Por Rafael Fortes
Na letra de Faroeste Caboclo, do grupo Legião Urbana, um “senhor de alta classe com dinheiro na mão” faz uma “proposta indecorosa” para João de Santo Cristo, protagonista da história. Este a recusa: “Não boto bomba em banca de jornal nem em colégio de criança / Isso eu não faço, não / E não protejo general de dez estrelas / que fica atrás da mesa com o cu na mão”. A música foi composta na virada dos anos 1970 para os 1980, durante o período de abertura política, dentro da década final da ditadura civil-militar. Lançada em disco em 1987, “chegou a ter a execussão proibida nas rádios“.
A colocação de bombas em alvos civis foi uma das iniciativas escolhidas por servidores públicos militares e civis que discordavam do processo de abertura e desejavam manter intactas as estruturas de repressão, de forma que pudessem continuar com a mão na massa: prendendo, torturando, assassinando, estuprando, ameaçando, ocultando cadáveres, sequestrando etc. Em suma, encontrar os meios que fossem para prosseguir com o terrorismo de Estado. Afinal, o que é colocar bombas em alvos civis, senão terrorismo, não é mesmo? Cometer crimes desde o Estado é uma forma historicamente eficaz de jamais ter tal atos caracterizados como crimes e de ficar livre de toda e qualquer possibilidade de responsabilização (cível, penal etc.). Em especial, quando se vive no Brasil, onde todos os presidentes civis desde 1985 fizeram o possível para manter tal situação. Ao contrário do Chile, do Uruguai, da Argentina e do Paraguai, não houve juízos sequer dos que ocuparam a Presidência durante as ditaduras. Em alguns desses países, como Argentina e Chile, os processos contra centenas de acusados vêm tramitando há décadas, sem que a alternância de partidos na presidência da República interfira (nem mesmo presidentes de direita como Mauricio Macri e Sebastián Piñera). Memória, verdade e justiça tornaram-se política de Estado. Por aqui, livres e desembaraçados de qualquer tipo de preocupação, um conjunto de militares da ativa e da reserva ligados de diversas formas ao aparelho repressivo que mencionei no parágrafo anterior reuniu-se na candidatura a presidente em 2018 de quem todos eles sabiam ter sido um péssimo oficial do Exército Brasileiro: Jair Bolsonaro. Deu no que deu.
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Há quem se refira ao mesmo equipamento urbano que coloquei em itálico na letra da música como banca de revistas. Tal é o caso de Maria Celeste Mira (2001), na obra fundamental O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura no século XX.
Nasci em 1978 e passei a maior parte da infância e adolescência em Icaraí, bairro de classe média e média-alta de Niterói. Eu era fascinado por banca de revista. Acredito que outros da minha idade fossem, também. Morei fora apenas por um período de dois anos na Vila Naval de Inema, um oásis murado para famílias de oficiais da Marinha à margem da Baía de Todos os Santos e situado em um paupérrimo distrito de Salvador chamado São Tomé de Paripe. Fazia falta uma banca de revistas por lá.
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Ao longo dos anos, dezenas de pessoas me perguntaram por que pesquiso revistas de surfe. Sobre isso, lembro de uma frase da professora Marialva Barbosa, que coordenava o Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense quando eu fazia doutorado lá. Ela disse mais ou menos assim: “A gente pesquisa aquilo que fala sobre a gente” (ou “aquilo que toca a gente”, algo por aí…).
O corpus da minha dissertação de mestrado foi formado pelas revistas Istoé e Veja publicadas ao longo do Plano Cruzado (março a novembro de 1986). No doutorado, mergulhei nas edições de Fluir entre 1983 e 1988.
Mudei-me para o Rio de Janeiro em 2006. Em dezembro de 2009, numa ida a Icaraí para visitar a família, um encontro com o jornaleiro cuja banca frequentei durante a infância e adolescência me levou a escrever um texto em meu blogue pessoal.
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“Tem muita coisa misturada nesse texto, Rafael. Lembrança de infância, referência bibliográfia, objeto empírico, objeto de estudo e crítica generalizante à pusilanimilidade dos governos civis pós-ditadura”, poderia dizer um leitor – e estaria coberto de razão. Vou avançar, prometo, mas vai ser tudo junto e misturado mesmo.
As imagens que se seguem são de revistas que pertenciam à minha mãe, falecida em janeiro deste ano. São 44 imagens feitas por mim a partir de oito periódicos. Faço referência à maioria delas no texto, mas as fotos de algumas páginas internas só são para fins ilustrativos.
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Trata-se de uma revista de ponto de cruz chamada Fada do Lar. Na parte superior da capa (imagem 1) estão anotados em caneta azul o nome (ainda de casada) da minha mãe, Rosane Soares, e a provável data de compra: “jun/84”. Ela tinha o hábito de anotar nome e data (dia/mês/ano, mês/ano ou ano) também em livros, guias e panfletos religiosos etc. A capa tem a expressão “ponto de cruz” escrita em diferentes idiomas. Em português, além do título, informações como: “Revista trimestral de ponto de cruz n. 6” e “Preço 37$50”, indicando tratar-se do valor cobrado em Portugal, em escudos. Na contracapa (imegem 4), estão reproduzidas as capas dos números anteriores (1 a 5) e informa-se que o valor para envio pelo correio é de 50$00 cada. Sobre a imagem do número inaugural há uma etiqueta adesiva de preço com o valor 1600 escrito à mão em caneta azul. Trata-se do provável valor de venda em banca no Rio de Janeiro em 1984. Apenas para efeito de referência, o preço de Fluir, lançada em 1983, variou de 900 e 4.500 cruzeiros entre o número 1 e o 7, quando completou um ano (Fortes, 2009, p. 35). Há também uma marca de carimbo com tinta azul (outra forma comum de indicar preços nas mercadorias na primeira metade da década de 1980) na parte superior da contracapa. O valor que aparecia no carimbo está rabiscado por tinta preta, sendo visíveis apenas os dois últimos zeros. Indício quase certo de remarcação de preço por aumento da inflação, embora não se possa desprezar a variação cambial como um possível fator conexo.
O expediente (imagem 2), lista o nome dos trabalhadores que fizeram a tradução para quatro idiomas (espanhol, italiano, inglês e japonês), da firma distribuidora para o território português e de oito outros distribuidores (sete correspondendo a um país cada; e o mexicano cobrindo mais seis nações da América Central e Caribe). Já o distribuidor na Itália e o preço em liras (1.000), diferentemente, aparecem no lado direito da capa, abaixo do nome, o que me permite inferir que o país era o principal destino de exportação do periódico.
A título de curiosidade, incluí uma página (imagem 3) onde se lê “Homenagem a Walt Disney” com Pato Donald, Bâmbis e um Mickey que, quiçá, aparece fazendo uma arminha com a mão. Como observou um amigo que viu a imagem, o revólver no centro da página possivelmente pertence ao personagem de faroeste do canto superior esquerdo.










Meus conhecimentos próximos de zero em relação aos idiomas dos países do leste da Ásia limitam o alcance da descrição. Arrisco dizer que é uma revista de crochê publicada no Japão. Na capa, novamente, nome da minha mãe e o ano, 1980. Na página 3 (imagem 6), uma datação distinta (“Maio/79”) e um carimbo de J.M. Chedid – Livros, Jornais e Revistas, com endereço e telefone da loja, localizada na Rua do Ouvidor, no Centro do Rio de Janeiro. A contracapa (imagem 12, azul) traz duas marcas de carimbo um tanto apagadas, sendo possível ver que os três últimos algarismos são zeros (o valor parece ser 7000). Há um pequeno logotipo vermelho da empresa Mitsubishi na parte inferior da página e estão escritos, em inglês, a indicação de “Impresso no Japão”, a atribuição de copyright a T. Seto e o ano, 1976.
As imagens 10 e 11 correspondem aos dois lados de um cartão-resposta que poderia ser destacado pelo leitor (aproveitando a linha serrilhada que o une à revista), preeenchido e enviado pelo correio. Era comum as editoras usarem esta ferramenta para oferecer o serviço de assinatura. Facilitava-se tanto o preenchimento quanto o envio: era possível eliminar a necessidade de providenciar envelope (e de preenchê-lo e fechá-lo com cola) e/ou de selo (caso a despesa ficasse a cargo da própria editora). O desenho em vermelho mostra uma menina depositando um envelope numa caixa de correio.
As imagens 12 e 13 correspondem à frente e ao verso de duas folhas que estavam soltas dentro da revista. Provavelmente tratou-se de ação promocional da marca Fios Santista, de fios de tricô e crochê, pegando carona num impresso voltado para o assunto. No pé da página, o endereço do Depto. Tricô e Crochê da Moinho Santista Indústrias Gerais. As folhas são apresentadas como “um presente” da marca: uma com dedicatória e assinatura da atriz Tônia Carreiro e a outra de Estela (provavelmente a atriz Maria Estela Rivera). Os dizeres “A moda é ser pão-dura” sugerem que a onda do momento era fazer a própria roupa, em vez de comprá-la. (In)viabilidade financeira de pagar pelo suéter e casaco prontos, numa loja? Escolha “livre” e descolada? Ou algum grau de combinação de ambas?





3. Revista de Supercrochet – Imagens 15 a 19
Publicada em Barcelona (Espanha) e vendida por 250 pesetas. No carimbo retangular azul da contracapa lê-se: “Publicações Castro Ltda.”, endereço, telefones e o valor de 1600. Provavelmente o mesmo valor da Fada do Lar, mas, como inexiste indicação de mês e ano neste exemplar, é impossível afirmar. As Publicações Castro reaparecerem adiante neste texto. A empresa provavelmente atuava como importadora, editora e/ou distribuidora.




Revista de ponto de cruz italiana, preço de capa 600 liras. Na imagem 21 há anotações de algarismos feitas por minha mãe. Localicadas nas margens, imagino que correspondam ao número de quadrados de cada desenho (perdão, leitor, não tive paciência nem tenho vista para contar).
A contracapa (imagem 23) traz imagens de cães e um carimbo circular azul apagado onde é possível ler “Castro Ltda.”, provavelmente a empresa já citada. No meio do carimbo, há uma etiqueta colada com o valor de 12000. É possível que ela esteja precisamente cobrindo um preço (anterior e mais baixo) indicado no carimbo. A se notar, também, que os algarismos são impressos. Provavelmente a tarefa foi realizada com uma pistola de marcação de preços, utensílio usado em larga escala no comércio brasileiro ao longo de toda a década de 1980, por facilitar o trabalho em série de remarcação de preços em meio às altas inflacionárias. Tal tarefa foi aliviada na década seguinte com a disseminação dos códigos de barra e a gradual conversão da identificação e leitura dos preços, na maioria dos estabelecimentos, de sistemas manuais (etiquetas coladas) para os digitalizados.







Revista de tricô e crochê publicada em 1976 em Offenburg, Alemanha Ocidental. “Printed in Westgermany”, informa em inglês a capa (imagem 24). Há indicação de preços que parecem ser 43 xelins austríacos e 5,60 francos suíços. (Parece-me estranho o principal número, E 365, ser o valor em marcos. Talvez 3,65…). No canto superior direito da contracapa (que não fotografei), há um carimbo retangular onde é possível ler “Castro Ltda.” e o valor de $40,00.
Um aviso impresso na capa informa que há um “suplemento em português”. Ele contém 24 páginas e a primeira delas, onde se lê “Tradução portuguesa”, aparece na imagem 26.
Objetos para além de ler, folhear, copiar, usar de referência
Dentro deste exemplar encontrei dois recortes de colunas do escritor Carlos Eduardo Novaes publicadas em domingos consecutivos (11 e 18/7/1976) no Caderno B do Jornal do Brasil. O primeiro texto (imagem 27) aborda o sucesso do paranormal israelense Uri Geller na televisão brasileira e as fortes impressões e expectativas que gerava em muitas pessoas. Há menções à “nossa realidade” e à fome. A moral da história ao final segue a linha da máxima não há almoço grátis. O segundo (imagem 29) alude à prisão dos músicos Gilberto Gil e Chiquinho por porte de drogas em Florianópolis (SC). Tal como na coluna anterior, humor, nonsense e uma mistura entre situações cotidianas plausíveis e outras inteiramente absurdas ou impossíveis são utilizados para abordar a repressão policial em busca de drogas. No verso das folhas, respectivamente (imagens 28 e 30), é possível ver o topo de uma seção intitulada “LAZER” que ocupava ao menos o terço superior da página 11 do caderno naqueles domingos. Os assuntos abordados parecem bastante diversos entre si. Meus pais assinavam o Jornal do Brasil entre o final dos anos 1980 e o início dos 1990. Lembro de meu pai como um leitor entusiasmado – e peguei um pouco desse hábito, com interesse principal na cobertura de esporte e, em segundo lugar, no Caderno B. Um militar leitor do jornal queridinho – até hoje – de boa parte da esquerda e dos professores universitários fluminenses (os de Humanas, ao menos). E, pelo visto, pelo menos um dos membros do casal andou lendo em 1976. Nos anos 1980, lembro de minha mãe não gostar de ler jornal, mas pode ter havido uma mudança de hábito em relação a anos anteriores.
Pude escrever os três parágrafos acima graças, principalmente, ao fato de alguém (provavelmente minha mãe) ter recortado aquelas duas colunas, colocado dentro de uma revista e nunca mais tê-las tirado dali (nem a revista ter sido jogada fora por um motivo qualquer; ou nossa casa nunca ter pegado fogo ou ter sido destruída nas centenas de enchentes e desabamentos que atingiram de famílias fluminenses desde então etc.). Revistas são, portanto, também lugares onde alguém pode enfiar folhas soltas: para lembrar depois; para guardar; para tirar da vista; para esquecer; para alguém achar, um dia (a própria pessoa? Uma outra pessoa específica? Qualquer pessoa?).
Nas revistas 2 e 4, mencionei anotações do próprio nome, de datas e de números. Estas e outras marcas de interações entre o leitor e o objeto físico revista foram observadas com frequência por mim ao longo das pesquisas em acervos públicos e privados. Nas revistas de surfe, é comum haver páginas inteiras arrancadas ou pedaços de páginas recortados (faltando). Em geral, o que se extraía era uma fotografia considerada boa, que ia parar em distintos lugares: capa de caderno da escola, parte interna da porta de armário, parede do quarto. Eu mesmo fazia isso com revistas de surfe, Placar, jornais diários que comprava (ou pegava depois de meu pai ter lido, situação em que ficavam liberados para serem recortados) nos anos 1980. Cheguei a montar uma pasta com centenas de recortes relacionados ao Flamengo.




6. Ondori – Imagens 31-3 e 44
Graças a uma palavrinha grafada no alfabeto latino, Ondori, pude pesquisar no Google, que exibiu nos resultados exemplares da década de 80 oferecidos atualmente por vendedores online localizados em diferentes cidades brasileiras. Mais um indício da forte circulação de revistas importadas no período. Uns anúncios dizem que é “revista japonesa de tricô”, outros que é “revista japonesa de crochê”.
Nome e data completa (07/3/85) anotados por minha mãe em caneta azul na capa (imagem 31). No índice (imagem 32), ao pé da página, há uma datação com o símbolo de copyright e ano: ’74. Haveria um intervalo de 11 anos entre a fabricação do produto, no Japão, e a aquisição por minha mãe? Na contracapa (imagem 33), ela anotou a lápis o seguinte: “(071) 243-1472 – Centro Gratuito para Viciados em Drogas”. Mudamo-nos para Aratu no início de 1986. Como o número de discagem direta à distância (DDD) é 071, de Salvador, desconfio que o exemplar foi para a Bahia no caminhão de mudança, e que essa anotação foi feita do intervalo de dois anos até o início de 1988, quando retornamos ao RJ.
O exemplar contém itens que não fotografei: um marcador de páginas (com escritos em japonês e em algarismos arábicos) que deve ter vindo encartado de brinde da própria revista e um encarte grande (folha bem maior que o tamanho da revista, tanto que precisou ser dobrada três vezes para caber nela). Na margem inferior da página 88 (imagem 44), abaixo de um desenho de tricô, há uma anotação da minha mãe: “p/ costas sofá – 156 trancinhas”.
Diferentemente dos demais, este exemplar tem folhas manchadas e enrugadas: indícios de que algum líquido foi derramado sobre ele (ou que apanhou chuva).




Publicada na Alemanha, com redação sediada em Hamburgo. A anotação de data na capa (imagem 34), “março/98”, extrapola em mais de uma década o recorte temporal que estabeleci.
Está aqui por motivos especulativos… Entre 1992 e 1996, aproximadamente, diferentes motivos fizeram com que minha mãe pedisse mais de uma licença do trabalho. Acredito que os períodos de licença tenham contribuído para que ela viesse a ser demitida (o que se deu entre os meses finais de 1996, provavelmente). Houve uma redução no consumo de revistas? Se houve, em que medida isto poderia ter a ver com fatores econômicos (minha mãe nunca mais trabalhou fora e recebeu salário) ou também a mudanças gerais na vida de alguém que trabalhara desde a adolescência e, então, passou a ser uma dona de casa em tempo integral? Perda de interesse por antigos hábitos? Novos interesses? Não ir mais ao Centro do Rio de segunda a sexta e passar obrigatoriamente na frente da Banca do Franco para entrar no prédio onde trabalhava?
Mas a data de 1998 pode também estar errada, inclusive porque a etiqueta de preço na capa, das “Publ. Castro”, estampa o valor de 120 00, que certamente não correponde a R$ 120, moeda em vigor naquele momento. Tal como o exemplar japonês anterior, muitas coisas podem ter acontecido, inclusive a passagem de um intervalo de anos entre o exemplar ser impresso na gráfica e minha mãe parado para escrever uma data na capa dele (inclusive o ato dela de anotar uma data na capa da revista não corresponder sempre e necessariamente à mesma situação de contato inicial – compra – daquele objeto). Escrevi o parágrafo especulativo anterior antes de avançar à imagem 36. Nela, há um encarte interno com referência explícita ao ano de 1984. Isso derruba completamente as ilações que fiz? Em que medida vale manter um parágrafo assim, intacto, neste texto? Questões para pensar o papel do historiador e os meandros do nosso trato com as fontes e como aquilo que pensamos termina se materializando em textos.






Este exemplar é uma cópia reprográfica (via máquina de copiar, vulgo xerox). As folhas estão presas por um grampo trilho, muito usado em processos de papel do serviço público fluminense. Isto, claro, haver, em algumas das revistas anteriores, menções a leis proibindo a reprodução não autorizada – uma forte evidência de que havia reproduções não autorizadas.
Este exemplar contém diversas intervenções de minha mãe. Há anotações em várias páginas (por exemplo, em caneta vermelha, imagem 42). No verso de algumas estão colados desenhos coloridos por ela em papel quadriculado (imagens 41 e 43). Uma das vantagens da cópia, quando se reproduz apenas uma página por folha, é ter o verso livre para colar, escrever, anotar e desenhar, sem, para isso, sobrepor o conteúdo da publicação. Duas folhas soltas (imagens 39 e 40) foram preparadas com a palavra “Guilhermina”, nome daquela que era, à época, talvez a melhor amiga de minha mãe.
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Por muitos anos, minha mãe adorou fazer crochê, ponto de cruz e tricô (este, creio, um pouco menos). E comprou, leu, consumiu, usou e guardou muito bem guardadas revistas importadas e nacionais, bem como cópias xerox, dedicadas a estes assuntos. Várias das peças que resultavam dessas atividades decoravam a casa ou ficavam guardadas para ocasiões especiais (toalhas de banho ou de mesa com bordados ou barras de crochê, por exemplo). Hábitos de uma mulher nascida em 1950, em Niterói, que fez curso normal, mas seguiu rumos laborais que não o de professora. Há algo, ali, de minha avó materna Dirce, dona-de-casa que costurava para fora para pagar as contas? Há algo da madrasta da minha mãe, minha avó Myria, que adorava bordar? Há algo ali de meu avô paterno, Jorge, que também era chegado em revistas (National Geographic, por exemplo) e em fazer anotações em tudo que era canto (livros, dicionários, gramáticas etc.), inclusive devido ao trabalho extra que fazia como tradutor?
Parece-me plausível dizer que comprar, ler, manipular, reler, consultar, escrever, guardar, contar, entre outras, eram ações comuns da minha mãe com aquelas e naquelas revistas. Elas permitem pensar neste objeto e em seu consumo (cultural, social, cotidiano, econômico) para além de um simples mediador ou da busca de informações sobre determinados interesses ou atividades que podem ser classificados de múltiplas formas (hobby, lazer, diversão, atividade manual, artesanato etc.), dependendo das circunstâncias. Que papel, nisso tudo, desempenham as questões econômica e de acesso? Recursos para adquirir revistas importadas e também os materiais necessários às atividades (agulhas, linhas etc.). E o acesso a ambos: residir numa cidade de porte médio e circular diariamente pelo Centro dela e do Rio de Janeiro representavam proximidade de lojas de departamento e armarinhos, bem como de bancas de revista enormes, repletas de periódicos de dezenas de países. Como era o caso da banca do Franco, da qual minha mãe era freguesa, localizada em frente ao edifício em que ela trabalhava, na Rua Nilo Peçanha, 50. É, lembro de cabeça o nome dos jornaleiros que atenderam por anos a mim (perto de casa) e, 30 ou 35 anos atrás, à minha mãe (perto do trabalho dela). Eu ficava maravilhado ao olhar tantas revistas dentro das bancas – principalmente essas enormes, do Centro do Rio -, mas também esses lugares eram especiais também porque nelas havia tanta coisa legal, como figurinhas para os álbuns (geralmente de futebol) e jornais esportivos.
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As imagens acima são de revistas adquiridas para uso prioritariamente doméstico e individual. Cenários bastante distintos, contudo, poderiam ocorrer, dependendo de quem comprava e de qual(is) o(s) tema(s) principal da revista importada em questão. Bancas de revista eram também um local de encontro. Desconhecidos poderiam desenvolver conversas e, às vezes, vínculos a partir de interesses em comum. No período histórico em questão, o Centro do Rio e adjacências eram também áreas de circulação de muitos adolescentes e jovens, que se agregavam de forma relativamente solta em grupos. As bancas de jornal eram uma referência para a busca de informações, para saber que novidades havia, que revistas haviam chegado ou se esperava que chegassem (e quando). Um exemplar de revista importada comprado por alguém podia, no mesmo dia, passar de mão em mão por várias pessoas. Folheado com avidez por muitos, depois lido com calma pelo comprador, e então emprestado para amigos. Não era incomum jovens se reunirem na casa de alguém ao saberem que a pessoa tinha comprado ou tinha conseguido emprestada, com um amigo, uma dessas publicações muito raras, caras e/ou desejadas.
Em livros como os de Janice Caiafa (1985) e a biografia da banda Planet Hemp escrita por Pedro de Luna (2018), é possível encontrar narrativas sobre a circulação de grupos de jovens pelo bairro no período aproximado de 1976-1985. Trechos extraídos do último e situados por volta de 1981:
“Além do povo da praça Mahatma Gandhi, tinha também a galera do skate, que ouvia o mesmo tipo de som. Os skatistas costumavam andar de madrugada pelo centro, na ladeira ao lado do Museu da Imagem e do Som, na praça XV, e no monumento a Estácio de Sá, no Aterro. Quem estivesse perto, e com um skate, ia junto. Naquela época, as turmas eram bem misturadas: playboys da Urca, galera do Méier; alguns de Niterói e muitos do Centro, da Lapa, da Glória, do Flamengo. (…) No entanto, havia bastante intolerância. Quando os dois [Skunk e Miltão] começaram a usar camisetas de bandas new wave, foram hostilizados. Camisetas rosas ou vermelhas nem pensar, no máximo uma multicolorida do Devo. (…) Assim como o Skunk, [Miltão] também fuçava as revistas importadas no edifício Central e nas bancas de importados do Centro. Corria atrás da informação para editar fanzines ou escrever letras de música (Luna, 2018, p. 14-5).”
E este, “por volta de 1984″:
“Curioso e interessado, Skunk vivia metido nas bancas de jornal da avenida Rio Branco, folheando as revistas de música importadas, mesmo sem entender quase nada de inglês. Ele queria mesmo é assimilar o visual, antecipar as tendências (p. 15).”
Folhear revista era um hábito de várias pessoas, talvez mais comum entre as que não tinham dinheiro para comprá-las. Ou que só tinham para comprar uma – logo, era preciso folhear bastante para escolher bem.
Descendo a Avenida Rio Branco no sentido da Praça Mauá para o Aterro do Flamengo, o edifício Avenida Central é o seguinte, do lado direito, quando se passa o edifício Rodolfo de Paoli, onde minha mãe trabalhava na Confederação Nacional da Indústria. Todos os dias úteis ela chegava ao Centro e saía dele pela Praça XV. Circulava pela mesma área dessa garotada.
Como um dos trechos evidencia, não se tratava de um passado em que tudo eram flores graças à congregação da garotada e a circulação pelos mesmos espaços. Preconceitos, marcadores sociais e problemas estruturais estavam lá operando, firmes e fortes. Fundador do Planet Hemp, Skunk era negro, bissexual e foi vítimas da AIDS nos anos 1980 (tema/período sobre o qual, sempre que posso, recomendo o documentário Cartas para além dos muros).
Estilo de vida, identidade, música, esporte, lazer, fruição, frustração, amores, amizades, ódios, brigas, crocodilagens, drogas, pertencimento, repressão da “sociedade”. Tudo isso fazia parte da vida destes adolescentes e jovens, como de tantos outros. O punk, o skate, o rap/hip-hop, o rock, e/ou o surfe, entre outros, funcionaram como colas que uniram várias dessas pessoas e ajudaram, às vezes, a dar um sentido, temporário que fosse, a suas vidas. Frequentemente significaram menos que isso: apenas ajudaram a se situarem e terem algumas referências, além de uma galera com quem andar.
Por estes e outros motivos, dentro do recorte temporal estabelecido neste texto, revistas importadas eram itens muito valiosos no cotidiano e na vida de crianças, adolescentes e jovens, fossem skatistas de Pelotas (RS), surfistas de Fortaleza (CE) ou punks da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, conforme, respectivamente as pesquisas de Rocha (2021), Franco (2013) e Caiafa (1985). Tais relações entre revistas importadas de surfe e juventude aparecem em textos meus; e de Leonardo Brandão, que priorizam a história do skate, mas também afirmam, entre outras preciosidades, que as revistas californianas Surfer e Surfing “eram vendidas em São Paulo nas bancas da Praça da República” por volta de 1974 (Brandão, 2014, p. 52).
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Bancas essas escolhidas como um dos alvos preferenciais de terrorismo de Estado por setores da repressão. Há quem diga que, em certos casos, isto se deu por venderem e darem destaque a periódicos de oposição. Estou entre os que consideram que a repressão pode atingir – e muitas vezes atinge, de fato – as pessoas e alvos de forma desigual. Contudo, é pouco producente ficar procurando o que cada um supostamente fez para, então, justificar ou explicar o que lhe aconteceu. Todas as vítimas de terrorismo de Estado são vítimas de terrorismo de Estado. Ponto.
[Texto originalmente publicado no BELA – Blog Estudos do Lazer. Fiz apenas pequenos ajustes, inclusive no título.]
Referências bibliográficas
BRANDÃO, Leonardo. Para além do esporte: uma história do skate no Brasil. Blumenau: Edifurb, 2014.
CAIAFA, Janice. Movimento punk na cidade: a invasão dos bandos sub. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
FORTES, Rafael. O surfe nas ondas da mídia: um estudo de Fluir nos anos 1980. Tese (Doutorado em Comunicação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.
FRANCO, Bruna Demes Gonçalves. O surfe como prática: cidade, corpo e técnica numa relação entre cultura e natureza em Fortaleza (1972-1986). Dissertação (Mestrado em História) – Universidade do Estado do Ceará, Fortaleza, 2013.
LUNA, Pedro de. Planet Hemp: mantenha o respeito. Caxias do Sul: Belas Letras, 2018.
MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura no século XX. São Paulo: Olho d’Água/Fapesp, 2001.
ROCHA, Manoel José Fonseca. Juventude, lazer e desenvolvimento: o processo de territorialização do skate no município de Pelotas/RS (1975-2005). Tese (Doutorado em Desenvolvimento Regional) – Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, 2021.
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