
Vamos variar um pouco.
Via de regra, eu escrevo, aqui, sobre filmes de/com futebol (vou continuar assim, claro). Mas hoje vamos mudar um pouco. Vou comentar um clássico do boxe filmado. Estava/estou vendo muitos filmes de esporte, no bojo da escrita de um texto, que acabei de entregar, sobre a possibilidade/proveito hermenêutico de uma noção como a de um gênero cinematográfico esportivo. A discussão é se tal gênero pode ser postulado/estabelecido e se poderíamos constatar ganho hermenêutico na análise fílmica. Não resolvi nada, mas colocamos o problema (faço a divulgação quando da publicação). Enfim, estou variando a assistência de películas. E vendo ou revendo pérolas do encontro do esporte com o cinema. Posto isso, tratemos de Corpo e alma (1947 e, claro, há spoiler).
É Bacana! Um bom filme de boxe. Charley Davis (vivido por John Garfield) é um judeu pobre que demonstra capacidade pugilística. Sua mãe preferiria os estudos, mas a situação aperta e Charley parte mesmo é para o combate. E, para ganhar lutas, acorda com o gangster local. Isso vai ter um preço, é claro.
É uma clássica história de ascensão, deslumbramento, conquista, queda moral e redenção. Mas é bem feito e prende. Temos quase todos os elementos. Destacaria a pretendente feminina, mulher de boa índole e caráter (se envolve com Charley enquanto ele ainda não tem nada e o apóia em quase tudo, sendo, também, um esteio de amor, fidelidade e retidão moral – Peg Born, atriz Lilli Palmer). A mãe, que precisa ser amparada (mas também se constitui em fiel da balança do que é correto – Anna Davis, atriz Anne Revere) e o amigo inseparável (‘escada’ do protagonista, me parece – Shorty Polasky, ator Joseph Pevner), desde os tempos de perrengue.
Shorty começa ambicioso e audaz, mas ao ver o amigo tomando um rumo perigoso, tenta adverti-lo. Nesse movimento, entra em choque com o gangster e acaba por perder a vida (aliás, o nome Shorty, baixinho, talvez seja sintomático; ele é um personagem menor, de amparo. Não tem habilidade especial, seu capital é ser amigo do lutador promissor e agenciar parcialmente sua carreira). Shorty é a primeira baixa de Charley Davis. Na sequência vem o deslumbramento com uma linda piriguete (uma equivalente a Maria Chuteira… uma Corner’s Mary? Ou Glover’s Girl? Façam sua escolha! Alice, atriz Hazel Brooks). Pois bem, a morte de Shorty é seguida do rompimento com a noiva e com a mãe e a venda da luta final.
Talvez o mais curioso seja o desfecho. Charley acaba desafiando o arranjo do embate derradeiro. E, em uma luta na qual inicia perdendo, com várias quedas (até pq era o combinado), acaba por não se conter e parte para uma reviravolta, mantendo o título de campeão e quebrando o acordo com o gangster. Nesse momento final, reconcilia-se com sua amada (a qual sabia da situação e não aprovava a combinação da luta). O filme acaba com uma saída feliz do casal, re-aproximado, mas todos sabemos no que a quebra de acordos desse tipo implica…
Seán Crosson (que trata dessa película em mais de um momento, mas especialmente às páginas 88-90) vai salientar que, apesar do aparente happy end, insinua-se a possibilidade de retaliação. Isso acontece quando o gangster (Robert, ator Lloyd Gough) interpela o campeão, ameaçadoramente, ao fim da disputa e Charley afirma algo como: – Não se pode viver para sempre.
Mas o fato é que o assassinato não está na diegese. A caminhada do casal reconciliado, que vai se distanciando da câmera e abre a rolagem dos créditos, sim.
Uma bela película! É aconselhável, ainda, compará-la a um filme anterior: Conflito de duas almas (Golden Boy, 1939, Rouben Mamoulin). A estrutura é bem semelhante. O conflito inicial também. O dilema é mais específico e simbolicamente mais acentuado. Joe (Golden boy, vivido por um novíssimo Willian Holden) é um homem dividido entre o violino e o boxe. A metáfora é por demais evidente. Trata-se de uma cisão (em um mesmo indivíduo) entre a mão que toca, suave, artística, e os punhos rudes, agressivos e, no limite, assassinos (Joe quase mata um adversário; inutilizando-o para a carreira). Uma versão Jakyll e Hyde centrada nas mãos (na alma, passando pelas mãos). O médico e o monstro, aliás, é um outro filme, de 1931, do próprio Mamoulin. Faz lembrar também, é claro, de As mãos de Orlac (Robert Wiene, 1924). Mas sobre essa película (Golden Boy), talvez escrevamos algo mais à frente.
Até a próxima!
Referência citada:
CROSSON, Seán. Sport and Film (Frontiers of Sport). EUA: Routledge, 2013 (Edição do Kindle).
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