por Victor Melo (victor.a.melo@uol.com.br)
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Depois de algum tempo distante das pesquisas sobre Cabo Verde, em função dos problemas ocasionados pela pandemia de Covid, recentemente, com grande felicidade, estive em Lisboa a fim de retomar meus projetos que se debruçam sobre a história desse país por mim tão admirado. Assim sendo, resolvi dedicar este post a um dos artífices da ideia de nação cabo-verdiana, um dos mais importantes líderes mundiais da segunda metade do século XX: Amílcar Cabral.
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Foto do Boavista Futebol Clube, de Praia/Cabo Verde, time no qual Amílcar Cabral atuou como jogador e dirigente. Acervo Fundação Mário Soares. Fundo DAC – Documentos Amílcar Cabral Disponível em: http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=05221.000.032
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Muito já foi dito sobre o envolvimento de Amílcar com o esporte. Aqui mesmo em nosso blog já apresentei um post sobre o tema (https://historiadoesporte.wordpress.com/2013/05/25/desafiando-o-inimigo-o-esporte-e-as-lutas-anticoloniais-na-guine/). Em 2019, procurei checar e sistematizar esse conjunto de informações, investigar novas facetas e ampliar o debate em artigo que tive o prazer de publicar na obra organizada pelos queridos colegas Américo Freire e Francisco Martinho (Intelectuais e marxismo no mundo lusófono. Recife: Edufe/Autografia, 2019).
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Capa do livro “Intelectuais e marxismo no mundo lusófono. Recife: Edufe/Autografia, 2019”
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Baixe abaixo o artigo
MELO, Victor Andrade de. Articulando teoria e prática: o esporte como estratégia na trajetória de Amílcar Cabral.
Amilcar.Cabral.artigo.livro.2019.revisão
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Neste post, apresento uma parte desse artigo que me pareceu relevante e era um tema pouco conhecido: a presença do esporte nas cartas que Cabral enviou para Maria Helena, sua primeira esposa. A meu ver, trata-se de um indício de que a prática estava presente na vida de Amílcar para além de uma ocorrência eventual.
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Capa do livro “ELÍSIO, Filinto, SOUTO, Márcia, CABRAL, Iva (orgs.). Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena – a outra face do homem. Lisboa: Rosa de Porcelana, 2016”.
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* Trecho do artigo “Articulando teoria e prática: o esporte como estratégia na trajetória de Amílcar Cabral”
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Sua relação com o esporte também aparece em algumas cartas que enviou a Maria Helena Rodrigues, sua futura esposa. Em algumas ocasiões, narrou seu envolvimento cotidiano com a prática, como na carta de 30 de março de 1948 (p. 79): “No sábado passado não joguei o futebol e digo ‘felizmente’ porque talvez fosse outra derrota. Mas havemos de ganhar. No sábado, a única coisa de jeito, que fiz, foi ter ido ao baile, como te disse”.
Em outras missivas (12 e 13 de setembro de 1948, p. 231 e 232) comentou sua participação em jogo da equipe da Casa dos Estudantes contra a Acadêmica de Coimbra, partida em que teve bom desempenho (“o teu Amílcar parece que agradou aos espectadores que não pouparam gritos e aplausos”), mas acabou por se contundir (“resultado de uma queda espetaculosa, daquelas em que a gente faz ‘cabriolets’ no ar e cai como um fardo”).
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Prática esportiva entre membros da CEI Disponível em: http://www.uccla.pt/fotos-historicas-casa-dos-estudantes-do-imperio
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Baixe aqui artigo
MELO, Victor Andrade de. Jogando no olho do furacão: o esporte na Casa dos Estudantes do Império (1944-1965). Análise Social, Lisboa, v. LII, n. 233, p. 280 – 304, 2017.
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Em outros momentos, contudo, pode-se perceber seu olhar sobre o valor do esporte, como em 5 de setembro de 1948 (p. 217), quando comentou a homenagem a Carlos Canuto, um antigo futebolista que se despedia: “Como vês, Lena, tive uma tarde agradável, tanto mais que o acontecimento, que chamou à Tapadinha milhares de espectadores, foi mais uma prova de que o Desporto é um meio eficiente na confraternização dos homens”.
A carta, na qual assume sua afiliação ao Benfica, é totalmente dedicada ao esporte. Teceu um elogio aos Jogos Olímpicos por envolver atletas das mais diferentes “raças” e países numa competição na qual, a seu ver, “a vitória não implica uma superioridade”, nem desvirtua “suas características fraternais”. Para ele, era uma representação de que todos os homens poderiam conseguir seus objetivos se oportunidades lhes fossem dadas: “Por isso mesmo, vêm-se os negros triunfar nos Jogos Olímpicos, conquistando os mais vibrantes aplausos, cobrindo-se de glórias, a despeito das intenções mais mesquinhas a que este ou aquele grupo não consegue fugir”.
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Abebe Bikila, etíope vencedor das maratonas dos Jogos Olímpicos de 1960 (Roma) e 1964 (Tóquio). Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Abebe_Bikila
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Àquela altura, ainda não se explicitara o uso político do esporte, notadamente do futebol, por parte do governo Salazarista, no qual obteriam destaque atletas oriundos das colônias africanas, entre os quais Eusébio (CARDÃO, 2014), mas já estava em curso uma maior proximidade governamental com a prática em função, inclusive, das ações de Sarmento Rodrigues na Guiné Portuguesa (MELO, 2014). De toda forma, ainda que de maneira um tanto ingênua, Cabral já apresentou um olhar estratégico para o esporte, o vendo como espaço de visibilidade para todas as “raças”, inclusive os negros.
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O moçambicano Eusébio com camisa da seleção portuguesa. Disponível em: https://esportesmais.com.br/eusebio-o-primeiro-grande-idolo-do-futebol-portugues/
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Baixe aqui o artigo
MELO, Victor Andrade de. O esporte na política colonial portuguesa: as iniciativas de Sarmento Rodrigues na Guiné (1945-1949). Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 34, n. 68, p. 175 – 192, 2014.
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Isso é o mais enfatizado em sua carta, o reconhecimento que os negros lograram nos Jogos Olímpicos de Londres (1948) por seu desempenho. Para ele, mais do que serem considerados como “máquinas de fôlego”, a manifestação enfática do público os teve em conta como valorosos homens, os elevando ao mesmo patamar – até mesmo superior – do que atletas brancos. No seu olhar, somente a competição justa – “é necessário que os homens não temam a competição”, disse – poderia possibilitar a todos bem se desempenharem em qualquer tarefa.
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A norte-americana Alice Coachman, primeira mulher negra campeã olímpica (salto em altura, Jogos Olímpicos de 1948 – Londres).
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O jovem Cabral, por meio do esporte, demonstrava a modulação prévia de uma consciência que depois lhe alçaria a voos maiores e mais ambiciosos. No seu olhar,
Quando todos os homens se aperceberem de que ninguém tem o direito de tirar aos outros a oportunidade de viver, então o mundo será feliz e a vida será um amplo estádio de jogos olímpicos, em que as vitórias serão a consecução de maiores bens para a felicidade de todos, sem qualquer distinção. E eu, Lena, creio que tudo isso será possível.
Em outra carta (10 de abril de 1950, p. 291), Cabral comentou sua experiência de ter assistido a uma partida Portugal X Espanha: “Foi um delírio”. O que mais o surpreendeu foi a capacidade de o futebol mobilizar sentimentos patrióticos. Ele mesmo, sempre tão crítico e cético no que tange à ação do governo metropolitano, assumiu: “nunca me supus tão português”. Mais ainda, curiosamente, ecoou uma linha de argumentação pouco independentista, mas comum no arquipélago de origem: “Em todo caso, se o meu vibrar foi de português, justifica-se: o cabo-verdiano é na realidade e até onde se pode ser, obra portuguesa, português, portanto”.
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* Assista aqui um vídeo do provável jogo citado por Amilcar Cabral
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Essas reflexões e algumas dessas experiências ecoaram na sua trajetória futura como líder das lutas anticoloniais. Como escrevi na conclusão do citado artigo sobre Amílcar Cabral:
A sua concepção da prática estava plenamente articulada com seu pensamento e sua visão estratégica: o intelectual a serviço do povo deve aproveitar as possíveis empatias para implementar o processo de tomada de consciência. Além disso, outros motivos o induziam ao uso estratégico da prática esportiva: a visibilidade que concedia aos praticantes, seu potencial para a preparação física, a compreensão de que se tratava de um direito.
(…) é digno de registro que o uso estratégico do esporte por parte de Cabral tenha se relacionado a uma leitura específica da luta política, na qual dialogava com os princípios do marxismo, os adaptando, contudo, às peculiaridades e necessidades das lutas coloniais africanas, mais ainda às especificidades das colônias portuguesas e ainda mais da Guiné. Teoria e prática articuladas: a mobilização da prática esportiva bem exemplifica esse constante intuito de Amílcar.
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Capa de Arma da teoria – unidade e luta I, livro no qual Cabral fez uso do esporte para aludir a alguns conceitos-chave de seu pensamento.
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