As “Seleções de Ouro” e a Literatura de Cordel – Quando duas artes populares se encontram

08/05/2023

Elcio Loureiro Cornelsen

Introdução – o encontro de duas artes populares

É de conhecimento geral que a Literatura de Cordel, sem dúvida uma das manifestações populares mais significativas da cultura brasileira, muito bem definida por Rosilene Alves de Melo (2019, p. 245) como “uma expressão da voz popular, da memória e da identidade nacional”, não ficou alheia à popularização do futebol no Brasil, sobretudo a partir da década de 1930.

Em pesquisa concluída recentemente, fizemos um mapeamento de 160 títulos em diversos acervos e publicações. De acordo com nosso inventário, as primeiras publicações datam das décadas de 1950 e 1960: Duelo Vasco x Flamengo: drama, comédia, futebol: história popular dedicada aos seus fãs e torcedores (Nilópolis, RJ: Gráfica Universal, 1954), de Pedro Ferreira dos Santos, A vitória do Brasil (sem local: sem editora, 195-), de João Severo de Lima, Copa do Mundo: 1962 (Nova Cruz, RN: Lux, 1962), de Raul de Carvalho, O Brasil na Copa do Mundo (sem local: sem editora, 1962), de Cuíca de Santo Amaro, e Peleja de Garrincha com Pelé (São Paulo: Prelúdio, 1965), de Antônio Teodoro dos Santos. Não obstante o fato de que este conjunto inicial de obras seja lacunar, já nos é possível identificar alguns temas: a rivalidade clubística entre o Clube de Regatas Vasco da Gama e o Flamengo de Futebol e Regatas já nos anos 1950; o interesse pelos craques da época; a participação da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1958 e 1962.

Todavia, foi na década de 1970 que se publicou o maior número de folhetos de cordel com o tema do futebol, em um total de 42 títulos inventariados. O tema que mais mobilizou cordelistas a escreverem seus folhetos de futebol nessa década, sem dúvida, foi a conquista do tricampeonato mundial pela Seleção Brasileira na Copa do México, em 1970. Ao todo, foram identificados em nosso inventário 14 folhetos com esse tema: Brasil tricampeão de futebol: história em versos dos três campeonatos (São Paulo: Prelúdio, 197-) e Brasil tricampeão do mundo (Aracaju, SE: Ed. do Autor, 1970), ambos de Manoel d’Almeida Filho; O Brasil tricampeão (sem local: A Voz da Poesia, 1970), de Mestre Azulão [nome artístico de José João dos Santos); Brasil 4×1 tricampeão mundial (Bezerros, PE: Ed. do Autor, 1970), de José Francisco Borges, Versos sobre as vitórias da Seleção Brasileira e a cheia de 70 (Recife, PE: Ed. do Autor, 1970), de Manoel Florentino Duarte; Romance da Copa de 70 (Gurupi, TO: Gráfica São Geraldo, 197-), de Napoleão Gomes Ferreira; A nossa Copa do Mundo 70 (Brasília, DF: Ed. do Autor, 1975), de Carolino Leóbas; Brasil 1958-1962-1970: tricampeão do mundo 4×1: campeão dos campeões (Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1970), de Palito; A vitória do Brasil: a Seleção Brasileira: o Brasil é Tricampeão (Campina Grande, PB: Ed. do Autor, 1970), de Antonio Patrício; Brasil tricampeão (Juazeiro do Norte, CE: Ed. do Autor, 197-), de Geraldo Amâncio Pereira; Brasil tricampeão: toda história da taça que é nossa pra sempre (Natal, RN: Clima, 1970), de W. Pinheiro; A vitória do Brasil na IX Copa do Mundo (sem local: Ed. do Autor, 197-), de João Severo da Silva; A Seleção Brasileira ganhou mais um canecão (4×1) (Recife, PE: Ed. do Autor, 1976) e Brasil campeão do mundo 1970: agora a taça é nossa (sem local: sem editora, 19–), ambos de José Soares.

Há décadas, alguns estudiosos da Literatura de Cordel têm afirmado que, inicialmente, o principal tema que despertou a atenção de cordelistas foram as conquistas da Seleção Brasileira. Dentre eles, figura Ivan Cavalcanti Proença, um dos pioneiros nos estudos sobre Literatura de Cordel nos anos 1970 e 1980. Na obra Futebol e palavra (1981), Proença dedica cinco preciosas páginas ao gênero cordel, como parte do capítulo intitulado “A Literatura no(do) Futebol” (PROENÇA, 1981, p. 9-51). Nas referidas páginas, descobrimos que folhetos foram publicados, pelo menos, desde a época da primeira conquista do título mundial pela Seleção Brasileira em 1958, na Suécia. De acordo com o autor,

[o]s poetas de cordel – […] – atentos ao rádio inicialmente, e às transmissões de TV, depois, registraram as façanhas de nossos jogadores: Liêdo Maranhão, folclorista de Pernambuco, coletou esse material, reunindo 18 folhetos de cordel, todos a partir do tema “O Brasil nas Copas” (matéria também publicada pelo ‘O Globo’). (PROENÇA, 1981, p. 17)

Ao todo, Ivan Cavalcanti Proença apresenta em seu livro fragmentos de oito folhetos de sete cordelistas diferentes: Francisco Ferreira de Paula, da Paraíba (Copa de 1958 e, respectivamente, Copa de 1970); José Severo de Lima, da Paraíba (Copa de 1958); Alípio Bispo dos Santos, da Bahia (Copa de 1962); Palito (Severino Marques de Souza), de Pernambuco (Copa de 1970); Manuel D’Almeida Filho, de Sergipe (Copa de 1970), Minelvino Francisco Silva, da Bahia (Copa de 1970); José Maria Rodrigues, do Rio de Janeiro (Copa de 1978). Em um estudo recente, a historiadora britânica Courtney Campbell indica outros dois folhetos de autoria de José Gomes e, respectivamente, de Manuel D’Almeida Filho, publicados no contexto do Mundial de 1958, disputado na Suécia:

A maior parte da literatura de cordel com tema de futebol narra um torneio vitorioso da Copa do Mundo ou sua partida final. ‘O Brasil na Copa do Mundo’ e ‘A vitória do Brasil na VI Copa do Mundo’, por exemplo, relatam cada partida, elogiam os jogadores e o técnico e afirmam que a conquista do Brasil na Copa de 1958 foi uma das maiores glórias do Brasil (Gomes, 1958; D’Almeida Filho, 1958). A rara menção de regiões evoca um sentimento de unidade nacional ao invés de divisão.[1] (CAMPBELL, 2019, p. 735; tradução nossa)

Outro pesquisador que menciona a presença do futebol como tema em folhetos de cordel é Raymond Cantel, ao afirmar que “[o] futebol é o único esporte que chama a atenção dos poetas do ‘cordel’ e apenas em ocasiões especiais, quando a Seleção Brasileira vence o campeonato mundial, por exemplo, quando aparecem numerosos folhetos fazendo vibrar os acordes patrióticos” (CANTEL, 1993, p. 73; tradução nossa).[2] Segundo o pesquisador francês, “[g]eralmente, são composições medíocres inspiradas em jornais. O mundo dos poetas de cordel quase não tem relação direta com o das grandes equipes internacionais” (CANTEL, 1993, p. 73; tradução nossa).[3]

De maneira precisa, como pudemos observar anteriormente, o escritor e jornalista Ivan Cavalcanti Proença, membro da Academia Carioca de Letras, reflete sobre o impacto que as conquistas dos três primeiros campeonatos mundiais tiveram sobre os cordelistas, a ponto de se tornarem tema de seus folhetos. Quase quatro décadas mais tarde, de maneira semelhante, Courtney Campbell também analisa e tira suas conclusões sobre o modo como cordelistas se dedicaram a tratar das memoráveis conquistas da Seleção Brasileira em seus folhetos:

Em 1962 e 1970, ambos os anos em que o Brasil ganhou a Copa do Mundo, essa forma de cordel reaparece, mas outras características da nacionalidade brasileira começaram a surgir. W. Pinheiro, em um cordel que detalha cada partida da Copa do Mundo de 1970, explica que o Brasil deve servir de exemplo para o resto do mundo.[4] (CAMPBELL, 2019, p. 736; tradução nossa)

Aparentemente, estamos diante de uma possível chave de entrada do futebol no âmbito da produção artística de cordelistas, apontada tanto por Ivan Cavalcanti Proença, quanto por Raymond Cantel e, respectivamente, Courtney Campbell: os êxitos esportivos da Seleção Brasileira como um dos pilares para a construção da identidade nacional.

Conforme demonstraremos a seguir, se a Literatura de Cordel se origina de relatos orais com traços poéticos, em que “o folheto impresso se tornou o suporte dessa forma poética até então marcada pela oralidade”, se formando “enquanto sistema literário a partir do final do século XIX” (MELO, 2019, p. 247-248), tornando-se uma forma literária popular no Brasil, o futebol, um dos vértices da cultura brasileira, fornece à Literatura de Cordel inúmeros temas, cantados pelos cordelistas em seus longos poemas rimados.

Para este breve estudo, baseados nos apontamentos anteriores, elegemos como corpus de análise três cordéis que têm por tema Copas do Mundo de futebol, com objetivo de evidenciarmos aspectos específicos de tal relação na “era de ouro” da Seleção Brasileira: Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi (1962), de Raul de Carvalho; O Brasil na Copa do Mundo (1962), de Cuíca do Santo Amaro; O Brasil tricampeão (1970), de José João dos Santos, o “Mestre Azulão”.

O folheto Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi

Iniciaremos nossa análise pelo folheto Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi (1962), do cordelista Raul de Carvalho, uma espécie de ode à Seleção Brasileira que conquistou o bicampeonato mundial de futebol no Chile. Em termos formais, esse folheto é composto por 95 estrofes em sextilhas, com versificação em redondilha maior, de sete sílabas poéticas, com rimas em a-b-c-b-d-b, traços característicos da Literatura de Cordel, e apresenta na capa a reprodução de uma fotografia da Seleção Brasileira. Aliás, o número elevado de estrofes (95) e de páginas (20) evidencia que estamos diante de um tipo textual “romance”, conforme postulado por Marlyse Meyer (1980, p. 3-4), e não de um tipo textual “folheto noticioso” que, em geral, possui apenas 32 estrofes e 08 páginas.

Além disso, esse folheto apresenta algo peculiar, não tão comum na Literatura de Cordel: um preâmbulo em prosa, que antecede à primeira estrofe:

A mais emocionante e sensacional campanha de atração futebolística da atualidade, aonde os brasileiros consagraram-se Bi-Campeões mundial de futebol, dominando e envolvendo de maneira espetacular, seus bravos e lutadores adversários.            

Onde tiveram a magnifica oportunidade de ofertarem ao público mundial, e com especialidade ao distinto povo brasileiro a hegemonia com a verdadeira classe e técnica do futebol Nacional. (CARVALHO, 1962, p. 1)

Além do tom superlativo evocado pela conquista, o cordelista apresenta o escrete como hegemônico em relação aos “seus bravos e lutadores adversários”, estabelecendo “a verdadeira classe e técnica do futebol Nacional”. Em sequência ao preâmbulo, o poeta constrói seu ethos de religiosidade e fé, antes de cantar em seus versos o torneio propriamente dito:

Ó meu “Jesus radiante”

dai-me luz e inspiração

para eu descrever em verso

com a maior sensação

como foi que os brasileiros

ganharam o Bi-Campeão.

(CARVALHO, 1962, p. 1)[5]

Trata-se de algo relativamente comum em folhetos desse tipo, em que a fé também é um elemento emocional do próprio torcer pelo escrete canarinho. Logo em seguida, o poeta enaltece em seus versos mais uma conquista da Seleção Brasileira, como continuidade do triunfo celebrado na Suécia, em 1958:

No ano cincoenta e oito

o Brasil foi “Campeão”

jogaram lá na Suécia

com o (mesmo) no coração

este ano lá no Chile

ganharam o Bi-Campeão.

(CARVALHO, 1962, p. 1)

Seus versos revelam também que o poeta associa o desempenho da Seleção Brasileira ao sentimento de identidade nacional, algo que, de fato, se estabeleceu em termos de representatividade esportiva e que se consolidou com a conquista do tricampeonato no México, em 1970, mas que já se evidenciava no folheto do início da década de 1960:

O Brasil tem uma equipe

que luta com heroísmo

sabendo se conduzir

pelo seu patriotismo

demonstrando disciplina

categoria e civismo.

CARVALHO, 1962, p. 2)

Desse modo, a Seleção é definida nesses versos por suas supostas virtudes: “heroísmo”, “patriotismo”, “disciplina”, “categoria” e “civismo”. E o poeta não deixa de destacar em seus versos também sua cor de camisa característica, idealizada por Aldyr Garcia Schlee em 1953, que a tornaria famosa mundo afora:

A equipe do Brasil

conhecida por Canarinho

lutou e ganhou o título

que estava em seu caminho

de volta foi recebida

com muito amôr e carinho.

(CARVALHO, 1962, p. 2)

Cabe ressaltar que foi o primeiro título conquistado pela Seleção jogando na final do torneio com a camisa canarinho, uma vez que, em 1958, os anfitriões suecos também jogavam com camisa amarela, o que gerou a necessidade de a CBD lançar mão da camisa azul na final. No referido folheto, o poeta também expressa seu desejo de fazer jus ao desempenho da Seleção na Copa do Chile, contando a saga que a levou a mais uma conquista mundial:

Falando sôbre o Brasil

eu quero então relatar

bem minuciosamente

sem cousa alguma aumentar

como portou-se este team

e como soube lutar

(CARVALHO, 1962, p. 3)

Cada jogador daquela Seleção foi agraciado pelos versos do poeta: o goleiro Gilmar, Mauro, Djalma Santos, Nilton Santos, Zózimo, Zito, Didi, Garrincha, Vavá, Amarildo, que substituiu Pelé lesionado após a primeira partida, e Zagalo. Mas é Garrincha aquele que se sobressai em seus versos:

Garrincha é o maior

de todos os mundiais

envolveu todas as defesas

com seus “DRIBLES” infernais

deixando desnorteados

de um a um seus rivais.

(CARVALHO, 1962, p. 19)

O folheto do poeta potiguar Raul de Carvalho, portanto, se enquadra no eixo temático “acontecimento de repercussão social”, conforme classificação proposta por Maria Elisabeth de Albuquerque (2011, p. 63), pautado por um tipo textual “romance” (MEYER, 1980, p. 3-4), em que os feitos da Seleção Brasileira nos gramados chilenos é cantado com traços épicos, jogo a jogo.

O folheto O Brasil na Copa do Mundo (1962)

Outro folheto dedicado à Seleção Brasileira e a um momento muito especial em sua história, o da conquista do bicampeonato mundial, é O Brasil na Copa do Mundo (1962), do cordelista Cuíca de Santo Amaro, apelido do poeta soteropolitano José Gomes Filho, autor de inúmeros folhetos publicados dos anos 1930 a meados dos anos 1960. Antes da estampa de seu nome na capa, figurava também a expressão “Autoria D’ele o Tal!”

Como é comum em folhetos de cordel, a capa é composta por imagem de xilogravura ou por reprodução fotográfica. No caso do folheto O Brasil na Copa do Mundo, publicado em 1962, figura uma fotografia da Seleção Brasileira que conquistou o Mundial naquele ano, no Chile. Logo na primeira estrofe, é possível notar que o folheto foi publicado após a conquista do título de bicampeão:

O Brasil conservou

Bem alto o seu pedestal

Honrou o seu grande nome

Impoz a sua moral

Demonstrando ser mesmo

O Campeão Mundial

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 1)

Em sua composição o folheto O Brasil na Copa do Mundo apresenta um total de 32 estrofes, com estrofação em sextilhas e versificação em redondilha maior, ou seja, em sete sílabas poéticas, com rimas em a-b-c-b-d-b, composição típica do gênero cordel. Os totais de estrofes (32) e, respectivamente, de páginas (08) demonstram que se trata do tipo textual “folheto noticioso” (MEYER, 1980, p. 3-4). Certo tom de religiosidade também se expressa nos versos de Cuíca de Santo Amaro ao decantar a façanha brasileira no Mundial do Chile, naquela máxima popular de que “Deus é brasileiro”:

Porque no Brasil

Onde Cristo foi nascer

Tinha de progredir

Havia de crescer

Portanto o Brasil

Só tinha que vencer

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 1)

Estudiosos do cordel apontam para o fato de que um dos temas preferidos dos poetas populares são os acontecimentos de grande projeção no cotidiano: fatos políticos, crimes, escândalos, tragédias, mas também eventos esportivos, sobretudo quando envolvem a participação da Seleção Brasileira em torneios mundiais. Ao perceber o potencial de tais eventos para atrair o público leitor de seus folhetos, Cuíca de Santo Amaro foi um pioneiro em produzir, com seus versos, uma ode laudatória àquela Seleção comandada pelo técnico Aymoré Moreira:

Parabéns ao Aimoré Moreira

O príncipe dos treinadores

Pelo estímulo e confiança

Aos nossos jogadores

Quem envia-lhes parabéns

É o decano dos Trovadores

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 8)

E com a ausência do Rei Pelé, lesionado logo no segundo jogo do torneio, contra a seleção da Tchecoslováquia, sendo substituído por Amarildo, o “Possesso”, o maior destaque dentre os titulares do selecionado canarinho ficou para Mané Garrincha, conforme demonstram os seguintes versos do poeta popular:

Sim!… o Garrincha

Jogador fenomenal

Seu Mané das pernas tortas

Como ele não tem igual

Infeliz se não fosse ele

Do quadro Nacional

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 6)

Para o cordelista, foi algo digno de se registrar na memória dos brasileiros:

O feito do Brasil

Nesta sua trajetória

Jamais Brasileiros!…

Sairá da nossa memória

Ficando também gravado

Nas páginas da nossa história

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 8)

Por fim, ressalta-se que, não obstante o tom épico da vitória, o poeta se limita apenas a dedicar estrofes a apenas uma partida do torneio, justamente a final, disputada em 17 de junho de 1962 contra a seleção da Tchecoslováquia, derrotada pela Seleção Brasileira, pelo placar de 3×1, com gols de Amarildo, Zito e Vavá.

O folheto O Brasil tricampeão

Como terceira obra exemplar que compõe nosso corpus de análise, selecionamos o folheto O Brasil tricampeão (1970), do cordelista paraibano José João dos Santos, o “Mestre Azulão”, que se tornaria um dos fundadores da famosa Feira de São Cristóvão, centro da cultura nordestina no Rio de Janeiro. Em sua capa, o folheto apresenta uma fotografia em que aparecem o treinador da Seleção Zagallo e o capitão Carlos Alberto, trajados com ternos contendo o distintivo da CBD – a Confederação Brasileira de Desportos – e segurando a taça Jules Rimet, conquistada definitivamente no Mundial do México em 1970. Provavelmente, trata-se de reprodução de uma fotografia tirada durante a visita dos integrantes da Seleção e da Comissão Técnica à capital federal e aos detentores do poder em seu regresso ao Brasil. Não é por acaso que, logo na primeira estrofe, o tom ufanista se faz presente:

Desportista brasileiro

De conhecimento profundo,

Vibrai com patriotismo,

Hora, minuto e segundo,

O Brasil trouxe com glória

Os triunfos da vitória

Na grande Copa do Mundo.

(SANTOS, 1970, p. 1)

O folheto O Brasil tricampeão apresenta a composição típica desse gênero literário, ou seja, 32 estrofes, com estrofação em septilhas e versificação em redondilha maior, em sete sílabas poéticas, com rimas em a-b-c-b-d-d-b. Outra estrofe desse folheto parece reverberar um dos versos do jingle daquela Copa, “Pra frente, Brasil!”, de autoria de Miguel Gustavo:

Salve o Brasil verde-louro,

Salve a nossa seleção,

Pelé, Jair, Rivelino,

Gérson, Clodô e Tostão,

Que mostraram a nossa raça

Trazendo a glória e a Taça

Ao Brasil tri campeão.

(SANTOS, 1970, p. 1)

O folheto traz também como registro uma estrofe que transmite certo olhar crítico para o treinador e jornalista esportivo João Saldanha, demitido do cargo em 17 de março de 1970 e substituído por Zagallo, afastado de sua função por divergências políticas e pela inferência dos detentores do poder na Seleção Brasileira:

João Saldanha se enganou

Com seu plano e sua lei

Depois da grande vitória

Êle disse assim que eu sei

(Esta me serviu de escola

O nosso Pelé na bola

Me mostrou que ainda é rei).

(SANTOS, 1970, p. 2)

Não falta também nesse folheto uma estrofe que expresse a imensa alegria da torcida brasileira após a conquista do tri:

O Brasil vibrou em festa

Da cidade até a roça

Foguetes, bandas de música,

Com bebida e farra grossa,

Blocos nas ruas pulando

E torcedores gritando,

Viva a Deus que a Copa é nossa.

(SANTOS, 1970, p. 5)

Ao final, o poeta enaltece o futebol como sendo a manifestação cultural e esportiva em que o congraçamento, aparentemente, supera a diferença social:

Assim foi a grande festa

Zuando num tom profundo

Unindo ricos e pobres,

Leigo, justo e vagabundo,

Aclamando êste é Brasil

O tri campeão do mundo.

(SANTOS, 1970, p. 8)

Em O Brasil tricampeão, o cordelista dedica uma estrofe a cada partida disputada e vencida pelos comandados de Zagallo. O número de estrofes (32) e, respectivamente, de páginas (08) demonstra que se trata do tipo textual “folheto noticioso” (MEYER, 1980, p. 3-4), em que o poeta canta, com traços épicos, as façanhas da Seleção nos gramados mexicanos.

As Copas do Mundo de futebol na Literatura de Cordel – à guisa de conclusão

Nosso breve estudo evidenciou a significativa presença temática do futebol no âmbito da literatura de cordel. No dia 19 de setembro de 2018, a Literatura de Cordel foi reconhecida como Patrimônio Imaterial Cultural Brasileiro, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Tal reconhecimento atesta a relevância da chamada “poesia popular” (PROENÇA, 1976, p. 28) para a cultura brasileira. Fundada em 07 de setembro de 1988, a Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), com sede no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, tem contribuído para manter viva a memória e a produção dessa manifestação cultural típica da Região Nordeste, mas que também se expandiu para outros centros urbanos do país. Contando com um acervo de mais de 13 mil títulos, a ABLC (http://www.ablc.com.br/noticias/ ), sem dúvida, é uma excelente referência para pesquisas sobre a Literatura de Cordel.

A expressão “Seleções de Ouro” de nosso título foi inspirada na seguinte estrofe do folheto O Brasil tricampeão, do Mestre Azulão:

Nossa seleção de ouro

Tem a quentura do Sol,

Joga com classe e não teme

Time de fama e farol

Desta vez o brasileiro

Mostrou para o mundo inteiro

Que é rei no futebol.

(SANTOS, 1970, p. 1)

Os mitos do “futebol arte” e, respectivamente, do Brasil como “país do futebol” foram pavimentados pelas conquistas de 1958, 1962 e 1970. Nesse sentido, os três folhetos de cordel analisados neste estudo atestam a construção narrativa sobre os feitos daquelas “Seleções de Ouro”, muitas vezes pautada por clichês. Além disso, todos os três se enquadram no eixo temático “acontecimento de repercussão social” (ALBUQUERQUE, 211, p. 63), dois deles – O Brasil na Copa do Mundo (1962) e O Brasil tricampeão (1970) – se configuram de acordo com o tipo textual “folheto noticioso” (MEYER, 1980, p. 3), composto por 32 estrofes e 08 páginas, enquanto o folheto Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi (1962) se enquadra no tipo textual “romance” (MEYER, 1980, p. 3-4), composto por 95 estrofes e 20 páginas.

Ainda em relação a questões de ordem formal, constatamos o predomínio da versificação em redondilha maior, com sete sílabas poéticas, com rimas cruzadas (com estrutura a-b-c-b-d-b), típicas desse gênero literário, porém, com uma ligeira variação em relação ao folheto O Brasil tricampeão, que apresenta estrofação em septilha (com estrutura a-b-c-b-d-d-b).

Por fim, em relação ao modo de apresentar as conquistas da Seleção Brasileira em 1962 e 1970, há um aspecto em comum entre os três folhetos analisados: todos enaltecem o desempenho vitorioso da Seleção, após terminados os torneios. Todos eles demonstram também que, sem dúvida, as artes do futebol e do cordel se encontram nesse rico manancial da poesia e da cultura popular brasileira.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, Maria Elisabeth Baltar Carneiro de. Literatura Popular de Cordel: dos ciclos temáticos à classificação bibliográfica. (doutorado em letras). João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba, 2011.

CAMPBELL, Courtney. The Northeast plays football, too: World Cup Soccer and regional identity in the Brazilian Northeast. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 32, n. 68, p. 720-743, set./dez. 2019. Disponível em: https://orcid.org/0000-0001-6918-6382 . Acesso em: 15 jun. 2022.

CANTEL, Raymond. La littérature populaire brésilienne. Poitiers: Centre de Recherches Latino-Américaines, 1993.

CARVALHO, Raul de. Copa do Mundo: 1962 – Os Reis do Bi. Nova Cruz, RN: Lux, 1962. Disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Literatura%20de%20Cordel%20-%20C0001%20a%20C7176&PagFis=21299&Pesq=copa%20do%20mundo. Acesso em: 30 mar. 2023.

CUÍCA DE SANTO AMARO. O Brasil na Copa do Mundo. Sem local: Edição do Autor, 1962, 8p. Disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176. Acesso em: 27 abr. 2023.

IPHAN. Literatura de Cordel – Dossiê de Registro. Brasília, DF: IPHAN, 2018. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_Descritivo(1).pdf . Acesso em: 15 jun. 2022.

MELO, Rosilene Alves de. Do rapa ao registro: a literatura de cordel como patrimônio cultural do Brasil. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Dossiê: Cordel e patrimônio. São Paulo, n. 72, p. 245-261, abr. 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/157060. Acesso em: 30 jun. 2022.

MELO, Rosilene Alves de. Literatura de Cordel: conceitos, intelectuais, arquivos. Projeto História. São Paulo, v. 65, p. 66-99, mai./ago. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.23925/2176-2767.2019v65p66-99 . Acesso em: 15 jun. 2022.

MEYER, Marlyse. Autores de cordel. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

PROENÇA, Ivan Cavalcanti. A ideologia do cordel. Rio de Janeiro: Imago, Brasília: INL, 1976.

PROENÇA, Ivan Cavalcanti Futebol e palavra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.

SANTOS, José João dos [Mestre Azulão]. O Brasil tricampeão. Sem local: A Voz da Poesia, 1970. Disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176. Acesso em: 27 abr. 2023.

Notas

[1]

No original:

Most football-themed cordel literature narrates a victorious World Cup tournament or its final match. ‘O Brasil na Copa do Mundo’ and ‘A vitória do Brasil na VI Copa do Mundo’, for example, relate each match, praise the players and the coach, and claim that Brazil’s 1958 World Cup win was one of Brazil’s greatest glories (Gomes, 1958; D’Almeida Filho, 1958). The rare mention of regions evokes a sense of national unity instead of divide.

[2]

No original:

Le football est le seul sport qui retienne l’attencion des poètes du cordel et  seulement dans les grandes occasions, quand l’équipe du Brésil remporte le championnat du monde, par exemple. Alors paraissent de nombreuses brochures qui font vibrer la corde patriotique.

[3]

No original:

Généralement ce sont des compositions médiocres inspirées par les journaux. Le monde des poètes du cordel n’a guère de rapports directs avec celui des grandes équipes internationales.

[4]

No original:

In 1962 and 1970, both years in which Brazil won the World Cup tournament, this form of cordel reappears, but other characteristics of Brazilian nationality began to surface. W. Pinheiro, in a cordel that details each match of the 1970 World Cup, explains that Brazil should serve as an example for the rest of the world.

[5] Nas citações de cordel, mantivemos sempre o texto original, mesmo que estes contenham alguns lapsos de digitação ou de redação.


Jornal dos Sports ou das Tragédias?

25/04/2023

André Alexandre Guimarães Couto

Olá, leitoras(es):

Neste breve post, vamos viajar à primeira metade dos anos 1980, quando o Jornal dos Sports (JS) adotou uma linha editorial diferente do que fazia anteriormente. Adquirido pela família Velloso em 1980, o jornal tentara aumentar sua vendagem por meio de uma estratégia peculiar, mas não necessariamente inovadora no meio jornalístico: destacavam-se notícias com apelo à violência e às tragédias urbanas. Para tanto, uma região metropolitana como a da cidade do Rio de Janeiro era uma reservatório de matérias primas para as manchetes, imagens e textos com esta intenção editorial.

O clã Velloso, empresários e proprietários de supermercados e drogarias, era formado por Climério, Waldemar e Venâncio, e substituíra a gestão de Cacilda Fernandes de Souza, segunda esposa e herdeira de Mário Júlio Rodrigues (que, por sua vez, era filho de Mário Rodrigues Filho). Contavam com o apoio político de mais um integrante da família: Napoleão Velloso, deputado estadual pelo PMDB e que passara a escrever em uma coluna fixa, sobre temas diversos, mas principalmente das políticas públicas do estado.

Nos primeiros anos da gestão Velloso, a atenção era voltada para a tradição do jornal na cobertura poliesportiva, com grande ênfase para o futebol dos grandes clubes cariocas e da seleção brasileira. Inclusive, houve um grande investimento para a cobertura da Copa do mundo de futebol FIFA em 1982, na Espanha.

Para além do esporte, outros temas eram priorizados como educação, concursos públicos, funcionalismo público, mercado de trabalho e emprego e política fluminense. Outros assuntos como cultura, carnaval e religião também eram comuns nas páginas do JS. Cabe lembrar que a conjuntura na primeira metade da década de 1980 compreendia o final de uma ditadura militar e de gradual abertura política, inclusive com as eleições diretas em 1982 para cargos legislativos e governador de estado. No Rio, vencera um candidato da esquerda, Leonel Brizola, pelo PDT. No campo econômico, um contexto de muita crise econômica e financeira, com índices inflacionários bem elevados, o que impactava diretamente na renda e no custo de vida da classe trabalhadora.

A escolha pelas matérias sobre educação tinham muito a ver com o crescimento do movimento estudantil e suas manifestações políticas e culturais, dentro da conjuntura de abertura democrática, mas também uma forma de captação de recursos junto aos cursos preparatórios, escolas e universidades privadas, por meio de anúncios nas páginas do jornal.

Mas, na apresentação do periódico e na construção das matérias, o que explica a virada para um tom discursivo policialesco e repleto de emoções derivadas de tragédias e violências? Temos algumas hipóteses, mas vamos ver um exemplo relevante antes:

Imagem 1: Capa do Jornal dos Sports, 3/12/1984.

Como podemos observar acima, temos o destaque para uma notícia da conquista do segundo turno do campeonato carioca (Taça Rio) pelo Vasco, mas compartilhada com temas como a violência urbana. A chamada para a matéria da segunda página (curta, contrapondo-se ao destaque da capa), contava a história de uma casal, morador de Belford Roxo, que resolvera fazer sexo no quintal da própria casa e, diante da presença de vizinhos curiosos e não convidados, o homem resolvera afastá-los disparando tiros, o que resultou em três homens internados em estado grave no Hospital Getúlio Vargas.

Temos, desta forma, a partir do final de 1984 e se estendendo ao ano seguinte, uma estratégia de competir com outros jornais da cena urbana carioca como O Dia e Última Hora, cujas linhas editoriais abusavam da exposição da violência da cidade e região metropolitana. No caso do JS, emoções e paixões pelo esporte se misturavam em ondas de curiosidade mórbida do público leitor, tentando aproximar sentimentos diversos do torcedor.

A estratégia de vendagem do jornal aliava-se ainda com o discurso de “protetor do povo”, como no destaque de que o JS teria sido o único jornal no Rio de Janeiro que não aumentara os valores das edições.

No exemplo abaixo, a exploração da tragédia humana pode ser percebida em mais de uma matéria:

Imagem 2: Capa do Jornal dos Sports, 31/01/1985.

O exemplar acima destaca mais uma história policial, a de uma chacina no Sumaré, sendo possível que tivesse a implicação de um policial civil no crime. Duas outras matérias dividiam o espaço com a cobertura esportiva (esta dando destaque para o desempenho de dois clubes cariocas, Fluminense e Vasco, no recém iniciado Campeonato Brasileiro de 1985): a de uma ameaça epidêmica de tifo na cidade do Rio de Janeiro e a de uma tragédia no mar, junto à Praça Mauá.

Mortes e cadáveres eram comuns nesta nova linha editorial para o período. Quando mais nítida a imagem da tragédia, mais interesse advinha do público leitor. Pelo menos era o que a empresa/jornal acreditava.

Imagem 3: Capa do Jornal dos Sports, 14/09/1985.

No exemplo acima, o desfecho trágico de um sequestro era mote para um convite aos leitores a comprarem o jornal para conhecer mais sobre a história recheada de mistério, sangue, morte, esquartejamento. Tudo isso numa capa que chamava a atenção sobre as contratações de dois grandes jogadores pelo Flamengo (Sócrates e a possibilidade de chegada de Renato Gaúcho).

Esporte e tragédia caminhavam de mãos dadas entre o final de 1984 e ao longo do ano de 1985. A violência e os dramas urbanos permeavam o interesse de leitores/torcedores, ávidos por emoções e sentimentos para além do esporte.

Referências

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O clube como vontade e representação: o jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol do Rio de Janeiro (1967-1988). 2008. 771 f. Tese (Doutorado em História) – Departamento de História, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1985. In: FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves. O Brasil Republicano: O tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX – v. 4. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.


Revista Recorde: notícias, breve balanço e novo número no ar

15/12/2022

Por Rafael Fortes

Está no ar o número de dezembro de 2022 de Recorde: Revista de História do Esporte, cujo sumário está ao final deste texto. São nove artigos e uma resenha (em dois idiomas). O total de artigos nas duas edições deste ano, 24, provavelmente é o recorde (perdão, não resisti) nestes 15 anos de revista, ao longo dos quais colocamos no ar 30 números, sempre em junho e dezembro, sem atraso. Como se costuma dizer por aí, quinze anos não são quinze dias, nem quinze meses.

A imagem da capa é essa aí embaixo. Está na Brasiliana Fotográfica Digital, da Biblioteca Nacional, e foi sugerida por Victor Melo.

Título: “Em recreio. Um grupo de aprendizes após 10 minutos de ginástica sueca.” NP 145
– Foto de album comemorativo do 5º mês de funcionamento da Escola.
– Local: Maceió (AL)
– Ano: 1910
Fonte: Brasiliana Fotográfica Digital
https://brasilianafotografica.bn.gov.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/7907

*  *  *

Aproveito a oportunidade para discorrer um pouco mais sobre a Recorde e alguns desdobramentos recentes.

Após severos problemas nos dois últimos anos, em 2022 conseguimos retomar o padrão de trato com os autores e de prazos nos fluxos de avaliação e publicação. Reformulamos a Equipe Editorial, com a mudança de função de alguns membros e a entrada de outros. Fica aqui meu agradecimento a todos pelo trabalho desempenhado ao longo deste ano, em especial a dois contingentes de colegas queridos:

  • Aos membros do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer, no qual Recorde foi planejada, iniciada e continua sendo feita. Um grande salve àqueles que atuaram como editores responsáveis por anos específicos passados de publicação da revista;
  • Aos que entraram na equipe este ano – Igor Maciel da Silva, Leonardo do Couto Gomes, Letícia Cristina Lima Moraes e Vitor Lucas de Faria Pessoa -, bem como àqueles que colaboraram em diferentes funções. (Todas elas, é sempre importante registrar, não remuneradas, como é costume no nosso sistema científico, há décadas subfinanciado e baseado grandemente em trabalho amador e voluntário, como se estes adjetivos não fossem uma antítese da própria ideia de trabalho.)

*  *  *

Quanto à circulação e reconhecimento internacional, trago indícios animadores. Um deles é a continuidade da procura por parte de cientistas que escrevem trabalhos em idiomas distintos do português. Em 2022 veiculamos quatro artigos em espanhol (três de pesquisadores sediados na Argentina e um nos Estados Unidos), e uma resenha em inglês (de pesquisador atuante no Canadá).

Temos contado também com o apoio inestimável de periódicos, instituições e colegas do exterior. Entre as publicações científicas, durante anos o Journal of Sport History, por meio de diferentes editores, autorizou que traduzíssemos para a língua portuguesa e publicássemos artigos, medida essencial para o estabelecimento e consolidação de nossa revista. Vale mencionar também Materiales para la Historia del Deporte, periódico sediado na Espanha e que, em certa medida, nos inspirou.

Entre as instituições, obtivemos apoio em dois editais de apoio a periódicos da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). A North American Society for Sport History (NASSH), entidade científica responsável pelo Journal of Sport History, foi fundamental na viabilização do acordo para as traduções mencionado acima.

Quanto aos colegas estrangeiros, tivemos o privilégio de estabelecer diferentes parcerias e colaborações, algumas pontuais, outras duradouras.

Douglas Booth nos apoiou de diferentes formas ao longo dos anos, inclusive cedendo artigos para tradução e viabilizando contatos e parcerias internacionais. O número publicado esta semana traz uma resenha inédita dele a respeito do livro póstumo From Sea-Bathing to Beach-Going: A Social History of the Beach in Rio de Janeiro, Brazil (capa acima), de Bert Barickman, editado por Hendrik Kraay e Bryan McCann. Bert foi um interlocutor de muitos anos e uma das primeiras pessoas a me incentivar a pesquisar as relações entre surfe, juventude e cultura, tema de minha pesquisa de doutorado e de investigações posteriores. Nossa primeira conversa se deu num bar do Arco do Teles. Foi ele quem escolheu o local, próximo à estação das Barcas – o primeiro exemplo da imensa gentileza que o caracterizava, pois eu morava em Niterói. Ao longo dos anos, nos encontrávamos a cada vinda dele ao Rio para sua pesquisa sobre as praias (discorri melhor sobre isso neste texto). Seu trabalho não foi finalizado a tempo por ele, que nos deixou de forma precoce em novembro de 2016. Graças ao trabalho dos editores citados e de outras pessoas, em 2022 finalmente o material rascunhado por Barickman veio à luz. A resenha de Booth – disponível em inglês e em português – faz jus à grandeza da obra, que já tive a oportunidade de ler.

Em vida, Bert infelizmente publicou apenas dois artigos com resultados parciais da pesquisa de mais de uma década. Ao mesmo tempo em que lamentei e lamente imensamente seu falecimento, me vem sempre ao rosto um leve sorriso quando lembro que seu último artigo publicado em vida saiu em junho de 2016 na Recorde: Medindo maiôs e correndo atrás de homens sem camisa: a polícia e as praias cariocas, 1920-1950. Eu e Victor Melo levamos um tempo para convencê-lo, fosse pelo perfeccionismo que lhe marcava, fosse por sua sempre cheíssima agenda de trabalho, na qual muitas vezes doava generosamente tempo para ajudar os outros, sobretudo orientandos e ex-orientandos. O artigo foi traduzido para o inglês e constitui o último e mais extenso capítulo do livro. O original em português que publicamos tem 66 páginas. Porque, né, de que adianta editar voluntariamente uma revista científica se ficarmos limitados a copiar a tacanhez das normas e práticas da maioria dos demais periódicos e das agências de fomento? Neste caso particular, quanto teríamos perdido de uma pesquisa fora-de-série se tivéssemos nos apegado ao máximo de 15 ou 20 páginas exigido por tantas publicações por aí?

O estímulo e interesse de Douglas Booth e de Murray Phillips (atual presidente da NASSH) por Recorde ao longo dos anos tem sido muito importante. O livro Routledge Handbook of Sport History (capa abaixo), organizado por ambos e Carly Adams e lançado em 2021, há um capítulo sobre Recorde na parte 5, dedicada aos periódicos científicos de história do esporte. Sobre a trajetória da revista, foi publicado também, em 2021, o artigo Recorde: Revista de História do Esporte – Um cenário dos seus 13 anos de publicações.

Diversos colegas da América Latina e Península Ibérica também têm colaborado conosco, aos quais agradecemos ao mencionarmos o nome de Pablo Scharagrodsky.

Alguns destes colegas nos concederam entrevistas que vêm sendo publicadas desde que criei esta seção em 2016. Creio que ela contribui para oferecer aos interessados um tipo de diferente de leitura, assim como a possibilitar uma apresentação dos autores, de seus trabalhos e trajetórias de maneira um pouco menos formal e mais livre, bem como saber um pouco de suas trajetórias de vida e de sua ligação com o esporte. Até o momento publicamos entrevistas com os pesquisadores Carles Santacana (realizada por Euclides de Freitas Couto), Douglas Booth, Glen Thompson, João Malaia e Robert Edelman, bem como com a jornalista e narradora Isabelly Morais (realizada por Silvana Vilodre Goellner).

*  *  *

Aos interessados em publicar, informo que Recorde recebe artigos, resenhas e entrevistas em regime de fluxo contínuo. As contribuições devem ser enviadas diretamente para o email revistarecorde@gmail.com .

Abaixo, como informado no início, segue o sumário da edição atual. Que venham mais 30 números e 15 anos/volumes.

*  *  *

v. 15, n. 2 (2022)

Sumário

Artigos

Luciano Arancibia Agüero
César Teixeira Castilho, Elcio Loureiro Cornelsen, Gustavo Cerqueira Guimarães
Sarah Teixeira Soutto Mayor, Georgino Jorge de Souza Neto, Silvio Ricardo da Silva
Felipe Tavares Paes Lopes, Camila Caldeira Nunes Dias, Claudio Luís de Camargo Penteado
Lizandra de Souza Lima, Coriolano P. da Rocha Junior
Everton de Albuquerque Cavalcanti, Vinícius Machado de Oliveira, Juliano de Souza, André Mendes Capraro
Marina de Mattos Dantas
Helcio Hebert Neto
Thayla Rebouças de Oliveira, Eduardo Vinícius Mota e Silva

Resenhas

Douglas Booth
Douglas Booth

O AVANÇO DO SKATE FEMININO*

23/05/2022

Leonardo Brandão

Historiador e Professor Universitário

@leobrandao77

“Não se nasce mulher; torna-se mulher”. Esta frase pertence a escritora Simone de Beauvoir (1908 – 1986), a qual, através do livro intitulado “O Segundo Sexo”, lançado em 1949, contribuiu para questionar os lugares de sujeito que a sociedade patriarcal reservava para as mulheres, uma vez que a posição das mulheres na sociedade era (ainda é?) determinada por fatores culturais e sociais. A reflexão de Beauvoir exerceu forte influência no movimento feminista e, desde então, muitas conquistas foram obtidas.

Embora, nos últimos anos, estejamos vivendo no país uma espécie de retrocesso civilizatório, ainda assim, quando observamos o skate feminino, há motivos de sobra para nos orgulharmos. Rayssa Leal, Gabriela Mazetto, Yndiara Asp, Virgina Fortes, Pipa Souza, Priscila Morais, Esther Solano, Giovana Dias, Vitória Mendonça, Atali Mendes, Kemily Suiara, Pamela Rosa, Marina Gabriela, Vitória Bortolo, Karen Feitosa, Agatha Pinheiro, entre muitas outras, estão ora elevando o nível das manobras nas competições, ora manobrando em pistas e/ou filmando pelas ruas. Num Brasil que insiste em caminhar para trás, essa maior presença das mulheres no skate é um sinal de progresso.

E o que falar da História do Skate Feminino? Embora saibamos que, desde o início elas sempre estiveram sobre o carrinho, os estudos sobre este tema ainda são escassos. No Brasil, quem ajudou a preencher um pouco dessa lacuna foi a pesquisadora Márcia Luiza Figueira, estudiosa que produziu a primeira tese de doutorado específico sobre skate feminino, intitulado “Skate para meninas: modos de se fazer ver em um esporte em construção”, defendida em 2008 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Num capítulo publicado no livro “Skate & Skatistas: questões contemporâneas”, Márcia Figueira evidenciou algumas conquistas do skate feminino a partir da virada do milênio. Ela lembra que um passo importante no aumento de sua visibilidade foi dado pela revista CemporcentoSKATE em 2001, quando foi inaugurado o encarte 100%SkateGirl, no qual a skatista Giuliana Ricomini estreou a seção “ponto de vista”. No ano seguinte, em 2002, na segunda edição desse encarte, seu editorial explicava:

“Há muito que as meninas ambicionavam um espaço só seu na revista. Pediram, clamaram, reclamaram (e mais uma infinidade de outros verbos). Sobretudo elas ANDARAM de skate. Por isso CONSEGUIRAM […] insistiram em andar de skate, em acertar manobras, em correr campeonatos, em evoluir”.

As meninas (eu prefiro o termo mulheres) foram conquistando seus espaços nos veículos de mídia especializado. No ano de 2004, a extinta revista Tribo também passou a dedicar uma seção para elas, intitulado Lilith. Neste mesmo ano, segundo os estudos de Marcia Figueira, Alexandre Vianna, que na época presidia a Confederação Brasileira de Skate (CBSk), afirmou ser “legal ver as meninas se unindo na construção de um espaço e de uma identidade dentro do skate nacional”.

Um marco importante nessa batalha por visibilidade ocorreu em julho de 2006, época da simbólica publicação da centésima edição da revista CemporcentoSKATE. Nela, pela primeira vez, uma skatista aparecia na capa dessa revista. Tratava-se da skatista Eliana Sosco, com uma manobra (noseslide) descendo um corrimão de escadaria, fotografada por Renato Custódio.

Daí em diante muitas outras conquistas ocorreram, como a capa da Ligiane Xuxinha na edição de setembro de 2011 ou o sucesso internacional da skatista Letícia Bufoni, por exemplo. Mesmo no universo acadêmico, surgiram mais mulheres pesquisando a prática do skate. Em 2014, Allana Joyce Scopel defendeu na UFMG a dissertação de Mestrado “A apropriação do Parque da Juventude pelos Skatistas”; e em 2016, na FURG, Juliana Cotting Teixeira defendeu a dissertação “Cenas Urbanas: skatistas, ocupação da cidade e produção de subjetividades”.

Além disso, muitas crews de skate feminino surgiram, como as Pantaneiras Skate Girls na cidade de Campo Grande/MS (encabeçado pela skatista Edduarda Grego) ou as Batateiras, em São Paulo, que surgiram com o intuito de incentivar e fomentar o skate feminino. As Batateiras, inclusive, figuraram no documentário Skate Le Monde, produzido para a televisão francesa TV5 Monde[1].

A história do skate feminino é rica e merece muito mais investigação e registro. As primeiras praticantes, a luta por visibilidade, o preconceito, a corporalidade, questões de gênero, etnia e tantos outros enfoques são possíveis. O trabalho de Marcia Figueira foi pioneiro ao desbravar o assunto, mas outros estudos podem ser feitos. E aí, você skatista que está fazendo ou pretende fazer uma faculdade? Que tal este tema para um Trabalho de Conclusão de Curso? Pois, afinal, vamos combinar que o universo do skate ficou muito mais interessante com a presença das mulheres!

* Este post é uma versão levemente modificada do texto “Sim, elas podem!”, publicado na edição impressa da revista CemporcentoSKATE, edição n. 220, de out/nov de 2021.

[1] O episódio pode ser visto em: https://www.tv5unis.ca/videos/skate-le-monde/saisons/1/episodes/9

 


IMAGENS DO LAZER NA PINTURA, NA ERA BIEDERMEIER

25/10/2021

Elcio Loureiro Cornelsen

INTRODUÇÃO

A era da história alemã na primeira metade do século XIX é conhecida pelo termo “Biedermeier” e tem como marcos temporais o Congresso de Viena, de 1815, e a Revolução de Março de 1848. Tais marcos nos permitem inferir que, se o início do período é marcado pela política restauradora no sentido de garantir as fronteiras dos diversos Estados, que vigoravam antes das invasões napoleônicas, seu fim culmina com movimentos revolucionários burgueses contra os poderes monárquicos (KITCHEN, 2013).

Na historiografia, o período em questão deve seu conceito definidor, cunhado a posteriori, ao professor e poeta Gottlieb Biedermaier, personagem literária criada por Ludwig Eichrodt e Adolf Kußmaul. Tal personagem possuiria dois traços característicos: ter bom coração e ser um pequeno burguês conservador. O historiador Martin Kitchen define com precisão o espírito da época a partir da etimologia do sobrenome da personagem:

[…] “Bieder” significa convencional, comedido e um tanto insípido, com mais do que apenas um vestígio de provincianismo presunçoso. “Maier” é a pessoa comum, o João de Souza ou da Silva. Era um reflexo da atmosfera de paz e tranquilidade da restauração depois dos dias tumultuados da revolução. […] (KITCHEN, 2013, p. 54)

O termo “Biedermeier”, com esta grafia, impôs-se como designação a partir do final do século XIX, inicialmente nos âmbitos da Arquitetura e das Artes Plásticas. E é justamente nas Artes Plásticas do período que recai o interesse do presente estudo, no intuito de analisar imagens do lazer em obras de dois pintores: Adrian Ludwig Richter (1803-1884) e Carl Spitzweg (1808-1885). Em termos metodológicos, foram selecionadas três pinturas de cada um, cobrindo o período de 1830 a 1850. Ressalta-se, ainda, que corroboramos o posicionamento do historiador Victor Andrade de Melo que, baseado em reflexões de Peter Burke, considera “as obras de arte como fontes históricas propriamente ditas (…), e não como ilustrações” (MELO, 2009, p. 21).

O ESPÍRITO BIEDERMEIER E O LAZER NA PINTURA DE CARL SPITZWEG

Uma das características principais da primeira fase da pintura de Carl Spitzweg Spitzweg é o retrato de pessoas em seu ambiente pequeno burguês, que desfrutam do tempo de diversas maneiras, incluindo atividades de lazer em ambientes fechados e, sobretudo, na natureza, bem ao gosto do idílio provinciano que marca o espírito Biedermeier. Uma famosa pintura de Carl Spitzweg que retrata ambiente fechado, mas que evidencia atividades de lazer, é “Bücherwurm” (“Traça”. Fig. 1), de 1848, em que vemos um homem de mais idade bem vestido sobre uma escada, diante de estante repleta de livros até o teto, e este parece ler avidamente um deles, segura outro livro aberto em outra mão, prende ao tronco com o braço outro livro, e tem mais um livro preso entre os joelhos, denotando o gosto pela leitura.

Fig. 1 – “Traça”. Fonte: Wikimedia Commons

Mas é, sobretudo, nas pinturas de Carl Spitzweg que retratam cenas na natureza que se evidenciam práticas de lazer. Uma das mais famosas é “Sonntagsspaziergang” (“Passeio ao domingo”; Fig. 2), de 1841. Nela, é retratada uma família em seu passeio dominical, em um dia de sol, em meio a um campo de centeio. São cinco figuras que se deslocam pela trilha, da direita para a esquerda: à frente, o homem corpulento protege-se do sol com a cartola espetada na bengala, seguido da mulher bem vestida usando chapéu e segurando uma sombrinha. Um pouco mais atrás, há uma menina que também se protege do sol com uma sombrinha, seguida de uma adolescente, bem vestida como a mãe, e, um pouco mais para traz, distraída com a caça de borboletas, aparece uma menina. No quadro, predomina a atmosfera do idílio rural em um dia de descanso, em que a família passeia e leva cestos para um piquenique.

Fig. 2 – “Passeio ao domingo”. Fonte: Wikimedia Commons

Outra pintura de destaque, quando se toma por tema o lazer, é “Der Schmetterlingjäger” (“O caçador de borboletas”; Fig. 3), de 1840. Nela, visualizamos em primeiro plano, do lado esquerdo, duas borboletas azuis, e mais ao fundo, no centro, um homem todo aparamentado, com cantil, mochila e outros apetrechos, segurando na mão direita uma longa haste com uma rede diminuta na ponta.

Fig. 3 – “O caçador de borboletas”. Fonte: Wikimedia Commons

Ao redor e no fundo, é representada uma natureza aparentemente selvagem, com árvores, arbustos, roseiras e plantas rasteiras. O homem se desloca em uma trilha íngreme, à caça das borboletas. Essa pintura denota não só a caça de borboletas, como também o colecionismo como atividade de lazer.

O ESPÍRITO BIEDERMEIER E O LAZER NA PINTURA DE ADRIAN LUDWIG RICHTER

Uma das características principais da pintura de Adrian Ludwig Richter é o predomínio de paisagens panorâmicas que transmitem um sentido de leveza e harmonia com o elemento humano. Uma delas é “Abendandacht im Walde” (“Prece noturna na floresta”; Fig. 4), de 1842, em que as copas de duas árvores frondosas servem de abrigo para o descanso de um grupo de mulheres e de crianças, mas também de carneiros. Algumas jovens estão sentadas, enquanto outras mulheres estão ajoelhadas, e duas estão em pé, com as mãos em posição de oração.

Fig. 4 – “Prece noturna na floresta”. Fonte: Wikimedia Commons

Assim como Carl Spitzweg, Adrian Ludwig Richter valoriza também em suas pinturas passeios e caminhadas ao ar livre como atividades de lazer. Um de seus quadros, intitulado “Italienische Landschaft mit ruhenden Wandersleuten” (“Paisagem italiana com caminhantes descansando”; Fig.5), de 1833, retrata uma cena em que homens, mulheres e crianças descansam à beira do caminho, assim como animais. Todavia, as pessoas estão modestamente vestidas, parecem integrar uma família, a hierarquia entre elas parece se expressar através da figura do homem em pé, enquanto a mulher, sentada, acolhe uma de suas filhas pequenas, e logo atrás está uma mulher de mais idade, provavelmente a avó, e um homem mais jovem, à esquerda das demais figuras, comodamente sentado. Há também objetos que remetem a uma pausa para piquenique.

Fig. 5 – “Paisagem italiana com caminhantes descansando”. Fonte: Wikimedia Commons

Sem dúvida, a atmosfera idílica predomina nas pinturas de Adrian Ludwig Richter, sempre explorada pela construção de imagens de harmonia entre a paisagem natural, as pessoas e os animais. Outro exemplo disso é o quadro “Frühlingsabend” (“Noite de primavera”; Fig. 6), de 1844, em que vemos ao centro um casal de amantes, bem vestidos, sentados contemplando o fim do entardecer e a chegada da noite, tendo ao lado um cão pastor e algumas ovelhas deitadas na relva.

Fig. 6 – “Noite de primavera”. Fonte: Wikimedia Commons

Nas pinturas de Richter, predominam imagens do lazer associadas ao descanso e à contemplação da natureza, num sentido quase religioso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise de pinturas de Carl Spitzweg e Adrian Ludwig Richter, objetivo do presente estudo, evidenciou que elas tanto refletem o espírito da época, quanto transmitem em imagens do lazer valores sociais decorrentes da política de Restauração. Sobretudo, figuras da burguesia, seja o pequeno burguês ou o abastado, são retratadas em atividades de lazer, seja a família que passeia em um domingo, que reflete a hierarquia de papeis sociais, seja o indivíduo em sua relação com a natureza, em que predomina a harmonia, o desfrute e a fruição. São imagens que não reservam espaço para a miséria e a pobreza que atingia amplamente os Estados alemães no período, nem o aumento populacional e o crescente processo de urbanização e de industrialização (KITCHEN, 2013).

Por se tratar de estudo em andamento, ainda há aspectos que demandam desenvolvimento, entre outros, a análise de obras de outros pintores do período, dentre eles, Moritz von Schwind, Friedrich Gauermann e Eduard Gaertner, que nos permitam uma avaliação precisa se havia uniformidade na representação de imagens do lazer, ou se havia também trabalhos distintos que possam ter produzido um contradiscurso, revelando a complexidade social e as correntes políticas antagônicas que se moviam entre a restauração conservadora de 1815 e o ímpeto revolucionário de 1848.

REFERÊNCIAS

KITCHEN, M. História da Alemanha moderna de 1800 aos dias de hoje. Tradução: Cláudia Gerpe Duarte. São Paulo: Cultrix, 2013.

MELO, V. A. de. Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.


Simpósio Nacional de História

27/05/2021

Programação Simpósio de História do Esporte e das Práticas Corporais (69)

31º. Simpósio Nacional de História – ANPUH 2021

Simpósio 69: História do Esporte e das Práticas Corporais

Coordenação:

Prof. Dr. Coriolano Pereira da Rocha Junior (UFBA)

Prof. Dr. André Alexandre Guimarães Couto (CEFET/RJ)

Orientações gerais:

  • As mesas estão compostas por aproximaçáo temática.
  • As sessões acontecerão entre 14h e 16h e entre 16h e 18h.
  • Cada fala terá 15min e 1h de debate por sessão.
  • A última sessão fica guardada para avaliação e organização do simpósio para 2023.

Programação

20/07 – SESSÃO 1: 14h/16h

Sistema de Informações do Arquivo Nacional: potencialidades da pesquisa sobre o esporte e a ditadura civil-militar brasileira (1964-1985)

Rafael Fortes Soares, João Manuel Casquinha Malaia Santos

Recorde: Revista de História do Esporte – um panorama de suas publicações (2008-2020)

Leonardo do Couto Gomes

Sociologia e História do Esporte: novos diálogos possíveis?

Euclides de Freitas Couto

Mídia Impressa e Esporte: Notas Históricas

Caio Cesar Serpa Madeira

20/07- SESSÃO 2: 16h/18h

Esporte, propaganda política e consenso social nas comemorações do Sesquicentenário da Independência do Brasil (1972): síntese e desdobramento de uma pesquisa

Bruno Duarte Rei

Sugestões metodológicas para o estudo de processos civilizadores a partir das práticas de lazer: uma análise psicogenética em Monte Alegre – PR

Ana Flávia Braun Vieira

Entre tangos e batuques: as danças nos clubes sociais da cidade do Salvador entre os anos de 1912 e 1935

Viviane Rocha Viana

21/07- SESSÃO 1: 14h/16h

O jogo das ressignificações: uma outra história do futebol em Porto Alegre (1903-1909)

Gérson Wasen Fraga

Masculinidades varzeanas: virilidade e idade na organização do futebol amador em Belo Horizonte (anos 1950 a 1980)

Raphael Rajão Ribeiro

O futebol e suas relações com o narcotráfico na Colômbia: uma análise introdutória

Eduardo de Souza Gomes

Qual a cor do seu grito? Copa das Confederações, Jornada de Junho de 2013 e os movimentos sociais na cidade de Fortaleza

Thiago Oliveira Braga

21/07- SESSÃO 2: 16h/18h

Urbanização, trabalho e futebol na cidade de Santos (1892 – 1920)

André Luiz Rodrigues Carreira

Filmes de esporte (futebol) como um gênero cinematográfico: uma proposta de pesquisa

Luiz Carlos Ribeiro de Sant’ana

O futuro das torcidas: das charangas à guinada antifascista na Ultras Resistência Coral

Caio Lucas Morais Pinheiro

Da fidalguia à commodity: uma história econômica do futebol mundial evidenciada no surgimento do “padrão-FIFA” (fins do século XX e início do XXI)

Raul de Paiva Oliveira Castro

22/07- SESSÃO 1: 14h/16h

O Polo Aquático Brasileiro nos Jogos Olímpicos de 1920

João Paulo Maciel de Azevedo

Polo Master – Um espaço “aquático” de memória, sociabilidade e lazer

Alvaro Vicente Graça Truppel Pereira do Cabo

Pugilistas italianos e identidade nacional no jornal imigrante Il Pasquino Coloniale (décadas de 1920 e 1930)

Igor Cavalcante Doi

A Formação do Jiu-Jitsu Brasileiro em Salvador e no Rio de Janeiro: um estudo histórico comparado

Luan Alves Machado

22/07- SESSÃO 2: 16h/18h

As Práticas Corporais no Cotidiano de uma Escola Americana no Sertão: ritos e rituais

Rúbia Mara de Sousa Lapa Cunha

Ofício dos Mestres e Pandemia na percepção dos Capoeiras: narrativas e estratégias na Roda

Zuleika Stefânia Sabino Roque

GINÁSTICA EM ACADEMIA: a práxis em Salvador entre 1975 a 1988

Amanda Azevedo Flores

A natação em Juazeiro da Bahia: registros históricos nas décadas de 1970 – 1990

Joelzio dos Santos Oliveira / Christiane Garcia Macedo

23/07- SESSÃO 1: 14h/16h

Alcyr Ferraro: materializador da formação em educação física na Bahia

Roberto Gondim Pires

Jogos Escolares na Bahia entre as décadas 1950 e 1980: Um olhar sobre a História

Natanael Vaz Sampaio Junior

História da formação de professores de Educação Física da Bahia na década de 1970

Maria Elisa Gomes Lemos

Os primórdios da formação de professores de educação física no Pará (1930-1940)

Carmen Lilia da Cunha Faro

23/07- SESSÃO 2: 16h/18h – AVALIAÇÃO FINAL E DEFINIÇÃO DA COORDENAÇÃO 2021/2023


Um clube de ciclismo no bairro de Realengo

20/03/2021

Por Victor Andrade de Melo

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Este post é parte de um artigo que escrevi com o camarada Nei Jorge Santos Júnior e acabou de ser publicado na revista Antíteses (v. 13, n. 26, jul./dez. 2020). Quem curtir e desejar acessar o texto completo, pode encontrá-lo aqui: http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/antiteses/article/view/40025

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Nos anos 1920, foram criados dois clubes de ciclismo pioneiros no subúrbio, o Ciclo Suburbano Clube (de Madureira) e o Velo Esportivo de Ramos. Na década de 1930, várias sociedades semelhantes foram fundadas nos bairros da região. Segundo Melo e Santos Junior (2020): “Juntamente com o futebol, o esporte do pedal parece ter sido, naquele momento, por suas características, o que mais percorreu a cidade de ponta a ponta, criando uma certa capilaridade e estímulo para a prática” (p. 13).

Para entender a criação do Realengo Pedal, deve-se ter em conta as mudanças que houve no bairro. De um lado, se fortaleceu uma sociedade civil que em definitivo assumiu a liderança das reivindicações locais, semelhante ao que ocorria em outras regiões do subúrbio. De outro lado, não se reduziu a importância das unidades do Exército. Os militares de mais alta patente seguiam integrando a elite local.

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Vista Aérea de Realengo/ Escola de Aeronáutica Militar, 1939.
Acervo: Museu Aeroespacial.
Disponível em: < http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/7352&gt;.

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Nesse cenário, houve uma dinamização da vida social. Deve-se fazer uma referência à abertura, em 1938, do Cine Theatro Realengo, uma grande sala que acolhia mais de 1000 pessoas. Por seu estilo arquitetônico, pelas fitas exibidas, pela movimentação causada ao seu redor, foi mais um dos indicadores da circulação de ideias de modernidade no bairro.

O ciclismo era um esporte que mobilizava noções interessantes à elite local. Desde o século XIX, era encarado como sinal de civilização e progresso, exponenciando símbolos que se forjaram ao redor do uso das bicicletas: velocidade, mobilidade, liberdade.

Melo e Santos Junior (2020) sugerem que, naqueles anos 1930, a bicicleta “ainda era um produto caro, mas já bem mais barato do que fora no século XIX, quando era totalmente importada. Na primeira metade do XX, já era montada no Brasil e a indústria nacional produzia algumas peças” (p. 14). De toda maneira, mesmo que começando a se popularizar, o ciclismo ainda se tratava de uma modalidade majoritariamente praticada por gente de estratos médios ou altos, o que seria também um fator de diferenciação num bairro em que o popular futebol se espraiava.

Um primeiro indício da prática do ciclismo no bairro foi identificado em 1930, o anúncio de uma competição promovida pelo Cycle Carioca Club de Realengo. A notícia dá a crer que era um evento muito bem organizado. Todavia, não conseguimos mais informações sobre ele, bem como sobre a sociedade promotora.

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Estação de Realengo, 1903.
Revista da Semana, 15 nov. 1903.
Disponível em: <http://www.estacoesferroviarias.com.br/efcb_rj_mangaratiba/fotos/realengo9061.jpg&gt;.

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Ainda se pode ver sua participação em algumas provas, como uma promovida pelo Velo Esportivo de Ramos, em 1931, mas a agremiação parece mesmo ter sido de curta duração. De toda forma, deixou latente a ideia de que, em Realengo, havia interessados no ciclismo.

Esse interesse ficou claro alguns anos depois, em dezembro de 1937, quando uma sociedade carnavalesca, Caprichosos de Realengo, realizou o “Dia Esportivo de Realengo”. Atraíram muitos interessados as provas organizadas pela Liga Carioca de Ciclismo e Motociclismo por meio de seu diretor Oswaldo Moreira Guimarães, funcionário civil da Escola Militar, “um dos grandes animadores do esporte do pedal nos subúrbios”, promotor de muitas competições importantes do ciclismo carioca.

Um cronista celebrou o evento como uma ocasião para estimular a prática e revelar valores da região, uma “oportunidade para mostrarem a sua fibra”. Em 1938, fundou-se o Realengo Pedal Clube, com sede na Estrada Real de Santa Cruz. Logo estava filiado à Liga Carioca e participando das provas pela entidade promovidas. Em maio, obteve inclusive bons resultados em competição realizada no Campo de São Cristóvão.

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Dirigível no campo de tiro de Realengo, 1894.
Acervo: Musée de L’Air Le Bourget.
Disponível em: < http://historia-de-realengo.blogspot.com/2009/11/historias-perdidas-no-tempo-pioneiros.html&gt;.

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No mesmo ano, a agremiação promoveu pela primeira vez o Circuito Ciclístico de Realengo, em homenagem e contando com apoio do comércio da região. Essa foi uma ocorrência comum em muitos bairros do subúrbio, o incentivo do setor a ações que contribuíssem para o desenvolvimento local, para o forjar de uma ideia de que na área também se estruturavam iniciativas que expressavam adesão a ideais de civilização e progresso.

Um dos ciclistas da agremiação, João Athayde, logo se destacou nas competições, tornando-se mais famoso quando se tornou detentor de um dos primeiros recordes aferidos da modalidade no Brasil. Sua ascensão foi meteórica. Meses antes disputara uma prova para iniciantes dos subúrbios, num momento em que o Realengo Pedal começou a se destacar por inscrever grande número de competidores.

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Equipe do Realengo Pedal Clube.
Esporte Ilustrado, 28 dez. 1938, p. 28.

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Quem eram esses ciclistas mais usuais? Já citamos o vencedor João Carneiro Athayde, funcionário do Ministério da Agricultura. Abel Lopes Garcia foi um costumeiro competidor, chegando a obter bons resultados em muitas pelejas; nada conseguimos saber sua vinculação laboral, somente que era morador de Realengo. O mesmo pode-se dizer de Acyr Gevarzoni, Alceu de Oliveira Souza, José Ribeiro da Silva (atleta negro que depois se transferiu para o Ciclo Suburbano) e Francisco Gomes Bezerra.

A falta de outras referências que não as esportivas nos dá a noção de que se tratava de “gente comum”, isso é, trabalhadores de estrato médio que se dedicavam ao esporte em seu tempo disponível. A propósito, também não localizamos muitas informações sobre a diretoria da agremiação. O único mais conhecido era José Reny de Araujo, antigo ciclista, dirigente e organizador de provas.

No ano de fundação, o clube participou da principal prova do ciclismo fluminense à ocasião, o Circuito do Rio de Janeiro, já na sua sexta edição. Entre os 13 clubes que tomaram parte na peleja, foi um dos cinco que mais inscreveu atletas, entre os quais o vencedor, o citado João Athayde.

Nessa edição, se explicitou uma disputa que vinha se delineando nos anos anteriores em função do espraiamento do ciclismo pela cidade:

Há um detalhe interessante que o público desconhece e que se torna necessário esclarecer. Existe uma rivalidade esportiva entre os ciclistas da cidade e os suburbanos, e nunca houve uma oportunidade para um confronto de forças como o que agora se oferece.

Percebe-se no discurso a oposição entre a “cidade” e o “subúrbio”, como se esse não fizesse parte do primeiro. Deve-se considerar que o jornal A Noite, promotor da competição, estimulava essa rivalidade para chamar a atenção do público, mas, na verdade, ela vinha mesmo se acentuando em função dos bons resultados obtidos por ciclistas do Ciclo Suburbano (MELO, SANTOS JUNIOR, 2020). Um cronista chegou a comentar que “sabido (…) é que os subúrbios têm sido um verdadeiro celeiro de bons corredores”.

Na ocasião do VI Circuito do Rio de Janeiro, outro ciclista do subúrbio se destacou, um dos que se tornaria dos mais vitoriosos de seu tempo, Lavoura (Antonio Teixeira da Fonseca), da União Ciclística de Campo Grande. Essas conquistas eram muito valorizadas pelas lideranças suburbanas, mobilizadas como indicador dos avanços civilizacionais da região.

Em 1940, ainda estava ativo o Realengo Pedal Clube. Participou de competições, em algumas obtendo bons resultados, e promoveu sua prova anual, parte do calendário ciclístico da Liga. Marcou presença até mesmo na atividade de encerramento da temporada. No ano seguinte, contudo, já não encontramos mais notícias sobre a agremiação.

Não conseguimos saber os motivos para seu fim. Identificamos que alguns ciclistas se transferiram para a União Ciclística de Campo Grande, entre os quais João Athayde, que seguiu obtendo bons resultados. De toda forma, ainda que breve, foi marcante a trajetória do Realengo Pedal Clube, expressão das mudanças e particularidades daquele bairro da zona suburbana.

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* Referência

MELO, Victor Andrade de; SANTOS JUNIOR, Nei Jorge. Faces da modernidade: a experiência do Ciclo Suburbano Clube (Madureira/Rio de Janeiro – décadas de 1920-1960). Revista Tempo e Argumento, 12(30), e0202, 2020. https://doi.org/10.5965/2175180312302020e0202


SKATE POÉTICO: UM PROJETO SOCIAL NA PERIFERIA DE SÃO PAULO/SP

03/09/2020

Por Leonardo Brandão

(Historiador/FURB)

Skate e Poesia podem andar – ou deslizar – juntos! Esta é a ideia de um projeto social surgido de um skatista, professor de Educação Física e morador do Jardim Romano, na periferia da cidade de São Paulo. Seu nome é Nanderson Silveira dos Santos, mais conhecido como Nando. Segundo ele, o Projeto Skate Poético (PROSKAP) começou no ano de 2016, inicialmente com a ideia de oferecer aulas de skate e produção de poesias para crianças e adolescentes do Jardim Romano, bairro carente situado no extremo leste da periferia de São Paulo.

Nando explica que, para entendermos melhor a gênese deste projeto, é necessário retornar alguns anos no tempo, ou melhor, ao ano de 2004.  Pois foi neste ano que ocorreu as eleições para a prefeitura de São Paulo, sendo que a atual prefeita à época, Marta Suplicy, prometeu, caso fosse reeleita, a construção do Centro Educacional Unificado (CEU) Três Pontes, no bairro Jardim Romano. Entretanto, esse fato não se consolidou naquele momento em função da vitória do candidato da oposição, José Serra (PSDB). Mesmo assim, essa promessa, segundo ele, fez surgir o sonho de uma pista de skate no local, uma vez que todos CEUs construídos pelas administrações petistas contavam com pistas de skate em suas dependências.

Passados quatro anos, no dia 31 de agosto de 2008, fora inaugurado o CEU Três Pontes, sob a administração do vice de Serra, Gilberto Kassab (DEM), mas sem nenhuma pista de skate. A partir dessa conjuntura, surgiu um movimento dos skatistas locais com o objetivo de reivindicar um espaço qualquer para à prática do skate na região. Porém, somente em 2014, depois de muito diálogo e insistência, foi cedido pela diretoria do CEU Três Pontes uma quadra poliesportiva e um espaço para guardar os obstáculos de skate (rampas, “caixote”, corrimãos etc.) feitos de madeira.

Assim, foi nesse contexto de luta por espaço e reconhecimento que surgiu a ideia de dar aulas de skate e, por conseguinte, em 2016, foi desenvolvido o Projeto Skate Poético. Nesta época, Nando explica que estava escrevendo com frequência poesias e também frequentando Saraus de “poesias periféricas” em seu bairro; e em função disso, embora a ideia ainda estivesse pouco madura, surgiu o objetivo de unir skate com a prática da leitura de poesias, visto que esse gênero dá mais liberdade e é mais fácil de ser trabalhado com crianças e adolescentes, pois permite ir além da norma culta da língua portuguesa (recurso conhecido como licença poética).

Na época, o projeto já contava com oficinas de customização de skates, rodas de conversa, saraus e pequenos campeonatos de skate. Contudo, as atividades aconteciam de maneira muito esporádica. Foi somente em 2017 que o projeto começou a ter um calendário organizado. Isso ocorreu quando Kevin Nascimento da Silva (skatista e professor de História no município) passou a integrar o projeto Skate Poético e, com a sua ajuda, foi possível revisar o projeto original e incluir mais oficinas, como a de mercenária e de produção de “shapes sustentáveis”, essa última ainda em fase de experimentação. Neste mesmo ano, logo após a entrada de Kevin, Rafael Souza Alves Diniz (skatista e também professor de História do município) se voluntariou a participar, fechando a equipe atual. De lá para cá, o projeto amadureceu, expandiu e conseguiu se sustentar com periodicidade e um bom número de participantes fixos.

Atualmente, Nando conta que ainda utilizam a quadra poliesportiva do CEU Três Pontes para as aulas de skate, rodas de conversa, leitura e interpretação de textos, sendo que o projeto passou a contar também com oficinas de marcenaria (em que os alunos aprendem a construir seus próprios obstáculos de skate); oficinas de customização de lixas (na qual os alunos aprendem a criar estêncil com uso de ferramentas manuais e digitais); oficinas de fabricação de shapes sustentáveis, jogos e brincadeiras.

Sobre os desafios atuais para a continuidade deste projeto, Nando explica que como se trata de um projeto independente e que atua no extremo leste da periferia de São Paulo, eles não contam com nenhum apoio governamental, nenhuma política de fomento ao esporte, lazer e educação e nem com recursos privados. Evidentemente, em virtude disso, eles tem algumas dificuldades, sobretudo para a aquisição dos utensílios próprios de skate, como shapes, rodas e equipamentos de segurança, pois aos poucos, os skates montados com peças usadas já não são mais suficientes para atender a demanda crescente de novos alunos. Em razão disso, ele explica que separam os alunos em grupos, de acordo com a idade e nível de habilidade, e fazem um rodízio para o uso dos skates. Também faltam livros suficientes e significativos para atividades de leitura e escrita, bem como materiais para atividades lúdico-recreativas. A maior parte dos materiais que usamos, explica Nando, como poemas impressos em papel sulfite, cones esportivos, bambolês, skates e equipamentos de segurança, são comprados com dinheiro do próprio bolso e/ou com rifas que organizamos junto à comunidade.

A falta de apoio prejudica, por exemplo, quando eles se organizam para fazer passeios às pistas de skate de outros bairros ou em museus, pois nem todos alunos conseguem ir, devido à falta de dinheiro para a passagem de trem e/ou ônibus. Por isso, este ano começaram a buscar informações de como formalizar e regularizar o projeto com o intuito de conseguir recursos públicos e/ou privados para a aquisição de skates, equipamentos de segurança, livros de poemas/poesias e outros materiais para a realização das demais atividades. Por esse motivo, recentemente responderam a um formulário realizado pela Confederação Brasileira de Skate e a ONG Social Skate, o qual tinha como objetivo mapear, conhecer e colaborar com ações sociais em todo Brasil que utilizam skate como ferramenta de inclusão social.

A seguir, apresentamos algumas fotos do Projeto Skate Poético cedidas e legendadas pelo próprio Nando e que estão disponíveis no Instagram @projetoskatepoetico de modo público.

Imagem 1: Oficina experimental no recreio do CEU Três Pontes.

 

Imagem 2: Aula de “tail drop” na rampa reta.

 

Imagem 3: Aluna do Projeto trabalha equilíbrio numa gangorra proprioceptiva.

 

Imagem 4: Aula de ‘rolamento’ (quedas) com skate.

Imagem 5: Roda de conversa sobre diversidade e respeito às diferenças

Para ajudar esse projeto com doação de livros, peças de skate, equipamentos de proteção e/ou ver mais fotos das atividades realizadas, siga e entre em contato com seus idealizadores através do Instagram @projetoskatepoetico


Futebol e narcotráfico III: as influências de Gonzalo Rodríguez Gacha, “El Mexicano”, no futebol do Millonarios

18/08/2020

 Eduardo de Souza Gomes                                                       eduardogomes.historia@gmail.com

Entre 2016 e 2017, publiquei dois textos neste espaço tratando sobre as relações possíveis existentes entre o futebol e o narcotráfico na Colômbia dos anos 1980. Em uma primeira iniciativa, problematizei algumas questões relacionadas a participação (ou não) de Pablo Escobar no futebol em Medellín. Já em uma segunda oportunidade, avancei para destacar algumas das questões que se relacionaram à inserção do cartel de Cali, liderado pelos irmãos Rodríguez Orejuela, no futebol da cidade.

Ambos os textos são iniciativas introdutórias de um projeto maior que aos poucos estou desenvolvendo, buscando assim problematizar historicamente e com maior profundidade as relações existentes entre o futebol e o narcotráfico na Colômbia, notadamente nos anos 1980.

Por ocasião da realização de minha tese de doutorado, defendida em junho deste ano em meio à pandemia e onde desenvolvi uma pesquisa com outra temática relacionada à História do Esporte (um estudo comparativo dos Jogos do Centenário de 1922 no Rio de Janeiro e dos Jogos Bolivarianos de 1938 em Bogotá), as investigações sobre o objeto de estudo proposto aqui hoje tinham sido temporariamente interrompidas. Porém, tal projeto está aos poucos sendo retomado. Depois de passar por Medellín e Cali, abordarei neste texto um pouco das possíveis relações existentes entre o futebol e o narcotráfico na cidade de Bogotá, capital da Colômbia e sede de dois dos principais clubes de futebol do país, o Millonarios e o Independiente Santa Fe.

De forma mais específica, serão problematizadas as influências de José Gonzálo Rodríguez Gacha, conhecido como “El Mexicano”, no âmbito do Millonarios. Como materialização do auge dessa influência, podemos destacar os títulos colombianos vencidos pela equipe do Millonarios em 1987 e 1988, destacado por boa parte da imprensa do país como resultado do grande investimento financeiro clandestino que o clube recebeu por parte do narcotraficante.

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Time do Millonarios que conquistou o bicampeão colombiano seguido em 1988. Foto: RUIZ BONILLA, 2008, p. 219.

Para chegarmos nesse encontro entre o narcotráfico e o clube, é válido destacar um pouco da biografia de El Mexicano, tal como sua inserção no mundo da venda de drogas na Colômbia entre as décadas de 1970 e 80.

Gonzalo Rodríguez Gacha nasceu no departamento colombiano de Cundinamarca, em 1947. Oriundo de uma família humilde de camponeses, desde cedo se envolveu em pequenos casos de crimes e furtos. Ficou caracterizado pela imprensa do país por ser considerado “violento e sanguinário”, tendo sido o provável autor e/ou mandante de vários homicídios. Por ser um apreciador assumido da cultura e vida mexicana, ficou conhecido como El Mexicano.

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Gonzalo Rodríguez Gacha, El Mexicano. Foto: Wikipedia

Gacha iniciou seus negócios no ramo de vendas de esmeraldas. Desde seus primórdios, já se envolveu em transações ilegais, camufladas por distintas formas de lavagem de dinheiro. Logo que seus negócios foram se ampliando, se inseriu também no âmbito do narcotráfico.

Foi um dos braços principais do cartel de Medellín, se estabelecendo como um dos maiores aliados de Pablo Escobar em Bogotá. Inclusive, no âmbito da defesa armamentista do cartel, exerceu papel de grande liderança e destaque no confronto contra inimigos do mercado do narcotráfico, como nos conflitos armados contra o cartel de Cali dos irmãos Rodríguez Orejuela, nos anos 1980.

No fim de sua vida, acabou se vendo em uma encruzilhada, tendo adentrado em quatro frentes de conflito no país: contra o Estado, o cartel de Cali, as FARC e algumas lideranças do mercado de esmeraldas. Acabou morto em 1989, em uma operação do Estado colombiano de enfrentamento ao cartel de Medellín.

Durante sua trajetória, acabou se utilizando de vários espaços para a realização de investimentos e/ou lavagem de dinheiro. Um deles foi o futebol. Gacha acabou se tornando um dos sócios majoritários de um dos maiores clubes do país, o Millonarios de Bogotá. Chegou ao clube em 1982, junto de Edmer Tamayo Marín, que chegou a ser presidente do clube e era muito próximo do famoso narcotraficante. Alberto Galviz Ramírez destaca que

Tamoyo […] morreu em 1986 depois que se vinculará ‘como proprietário de uma carga de 2.000 quilos de cocaína confiscados em setembro de 1982 e outra de 65 quilos confiscada em Barranquilla’. Por sua parte, Rodríguez Gacha, El Mexicano, importante patrão do narcotráfico e líder de “Los Extraditables” (em referência ao grupo de narcotraficantes colombianos que, juntos de Pablo Escobar, lutou contra a extradição para os Estados Unidos nos anos 1980) assumiu o comando do Millonarios em meados dos anos 80 e sua influência foi determinante para o destino do quadro azul. Destacadas figuras chegaram à formação da capital graças à inegável fonte de dinheiro que respaldava El Mexicano, o que permitiu que o Millonarios se coroasse campeão em 1987 e 1988 (GALVIS RAMÍREZ, 2008, p. 97-98, tradução nossa).

Entretanto, no decorrer dos anos 1990 e 2000, a temática do narcotráfico e o quanto essas figuras influenciaram em diversos setores sociais, dentre esses os clubes de futebol, passou a ser cada vez mais problematizada e negada por boa parte da sociedade colombiana. No caso do Millonarios, esse debate se tornou tão grande que, inclusive, surgiram movimentos que buscaram anular os títulos nacionais conquistados pela equipe em 1987 e 1988.

 É válido destacar que tais conquistas foram muito importantes naquele contexto para os torcedores, já que o clube passava por um jejum de nove anos sem conquistas (o último título nacional havia ocorrido em 1978), tal como permaneceu mais vinte e quatro anos sem títulos do Campeonato Colombiano depois do bicampeonato nos anos 1980, encerrando o jejum somente em 2012. Ou seja, em um intervalo de trinta e quatro anos (1978 a 2012), as únicas conquistas do Millonarios, então maior campeão nacional, foram os títulos conquistados no período de influência de Gacha e companhia.

Felipe Gaitán, então presidente do Millonarios em 2012, admitiu na época que poderia “devolver” os títulos de 1987 e 1988, se assim determinasse a justiça em caso de confirmação do envolvimento financeiro do narcotráfico no âmbito do clube durante esse período. A decisão acabou não se materializando, mas dividiu parte da torcida. Fato é que, depois dessa iniciativa, mesmo no cenário recente da atual década e com vários debates acerca da importância de se combater e negar os horrores cometidos outrora pelo narcotráfico, bandeiras estampando o rosto de Gacha foram levantadas em algumas ocasiões por parte dos torcedores do Millonarios nos estádios, como podemos ver abaixo.

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El Mexicano virou até bandeirão em parte da torcida do Millonarios. Foto: https://doentesporfutebol.com.br/2015/09/historia-do-futebol-colombiano-a-era-dos-narcos/

Em 2012 residi alguns meses em Medellín, durante um período de graduação sanduíche que realizei no âmbito da Universidad de Antioquia. Na ocasião, tive como principal objetivo a investigação de fontes para o trabalho que, posteriormente, resultaria em meu primeiro livro lançado em 2014, intitulado El Dorado: efeitos do profissionalismo no futebol colombiano (1948-1951)”. A grande coincidência ficou por parte do título do Millonarios no torneio finalización do Campeonato Colombiano de 2012, considerando que era também el Ballet Azul a principal equipe do período em que pesquisei nos anos El Dorado do futebol colombiano, quando o clube contava em seu elenco com craques do quilate dos argentinos Alfredo Di Stéfano, Adolfo Pedernera e Néstor Rossi.

Pude vivenciar de perto a conquista de um título colombiano da equipe depois de vinte e quatro anos. E além da ansiedade pela conquista, notória em grande parte de seus torcedores no decorrer do percurso, uma questão me chamou a atenção: a possibilidade de anulação das taças de 1987 e 1988, dividiu muito os próprios torcedores do Millonarios. Uma boa parte da hinchada azul se colocou como favorável a essa anulação, para assim se desvincularem dessa “mancha” na história do clube. Por outro lado, também tiveram muitos torcedores que se posicionaram como contrários à anulação, pois entendiam que o Millonarios foi, assim como outros clubes colombianos do período, fruto de uma influência muito mais ampla do narcotráfico no âmbito social, político e econômico daquele contexto, presente em toda a Colômbia.

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Equipe do Millonarios campeão colombiano em 2012. Foto: https://especiales.semana.com/especiales/millonarios-campeon/index.html

É válido destacar, como demonstrado nos textos anteriores aqui já citados (Parte I e Parte II), que de fato a influência do narcotráfico foi muito além da equipe do Millonarios e, de forma mais geral, do futebol colombiano. Esteve presente na maior parte dos setores da sociedade colombiana entre os anos 1970 e 1990, com foco maior na década de 1980.

Porém, clube gigante que é e que já possuía uma grande história anterior a esse período, como nos tempos do El Dorado do futebol colombiano (tema que já abordei em vários outros trabalhos, tendo resultado em dois livros: o já citado “El Dorado” e “A invenção do profissionalismo no futebol”), o Millonarios sobreviveu ao período de influência do narcotráfico e foi muito além do título de 2012. Desde então, a equipe já conquistou o maior título nacional do país em outra oportunidade, no ano de 2017, além de ter ganho a Copa Colombia em 2011, a Superliga da Colombia em 2018 e títulos internacionais, como a Copa Merconorte, em 2001. O narcotráfico deixou marcas, mas o futebol colombiano seguiu e continuará seguindo em frente.

 

Referências Bibliográficas

GOMES, Eduardo de Souza. Futebol e narcotráfico: uma releitura do caso de Pablo Escobar na Colômbia. Blog História(s) do Sport. 2016. Disponível em: <https://historiadoesporte.wordpress.com/2016/08/22/futebol-e-narcotrafico-uma-releitura-do-caso-de-pablo-escobar-na-colombia/>. Acesso em 17 de agosto de 2020.

_______. Futebol e narcotráfico II: uma breve análise da influência do cartel de Cali no futebol do América. Blog História(s) do Sport. 2017. Disponível em: <https://historiadoesporte.wordpress.com/2017/01/23/futebol-e-narcotrafico-ii-uma-breve-analise-da-influencia-do-cartel-de-cali-no-futebol-do-america/>. Acesso em 17 de agosto de 2020.

GONZALO RODRÍGUEZ GACHA, ‘El Mexicano’: esse fantasma que pasó por Millonarios. Gol Carocol TV. 20 de maio de 2013. Disponível em: <https://gol.caracoltv.com/informacion-general/gonzalo-rodriguez-gacha-el-mexicano-ese-fantasma-que-paso-por-millonarios>. Acesso em 14 de agosto de 2020.

PEREIRA, Ivan Alves. História do futebol colombiano: a Era dos Narcos. Doentes por Futebol. 2015. Disponível em: <https://doentesporfutebol.com.br/2015/09/historia-do-futebol-colombiano-a-era-dos-narcos/>. Acesso em 14 de agosto de 2020.

RAMÍREZ, Alberto Galvis. 100 años de fútbol en Colombia. Bogotá: Planeta, 2008.

RUIZ BONILLA, Guillermo. La gran historia del fútbol profesional colombiano: 60 años de logros, hazañas y grandes hombres. Bogotá: Ed. DAYSCRIPT, 2008.

 


À procura do Prado Guarany

06/06/2020

Por Victor Andrade de Melo

Este post é um resumo de um artigo que escrevi com o amigo André Chevitarese. Utilizamos como metodologia a “arqueologia da paisagem”. Nosso intuito era descobrir onde se encontrava o Prado Guarany, um hipódromo de características mais populares que houve no Rio de Janeiro do século XIX. A versão completa do artigo está aqui: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742020000100402&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

No Rio de Janeiro, os hipódromos foram as primeiras instalações esportivas. Em 1849, quando foi instituída a primeva agremiação esportiva da cidade, o Club de Corridas, construiu-se o Prado Fluminense, localizado entre os bairros de São Francisco Xavier e Benfica. Posteriormente, foram construídos novos hipódromos, todos nos anos 1880: o Prado Vila Isabel (ocupado pelo Club de Corridas de Vila Isabel e pelo Derby Fluminense), o Prado Itamaraty (do Derby Club), os do Turf Club e do Hipódromo Nacional. Além desses, houve um mais modesto, o Prado Guarany, instalado na Praia Formosa/Vila Guarany, uma pequena região da cidade espremida entre o Santo Cristo e São Cristóvão.

Os mapas da cidade registraram somente a existência de quatro prados. Em vermelho, está marcado o do Jockey Club, onde hoje se encontra o conjunto habitacional Bairro Carioca, antes a Cidade Light, bem próximo do Hospital Central do Exército. Em azul, vê-se o hipódromo do Turf Club; atualmente há no local a Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Em laranja, o prado do Derby Club, exatamente onde está construído o Maracanã. Em verde, o Hipódromo Nacional; hodiernamente, uma parte é ocupada pela Praça Afonso Pena. Em lilás, identifica-se a área onde poderia se encontrar o Prado Guarany. Os periódicos faziam referência à Praia Formosa e Vila Guarany, mas não definiam sua localização exata.

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GREINER, Ulrik. Planta da Cidade do Rio de Janeiro e dos Subúrbios, 190?

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A Vila Guarany deixou poucos registros na cartografia. Somente encontramos referência ao bairro em dois mapas consultados: um do início dos anos 1900 (figura 12) e outro de 1910 (figura 13), esse último já com o novo porto e o Canal do Mangue construídos. Em vermelho, se vê a identificação da região. Em azul, para fins de localização, se observa o Campo de Santana.

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GREINER, Ulrik. Planta da Cidade do Rio de Janeiro e dos Subúrbios, 1900.

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MATOS, Francisco Jaguaribe Gomes de. Planta da Cidade do Rio de Janeiro: obedecendo à divisão da cidade em Distritos Municipais, 1910.

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Onde nessa região ficava o Prado Guarany? Para descobrir, cruzamos informações obtidas em periódicos, iconografias (obras de arte e fotografias), mapas e trabalhos de campo – visitas etnográficas realizadas para identificar permanências no espaço. Tendo em conta esses dados, vejamos o mapa a seguir.

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MASCHEK, E. de. Planta da Cidade do Rio de Janeiro e de Uma Parte dos Subúrbios. [entre 1885 e 1905].

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Vejamos as identificações. Em lilás, trata-se da área onde havia o Matadouro. Em azul escuro, as ruas Mello e Souza e Francisco Eugênio. Em amarelo, os cinco morros das redondezas. Em rosa, o atual Campo de São Cristóvão (na ocasião Praça Pedro I). As linhas verdes demarcam os rios Joana e Maracanã. O círculo laranja é a Estação Praia Formosa. Em azul claro, o Canal do Mangue. A seta laranja marca a direção da Quinta da Boavista. Os círculos verdes marcam a antiga Ponte dos Marinheiros, a passagem férrea e a ligação da Praia Formosa com a Francisco Eugênio.

Assim sendo, em vermelho, temos os quatro possíveis locais do Prado Guarany. Num mapa posterior, vemos a região numa conformação mais próxima da atual. A possível área do hipódromo está marcada em vermelho. Ainda não é possível ser peremptório na definição da sua localização.

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GREINER, Ulrik. Planta da Cidade do Rio de Janeiro e Subúrbios [190-?]

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Em mapas de 1910, 1913 e da década de 1920, permanece a imprecisão. Vamos apresentar apenas o último, no qual se exibe um cenário bem próximo do atual, em que já está construída a Estação Leopoldina (identificada como Estação Praia Formosa). Os possíveis locais do Prado estão marcados em vermelho.

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Rio de Janeiro: Parte Central da Cidade. [192-]

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Na imagem a seguir, captada a partir do Google View, simulamos o que haveria nos dias atuais nos possíveis locais do antigo hipódromo.

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Aspecto atual dos possíveis locais do antigo Prado Guarany, Google View, 2018

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Com essas imagens e informações em mãos, fizemos uma nova visita etnográfica. A intenção era ver, no terreno, como poderiam nos conceder mais de precisão na busca pela localização do hipódromo. Caminhamos pelos quarteirões da antiga Vila Guarany e áreas possíveis do Prado, fazendo simulações de medidas e composições de espaço.

Com essa visita, foi possível rever o que pensávamos ao acessar somente a cartografia e as informações de periódicos. A imagem a seguir, apresenta de forma mais consolidada o que pensamos ser a localização do Prado Guarany. Trata-se de um modelo especulativo a ser checado em fases futuras do projeto.

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MASCHEK, E. de. Planta da Cidade do Rio de Janeiro e de Uma Parte dos Subúrbios [entre 1885 e 1905].

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As linhas vermelhas demarcam uma possível delimitação do espaço do Prado, tendo em conta as medidas apresentadas nos periódicos e o que conseguimos checar nos trabalhos de campo. Sugerimos em azul as possíveis entradas do hipódromo. Em verde, identificamos possíveis locais das arquibancadas. Em lilás, o possível espaço da pista e do lago central. Perceba-se, então, que o hipódromo teria sido instalado na grande área vazia onde havia o Matadouro. Na imagem a seguir, captada do Google View, vemos o que hoje se encontra na área.

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Como podemos ver, o hipódromo provavelmente se encontrava nas atuais instalações da Estação Barão de Mauá/Leopoldina. Mesmo que tenhamos que considerar que a área sofreu várias obras no decorrer do tempo, a existência de áreas livres nos parece estimulante para dar sequência à investigação.

A arqueologia da paisagem que nos propusemos a realizar, portanto, parece ter logrado êxito, apresentando-nos possíveis locais para a promoção de prospecções arqueológicas cujo intuito será buscar vestígios materiais que nos ajudem a definir com maior precisão o local do Prado, bem como vislumbrar algo dos costumes esportivos daquele tempo.

A preparação das escavações já está em curso, contando também com a participação do arqueólogo Leonardo Amatuzzi. Certamente, os dados advindos dessas prospecções arqueológicas serão tema para outro estudo.

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