LITERATURA TEM COR, CHEIRO E SENTIDO: o futebol como matéria

Por Edônio Alves

Temos contribuído, nesse blog, com análises de obras literárias (aqui, no recorte do gênero conto de ficção) que tematizam o jogo de futebol nos seus mais diferentes aspectos, propósitos e ângulos de abordagem.

A ideia é dar ao internauta-leitor um panorama representativo do quanto a literatura brasileira já tomou esse jogo como tema, em suas diferentes realizações estéticas autorais. Segue aí, dentro desse escopo de visão crítica da questão – ao mesmo tempo historiográfica e analítica- mais uma análise de um conto extraordinário do escritor Lourenço Cazzaré, que toma o futebol como texto e pretexto para discutir o sempre complexo imbróglio sociológico (com o approach racial) da inserção do negro em nossa constituição como povo, como sociedade e como nação. Uma verdadeira jogada de mestre da literatura. Leiamos!

Meia encarnada dura de sangue

      Lourenço Cazarré

Bem escrita, densa até, na sua plasticidade expressiva, o que talvez tenha pesado na sua transformação, pela Rede Globo de Televisão, num dos episódios de teledramaturgia exibidos para todo o País em 2001, esta narrativa traz como tema central a custosa e difícil inserção para esta etnia do elemento negro da nossa formação social no início da profissionalização do futebol no Brasil. E, paralelamente, mostra a bravura e o talento de um dos seus representantes mais singulares no ambiente de geografia humana em que se passa a história: o Rio Grande do Sul de ethos viril e personagens fundadores.

O entrecho da narrativa é simples, mas bem construído para dar conta do seu objetivo. Trata-se do velho recurso da estória dentro da estória em que um narrador serve-se de outro mais experiente – no texto, o seu avô; portanto a experiência aqui está no sentido benjaminiano – de quem se acostumou a ouvir “mitos, lendas, lérias e leréias” (Ivan Ângelo, p. 42) e, através dele, repassá-las adiante de modo que reste como efeito geral o argumento da história com H maiúsculo nas entrelinhas da estória com E minúsculo, mas de significado imenso.

“Pois este meu avô ­- disse o poeta – dava um dedo por um pouco de prosa. Parece que estou a vê-lo, pequeno, não media mais de um metro e meio, sentado em frente à sua casa – ali no Corredor das Tropas, rua que descia da igrejinha velha de Nossa Senhora da Luz -, cuia de chimarrão na mão esquerda, chaleira tisnada na direita, catando entre os passantes apressados do fim de tarde alguém que quisesse jogar fora um pouco de conversa”.

Assim, destarte, é apresentado ao leitor, o narrador da história que ele (ainda o narrador) vai “ouvir” do poeta, que, por sua vez, ouve deste outro (o seu avô) e conta a mais este outro, enfim; o narrador em terceira pessoa que finalmente nos conta tudo.

Tudo que diz respeito a tudo porque esse velho narrador (o avô da história) costumava narrar sobre tudo: “Tinha uma história para cada assunto, muitas pra vários assuntos: creio que o amor e a morte eram seus temas preferidos, e também as catástrofes inexplicáveis desencadeadas por forças desconhecidas, e honra, dignidade, hombridade, lealdade e amizade, os valores que, dizia ele, estavam desaparecendo de nossa cidade, e de resto, do mundo”.

Mas, então…, numa dessas tardes, por volta da década de trinta, diz ainda o narrador, falavam de futebol. E é aí que entra a figura de um certo personagem da história, um tal crioulo, “uma espécie de primeiro profissional da cidade”, que é apresentado ao público leitor com todos seus atributos pessoais e circunstâncias contra e a favor, principalmente contra; mais contra do que a favor, ressalte-se a bem julgar.

“Pois o crioulo jogava pelo Grêmio Esportivo Brasil, o time dos negros e mulatos. (…) Aos dezenove-vinte anos, era o maior driblador e fazedor de golos da época. Nem alto nem baixo, era magro como a peste e leve como a brisa e dançarino como as borboletas. E frio. Jogava de olhos abertos, cabeça erguida. Calculista, ele não só queria fazer o golo, gostava de ver o goleiro esmurrar a grama. Jogava rindo. (…) Ele ria daquele jeito só pra enfurecer os adversários, pra fazê-los perder a cabeça e começarem a querer matá-lo.” 

Entretanto, para tecer os elementos contrastivos da história e realçar a bravura e valor desse personagem no contexto em questão, o narrador literalmente adverte que só era assim dentro do campo, o mulato; implacável. “(…) Fora era outra coisa. Um rapaz gentil, tímido, de fala mansa, silencioso, cerimonioso. Saía do campo de cabeça baixa, como que pedindo desculpas por jogar tanta bola”.

Em seguida é arrematado o seu esboço socioeconômico e cultural com a descrição da sua condição de vida, a profissão que exercia e o que vai ligá-lo aquele contexto pré-profissional do mundo do futebol. Se o homem é ele e a sua circunstância, como nos afiança o filósofo espanhol Ortega Y Gasset*, a passagem, no texto, tem a função de revelar, do ponto de vista da sua eficácia narrativa, o detalhe específico sobre o qual vai recair toda a carga dramática do conto. É-nos é informado, por exemplo, que o tal crioulo trabalhava num matadouro.

“Era tão hábil com a faca quanto com a bola, dizia o meu avô. O negócio dele era a desossa. Desmanchava um boi em questão de minutos. E não deixava um só fiapo de carne nos ossos. Com a mesma precisão com que escapava dos coices do adversário, recuando o corpo apenas os milímetros necessários, ele destrinchava os animais”, afirma o narrador para, contudo, observar peremptório: “Aos domingos, brilhava nos campos”.

A partir de agora, dado o encaminhamento acima antevisto, as atenções da narrativa concentram-se, no seu essencial, nas ações e reações da inserção do personagem principal no universo da magia hipnótica da bola tocada de pé em pé*. (Ivan, p. 39). Por isso é que é explicada, como dupla justificativa para fazer um contraponto do trânsito de tal figura negra para o espaço social dos brancos, a razão puramente intrínseca ao futebol da questão do talento do negro para este esporte. “Depois de perder quatro dos cinco jogos, de enfiada, os dirigentes do Esporte Clube Pelotas começaram a se perguntar se não estariam fazendo uma grande asneira em não aceitar jogadores negros ou mulatos”.

Em nível de representação literária, todavia, um estratagema narrativo é aqui utilizado para dar a conhecer ao leitor o julgamento do tempo sobre essa questão. Assim, o narrador avô, contemporâneo dos fatos narrados, é requisitado ao texto para proferir seu paracer: “E meu avô dizia: está certo que esses negros são uns mandriões, e conheci não mais de sete que gostavam de trabalhar, mas o certo é que nas safadezas, coisas como serenatas e jogos de bola, eles são bons”.

Está aí com todas as letras da estória, o dilema colocado para os negros que há época desejavam tomar parte num esporte controlado pelos brancos, para o qual tinham talento e desenvoltura, mas cuja inserção, numa sociedade profundamente marcada pela divisão racial no trabalho (resquício do escravismo recente), poderia significar uma realização de efeitos duplos e contrários entre si: a possibilidade relativa da ascensão pessoal do indivíduo no plano econômico, mas à custa da adesão a valores não seus, no mundo social de então. O que, em termos muito claros, para criar um trocadilho de efeito, significava a traição aos seus companheiros de raça e de classe social.

Pois é isso que vai sustentar o melhor deste conto de Lourenço Cazarré. Isto é: a dramatização literária da dubiedade dessa situação onde o que deveria ser valorizado no negro (sua aptidão artística para a música e para a atividade lúdica: os jogos de bola, por exemplo) só o é na medida em que isso continua a servir ao branco como fator de distinção e hegemonia de classe (a superioridade também no futebol), e não como vetor de integração da heterogeneidade social em formação. Daí as qualidades dos negros serem tratadas, em termos de sua representação ideológica no âmbito da narrativa, de “safadezas, coisa como serenatas e jogos de bola”.

Todo o efeito de sentido da narrativa, portanto, se concentrará agora nessa situação do personagem. A cooptação e assédio que passa a sofrer para jogar no time dos brancos: “Um dos diretores do Pelotas, da família Almeida Guimarães, um cara que tinha tantos contos de réis quanto milhos numa espiga disse mais: que cederia ao tal crioulo uma casa velha que tinha lá pros lados da Cerquinha. Se aceitasse, podia morar lá de graça, enquanto servisse ao time”.

Não é necessário dizer – embora o narrador diga de forma elegante e comovente – o quanto perturbou o tal crioulo essa proposta. Para encurtar aqui a agonia do personagem, revele-se que, por fim, ele a aceitou, embora seja lembrado o leitor que ele tenha demorado muito pra aceitar. 

(…) Por uma mulher, decidiu-se.

(…) Disse que sim ao terceiro emissário.

(…) Faltava apenas uma semana pro jogo.

Com essas intervenções cirúrgicas, pontuais, o narrador resume a motivação, o tempo de maturação e a circunstância da decisão que vai ensejar o ápice dramático da história do seu personagem que não teve mais paz. E que, talvez justamente por causa disso, entra numa outra e maior agonia. “O jogo seria no domingo”, lembra outra vez, cirurgicamente, o narrador.

E lembra também que o acidente deu-se no final da manhã de sábado, após o expediente. Uma lágrima teria causado o acidente…! Uma lágrima que lhe sujou o olho.  “O mulato estava desossando uma carcaça no chão, como gostava de fazer, sobre a laje ensangüentada. Usava não só as mãos, mas também os pés descalços, pra firmar a ossamenta. Então a faca escapou e ele não sentiu nada além de uma pequena ardência, quase uma cócega, na parte de dentro do pé esquerdo”.

O que se segue são trechos da mais comovente bravura já incorporados ao rol de cenas similares em toda a literatura brasileira e não apenas na que tem como tema especificamente o futebol, o jogo dos pés.

“A faca correra ao longo de todo o seu pé, do dedão ao calcanhar, abrindo um talho fundo, de vinte centímetros de comprimento.”

“No primeiro instante ele até achou que tinha sido pouca coisa. Então o sangue começou a manar, denso, grosso, vermelho”.

Deixe-se o resto dessas páginas para o leitor folhear de tanto que elas trazem de lição de valentia e registre-se que o nosso crioulo foi assim mesmo para o jogo defender o time dos brancos. Situação que não o poupou de duros constrangimentos, perda da sua paz interior, como já se disse, mas que enfrentou com talento e brio de macho porque “meu tio dizia que no seu tempo, sim, aquilo era um esporte pra homens, porque os juízes só maçavam falta se o agredido sangrasse, e só expulsavam o agressor quando o outro ficava estirado sobre o barro, desmaiado”.

Contudo, a violência moral era a que mais o atingia “por causa dos risinhos e das piadas e das ofensas pesadas dos colegas de matadouro, mulatos e negros como ele”. Esse era o desprezo que lhe interessava, que lhe dizia respeito, adverte o narrador para logo lembrar que o jogo seria no domingo.

Pois lá vai o nosso personagem negro defender o Esporte Clube Pelotas, “o time dos almofadinas da Avenida” enfiando “a camiseta azul e amarela que se acostumara, desde menino, a repudiar”. Entrou em campo escondendo aquele profundo talho que varava seu pé de ponta a ponta, a que dera um jeito costurando-o com uma tripa seca de boi e escondendo tudo sobre o meião de jogo.

Sabe-se como é, né? Queria ter uma casa e uma vida como qualquer outro. Assinala o narrador que ele até “sonhou, com misto de orgulho e desvanecimento de proprietário, que passava as trancas nas portas e se deitava ao lado da mulher, e que adormecia, como um homem comum”.

Retomemos a narrativa dentro da narrativa para mostrar a habilidade do escritor Lourenço Cazarré, no campo do texto, acompanhando com similitude a habilidade do seu personagem, no campo do jogo, e concluamos tudo ao louvar, com esse último trecho citado – que, frize-se, não encerra a  história -, mais esse belo tento da literatura brasileira que faz do futebol um bom motivo para por em discussão os problemas e desafios que, na sua busca de identidade e caracterização, tem enfrentado o homem brasileiro ao curso de seu tempo.

“Que mais posso lhe dizer, meu amigo? Perguntava o meu avô nesse ponto da narrativa. Pouca coisa, respondia. Só que o mulato fez uma festa. Marcou três. E olha que os caras bateram nele! Saiu com os olhos escondidos debaixo de inchações e com um talho no supercílio. Apanhou muito dos seus antigos companheiros, mas em momento algum pediu pra sair, como fazem esses frescos hoje em dia. Foi até o apito final esbanjando categoria. Parecia um toureiro se esquivando daqueles animais furiosos. E dava chapéu neles, bola pelo meio das pernas então era mato. E os caras chutavam não a bola, ele, e ele só dava de banda, e a chuteira passava. Três gols, sabe o que é isso?

Foi o último a deixar os vestiários porque não queria que vissem a meia empapada de sangue. Naqueles tempos eles próprios tinham que arranjar quem lavasse o fardamento. Saiu, sem que ninguém, além do engraxate, tivesse descoberto o seu segredo”. 

PARA SABER MAIS:

Lourenço Cazarré, o autor da história acima, nasceu em Pelotas (RS) em 29 de julho de 1953. Desde 1981, ano em que saiu seu primeiro livro, Agosto, sexta-feira, treze, este escritor e jornalista gaúcho já teve mais de duas dezenas de obras publicadas. Grande contista brasileiro, conquistou o Prêmio Açorianos de Literatura, na categoria Contos, em 2002, com Ilhados. Esteve presente por duas vezes na Bienal Nestlé de Literatura, em 1982 e 1984; no Prêmio Jabuti, em 1999 e em mais de uma dezena de outros concursos. Sua novela, O mistério da obra-prima, foi traduzida para o espanhol e editada pela Fondo de Cultura Económica, do México. Entre sua obra infanto-juvenuil destacam-se os livros, Clube dos leitores e histórias tristes, A cidade dos ratos: uma ópera-roque, Quem matou o mestre de matemática? e Nadando contra a morte, que levou o Prêmio Jabuti de 1999. O conto, O homem vestido de negro, foi publicada na coletânea, 11 Histórias de futebol, integrante da Coleção Prosa Presente, da Editora Nova Alexandria, de São Paulo, que saiu em 2006.

Publicidade

Comentários encerrados.

%d blogueiros gostam disto: