Fabio Peres e Victor Melo*
DO GALEÃO ATÉ O OBELISCO. Ademar Ferreira da Silva Aclamado Ontem Por Toda a População Carioca. Regresso Triunfal do Maior Atleta Brasileiro de Todos os Tempos - O Povo, Emocionado, Viu e Ovacionou o Herói [...] (Última Hora, 14/12/1956, p.8)
O retorno de Adhemar ao Brasil, após a conquista da medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Melbourne, foi cercado por um misto de expectativa e exaltação. Os periódicos refletiam e, ao mesmo tempo, fomentavam uma certa inquietação em torno do “herói” que “mais uma vez, soube fazer tremular a bandeira do Brasil no mastro olímpico maior”[i].

Desde a vitória e, principalmente, nos dias que antecederam a sua chegada, os jornais anunciaram cada vez com maior comoção e destaque o seu regresso. O Diário Carioca até mesmo noticiou na primeira página da edição de 13 de dezembro a programação completa do cerimonial de sua recepção no Rio de Janeiro. O feito de Adhemar foi considerado tão memorável que a TV Tupi fez uma cobertura ao vivo[ii], algo bastante incomum à época.
A solenidade começou ainda no Aeroporto com a entrega de um galhardete bordado em ouro pelo presidente do Departamento de Imprensa Esportiva da Associação Brasileira de Imprensa. Altas autoridades do país estavam presentes, entre os quais o ministro da educação e cultura (Clóvis Salgado) e o prefeito do Distrito Federal (Negrão de Lima)[iii]. Um cortejo de automóveis, que passou pela Av. Rio Branco, uma das principais da cidade, conduziu o atleta para ser recebido pelo presidente da República, Juscelino Kubitschek.
Nos jornais, foram publicadas fotografias da recepção no Palácio do Catete (sede do poder executivo), nas quais Adhemar aparecia ao lado do presidente da República. As legendas que as acompanhavam são emblemáticas das representações que se buscava construir em torno do atleta, nas quais se mesclavam as ideias de povo, Estado e nação. O leitor era informado que Adhemar recebeu uma “consagradora recepção […] do povo carioca”, bem como ouviu do governante máximo da nação “palavras de estímulo e agradecimento pela extraordinária projeção que deu ao Brasil através da sua magnífica vitória […]”[iv].
Última Hora (14/12/1956, p.1) e Diário Carioca (14/12/1956, p.1)
A despeito dessa exaltação, novos tempos vivia o Brasil. O governo Vargas, imerso em denúncias e escândalos, acabou de forma trágica, com o suicídio do líder histórico. O governo de transição foi marcado por grande tensão, assim como a eleição de Juscelino Kubitschek, que assumiu e governou sempre sob muitas críticas e conflitos. Sua administração (1856-1961) seria marcada pela aceleração do processo de industrialização e crescimento econômico, mas também pelo aumento da dívida pública e inflação. Houve grande projeção do país no cenário internacional, especialmente por fatos do âmbito cultural, como a bossa nova, a arquitetura moderna e as conquistas esportivas (entre as quais o título máximo do futebol, na Copa do Mundo da Suécia, em 1958)[v].
Dessa vez, a vitória de Adhemar não foi unanimemente celebrada. Ainda que as contestações não recaíssem sobre a imagem de Adhemar, a ausência de outros bons resultados nos Jogos Olímpicos chamou a atenção e foi motivo de debate. Considerava-se tal ocorrido como sinal da fragilidade do Estado brasileiro, críticas que se dirigiam à atuação do novo presidente da República. Wilson Brasil foi bem explícito:
FRACASSO! Papelão! O Brasil novamente fracassa redondamente nas Olimpíadas. E que fracasso! Não conseguimos nada, senão o título de Adhemar Ferreira da Silva. Felizmente, ainda temos essa exceção. Aliás, esporte em nosso país é isso: Adhemar e futebol. Além disso, nada mais há[vi].
Se antes a vitória de Adhemar era considerada como grande triunfo da nação, fato que projetaria uma boa imagem do Brasil no exterior, a nova conquista foi por alguns encarada como bálsamo não suficiente para esconder os problemas enfrentados pelo país. Como sugeriu um cronista:
Estamos sempre por baixo de países insignificantes, que nenhuma importância tem no concerto mundial. Se não fosse Adhemar Ferreira da Silva, teríamos ficado atrás de paisinhos que quase não aparecem no mapa […]. Está positivado que nos encontramos ainda muito distantes da maturidade. Precisamos enxergar a realidade como ela é e nos convencermos de nossa insignificância […] a fim de conseguirmos alguma coisa no futuro[vii].
Essa compreensão estava se delineando desde os Jogos Pan-Americanos de 1955 (Cidade do México), quando a delegação brasileira não teve bom desempenho, explicitando para alguns “a nossa inferioridade esportiva”[viii]. Ainda assim, a conquista, de Adhemar (medalha de ouro e quebra de recorde mundial[ix]) ganhou grande repercussão. O Globo fez questão de não apenas publicar uma matéria especial, de página inteira, como também organizou uma homenagem no estádio do Maracanã, o grande palco do esporte nacional[x].
As competições internacionais continuavam sendo valorizadas como forma de projeção nacional, contudo com menor ufanismo ao seu redor. Aliás, poucos dias após a notícia da vitória de Adhemar, chamou-se a atenção para a apropriação política em torno da exaltação exagerada da nação. Numa coluna em que eram apresentados os piores e melhores fatos da semana, a “pior coisa” escolhida foi a posição de “urubus e demagogos”, “abutres” que tratavam a conquista do atleta com “frases ocas, enfeitadas, demagógicas, estarrecedoras, falando em bandeiras, patriotadas etc.”[xi].
Em todo caso, ainda prevaleceu um tom festivo e celebratório ao herói. Afinal, a vitória em Melbourne correspondeu à expectativa construída nos meses anteriores às Olimpíadas, mesmo que o atleta tenha enfrentado certas dificuldades para conseguir o índice de classificação.
Uma ampla matéria sobre as chances dos atletas brasileiros em Melbourne destacou – ainda que ponderando sobre as dificuldades que Adhemar teve para treinar durante o ano – que ele era a principal esperança da delegação nacional obter alguma medalha de ouro[xii]. A expectativa ganhou também contornos continentais. O Jornal do Brasil chamou atenção ao fato de que foi o único latino-americano com possibilidade de vitória nas provas de atletismo indicado por cronistas esportivos europeus “mais destacados”[xiii]. Já Jesse Owens, o “Homem das Quatro Medalhas de Ouro em Berlim”, havia declarado poucos dias antes do Jogos que Adhemar era “sem dúvida alguma um dos maiores atletas mundiais do momento”[xiv].
Última Hora, 9/11/1956, p.16.
No próprio dia das provas do salto triplo, o Diário Carioca chegou a informar, logo na capa, aumentando a expectativa do leitor, que Adhemar se classificara “reservando energias” para a final que ocorreria à tarde[xv]. O Globo e o Última Hora se colocavam como testemunhas privilegiadas e, de modo indireto, também como partícipes e caudatários da conquista[xvi].
A popularidade e o prestígio de Adhemar, não é demais assinalar, se tornaram bastante expressivos no intervalo entre as duas Olímpiadas. Seu nome era frequentemente citado como o maior esportista do Brasil, inclusive por atletas de outras modalidades, como o futebol[xvii]. Matérias e colunas de jornais dedicadas à vida de “famosos”[xviii] e “personalidades”[xix], para além do campo esportivo, se referiam a ele como uma celebridade. A pista de atletismo de Belo Horizonte (MG) foi batizada com seu nome[xx].
O sentimento de nacionalismo, caro à participação de atletas brasileiros em contendas internacionais desde o começo do século XX[xxi], ganhou novos contornos na segunda conquista olímpica de Adhemar. A exaltação do atleta como símbolo do êxito da nação foi conciliada a certas qualidades individuais do bicampeão olímpico, algo que aparecera menos intensamente na vitória de 1952.
Negro, culto e portador de “virtudes” tanto atléticas como psicológicas, intelectuais e morais – as representações sobre Adhemar incorporavam a autoimagem de uma nação que seguia buscando consolidar, interna e externamente, uma narrativa identitária mestiça – entendida como sinal positivo da formação social brasileira.
Não foram poucos os traços apreciados, às vezes de maneira difusa, nos jornais. Eles abarcam desde questões como a facilidade de Adhemar se expressar publicamente (inclusive em outros idiomas como o inglês, francês e espanhol), passando por sua ampla formação e trajetória educacional formal, chegando a seu jeito pessoal, suas relações familiares, a vocação para o trabalho e seu posicionamento no mundo do esporte.
Um dia após a conquista da medalha em Melbourne, o Última Hora buscava sintetizar todas essas qualidades em uma coluna que homenageava Adhemar. Tratava-se de – como salientava o periódico em letras garrafais – de um “embaixador” que “honra todo o Brasil”[xxii]:
O leitor entenderá perfeitamente que se preste nestas colunas uma homenagem particularmente vibrante e comovida ao atleta excepcional que fez com que o mundo inteiro, ontem, pronunciasse com admiração o nome do Brasil. Pois as qualidades do coração e do espírito de Adhemar estão à altura do valor excepcional dos seus músculos. E em qualquer ponto do globo em que o grande campeão do salto triplo vai exibir-se, torna-se, com efeito, um magnífico embaixador esportivo.
Parte do reconhecimento passava, assim, pela ideia de representatividade positiva do Brasil em terras estrangeiras, pela capacidade de figurar como símbolo de uma nação. Adhemar seria, nesses termos, um arauto de uma certa “brasilianiedade” laudatória:
Bom filho, bom esposo, bom pai, Adhemar é um homem inteligente, estudioso, mais culto do que a média dos atletas, que sempre pensa em deixar a melhor impressão em todo país que vai visitar, e em fazer a mais benéfica propaganda das coisas e da gente do Brasil.
Não era incomum que a afetividade das relações familiares e seu papel na índole do triplista estivessem frequentemente presentes nos periódicos. O Última Hora, assim que recebeu o telegrama de Melbourne anunciando a conquista, se incumbiu de transmitir “em primeira mão” a notícia do feito aos pais do atleta em São Paulo. No dia seguinte (28/11/1956), o jornal carioca publicou com exclusividade a reportagem intitulada “O Campeão Cumpriu com a Palavra: Antes de Seguir Para Melbourne Adhemar Prometeu à Esposa uma Nova Conquista Para o Brasil” em que, não apenas noticiava a felicidade dos “genitores” com a vitória do filho, como também reproduzia a emoção de sua esposa:
Confesso que não dormi direito essa noite, pois esperava aflita pelo resultado da prova”, disse, inicialmente, dona Elza […] E, olhando para Adiel, a filhinha do casal, concluiu: “Papai cumpriu o que nos havia prometido! Quando foi para Helsinki prometeu uma medalha para Adiel. Agora, prometeu uma medalha para o nosso segundo filho. E cumpriu a palavra”, finalizou (Última Hora, 28/11/1956, p.8).
Os laços familiares voltariam a figurar nos periódicos nas comemorações de seu retorno ao Brasil. O Globo publicou na capa da edição do dia 14/12/1956 uma fotografia de Adhemar, cercado por fãs no desembarque do aeroporto, sorrindo com a sua filha no colo. Adicionalmente no caderno interno da edição, além da fotografia em que Adhemar recebia os cumprimentos do presidente da república, a matéria continha uma terceira fotografia em que o atleta beijava sua filha: “assim que desembarcou […] Adhemar foi cercado pelos presentes, tendo sempre ao colo a sua filhinha Adiel, que com sua esposa e seus pais chegara na véspera de São Paulo para recebe-lo”[xxiii], destacava o periódico. No mesmo dia, o Última Hora, por sua vez, publicou não apenas três fotografias de Adhemar com a sua família – entre tantas outras que compunham a cobertura de sua chegada ao Rio – como também fez questão de publicar uma pequena seção cujo título era a “Emoção dos Pais” em que o periódico assinalava “o agradecimento sincero dos que o querem de coração”; seus pais, esposa e filha “estavam lá, emocionados e comovidos (mais do que nós)”[xxiv].
Última Hora, 14/12/1956, p.16 e Última Hora, 14/12/1956, Tabloide, p.1
Algumas vezes os laços familiares figuravam associados à origem “humilde” e, apesar disso, à educação tanto formal como informal do atleta. A edição especial dos Dia das Mães da revista O Cruzeiro em maio daquele ano, por exemplo, publicou uma matéria “Mães do Brasil”. Com o subtítulo “Os filhos são famosos. Delas foi o sacrifício”, a fotografia da mãe de Adhemar pendurando roupas no varal aparecia entre fotografias de mães de outras personalidades como de César Lattes, célebre físico e pesquisador brasileiro, e de Vinícius de Moraes, já na época diplomata, dramaturgo e compositor. A legenda que acompanhava a foto destacava “O filho, Adhemar Ferreira da Silva, é campeão olímpico. Lavando roupa, D. Augusta educou-o. Antes de bater recordes na Europa, ele estudou escultura”[xxv]. Essa, na realidade, era uma outra dimensão ressaltada nos jornais. A coluna-homenagem do Última Hora mencionada anteriormente, prossegue apresentando características do atleta:
Falando corretamente francês e inglês, nunca sai para o estrangeiro sem aprender os elementos da língua da nação em que vai competir. Sabia expressar-se (e cantar) em alemão quando foi a Dortmund para os Campeonatos Mundiais Universitários, e em finlandês quando foi conquistar sua primeira medalha de ouro em Helsinque. E até quando foi saltar em Tóquio, surpreendeu felizmente a todos quando, no centro do gramado do estádio principal da capital japonesa, apresentado ao antigo campeão olímpico e “recordman” mundial de salto triplo Tamura, em vez de usar o aperto de mão internacional, cumprimentou o veterano a moda do país, usando os gestos tradicionais e a língua nipônica. O estádio inteiro irrompeu em ovações frenéticas e todo um povo achou que brasileiro era realmente gente amável e cortes, gostando de agradar a todos.
A formação cultural e o caráter “diplomático” de Adhemar eram recorrentemente salientados nos jornais. Por ocasião de uma excursão pelos Estados Unidos, patrocinada pelo programa estudantil do Departamento de Estado do país, para “tomar parte em provas atléticas e conhecer o país – se apresentava “sob o braço” com o livro Abraham Lincoln, do biografo Emil Ludwing, escrito em “inglês, idioma que fala fluentemente”[xxvi]. Na mesma língua saudou os que o esperavam, bem como deu uma entrevista em espanhol ao correspondente da United Press, demonstrando seu contentamento por estar nos Estados Unidos e, especialmente, ressaltando que a viagem tinha menos a ver com vitórias e recordes: “participarei […] animado de um espírito esportivo fraternal. Naturalmente, procurarei vencer […] porém o principal será competir e intercambiar com os atletas norte-americanos”.
Em 1956, já formado em artes, era aluno da Escola de Educação Física de São Paulo, escultor, jornalista, radialista, além de atleta amador[xxvii]. Quando perguntado sobre o que gostava de ler, foi categórico: Érico Veríssimo, um dos principais escritores brasileiros do século XX. De forma humilde e generosa disse que, na sua opinião, os atletas brasileiros mais completos eram seus companheiros de atletismo José Telles da Conceição (salto triplo, salto em altura e provas de velocidade) e Ary Façanha de Sá (salto em distância)[xxviii].
O atleta sabia construir sua imagem pública. Ao voltar de Melbourne, “fez questão de endereçar” uma carta de próprio punho para agradecer o “povo brasileiro”, publicada na íntegra, no Última Hora, juntamente com uma fotografia[xxix]. Até mesmo por isso, foi ampliando suas redes sociais.
Última Hora, 14/12/1956, p.8.
Em 1956, foi convidado para atuar numa peça de teatro que posteriormente se tornou célebre, “Orfeu da Conceição”, escrita por Vinícius de Moraes, com trilha sonora composta por Tom Jobim e cenário por Oscar Niemeyer[xxx]. Ainda que tenha desempenhado um papel secundário, fora lembrado para integrar o até então considerado “maior elenco negro” da dramaturgia brasileira[xxxi].
Diário de Notícias, 23/09/1956, Suplemento Especial, p.5 e Última Hora, 22/09/1956, p.8.
A admiração por Adhemar chegou até mesmo às camadas mais restritas da sociedade. Poucos dias antes da viagem para Melbourne, por ocasião de um jantar promovido pela Sociedade de Teatro e Arte, um grupo de sócios do exclusivo Rio de Janeiro Country Club, agremiação da alta elite da cidade, o homenageou com um escudo e flâmula[xxxii].
O célebre jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues dedicou uma coluna para fazer um “retrato” de Adhemar em que destacou que o atleta, apesar das adversidades, tinha antes de tudo “estado de alma”[xxxiii]. O jornalista Marc Gauldichau, em reportagem especial direto de Melbourne, sugeriu que o “escultural atleta negro” era um autêntico Deus em um “recital”[xxxiv].
Para os jornais, as qualidades de Adhemar eram intermináveis, como o Última Hora em sua coluna-homenagem queria destacar:
Mas a lista seria muito longa se quiséssemos contar aqui todos esses pequenos fatos que, de qualquer modo, nos levariam à mesma conclusão: Adhemar sabe sempre agir em qualquer ocasião, como um “sportman” de verdade, um “gentleman” que respeita o espírito esportivo do “fair play”, granjeando simpatias unânimes em favor do Brasil. Eis por que, todos nós de ULTIMA HORA, desde Samuel Wainer até o mais humilde dos colaboradores deste jornal, que estamos em contato diário com esse homem de verdade, simples e sorridente, trabalhador e talentoso nas suas atividades de jornalista esportivo, responsável pela nossa seção de atletismo e esportes amadoristas, como o é nas pistas de competição, nos orgulhamos hoje com o triunfo magnífico do nosso amigo, bicampeão olímpico, “recordman” olímpico e “recordman” do mundo, que mais uma vez fez tremular a bandeira do Brasil no mastro maior do Estádio Olímpico, em Melbourne. Muito bem, querido Adhemar, o muito obrigado de TODOS NÓS[xxxv].
O “espírito esportivo” de Adhemar se estendia para além das caixas de areia. A preocupação com as condições da prática esportiva, bem como a solidariedade com os atletas e técnicos, podem ser vistas em diversas matérias tanto escritas pelo próprio esportista como por outros jornalistas. Ele denunciava constantemente a precariedade da estrutura do atletismo, bem como das instituições responsáveis pela sua organização[xxxvi].
De fato, esse sentimento de “classe” ou de “corporação” esteve presente em vários momentos de sua carreira. Nas primeiras entrevistas publicadas após a vitória em Melbourne, o Última Hora chamou atenção para a frase “Dedico minha vitória a todos os desportistas do Brasil”. Além disso, declarou: “tenho sobretudo que confessar que devo minha vitória aos meus técnicos”[xxxvii]. Esse traço do atleta chamou atenção do jornalista Marques Rebelo:
Chegou Adhemar! Compridão, modesto, delicado, biolímpico, o melhor dos camaradas, e decente, tão decente que nunca se esquece depois dos seus êxitos espetaculares de falar no seu velho treinador e de repartir com ele o mérito das suas conquistas. Chegou Adhemar, o homem do ano! Não desembarcou com as medalhas de ouro no peito; o que no peito trouxe foi o coração de ouro mais nobre […][xxxviii].
Quando foi recebido no Palácio do Catete, ao retornar ao país, fugiu do protocolo de apenas ouvir os agradecimentos do presidente da República e fez um apelo para que continuasse “olhando e amparando a infância e os desportos”[xxxix]. Demonstrava, assim, sua preocupação com o futuro do país, com uma vida melhor para os mais populares, o estrato social do qual emergiu e nunca negou.
Adhemar, em síntese, era representado como uma imagem daquilo que o Brasil gostaria de fazer prevalecer internamente, mas, sobretudo, para o mundo como forma de autoafirmação. Adhemar seria “sem dúvida alguma […] uma das raríssimas instituições do Brasil, que não decepcionam nem se contentam com vices…”[xl]. Mais do que isso, Adhemar – no olhar dos periódicos – seria o portador de um elemento cultural identitário brasileiro original e virtuoso:
Assim é o brasileiro. Quando põe a funcionar o sentimento, ninguém o contém, ninguém o segura, ninguém o amarra. Amigos, permitam-me um esgar de patriotismo, à maneira do Olavo Bilac dos reservistas: – Com sua vitória olímpica. Adhemar Ferreira da Silva esfregou na cara do mundo a alma de todos nós e cada um de nós, o que equivale dizei: — a alma do Brasil[xli].
Adhemar era a materialização de um grande projeto para o Brasil. A esperança pouco precisa de ser algo que, lamentavelmente, o país ainda não é e deve seguir perseguindo ser, não somente nas construções idealizadas ao redor de um grande atleta, mas como realidade concreta para sua população.
* Texto publicado originalmente em PERES, Fabio de Faria; MELO, Victor Andrade de. Adhemar Ferreira da Silva: Representations of the Brazilian Olympic Hero. In: Antonio Sotomayor; Cesar R Torres. (Org.). Olimpismo: The Olympic Movement in the Making of Latin America and the Caribbean. Fayetteville: University of Arkansas Press, 2020, p. 95-110.
[i] Última Hora, 14 dez. 1956, Tabloide, p. 1.
[ii] Diário Carioca, 19 dez, 1956, p. 6.
[iii] Diário da Noite, 10 dez. 1956, 2ª Seção, p. 6.
[iv] Última Hora, 14 dez. 1956, p. 1. Logo após a conquista da medalha, Juscelino e o vice-presidente João Goulart já haviam telegrafado ao atleta congratulando-o pela conquista (Diário Carioca, 2 dez. 1956, 3ª Seção, Suplemento Dominical, p. 2).
[v] Para mais informações sobre o período, ver: FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida N. (org.). O Brasil Republicano – O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
[vi] Mundo Esportivo, 14 dez. 1956, p. 6.
[vii] Mundo Esportivo, 14 dez. 1956, p. 6.
[viii] Última Hora, 22 nov. 1956, p. 16.
[ix] O recorde mundial de Adhemar só foi definitivamente homologado na reunião da Federação Internacional de Atletismo em Melbourne, durante os Jogos Olímpicos.
[x] O Globo, 19 mar. 1955, segunda seção, p. 1.
[xi] Mundo Esportivo, 30 dez. 1956, p. 13
[xii] Última Hora, 9 nov. 1956, p. 16.
[xiii] Jornal do Brasil, 25 out. 1956, p. 13.
[xiv] Última Hora, 20 nov. 1956, p.8. De acordo com o jornal, Jesse Owens estava em Melbourne como um dos representantes do presidente norte-americano Eisenhower.
[xv] Diário Carioca, 27 nov. 1956, p. 1 e 9.
[xvi] O Globo, 27 nov. 1956, p. 1; Última Hora, 27 nov. 1956, p. 1.
[xvii] Por exemplo, no Mundo Esportivo, na coluna Perguntas e Respostas – dedicada a entrevistar personalidades esportivas, em sua maioria do futebol – comumente perguntava-se “qual é a maior expressão esportiva do Brasil?”. Com frequência os atletas escolhiam o nome de Adhemar, às vezes seguido de termos como “indiscutivelmente” (ver edições de 23 mar. 1956, p. 2; 27 abr. 1956, p. 2; 11 mai. 1956, p. 2; 25 mai. 1956, p. 15; 15 jun. 1956, p. 3).
[xviii] O Cruzeiro, 12 mai. 1956, p. 118.
[xix] A Noite, 31 ago. 1956, 2º Caderno, p. 2.
[xx] Última Hora, 28 ago. 1956, p. 8.
[xxi] Para mais informações, ver: MELO, Victor Andrade; PERES, Fabio de Faria. Primeiros ventos olímpicos em terras tupiniquins. Revista USP, São Paulo, n. 108, p. 39-48, 2016.
[xxii] Última Hora, 28 nov. 1956, p. 16
[xxiii] O Globo, 14/12/1956, p.18.
[xxiv] Última Hora, 14/12/1956, p.8.
[xxv] O Cruzeiro, 12/05/1956, p.118.
[xxvi] O Globo, 26 abr. 1955, p. 12.
[xxvii] Nos anos 1960, Adhemar atuaria também como adido cultural na Embaixada da Nigéria.
[xxviii] A Noite, 31 ago. 1956, p. 3.
[xxix] Última Hora, 14 dez. 1956, p. 8.
[xxx] Correio da Manhã, 22 set. 1956, p. 13.
[xxxi] Correio da Manhã, 22 set. 1956, p. 13.
[xxxii] Correio da Manhã, 4 nov. 1956, 2º Caderno, p. 4.
[xxxiii] Última Hora, 28 nov. 1956, p. 24.
[xxxiv] Última Hora, 28 nov. 1956, p. 8.
[xxxv] Última Hora, 28 nov. 1956, p. 16
[xxxvi] Exemplos das colunas de Adhemar podem ser vistas nas edições do Última Hora de 5 jun. 1956, p. 8, 6 jun. 1956, p. 8, 21 ago. 1956, p. 8 e 29 ago. 1956, p. 8.
[xxxvii] Última Hora, 27 nov. 1956, p.6.
[xxxviii] Última Hora, 18 nov. 1956, p.1
[xxxix] Última Hora, 25 nov. 1956, p.6.
[xl] Última Hora, 14 dez. 1956, p. 6.
[xli] Última Hora, 14 dez. 1956, p. 6.
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