também se tornou instrumento de política de indução de adesão da população ao regime. Este estudo, realizado entre março de 2014 e novembro de 2017, teve por objetivo enfocar as organizações do Estado nazista alemão que instrumentalizaram o âmbito do lazer, sobretudo a Deutsche Arbeiterfront (DAF; Frente Alemã de Trabalho) e a Kraft durch Freude (KdF; Força pela Alegria). Para isso, tomou-se por base estudos históricos e documentários sobre o lazer sob o jugo totalitário.

Metodologia

A metodologia empregada no estudo em questão pautou-se, basicamente, por dois procedimentos: em primeiro lugar, foi necessário selecionar e ler obras de cunho teórico que contemplassem o tema da relação entre história, memória, políticas públicas e lazer; em segundo lugar, o estudo orientou-se também por seleção de pesquisas históricas e documentários (Kloft, 2001; Mühlen, 2009) sobre o tema, que demandaram leitura e análise. Para lazer e políticas públicas, tomamos por base os estudos de Linhales (2001), Marcellino (2001; 2008), Gomes (2008), e Isayama (2010). Para história e memória do lazer, nos orientamos pelos estudos de Melo (2011; 2013). Por fim, para a contextualização do lazer no período nazista, adotamos os estudos de Grube e Richter (1982), Giesecke (1983), Kammer e Bartsch (1992), Studt (1995), Wendt (1999), Schneider (2004), Baranowski (2004), e Dillon e Richthofen (2008).

Resultados e Discussão

A criação de uma instância reguladora de políticas de lazer na Alemanha nazista resultou de uma política de intervenção no âmbito do trabalho, como parte de uma política de Gleichschaltung (“Sincronização”), promovida pelo partido nazista no sentido de uniformizar e controlar, sob princípios ideológicos, todas as instituições públicas e sociais até então autônomas (BROSZAT, 1995, p. 62). Segundo o historiador Bernd Jürgen Wendt, a extinção dos sindicatos das inúmeras categorias profissionais e de suas centrais sindicais em 02 de maio de 1933 foi seguida pela criação de uma organização totalitária em 10 de maio de 1933, que deveria abranger todos os trabalhadores e segmentos profissionais: a DAF – Deutsche Arbeitsfront (Frente Alemã de Trabalho) (WENDT, 1999, p. 64).

Por sua vez, diretamente subordinada a essa organização surgiu em novembro de 1933 outra organização destinada, exclusivamente, a instrumentalizar o lazer e o esporte no âmbito trabalhista: a KdF Nationalsozialistische Gemeinschaft Kraft durch Freude (Comunidade Nacional-Socialista Força pela Alegria) (KAMMER; BARTSCH, 1992, p. 104). Entre outras atribuições, destinava-se a promover políticas de higiene e saúde no âmbito das empresas, bem como de construção de restaurantes, espaços de descanso e de centros esportivos mantidos pelas próprias empresas, destinados a seus trabalhadores, além de determinar um aumento das férias anuais remuneradas, de 3 para 12 dias, e de promover uma ampla oferta de programas de lazer culturais e esportivos (WENDT, 1999, p. 65).

De acordo com os historiadores Frank Grube e Gerhard Richter, esse tipo de organização não foi uma invenção do nazismo, mas sim criada a partir das estruturas pré-existentes do movimento sindical na República de Weimar, bem como a partir de um modelo italiano de organização do tempo livre e do lazer: a “Il Dopolavoro” (Após o Trabalho), criada em maio de 1925 por Benito Mussolini (GRUBE; RICHTER, 1982, p. 123). Em seu ápice, a KdF contou com mais de 150.000 funcionários encarregados de organizar o tempo livre e o lazer do trabalhador alemão. Sua estrutura organizacional abrangia cinco instâncias: o “Serviço de Nacionalidade e Pátria” (Amt Volkstum und Heimat), encarregado de organizar a participação de trabalhadores em eventos de caráter popular; o “Serviço de Formação Popular Alemã” (Deutsches Volksbildungswerk), encarregado de promover cursos para adultos; o “Serviço de Esporte” (Sportsamt), que se tornou um fator de concorrência para os clubes tradicionais ao promover, entre os trabalhadores, a prática de determinadas modalidades esportivas; o “Serviço para Viagens, Passeios e Férias” (Amt für Reisen, Wandern und Urlaub), responsável pela ampla oferta de viagens de férias ou mesmo de excursões aos fins de semana; por fim, o âmbito “Beleza do Trabalho” (Schönheit der Arbeit), responsável por melhorias nas instalações dos locais de trabalho (GRUBE; RICHTER, 1982, p. 124-126).

Sem dúvida, a KdF incentivou, sobretudo, o turismo de massa, à época um verdadeiro “luxo” para o trabalhador. De acordo com Ursula Becher, até os anos 1920, devido às crises econômicas enfrentadas pelo país e às limitações salariais, o trabalhador alemão não dispunha de meios próprios ou mesmo de financiamento para empreender viagens de férias. A pouca oferta de lazer limitava-se a atividades nos finais de semana, como, por exemplo, a organização de caminhadas e passeios em parques e em áreas verdes próximas às cidades (BECHER, 1995, p. 126). Segundo a autora, tal organização visava a duas metas: “Para os nacional-socialistas, ela era um excelente meio de propaganda no sentido de combater a resistência dos trabalhadores ao programa ideológico e, respectivamente, de ganhar novos adeptos” (BECHER, 1995, p. 126-127).


Nosso estudo revelou que o programa da KdF previa uma ampla oferta de atividades de lazer: idas a teatros, cinemas, concertos e exposições; formação de grupos de passeios e de práticas desportivas, bem como de danças folclóricas; exibição de filmes nas empresas; promoção de cursos sobre os mais variados temas. Todavia, o carro-chefe de tal intervenção política no âmbito do lazer era, sem dúvida, a promoção de viagens a partir de programas de subsídios, não apenas para regiões da Alemanha, como também para viagens marítimas ao Exterior, principalmente a Portugal e ao Mediterrâneo, contando com uma frota de 12 navios. As estatísticas apresentadas por Grube e Richter impressionam: de 2,3 milhões de pessoas que viajaram de férias, atendidas pela organização em 1934, esse número elevou-se em 1938 para 10,3 milhões. No mesmo período, o número de pessoas que buscaram orientação e subsídio junto à KdF para outras atividades de lazer subiu de 9,1 para mais de 54 milhões (GRUBE; RICHTER, 1982, p. 123).
Mesmo que tais números possam ser questionados, e mesmo que, como salienta Ursula Becher, seja difícil mensurar o nível de adesão em termos ideológicos (BECHER, 1995, p. 129), a popularidade da KdF é inegável, embora ela tenha sido muito mais motivada pela carência de “alegria” (Freude), do que propriamente pela “força” (Kraft), um dos vetores da doutrinação ideológica. Além disso, para o ramo de hotelaria e para a Rede Ferroviária Alemã – a Deutsche Reichsbahn –, o turismo subvencionado pelo Estado significou uma lucratividade garantida.


Os resultados de uma pesquisa de opinião realizada com empregados da Siemens em Berlim, no ano de 1937, demonstram bem que o aparente sucesso da KdF deveu-se justamente pela organização ter ocupado um segmento do mercado até então não explorado nessas proporções. Dos 42.000 entrevistados, 28.000 ainda não tinham passado férias fora de Berlim (GRUBE; RICHTER, 1982, p. 123).

Em primeira linha, pode-se afirmar que o intuito de uma política dessa natureza era organizar o tempo de descanso, relaxamento e lazer (não trabalho) frente ao tempo de produção (trabalho), no sentido de possibilitar aos trabalhadores uma recuperação das forças física e psíquica exigidas por suas funções, através do empreendimento de atividades lúdicas. Esse parece ser, aliás, um fenômeno comum, oriundo da própria industrialização e da formação de centros urbanos, conforme aponta Victor Andrade de Melo: “A estruturação das fábricas e a subsequente necessidade de facilitar a circulação de mercadorias transformaram a cidade no novo lócus privilegiado de vivências sociais, sede das tensões que se estabeleceram na transição entre o novo e o antigo regime” (MELO, 2011, p. 68). E o autor prossegue em sua argumentação: “À necessidade de gestar um novo conjunto de comportamentos considerados adequados para a consolidação do modelo de sociedade em construção, adenda-se a reorganização dos tempos sociais: a artificialização do tempo do trabalho, uma decorrência da industrialização, dá origem a um mais claro delineamento do tempo livre” (MELO, 2011, p. 68-69).

Todavia, nosso estudo nos permitiu constatar também que a promoção de atividades de lazer com vistas à recuperação da força de trabalho não era o único aspecto que levou a cúpula nazista a interferir, através de política de Estado, na organização do tempo livre, não a deixando mais a cargo do indivíduo ou da população. Segundo Ursula Becher, tal intervenção foi motivada pelo ceticismo diante da capacidade do trabalhador organizar, ele mesmo, o seu tempo livre, pois se temia que o tempo livre produzisse ócio, e que dele surgissem “pensamentos, tolos, difamatórios e, por fim, criminosos” (LEY apud BECHER, 1995, p. 128), como o próprio dirigente da Frente Alemã de Trabalho (DAF), Robert Ley, certa vez formulou. Portanto, a organização do tempo livre e do lazer não escapou ao controle “total” do Estado, como Robert Ley afirmou: “Não temos mais pessoas num sentido privado. O tempo, onde cada um podia e era permitido fazer o que quisesse, passou” (LEY apud BECHER, 1995, p. 128).

Cabe, aliás, ressaltar que até mesmo o Volkswagen (literalmente, “veículo do povo”) foi idealizado como parte da política da DAF e da KdF. A produção do KdF-Wagen, como também era chamado, começou no segundo semestre de 1938. No final daquele ano, cerca de 150.000 pessoas já haviam encomendado o carro e estavam esperando ansiosamente pela entrega. Eles deveriam começar a receber seus carros no início de 1940. Entretanto, com a eclosão da guerra em setembro de 1939, a produção foi direcionada para a construção de veículos de combate.

Sendo assim, é patente o grau de intervenção do Estado nazista num âmbito em que, tradicionalmente, haveria uma liberdade maior de escolha por parte do individuo de suas atividades de lazer, frente a suas necessidades e possibilidades. Pois o controle de cada indivíduo em todo o tempo, inclusive no tempo livre e nas férias, era uma meta do nazismo. Portanto, o lazer durante o regime nazista tornou-se mais um campo social abarcado por uma política de cerceamento de liberdade e de doutrinação de valores.

Considerações finais

O presente estudo permitiu-nos constatar que o lazer sofreu a interferência do Estado com fins de propaganda e de estabilização política, do mesmo modo como havia ocorrido no âmbito do esporte, principalmente no contexto dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936. Inegavelmente, o lazer sob o jugo totalitário foi um âmbito que garantiu a adesão de amplos segmentos da sociedade alemã à ideologia nazista. Se, por um lado, a Olimpíada de Berlim serviria – como realmente serviu – de “vitrine”, através da qual a cúpula nazista empreenderia todos os meios para mostrar ao mundo – e, portanto, fabricar – uma bela imagem da “nova” Alemanha (das neue Deutschland), bem diferente daquela vivenciada no dia-a-dia de um Estado totalitário erigido sobre a base de uma ideologia carismática e imperialista defendida por um líder – o Führer –, um único partido populista – o NSDAP, “Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães” –, aparelhos de repressão – SA, SS e Gestapo – e um monopólio de armas, informações e propaganda, por outro, desde que chegaram ao poder em janeiro de 1933, os governantes nazistas implantaram políticas de lazer que fomentassem entre os trabalhadores um sentido de adesão e, ao mesmo tempo, reduzisse a possível resistência entre eles, uma vez que modificações drásticas ocorreram no âmbito trabalhista com a supressão dos sindicatos e a criação de uma instituição centralizadora, a Frente Alemã do Trabalho (Deutsche Arbeiterfront ou DAF), lembrando, mais uma vez, que a ela se vinculava a organização Força pela Alegria (Kraft durch Freude ou KdF), responsável pelos âmbitos do lazer e do turismo no Terceiro Reich.

Referências

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