ELCIO LOUREIRO CORNELSEN
Nos últimos dois anos, temos desenvolvido estudos sobre representações do lazer e do entretenimento nas artes plásticas, sobretudo em obras produzidas nas primeiras décadas do século XX. Especificamente, trabalhamos com pinturas de August Macke (1887-1914)[i] e desenhos de Heinrich Zille (1858-1929)[ii]. Para realizar a análise das obras, tomamos por orientação o procedimento proposto por Victor Andrade de Melo (2009, p. 22) ao partir das imagens para estudar representações artísticas do esporte e do lazer nas artes plásticas: “Isto é, não se tratou de buscar obras que ilustrassem o que as fontes documentais informavam sobre os temas tratados, mas sim partir do que as imagens informavam, não só no que se refere ao tema, como também naquilo que dizia respeito à forma e ao contexto de representação”.
Neste breve estudo, tomaremos por objeto o mundo circense e sua representação em obras do pintor Marc Chagall (Moshe Zakharovitch Shagal; 1887-1985), um dos expoentes da arte moderna e de vanguarda no século XX. Para isso, selecionamos um corpus formado pelas seguintes obras: Le Cirque (1922-1944; O circo), Le Grand Cirque (1956; O grande circo), Le Cirque bleu (1967; O circo azul), Le Cheval de Cirque (1964; O cavalo de circo), e Le Grand Cirque (1967; O circo).
Podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que o tema do circo foi fonte de inspiração para Chagall ao longo de sua vida. Ainda criança em Vitebsk, distante aldeia natal na Rússia czarista, Chagall demonstrava verdadeira fascinação pelas companhias circenses itinerantes que se apresentavam nos pequenos vilarejos, com seus acrobatas, equilibristas, palhaços e animais. Mais tarde, quando se transferiu para Paris em 1910, aos 23 anos, após ter vivido em São Petersburgo desde 1907, passou a ir regularmente a grandes circos, na companhia de Ambroise Vollard (1866-1939), famoso marchand e curador de exposições de arte na capital francesa, que incentivou a produção artística da jovem geração que acorreu a Paris, considerada à época o centro artístico europeu. Sentado na plateia, Chagall esboçava e desenhava croquis para futuras telas. Inclusive, consta que, no início dos anos 1920, quando Chagall retornou a Paris, Vollard encomendou 19 pinturas em guache que formariam uma série temática sobre circo.
Cartaz de Jules Chéret (1836-1932) para o Nouveau Cirque de Paris (1886)
Fonte: Musée de la publicité, Paris
Circopedia – The Free Encyclopedia of the International Circus (http://www.circopedia.org/File:Nouveau_Cirque_Cheret.jpg )
Na Belle Époque, Paris era um dos principais centros de atrações na Europa, na qual o mundo circense viveu seu florescimento e também teve seu espaço de destaque, com o Le Noveau Cirque (1886-1926), o Le Cirque Fernando (1875-1897), o Le Cirque Mendrano (1873-1962), entre outros, verdadeiros templos de lazer e entretenimento. Certamente, os espetáculos circenses na capital francesa foram fontes de inspiração para as obras de Chagall que contemplam o tema, bem como espetáculos circenses na então capital russa, São Petersburgo, de 1907 a 1909, quando o artista teve aulas de pintura com Léon Bakst e de desenho com Mstilav Dobuzhinsky (MAGALHÃES, 2009, p. 163), entre eles, o Circus Ciniselli (1875-1921).
Cartaz para o Circus Ciniselli em São Petersburgo,
sob direção de Scipione Ciniselli (1900)
Fonte: Circopedia – The Free Encyclopedia of the International Circus
(http://www.circopedia.org/File:Ciniselli_-_Scipione.png )
A atmosfera lúdica e colorida do circo cativou Chagall desde cedo, mesmo com as pequenas companhias itinerantes do período de sua infância, cujos espetáculos eram muito mais modestos do que aqueles que conheceria nas grandes casas circenses de São Petersburgo, Moscou e Paris. O circo lhe transmitia a ideia de um ambiente artístico e de entretenimento em que todos os aspectos da vida eram representados, em uma ampla variação do trágico ao cômico. Os artistas de circo, com seus trajes excêntricos e maquiagem em cores vivas, tornaram-se personagens ideais para povoar as composições oníricas de Chagall.
Espetáculos circenses na pintura de Chagall
Iniciemos nossa análise de pinturas de Marc Chagall que contemplam o tema do circo por Le Cirque, tela em que o artista trabalhou por mais de duas décadas, de 1922, quando emigrou da Rússia em definitivo, a 1944, quando se encontrava exilado nos Estados Unidos, após ter deixado a França em 1941, invadida por tropas alemãs:

Le Cirque
(1922-1944; O circo)
Material: óleo sobre tela, 37,3 x 57,7 cm
(https://musees-nationaux-alpesmaritimes.fr/chagall/collection/objet/le-cirque )
Inegavelmente, as obras de Chagall são marcadas por um intenso hermetismo, fruto de sua poeticidade e lirismo, que resulta do rompimento com o conceito tradicional de arte como narração. Ao contrário, suas obras não narram cenas, elas expressam tanto o trabalho memorialístico do artista na escolha de determinados elementos icônicos, quanto o tratamento do onírico e do subconsciente, em que tais elementos são justapostos, sem produzir, necessariamente, uma unidade de sentido. De acordo com Ekaterina L. Selezneva (2009, p. 30), “para Chagall, o tema é tecido como uma teia de aranha. Os sentidos não se revelam um após o outro: podem ser percebidos todos juntos, oferecendo a possibilidade de uma leitura extremamente complexa”. Podemos afirmar que essa é a principal marca do estilo do pintor russo de origem judaica, naturalizado francês em 1937, sendo que o uso da cor representa o elemento básico de sua pintura, ao ser empregado, fequentemente, para produção de efeito anti-mimético, algo que nos faz lembrar, por exemplo, de obras de Franz Marc (1880-1916), um dos grandes expoentes do Expressionismo alemão. Em Le Cirque, temos um bom exemplo desse hermetismo que marca as obras de Chagall.
Inicialmente, constata-se que Le Cirque sintetiza temporalidades e espacialidades distintas, da infância e da vida adulta do artista, do picadeiro e da aldeia. Certa vez, Chagall afirmou: “Cada pintor nasceu em um determinado lugar: mesmo que, mais tarde, ele reaja a influências de novos ambientes, certa essência, certo perfume de seu país natal sempre persistirá em seu trabalho” (CHAGALL apud SELEZNEVA, 2009, p. 14). Desse modo, entendemos que as raízes judaicas e as memórias dos tempos da aldeia na Bielorússia são elementos fundamentais para se entender a arte chagalliana, incluindo a série dedicada ao mundo circense. Como bem ressalta Selezneva (2009, p. 16),
ao enfatizar sua nostalgia, retornava continuamente a visões inalteradas e amadas, sem classificá-las em sua alma como judaicas, bielo-russas ou russas. Essas imagens eram inerentes à natureza de Chagall, que foi impregnado com a cultura judaica pelo leite materno, e colheu a cultura russa de seu entorno e de suas relações de amizade.
Entretanto, em termos de contextualização há um dado fundamental como pressuposto para se analisar Le Cirque: a origem de sua composição. Após cinco anos, de 1910 a 1914, morando em Paris, período que marcou o ingresso de Chagall no cenário artístico europeu e mundial, o artista retornou a Vitebsk para rever a família e Bella (Berta Rosenfeld), sua noiva, aproveitando uma breve passagem por Berlim, onde expôs obras na galeria de arte do círculo expressionista Der Sturm (A Tempestade), dirigido por Herwarth Walden (1878-1941). Todavia, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial em agosto de 1914, Chagall se vê impedido de regressar a Paris. No ano seguinte, casa-se com Bella e segue pintando novas obras e se transfere para São Petersburgo, capital da Rússia czarista, até 1917. Com a Revolução de Outubro, o artista se torna um dos principais nomes para promover o cenário artístico do país segundo diretrizes do novo Estado Soviético. Além de eleito para o cargo de Comissário de Artes da região de Vitebsk em 1918, e de ter fundado a Escola Popular de Arte em sua cidade natal no ano seguinte (MAGALHÃES, 2009, p. 165-166), Chagall pintou sete painéis em tela para compor grandes murais decorativos para o Teatro Municipal Judaico em 2020, na cidade de Moscou, nova capital do país sob o regime soviético (SHATSKIKH, 2018). Nos murais para o Teatro, o circo também se fez presente como tema da arte performática. Conforme Alexandra Shatskikh aponta,
[s]egundo Chagall, tudo no circo era real e autêntico. Animais e palhaços em sua astúcia, as ginastas e os acrobatas com seus corpos criativos atuando no extremo de seu potencial natural, não representavam – na verdade, eram. Os trajes coloridos dos artistas circenses apenas enfatizavam o impacto festivo de sua criação viva.[iii] (SHATSKIKH, 2018; tradução própria)
Todavia, em 1922, decepcionados com os rumos que a arte estava tomando sob a tutela do regime soviético, Chagall e Bella deixam sua terra natal em definitivo, vivem por alguns meses de 2023 em Berlim e se transferem para Paris, para atender ao chamado de Ambroise Vollard, que lhe encomendara algumas ilustrações de livros, incluindo uma série sobre o mundo circense, intitulada Le Cirque de Volard (MAGALHÃES, 2009, p. 41-42). Em um desses trabalhos, o artista refez de memória uma das telas que, originalmente, compunham o mural do Teatro Municipal Judaico de Moscou, a qual designou de Le Cirque. Por anos, Chagall a manteve em seu ateliê e a levou também para a América, quando se exilou em 1941.
Conforme podemos constatar, Le Cirque revela uma densidade de elementos em sua composição: três acrobatas dominam a cena, todos de ponta cabeça, se equilibrando sobre as mãos e sustentando o peso dos corpos com os braços esticados. Eles trajam vestes coloridas distintas, e apenas um deles está com o rosto virado para frente, na direção de quem contempla a cena. Justamente esse acrobata possui algo enrolado em seu braço esquerdo, que o diferencia dos demais: o filactério (tefilin), utilizado enrolado ao braço esquerdo – e também fixado à fronte – por judeus religiosos ao fazerem as orações diárias. Certamente, uma reminiscência do mural decorativo do Teatro Municipal Judaico de Moscou que foi mantida em sua versão de 1944, quando a tela vem a público. Além dos três acrobatas, outras duas figuras se destacam em Le Cirque: dois palhaços, sendo que um está sentado com suas vestes vermelhas em um banquinho, no canto direito inferior da tela, mirando os acrobatas, e o outro está um pouco mais atrás, entre a fileira dos acrobatas e a coluna de mulheres e homens que caminham por trás deles.
Em sua complexidade, Le Cirque estabelece uma relação entre, pelo menos, duas camadas: a do mundo circense e, respectivamente, do universo da aldeia. Ao fundo, vê-se casebres, por trás dos quais o sol crepuscular projeta luminosidade em direção à cena escura que domina a tela. A vaca de ponta cabeça que paira no ar entre os dois palhaços também é uma referência icônica da aldeia nas obras de Chagall. Desse modo, realidade e fantasia se fazem presentes na representação do mundo circense, mas não podemos deixar de notar também certo tom sombrio transmitido por Le Cirque. As figuras humanas que caminham em coluna atrás dos acrobatas podem significar o movimento de fuga daqueles que se viram impelidos a deixar sua terra natal para sobreviver à violência, em decorrência tanto da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, quando ocorreu grande êxodo rumo ao Ocidente, quanto da Segunda Guerra Mundial e da Shoah, que chegara ao fim um ano após o artista ter concluído a obra. Aliás, uma das figuras humanas, posicionada à esquerda, parece tocar violino, e outra, mais ao centro da tela, trajando vestes escuras, carrega algo que parece ser os rolos da Torá, em que a tradição cultural e religiosa é levada por aqueles que são impelidos a deixar seus lugares de origem.
Por sua vez, a segunda obra de Chagall selecionada para análise é Le Grand Cirque, de 1956, que apresenta outros elementos importantes para se entender a representação do mundo circense nas obras desse mestre da pintura moderna:

Le Grand Cirque
(O Grande Circo; 1956)
Material: óleo e guache sobre tela, 159,5 × 308,5 cm
A obra Le Grand Cirque, conforme o título indica, se relaciona muito mais com as grandes casas circenses de São Petersburgo e de Paris, do que propriamente com os circos de modestas companhias itinerantes, dos tempos de infância e adolescência de Chagall. Na tela, está presente um conjunto de figuras humanas formado por acrobatas, trapezistas, bailarinas, palhaços e músicos em primeiro plano, e o público ao fundo. Reconhece-se que, especificamente, três grupos são destacados pela luminosidade que incide sobre o tom azul, predominante na tela: ao centro, vemos a figura de uma amazona, com seu vestido branco e tons coloridos, que se equilibra sobre um cavalo preto-esverdeado; do lado direito, pela coloração de suas vestes, em laranja, e de seus cabelos vermelhos, destaca-se a figura de uma violinista, cujo corpo está apoiado nas costas de um acrobata, com corpo em tamanho desproporcional, que se equilibra sobre as mãos no solo, de ponta cabeça; do lado esquerdo, vemos um conjunto composto por cinco figuras em destaque, precisamente uma bailarina, um acrobata, uma contorcionista, um animal, parecendo ser um cavalo, que se equilibra nas patas traseiras e segura uma sombrinha, e uma figura híbrida, com corpo humano e cabeça de bode, que segura um buquê de flores nas mãos.
Com relação a esse último aspecto, cabe aqui uma inferência que nos auxilia na análise da tela: o fato de que Marc Chagall expressa em suas obras um tom de nostalgia, que remete aos tempos de infância e adolescência em Vitbesk. Figuras híbridas como essa que vemos em Le Grand Cirque estão presentes também em outras obras do pintor russo, entre elas, La Danseuse au Bouc ou La Fiancée au Bouquet vert (1945; A Dançarina com o Bode ou A Noiva com o buquê verde), Le Printemps ou Le Bouc au violon (1938, A Primavera ou O Bode com violino), Songe d’une Nuit d’Été (1939; Sonho de uma Noite de Verão), Arlequin à la Lune jaune (1969; Arlequim na Lua amarela) e Le Bouc musician (1982; O Bode músico). Porém, muito antes, nas primeiras telas pintadas por Chagall em Paris que remetem a Vitebsk, a figura do bode já se fazia presente: Moi et le Village (1911; Eu e a Aldeia), La Pluie (1911; A Chuva) e Vitebsk, Scène de Village (1917; Vitebsk, Cena da Aldeia).
Haveria, ainda, muito mais elementos a se analisar em Le Grand Cirque, por exemplo, o corpo de um acrobata separado de sua cabeça, que paira no ar, ou mesmo a cabeça azul sem corpo, na parte superior direita da tela, ou as mãos vermelhas. Todos esses elementos aparecem em outras obras de Chagall, o que evidencia não somente uma ressonância entre elas, como também um modo de o pintor trabalhar, pictoricamente, a memória. Le Grand Cirque e as próximas obras a serem analisadas datam dos anos 1950 e 1960, quando o pintor já residia em Saint-Paul de Vence, no Sul da França, e, por certo, resultam de croquis desenhados pelo artista há várias décadas antes. Podemos supor que o modo como Chagall representa, pictoricamente, o circo produz uma junção entre o olhar do adulto que contempla a cena e as reminiscências da infância, inclusive como modo de celebração de suas raízes judaicas em Vitebsk. Não é por acaso, aliás, que Marc Chagall representa o shtetl, a aldeia judaica, e os seres que a habitam – humanos, animais, seres divinos etc. –, em que realidade e fantasia parecem entretecidas, bem ao gosto do universo hassídico do Leste Europeu no qual nasceu e cresceu, em que a harmonia entre homem e animal e a unidade entre divino e terreno ocupam lugar de destaque. Conforme aponta Ekaterina L. Selezneva (2009, p. 28), “o talento de Chagall reuniu os céus e a vida terrena”. E conforme apontamos em outro estudo, “[s]uas numerosas obras representam cenas do cotidiano nos vilarejos judaicos da Rússia czarista” e, ao mesmo tempo, se atrelam “à tradição oral de narrativas do Leste Europeu, sobretudo do shtetl com suas histórias povoadas de figuras fantásticas”. (CORNELSEN, 2006, p. 101). O universo hassídico, sem dúvida, seria um elemento que influenciaria a arte de Chagall por toda sua vida. As palavras de Fábio Magalhães (2009, p. 33), curador da exposição “O mundo mágico de Marc Chagall: o sonho e a vida”, que esteve em cartaz em algumas capitais brasileiras em 2009, dão a dimensão de tal influência:
O hassidismo desenvolveu para a alma popular o sentido profundo das tradições bíblicas. Fortaleceu o sentimento religioso na relação do divino no cotidiano e trouxe para a vida social, na trivialidade dos dias, o júbilo pela criação do mundo e do homem, ou seja, o entusiasmo pelas pessoas, pela natureza e pelas coisas do universo. No hassidismo, a relação com Deus é feita com intensa alegria, à procura do êxtase. Esse sentimento apareceu já nas primeiras obras de Chagall e se manteve como uma melodia constante durante toda a sua vida. Mesmo depois de se transformar em cidadão do mundo, vivendo na França e nos Estados Unidos, ele continuou carregando, consigo, como um caracol, a memória de sua aldeia, do bairro de judeus pobres de Vitebsk.
Desse modo, ao entretecer o divino e o terreno também nas telas que representam o mundo circense, como em Le Grand Cirque, por assim dizer, Chagall promove uma divinização da arte circense, algo que escaparia a uma representação meramente mimética dos espaços e das performances de suas personagens.
Passemos, agora, à análise da obra Le Cirque bleu (1967; O circo azul), que se compõe de outros elementos icônicos:

(1967; O circo azul)
Material: óleo sobre tela, 34,9 × 26,7 cm
(https://www.tate.org.uk/art/artworks/chagall-the-blue-circus-n06136 )
Mais uma vez, estamos diante de uma tela de Marc Chagall repleta de elementos que, em princípio, não permitem uma associação imediata entre si e demandam contextualização. Assim como em Le Grand Cirque, predomina a cor azul, um atributo do circo, aliás, destacado no próprio título da tela. Uma figura humana domina o centro da tela: uma jovem trajando um colant vermelho, que faz acrobacias aéreas no trapézio, de ponta cabeça. Outras figuras e objetos compõem a cena: um peixe azul na parte superior da tela, algo sempre associado pelos críticos de arte ao pai do pintor, que era comerciante de arenques em Vitebsk; um ramalhete de flores que é lançado por uma mão, também na parte superior da tela, talvez como sinal de reconhecimento à performance da trapezista; um galo verde tocando bumbo no canto superior direito; a cabeça de um cavalo verde em destaque, na parte inferior da tela, sendo que, segundo os críticos de arte, a cor verde nas telas de Chagall representaria o amor; no canto inferior direito, há outras duas figuras humanas que, todavia, não recebem maiores detalhes ou cores distintas, mas nota-se que se trata de uma jovem que flexiona seu corpo segurando um arco, e de um músico que toca violino; outro violino em menores proporções aparece também na cena, sobreposto à lua amarela e brilhante, na parte central direita da tela, o que reforça a impressão de uma cena noturna. Aliás, algo que já aparecia em Le Cirque, na personagem que acompanha a coluna humana em fuga, e Le Grand Cirque, no conjunto de músicos, mas que não foi analisado anteriormente, é o violino, objeto que recebe destaque especial na obra de Marc Chagall. Basta pensarmos na série chagalliana dos violinistas, que figura como a mais conhecida do público em geral. Conforme apontamos no estudo intitulado “De ‘Tévye, o leiteiro’ ao ‘Violinista no telhado’” (C0RNELSEN, 2016, p. 92), no documentário Le Peintre à la tête renversée (O Pintor com a cabeça virada), de Dominik Rimbault (1984), exibido pela TV Cultura dentro da série “Grandes Mestres da Pintura”, entre outros temas, Chagall fala sobre as memórias de infância em Vitebsk, em que havia a figura dos músicos nas cerimônias de casamento:
Sempre gostei de violino, muito. Vocês sabem… Quando ouvia os músicos, eu me comovia. Isso é importante! Não tinha o que olhar. Havia pássaros pretos no céu cinzento. Quando havia violinistas para os casamentos… não havia concertos, não havia Rubinstein…, Yehudi Menuhin… Havia músicos para os casamentos. […] Todos os sábados, o tio Leni punha um talit,[iv] não importa qual, e lia a Bíblia em voz alta. Ele tocava violino como um sapateiro. Meu avô ouvia e sonhava. (RIMBAULT, 1984)
Portanto, devemos entender a composição dessa e de outras telas de Chagall em sua complexidade, pois as perpassam espacialidades e temporalidades distintas, por exemplo, daquele que está sentado na plateia, no circo em Paris, e se entretém – porque, não, também esboçando seus croquis – e que rememora a infância e o circo no vilarejo natal e em outras localidades próximas na Bielorússia ou em São Petersburgo na Rússia. Isso nos permite inferir que o mundo circense do artista russo se difere sensivelmente, por exemplo, daquele representado pelo pintor expressionista August Macke (CORNELSEN, 2022), pois a subjetividade se faz presente em Le Cirque bleu e em outras telas pelo olhar do pintor enquanto parte do público. Além disso, o procedimento anti-mimético adotado por Chagall traz outra qualidade à representação do mundo circense, mesmo em telas nas quais o lirismo e a nostalgia se fazem presentes, como nessa, em que a cor azul, pertencente às cores frias no círculo cromático, se associa à espiritualidade. Sobre o procedimento anti-mimético e o uso de cores Fábio Magalhães tece a seguinte consideração, da qual partilhamos:
Há extraordinária força cromática em sua pintura. Em muitos casos os contrastes de cor pura contrariam a lógica dos seres e dos objetos representados. Uma vaca azul, um rabino vermelho, essa liberdade cromática reforça sua lírica e ajuda a criar um mundo plástico que flutua entre o real e o imaginário, dotado de intensa magia. Também a geometrização trouxe novas possibilidades de tratamento espacial. (MAGALHÃES, 2009, p. 36)
Posto isto, passemos à análise da quarta obra de Chagall, intitulada Le Cheval de Cirque (1964; O cavalo de circo):

Le Cheval de Cirque
(1964; O cavalo de circo)
Material: guache e nanquim sobre papel cartão, 49,5 x 62,8 cm
(http://www.artnet.fr/artistes/marc-chagall/le-cheval-de-cirque-WSX4QeFUieYJTssLfp5v5A2 )
De início, podemos salientar um elemento que, nas três telas anteriores analisadas, não recebe maior destaque: o espectador. Em Le Cheval de Cirque, vemos a galeria ao fundo, em que o público contempla a performance simultânea de diversos artistas circenses: a amazona, ao centro do quadro, que se equilibra sobre o cavalo branco com manchas amarelas; dois acrobatas com suas vestes coloridas, do lado direito, em que um sustenta com um único braço o peso do corpo do outro, que está de ponta cabeça; um equilibrista, na parte superior da tela, parece se sustentar sobre a corda bamba, enquanto outro, do lado esquerdo, junto à figura de um cavalo, parece pairar no ar; na parte baixa da tela, figura um homem, com cartola, talvez o diretor do circo ou mesmo um palhaço, pois tem o rosto pintado. Nota-se ainda, que predominam cores vibrantes em diversos matizes – amarelo, laranja e vermelho, algo que diferencia Le Cheval de Cirque de Le Grand Cirque e Le Cirque bleu, em que predomina a cor azul. De certo modo, as cores vivas evocam uma atmosfera de agitação e intenso movimento, seja dos artistas, seja do público que os contempla. Além disso, outro aspecto difere Le Cheval de Cirque das outras três telas analisadas até aqui: a quase ausência de elementos que se associam ao universo judaico da aldeia. Embora o cavalo seja o elemento destacado pelo próprio título da obra, nota-se um detalhamento muito maior da performance circense na própria perspectiva do picadeiro e de seu entorno. Trata-se, pois, de uma grande casa circense, em que números de trapézio e acrobacia são apresentados ao público simultaneamente.
Por fim, analisaremos a quinta e última tela de Marc Chagall selecionada para análise neste breve estudo, intitulada também de Le Grand Cirque (1967; O grande circo):
Le Grand Cirque
(1967; O grande circo)
Material: litografia colorida sobre papel, 51,5 cm x 37,5 cm (https://www.masterworksfineart.com/artists/marc-chagall/lithograph/le-cirque-the-circus-from-cirque-1967-m512/id/w-7095 )
Em certa medida, Le Grand Cirque (II) dialoga com Le Cheval de Cirque, pois possui cores vibrantes – amarelo, laranja e vermelho – que acentuam a luminosidade da tela e destacam tanto a performance de artistas no picadeiro e no ar, quanto o público que a contempla. Nesse conjunto, identifica-se cinco personagens: dois músicos, sendo que um deles, posicionado na parte inferior esquerda da tela, trajando vestes vermelhas, toca violino, enquanto o outro, na margem direita da tela, toca clarinete; centralizada, figura uma malabarista trajando roupas coloridas, que gira um arco com o braço direito; outras duas figuras femininas estão acima, como se pairassem no ar, sendo que uma delas, trajando vestido azul, parece ser uma amazona que teria saltado do cavalo vermelho em posição rampante, que está a seu lado, enquanto a outra, igualmente com roupas coloridas, parece ser uma trapezista em movimento de vôo.
Embora predomine a performance circense na tela, nota-se a presença de, pelo menos, dois elementos que remeteriam a temporalidades e espacialidades distintas, retomadas pela memória visual: o violino, já destacado anteriormente, e o peixe amarelo tocando bumbo no canto superior esquerdo da tela. Conforme indicado quando da análise de Le Cirque bleu, em geral, críticos de arte apontam o peixe em obras de Chagall como uma alusão à figura paterna, que era comerciante de arenques em Vitebsk. Inclusive, o peixe se faz presente em várias telas, entre elas, em Le petit poisson et le pêcheur (1926; O pequeno peixe e o pescador), Création (1959; Criação), Le Verger (1961; O pomar) e Le Songe du capitaine Bryaxis (1961; O sonho do capitão Bryaxis). Além disso, mais uma vez, o bumbo não é tocado por uma figura humana, mas, sim, pelo peixe, algo que já havia sido detectado na análise de Le Cirque bleu, mas que não havia sido pormenorizado, quando o bumbo é tocado por um galo, outro elemento muito presente em obras do pintor russo, por exemplo, em Le Coq (1928; O galo), Les Mariés et la Tour Eiffel (1939; Os noivos e a Torre Eiffel), Le coq rouge dans la nuit (1944; O galo vermelho na noite), Les Mariés au traineau et au coq rouge (1957; Os noivos com trenó e galo vermelho). Les Amoureux au coq (1957; Os amantes com galo) e Scene de village au coq jaune (1970; Cena do vilarejo com galo amarelo). Interessante notar que o galo figura em obras cujo tema central é o amor, intensamente representado por cores vivas, enquanto o peixe, associado ao pai e às origens na pequena aldeia russa, às águas e à noite, também alude a certa religiosidade, com conotações bíblicas.
O mundo circense nas obras de um mestre da iconicidade – a guisa de conclusão
Marc Chagall figura na célebre galeria de artistas plásticos que representaram o mundo circense em suas obras, entre eles, Georges Seurat (1859-891), Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901), Georges Rouault (1871-1958), Kees van Dongen (1877-1968), Pablo Picasso (1881-1973), August Macke (1887-1914) e Fernand Léger (1881-1955). Em meio a influências do Cubismo, do Fauvismo e do Expressionismo, detentor de uma obra inclassificável e mística, e de um estilo original e independente, o artista russo desenvolveu uma linguagem própria, a qual se evidencia também em seu amor pela arte orgânica do circo enquanto espaço de performance artística, lazer e entretenimento. Chagall considerava palhaços, equilibristas, acrobatas e atores como seres humanos em todo o seu lirismo e tragicidade, feitos personagens de certas pinturas religiosas.
A análise do conjunto de obras formado por Le Cirque (1922-1944; O circo), Le Grand Cirque (1956; O grande circo), Le Cirque bleu (1967; O circo azul), Le Cheval de Cirque (1964; O cavalo de circo) e Le Grand Cirque (1967; O circo), não obstante várias lacunas e superficialidades que permanecem abertas ou imprecisas neste breve estudo, nos permite, no entanto, certas inferências. A primeira delas diz respeito ao jogo de temporalidades e de espacialidades, que influencia no modo como Chagall representa pictoricamente o mundo do circo. Se o artista esteve atento para um dos principais espaços de lazer e entretenimento, bem como de elevada performance artística, o modo como expressou o circo nas diversas telas analisadas é indissociável de certa nostalgia da infância e de seu torrão natal, a aldeia de Vitebsk, na Bielorússia.
Outro aspecto evidente é certa divinização do espaço do circo resultante do ato de entretecer, iconograficamente, o divino e o terreno a partir da justaposição de certos elementos icônicos não necessariamente associados, em que o sobrenatural irrompe na vida cotidiana. Nostalgia, religiosidade, amor emanam das telas de Chagall, em que o mundo circense e a performance de suas personagens, em meio a um ambiente alegre e multicor, representam uma arte divinamente redimida: “Mon cirque se joue dans le ciel” (“Meu circo se diverte no céu”).
Referências Bibliográficas
CORNELSEN, Elcio Loureiro. De ‘Tévye, o leiteiro’ ao ‘Violinista no telhado’. WebMosaica: Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-105, jan./jun. 2016. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/webmosaica/article/view/71159. Acesso em: 19 jan. 2023.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. As artes plásticas e suas representações do lazer: uma questão de olhar social. História(s) do Sport (blog). 03 out. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/10/03/as-artes-plasticas-e-suas-representacoes-do-lazer-uma-questao-de-olhar-social/ . Acesso em: 05 out. 2022.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. Banhistas e sua representação na pintura de August Macke. História(s) do Sport (blog). 13 jun. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/06/13/banhistas-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/ . Acesso em: 26 set. 2022.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. Espaços de lazer em desenhos de Heinrich Zille – um olhar social na Berlim antiga. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 18 out. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em 18. out. 2022.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer em desenhos de Heinrich Zille no início do século XX. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 03 ago. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer na pintura de August Macke. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 14 dez. 2021. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.
_____. Infância e espacialização do bairro judeu nos romances ‘Bom Retiro’, de Eliezer Levin e ‘A Guerra no Bom Fim’, de Moacyr Scliar. Revista do CESP – v. 26, n. 35, p. 97-106, jan./jun. 2006.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. O mundo circense e o jardim zoológico na pintura de August Macke. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 26 abr. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. O velejar como lazer na pintura de August Macke. História(s) do Sport (blog). 21 fev. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/02/21/o-velejar-como-lazer-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 26 set. 2022.
MAGALHÃES, Fábio. O mundo mágico de Marc Chagall. In: MAGALHÃES, Fábio (curador). O mundo mágico de Marc Chagall: o sonho e a vida. Exposição na Casa FIAT. São Paulo: Base Sete Projetos Culturais, 2009, p. 32-48.
______. (curador). O mundo mágico de Marc Chagall: o sonho e a vida. Exposição na Casa FIAT. São Paulo: Base Sete Projetos Culturais, 2009.
MELO, Victor Andrade de. Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.
SELEZNEVA, Ekaterina L. Contextos russos da obra de Chagall. In: MAGALHÃES, Fábio (curador). O mundo mágico de Marc Chagall: o sonho e a vida. Exposição na Casa FIAT. São Paulo: Base Sete Projetos Culturais, 2009, p. 14-31.
SHATSKIKH, Alexandra. The Theatre in the Biography of Marc Chagall. Tretyakov Gallery Magazine. 2018. Disponível em: https://www.tretyakovgallerymagazine.com/articles/special-issue-marc-chagall-bonjour-la-patrie/theatre-biography-marc-chagall. Acesso em: 20 jan. 2023.
Filmografia
RIMBAULT, Dominik. Le Peintre à la tête renversée. 1984, França, colorido, 60 min.
Notas
[i] Artigos de nossa autoria sobre obras do pintor expressionista alemão August Macke:
CORNELSEN, Elcio Loureiro. Banhistas e sua representação na pintura de August Macke. História(s) do Sport (blog). 13 jun. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/06/13/banhistas-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 26 set. 2022.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer na pintura de August Macke. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 14 dez. 2021. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. O mundo circense e o jardim zoológico na pintura de August Macke. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 26 abr. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. O velejar como lazer na pintura de August Macke. História(s) do Sport (blog). 21 fev. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/02/21/o-velejar-como-lazer-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 26 set. 2022.
[ii] Artigos de nossa autoria sobre obras do pintor, fotógrafo, litógrafo, desenhista e caricaturista alemão Heinrich Zille:
CORNELSEN, Elcio Loureiro. As artes plásticas e suas representações do lazer: uma questão de olhar social. História(s) do Sport (blog). 03 out. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/10/03/as-artes-plasticas-e-suas-representacoes-do-lazer-uma-questao-de-olhar-social/ . Acesso em: 05 out. 2022.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. Espaços de lazer em desenhos de Heinrich Zille – um olhar social na Berlim antiga. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 18 out. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em 18. out. 2022.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer em desenhos de Heinrich Zille no início do século XX. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 03 ago. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.
[iii] No original:
Everything in the circus was real and authentic, according to Chagall. The clever animals and clowns, the gymnasts and acrobats with their creative bodies performing at the very extreme of their natural potential, did not represent — they actually were. The colourful costumes of the circus artistes merely underscored the festive impact of their life creating.
[iv] O talit é um xale usado por judeus religiosos para cobrirem a cabeça ao fazerem as primeiras orações da manhã.
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