As artes plásticas e suas representações do lazer: uma questão de olhar social

Elcio Loureiro Cornelsen

Nos últimos anos, nosso interesse tem se voltado para representações do lazer nas artes plásticas, especificamente no contexto alemão da virada do século e das primeiras décadas do século XX, muito inspirados pela obra Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos (2009), de Victor Andrade de Melo. Em publicações recentes, pudemos focar na vasta obra de um artista em especial: o pintor August Macke (1887-1914), um dos grandes nomes da pintura vanguardista na transição do Impressionismo para o Expressionismo, tragicamente morto em campo de batalha nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, logo nos primeiros meses do conflito bélico. Trata-se dos artigos “Imagens do lazer na pintura de August Macke” (2021),[1] “O mundo circense e o jardim zoológico na pintura de August Macke” (2022),[2] “O velejar como lazer e sua representação na pintura de August Macke” (2022)[3] e “Banhistas e sua representação na pintura de August Macke” (2022).[4] Desses estudos, pudemos depreender que uma das principais características de sua pintura é a preferência temática por ambientações ao ar livre, em parques, bosques e lagos, principalmente em locais de veraneio, em que pessoas trajadas à moda burguesa são retratadas em diversas atividades, incluindo as de lazer e entretenimento.

Como já afirmamos em artigo anterior, não parece ser fortuito o fato de que paisagens urbanas – o mundo fabril ou das inovações técnicas, por exemplo – sejam pouco frequentes nas obras de August Macke, e tal ausência, sem dúvida, deriva do lugar social no qual suas obras são produzidas. Além disso, em suas inúmeras obras, paisagens e pessoas no cotidiano são, em geral, retratadas com cores intensas e formas que se distanciam da realidade objetiva, sem, entretanto, recair no abstracionismo, salvo algumas exceções. August Macke é considerado um grande mestre das cores, que expressa em suas pinturas e aquarelas um mundo colorido e alegre. Seus quadros expressam imagens positivas e otimistas de um mundo intacto, fazendo jus à harmonia das pessoas com as coisas que as cercam, conforme o próprio pintor certa vez definiu sua arte: um “canto à beleza das coisas” (Gesang von der Schönheit der Dinge) (citado in DEUTSCHE WELLE, 2015).

Por sua vez, paralelamente ao estudo sobre pinturas de August Macke, nos ocupamos também da vasta obra do pintor, fotógrafo, litógrafo, desenhista e caricaturista alemão Heinrich Zille (1858-1929), sem dúvida, o principal nome dentre os artistas que retrataram o universo proletário de Berlim, o chamado “Milljöh”, nas primeiras décadas do século XX. As conjecturas iniciais foram publicadas recentemente no artigo “Imagens do lazer em desenhos de Heinrich Zille no início do século XX” (2022).[5] O principal interesse pela obra desse artista, chamado pejorativamente de “Raffael dos cortiços” (Raffael der Hinterhöfe), foi seu caráter popular, associado às camadas pobres de Berlim, então capital do Império, que se alçava ao patamar de uma das principais metrópoles europeias, com seus contrastes sociais advindos, sobretudo, do processo de industrialização nas últimas décadas do século XIX.

Cabe ressaltar, também, que no gesto de adaptar, jocosamente, o termo francês “milieu”, “meio”, ao cunhar o termo “Milljöh”, Heinrich Zille respondia, de maneira crítica, aos positivistas defensores de uma abordagem determinista do comportamento humano. O artista conhecia bem o “Milljöh” berlinense, pois caminhava por becos, frequentava bares e botecos, e visitava os cubículos insalubres em que moravam famílias inteiras, em bairros humildes da capital alemã, onde grassavam o desemprego, a miséria, a criminalidade e a injustiça social.

De início, podemos considerar alguns pressupostos para os olhares sociais distintos evidenciados por esses artistas em suas obras: Se August Macke entendia sua produção artística como modo de enunciar um “canto à beleza das coisas”, Heinrich Zille colocava sua arte a serviço daqueles que viviam à margem, eram ignorados e estavam ausentes dos ateliês e das exposições dos grandes pintores da época. Em geral, não devemos nos esquecer, criticam-se análises de obras que tomem por base referências a origens e lugares sociais dos artistas. Todavia, no caso de August Macke e Heinrich Zille, não nos furtamos a isso, por entendermos que suas origens e lugares sociais nos auxiliam a entender as escolhas que fizeram ao colocar a arte a serviço de posicionamentos que consideramos diametrais.

Heinrich Zille – Selbstporträt
(1922; auto-retrato)
(https://www.wikidata.org/wiki/Q498211 )

Desde a tenra idade, a miséria se fez presente na vida de Heinrich Zille. Seus pais pertenciam à classe operária e viviam em estado de pobreza, na cidade de Dresden, capital do estado de Sachsen (KOLBE, 2015). Zille passou fome em sua infância. Aos nove anos, a família se transferiu para Berlim, em 1867, em busca de trabalho e de condições melhores na ainda capital da Prússia que, quatro anos mais tarde, com a Unificação dos Estados Alemães, em 1871, se tornaria a capital do Reich. Sem dúvida, tais vivências da infância e adolescência foram marcantes para a formação de Zille como ser humano e artista, tornando-o atento às preocupações e sensibilidades daqueles que figuravam na base da pirâmide social. O próprio artista, certa vez, afirmou: “As observações e vivências da infância e da juventude, provavelmente, me ajudaram mais tarde a criar algumas imagens”. [6] (ZILLE apud OSTWALD, 1929). E em sua carreira profissional, a despeito da preferência do pai, que queria que o filho se tornasse açougueiro, Zille optou pela carreira artística, iniciada como litógrafo, passando a fotógrafo, ilustrador e caricaturista.

August Macke – Selbstporträt mit Hut
(1909; Auto-retrato com chapéu)
Material: óleo sobre madeira, 41 x 32,5 cm
(https://www.arteeblog.com/2014/12/august-macke-um-artista-expressionista.html )

Por sua vez, August Macke possui origens burguesas. Seu pai era engenheiro civil e empreiteiro de sucesso. Sua família se mudou para a cidade de Colônia logo após seu nascimento, em 3 de janeiro de 1887, deixando a cidade natal de Meschede, região de Sauerland, na Vestfália. Após a formação escolar, August Macke dedicou-se à formação artística ao ingressar em 1904 na Academia Real de Artes, em Düsseldorf. Em uma viagem a Paris, ficou maravilhado com exposições de artistas impressionistas, o que o levou a se decidir, em 1907, por dar prosseguimento a sua formação na Escola de Arte de Lovis Corinth (1858-1925) em Berlim, um dos artistas do Impressionismo alemão.

Portanto, devemos ter atenção, de antemão, para as escolhas que Heinrich Zille e August Macke fizeram em seus processos de formação artística, sem perder de vista que cada um se destacou, principalmente, em suportes distintos das artes plásticas: o desenho e, respectivamente, a pintura. Sem dúvida, essa distinção implica não só a adoção de materialidades e técnicas distintas, como também, modos distintos de difusão de suas obras. Enquanto August Macke passou a exibir suas obras em exposições, entre elas as exposições do círculo artístico “Cavaleiro Azul” (Der Blaue Reiter), realizadas em 1911 e 1912 nas cidades de Munique, Colônia, Berlim, Hagen e Frankfurt, Heinrich Zille divulgava suas obras também em exposições, porém, sobretudo em periódicos caracterizados pelo tom satírico e burlesco, entre eles as revistas Simplicissimus, Jugend – Münchener Illustrierte Wochenschrift für Kunst & Leben e Die Lustigen Blätter.

Embora contemporâneos, mesmo pertencentes a gerações diferentes – quando August Macke estava com 25 anos no auge de sua produtividade artística, Heinrich Zille atingiu o reconhecimento artístico quando tinha o dobro de idade do pintor – ambos demonstram interesses distintos em relação à arte e a seu potencial de representar a sociedade.

Nesse sentido, o presente estudo de caráter comparativo pretende apresentar reflexões sobre a produção artística de August Macke e, respectivamente, Heinrich Zille. Para isso, selecionamos duas obras de cada um deles, as quais têm por tema ambientes de socialização e lazer: Wirtshausgarten (1907; Jardim da taverna) e Gartenrestaurant (1912; Restaurante ao ar livre), de August Macke; Gesellschaft in Altberliner Destille (1905; Sociedade em destilaria da Berlim Antiga) e Krach in der Destille (1921; Barulho na destilaria), de Heinrich Zille.

August Macke e sua pintura: a burguesia desfrutando de momentos de lazer em meio à natureza e ao ar livre

Iniciemos nossas considerações sobre o olhar social de August Macke com a breve análise de Wirtshausgarten (1907; Jardim da taverna). Em primeiro lugar, cabe ressaltar que o termo alemão Wirtshaus (taverna) designa um dos possíveis empreendimentos no setor gastronômico, ao lado de restaurantes, bares, pubs e botecos, mas que também pode oferecer quartos para hóspedes, como uma pousada ou hospedaria. Em geral, uma Wirtshaus pode possuir alguns quartos de hóspedes, a taverna propriamente dita e um amplo espaço externo ajardinado, como podemos notar em Wirtshausgarten:

Wirtshausgarten
(1907; Jardim da taverna)
Material: óleo sobre carvão sobre papel, 23 x 28,5 cm
(KUNST-FÜR-ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/561270/wirtshausgarten/index.htm )

O que essa pintura de August Macke nos oferece é justamente esse espaço, em que visualiza-se homens e mulheres sentados às mesas espalhadas pelo jardim, todos vestidos à moda burguesa: homens trajando calças, paletós e chapéus coco, e mulheres trajando longos vestidos e amplos chapéus com ornamentos. Por não se tratar de uma pintura sobre tela, e sim sobre papel, deduz-se que se trate de um estudo ou esboço que poderia servir para a futura composição de uma aquarela. Inclusive, os traços pouco definidos reforçam essa suposição, pois há, em primeiro plano, do lado direito, alguns traços que evidenciam o esboço inacabado de uma cadeira vazia.

Aparentemente, são seis grupos que ocupam mesas no jardim, sendo que apenas uma das mesas está ocupada por um cidadão solitário, que está sentado segurando uma bengala. No centro, um grupo de mulheres trajando vestidos de diversas cores parece animado pela conversa. Mais ao fundo, outras três mesas estão ocupadas, mas faltam maiores detalhes para se identificar as pessoas. Somente o cavalheiro solitário da mesa à direita e o casal da mesa à esquerda, em primeiro plano, são retratados com maiores detalhes. Porém, a figura feminina é retratada de costas, enquanto a figura masculina está de lado. Seu rosto e o rosto do cavalheiro solitário apresentam traços, ausentes nas demais figuras. Além das figuras humanas, em primeiro plano há um pequeno cão que parece olhar para aquele que está retratando a cena.

A cena retratada em Wirtshausgarten nos transmite uma atmosfera de harmonia, em que, sob as copas das árvores e em um clima aprazível, as pessoas passam o tempo, conversam e consomem bebidas em um local de convivência.

Do mesmo modo que em Wirtshausgarten (1907; Jardim da taverna), o olhar social proposto por Auguste Macke em Gartenrestaurant (1912; Restaurante ao ar livre) produz uma imagem de cidadãos pertencentes à classe burguesa, desfrutando de seu tempo livre, literalmente, no “restaurante jardim”:

Gartenrestaurant
(1912; Restaurante ao ar livre)
Material: óleo sobre tela, 81 x 105 cm
(KUNST-FÜR-ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/147398/gartenrestaurant/index.htm )

Cinco anos separam uma obra da outra, algo que nos permite afirmar que, enquanto Wirtshausgarten apresenta elementos do Impressionismo, Gartenrestaurant já foi composta no espírito do Expressionismo, no emprego de cores vivas e na adoção de traços curvilíneos, embora ainda mantenha traços impressionistas característicos, como a luminosidade e a pintura ao ar livre.

Apesar de não podermos afirmar categoricamente, parece-nos plausível o argumento de que, pelo menos parcialmente, a obra Wirtshausgarten, um esboço ou estudo, serviu de base para a composição de Gartenrestaurant. Basta observarmos, em ambas as pinturas, o homem e a mulher que estão sentados à mesa. Há mudanças nos traços e nas cores, além de ter sido adicionada mais uma figura masculina ao conjunto, sentada à mesa, que dialoga com ambos. Também nota-se certa semelhança na representação da mesa composta por figuras femininas, que conversam animadamente, no centro da tela. Todas as figuras estão trajadas à moda burguesa. Constata-se, mais uma vez, que há um recorte social no grupo de figuras representadas como modo de distinção de classe.

Todavia, há distinções significativas entre as obras, a começar pela figura masculina em primeiro plano, do lado direito, que está sentado lendo um jornal, e atrás dele se encontram mais duas figuras masculinas, uma delas aparentemente sentada em um banco, conversando com outro homem que está de pé. Além disso, nota-se também um adensamento e uma diversidade cromática na representação dos troncos e das copas das árvores. Ler, conversar, alimentar-se: momentos de lazer em um ambiente burguês aprazível e harmonioso.

Heinrich Zille e seus desenhos: o “Milljöh” proletário de Berlim e seus espaços de lazer e convivência

Analisar obras de Heinrich Zille é uma tarefa fascinante. Seus inúmeros desenhos nos permitem refletir sobre uma das principais capitais europeias na passagem do século XIX para o século XX, uma cidade que se transformava em metrópole, com todos os seus contrastes sociais: Berlim. Evidencia-se um olhar social do artista para tipos humanos que seriam considerados “associais”: proxenetas, prostitutas, vigaristas, ladrões etc. Todavia, para além do “lumpemproletariado” berlinense, Zille centra o foco na representação de áreas pobres e seus tipos sociais, entretanto, sem com isso criticá-los ou apresentá-los como algo exótico. Ao contrário, o artista produziu imagens – resultantes de suas interpretações – desses tipos sociais nas mais diversas atividades. Diferindo dos cidadãos burgueses que povoam as telas de August Macke, nos desenhos de Zille, o proletário ganha visibilidade. Suas obras desmascaram as mazelas do Império alemão sob o domínio de Guilherme II, o que fez com que o artista se tornasse persona non grata entre os poderosos e as classes abastadas. Principalmente os bares e botecos de Berlim, de acordo com Hans Ostwald, eram ambientes preferidos do artista para representar figuras à margem:

Quem quer entender Zille, precisa ir aos bares representados por ele. Ou seja, em locais nos quais o povo simples transita, e também em estalagens nas quais toda sorte de fracassados e desafortunados, sobretudo também os pobres de espírito e de dinheiro, procura companhia barata e um anestésico barato para sua miséria. Lá se encontrará não apenas suas figuras, mas também algumas informações sobre elas [7]. (OSTWALD, 1929)

A seguir, analisaremos duas obras de Heinrich Zille, que não se furtou a representar o proletariado pauperizado de Berlim em seus momentos de lazer. A primeira delas é o desenho intitulado Gesellschaft in Altberliner Destille (1905; Sociedade em destilaria da Berlim Antiga), uma evidente demonstração dessa postura:

Gesellschaft in Altberliner Destille
(1905; Sociedade em destilaria da Berlim Antiga)
Material: giz preto, pena e aquarela, 26,3 x 25,2 cm
(KUNST-FÜR-ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/heinrich-zille/28498/1/559076/gesellschaft-in-altberliner-destille/index.htm )

Inicialmente, é importante entender o que era, especificamente, uma Destille (destilaria): um restaurante em que se vendia e consumia bebidas alcoólicas destiladas: conhaque, whisky, Schnaps (aguardente) etc. Tal local, portanto, é um empreendimento no setor gastronômico, como a Wirtshaus e o Gartenrestaurant das pinturas de August Macke. Porém, a destilaria, como se nota pelo desenho, era um ambiente fechado, portanto, sem área externa. Constata-se que as seis figuras retratadas não estão vestidas à moda burguesa e – algo característico desse artista – possuem traços de obesidade. Apenas uma das figuras masculinas está usando chapéu coco, enquanto os outros utilizam bonés típicos de trabalhadores pertencentes à classe operária. A única figura que está de pé, aparentemente o garçom ou gerente do local, não se diferencia dos demais nas vestes ou na aparência, e todos estão olhando para ele. Além deles, duas figuras femininas não usam chapéus, exibem penteados amarrados por laço ou fivela e não trajam vestes finas, uma delas, de costas na cena, utiliza uma estola de pele.

Por sua vez, o local em si é simples, mas aparenta certo ordenamento, a começar pelas prateleiras ao fundo, onde estão, entre outros objetos, as garrafas dos destilados em diversas cores. Na parede, há um quadro pendurado, em que se reconhece uma figura masculina, e o quadro está envolto com alguma folhagem, que não se pode identificar nitidamente, e com uma fita preta na parte de baixo, o que pode significar sinal de luto. Além do quadro, o que é típico em bares e botecos, há outro quadro na parede com a seguinte inscrição em forma de quadra: “Der erste Kuss,/ Welch ein Genuss!/ Der erste Schluck,/ Nie lang genug!” (“O primeiro beijo,/ Que delícia!/ O primeiro trago,/ Nunca o suficiente!”).

Outro aspecto interessante é a própria composição da única mesa retratada no desenho, em madeira rústica, assim como a cadeira, os pratos estão vazios, como se as pessoas já tivessem terminado a refeição. Além dos pratos, sobre a mesa reconhece-se uma taça tipicamente usada para servir Berliner Weiße, um tipo de cerveja ácida e turva, tipicamente berlinense, produzida desde o século XVI, e, no lado oposto da mesa, um pequeno copo para servir bebida destilada. Algo curioso é uma base, aparentemente pesada e de metal, em que estão acorrentadas todas as colheres disponíveis na mesa, incluindo a colher que um dos homens está segurando.

Trata-se, portanto, de um espaço de convivência social de gente simples, com códigos e comportamentos distintos daqueles representados nas obras de August Macke, analisadas neste breve estudo.

Outro exemplo do olhar social proposto por Heinrich Zille em seus desenhos é a obra intitulada Krach in der Destille (1921; Barulho na destilaria):

Krach in der Destille
(1921; Barulho na destilaria)
Material: giz preto e colorido, 29,7 x 37,1 cm
(KUNST-FÜR-ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/heinrich-zille/28498/28/558880/krach-in-der-destille/index.htm )

Mais uma vez, o espaço de socialização é uma Destille (destilaria). Esta se distingue da anterior pelo adensamento de figuras humanas, várias em pé, trajando roupas pesadas, de inverno. O próprio título do desenho, como principal paratexto, empresta uma especificidade à cena: a do “barulho” (Krach), em que várias pessoas estão falando ou gritando ao mesmo tempo, aparentemente todas voltadas para o lado direito da tela, em que se vê uma senhora, na soleira, que conversa com dois homens. Não se sabe se elas estão saudando, brindando ou formulando pedidos. São poucas as figuras destacadas na cena, todas vestidas de maneira simples, as mulheres não usam chapéus, e os homens usam ou chapéu coco, ou bonés típicos de trabalhadores.

Todavia, uma delas se destaca das demais pela posição em primeiro plano, como também por sua faixa etária: trata-se de uma menina com aparência pobre e com olhar triste, que tem uma faixa envolta do queixo à cabeça, como se estivesse com alguma dor ou ferimento. Ela está posicionada diante do balcão, sobre o qual jaz uma bandeja contendo copos, pratos e garrafas. Na mesa à esquerda, em que estão sentados um homem e uma mulher, vê-se, mais uma vez, uma taça típica de Berliner Weiße e um pequeno copo para destilados. Embora não seja possível justificar a presença da menina – seria ela filha de algum funcionário ou proprietário da destilaria? Ou de algum freguês ou alguma freguesa? –, evidencia-se certo clima de animação e alvoroço das pessoas em seu tempo livre, uma espécie de instantâneo do cotidiano de pessoas simples em uma metrópole em franca expansão.

O lazer de burgueses e proletários nas artes plásticas alemãs, na virada do século – à guisa de conclusão

Em nosso breve estudo, nos deixamos inspirar pelo historiador Victor Andrade de Melo (2009, p. 22) ao analisar representações artísticas do esporte nas artes plásticas, ou seja, a intenção de partir das próprias imagens para se tratar de determinado tema: “Isto é, não se tratou de buscar obras que ilustrassem o que as fontes documentais informavam sobre os temas tratados, mas sim partir do que as imagens informavam, não só no que se refere ao tema, como também naquilo que dizia respeito à forma e ao contexto de representação”.

Entretanto, estamos cientes de que a análise das quatro obras não esgotou as possibilidades que estas oferecem, de modo que alguns detalhes, pela brevidade do estudo, não foram aqui tratados. Não obstante tal fato, cremos que tal análise nos possibilitou a reflexão sobre a arte em geral enquanto manifestação advinda de lugares sociais, os quais reproduzem determinados olhares.

Nesse sentido, se, como aponta o historiador francês Alain Corbin, “[o] burguês aparece ‘em grande medida como o homem com tempo livre’. E isto, mais uma vez, não quer dizer que se trate de um ocioso, longe disso: ele tenta, como os seus contemporâneos, evitar o vazio das horas” (CORBIN apud MELO, 2009, p. 17), o proletário também procura desfrutar de seu tempo livre, mesmo que em condições sociais distintas e, muitas vezes, desfavoráveis em relação àquelas da burguesia.

Não podemos deixar de ressaltar, mais uma vez, que é inegável a preferência de August Macke por ambientações ao ar livre, algo muito valorizado pelos impressionistas, necessário para o trabalho pictórico com luminosidade em suas obras. Além disso, haveria uma espécie de busca pela natureza idílica, mesmo em espaços de socialização como a Wirtshaus e o Gartenrestaurant, frequentados por cidadãos burgueses, algo que se mantém também em obras consideradas pertencentes à fase expressionista.

Por sua vez, a arte do “Raffael dos cortiços”, conforme evidenciada na análise dos desenhos que apresentam a Destille como espaço, propõe um gesto distinto: nada de idílios, mas sim ambientações de uma metrópole que, na virada do século, produzia riqueza para poucos e miséria, para muitos. Sem a mesma atmosfera da Wirtshaus e do Gartenrestaurant, com suas etiquetas e modos de comportamento, em que seus frequentadores encontrariam refúgio e deleite, a Destille oferecia aos trabalhadores, aos desempregados e também aos lumpemproletários um espaço de fruição do tempo livre, sobretudo noturno. Se August Macke definia sua própria obra como “um canto à beleza das coisas”, Heinrich Zille coloca sua obra a serviço da representação daqueles que, à margem da sociedade, estavam excluídos também como objeto para as artes plásticas. Portanto, cada um a seu modo, procuravam resistir às transformações de seu tempo, sem deixar também de expressarem burgueses e proletários em sua busca pela fruição do tempo livre em determinados espaços que reproduziam traços distintivos de classe.

Referências Bibliográficas

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Banhistas e sua representação na pintura de August Macke. História(s) do Sport (blog). 13 jun. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/06/13/banhistas-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 26 set. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer em desenhos de Heinrich Zille no início do século XX. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 03 ago. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer na pintura de August Macke. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 14 dez. 2021. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. O mundo circense e o jardim zoológico na pintura de August Macke. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 26 abr. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. O velejar como lazer na pintura de August Macke. História(s) do Sport (blog). 21 fev. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/02/21/o-velejar-como-lazer-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 26 set. 2022.

DEUTSCHE WELLE. Rheinischer Expressionismus in Bonn: Museum August-Macke-Haus eröffnet. 2015. Disponível em: https://www.dw.com/de/rheinischer-expressionismus-in-bonn-museum-august-macke-haus-eröffnet/a-41630757. Acesso em: 06 dez. 2021.

KOLBE, Corina. “Man kann mit einer Wohnung töten”: Zilles Berlin. Der Spiegel. 29 jan. 2015. Disponível em: https://www.spiegel.de/geschichte/heinrich-zille-fotografien-aus-dem-alten-berlin-a-1013931.html. Acesso em:26 jul. 2022.

KUNST-FÜR-ALLE. Bilder von August Macke, s/d. Disponível em: https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/bilder/kuenstler/August+Macke/345/1/index.htm . Acesso em: 26 set. 2022.

KUNST-FÜR-ALLE. Bilder von Heinrich Zille, s/d. Disponível em: https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/bilder/kuenstler/Heinrich+Zille/28498/1/index.htm. Acesso em: 26 set. 2022.

MELO, Victor Andrade de. Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.

OSTWALD, Hans. Das Zillebuch. Berlin: Paul Franke Verlag, 1929. Disponível em: https://www.projekt-gutenberg.org/zille/zillebuc/chap002.html. Acesso em: 30 set. 2022.

Notas

[1] CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer na pintura de August Macke. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 14 dez. 2021. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

[2] CORNELSEN, Elcio Loureiro. O mundo circense e o jardim zoológico na pintura de August Macke. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 26 abr. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

[3] CORNELSEN, Elcio Loureiro. O velejar como lazer na pintura de August Macke. História(s) do Sport (blog). 21 fev. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/02/21/o-velejar-como-lazer-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 26 set. 2022.

[4] CORNELSEN, Elcio Loureiro. Banhistas e sua representação na pintura de August Macke. História(s) do Sport (blog). 13 jun. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/06/13/banhistas-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 26 set. 2022.

[5] CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer em desenhos de Heinrich Zille no início do século XX. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 03 ago. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

[6] Todas as traduções do Alemão para o Português são de nossa autoria. No original: „Das Sehen und Erleben in der Kinderzeit und in der Jugend half mir wohl später manche Bilder gestalten.“

[7] No original: Wenn man Zille will verstehn, muß man in Zillekneipen gehn. Also in die Lokale, in denen das einfache Volk verkehrt und auch in solche Gastwirtschaften, in denen allerlei Entgleiste und Verunglückte, vor allem auch die Armen im Geiste und im Gelde eine billige Geselligkeit und eine wohlfeile Betäubung ihres Elends suchen. Dort wird man nicht nur seine Menschen finden, sondern zugleich auch manche Aufschlüsse über sie.

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