Presença feminina nos primórdios do esporte em São Paulo

11/07/2022

Por Flávia da Cruz Santos

A presença feminina se faz sentir, nos momentos iniciais do esporte na capital paulista, pela ausência, pelos silêncios das fontes. O corpo feminino era algo quase que proibido, em que não se podia tocar e cujas formas não era permitido conhecer. As vestimentas não apenas adornavam, mas escondiam e deformavam o corpo feminino. Elegância era a palavra de ordem, era o que orientava a participação das mulheres na cena pública. Ao menos era esse, o desejo das elites paulistanas, que estruturavam a sociedade partir da ideologia patriarcal.  

A participação das mulheres, apesar de ser desejada e incentivada, se restringia às arquibancadas. O embelezamento do espetáculo, por vezes, se limitava à sua presença, às suas vestes e adornos. Depois de afirmar, que as corridas do Grande Prêmio, no Hipódromo da Mooca, haviam sido “uma verdadeira decepção”, o colunista, que assina como “Jack, Entraineur” avalia:

Apesar de tudo isso porém, Jack está satisfeito, porque as senhoras apresentaram-se como deviam, vestidas com luxo e esmero. Ocuparam as arquibancadas, enquanto nós outros vínhamos para o encilhamento ou para as imediações da pista.
Lá em cima, viam-se os reflexos das sedas, ao lado das cores embasadas dos vestidos de lã ou de linho, flutuavam rendas, e agitavam-se leques de infinitas formas, uns de plumas, outros de gaze e entre eles um muito chique formado de folhas de begônias. (O Estado de S. Paulo, 21 out. 1890, p. 1)

Todos se sentiam autorizados a avaliar as mulheres, até mesmo alguém cuja especialidade era o treinamento. Tentava-se reduzi-las a isso, à aparência, às vestimentas, penteados e adereços. Essa é a representação das mulheres, dominante nos periódicos. Contudo, tanto as mulheres das classes dominantes, quanto as mulheres das camadas populares, estavam longe de restringir seu papel social ao embelezamento.

As mulheres pobres (brancas, forras, escravas) desempenhavam diferentes funções (costureiras, bordadeiras, quitandeiras, lavadeiras), e também, quando necessário, ocupavam papéis tipicamente masculinos (tropeiras, roceiras) (DIAS, 1995). As mulheres das camadas dominantes, eram empresárias ativas, formadoras dos filhos, socializadoras e treinadoras dos escravizados, administradoras de suas propriedades e lavouras (CANDIDO, 1951).

Mas, se a elegância, entendida nos termos de nosso interlocutor, era uma exigência, não é difícil concluir que as mulheres que estiveram presentes nesses momentos iniciais da conformação do esporte em São Paulo, pertenciam exclusivamente às elites. Pois, a impossibilidade da exibição de luxos pelas camadas populares nos momentos de diversão, era apontada pelos próprios paulistanos daquele tempo:

Ora, todos nós sabemos quanto custa frequentar sociedades hoje em S. Paulo, principalmente quem tem mulher e filhos. Como porém me asseveraram que na Concórdia Familiar eram expressamente proibidas as sedas, as joias e as luvas, verbas todas estas elevadíssimas para os pais de família, acedi a entrar para esta nova sociedade.
 
Qual não foi, porém, Sr. redator, o meu desapontamento quando entrando noite de sábado na casa onde se dava a partida da Concórdia, vi algumas senhoras cobertas de seda e brilhantes, com finíssimas luvas Jouvin! Fiquei furioso assim como minha Eva, e mais prole, que todas tinham ido com seus vestidinhos de 6$rs., sem luvas nem adereços. Ora, uma sociedade familiar não é lugar para se ostentar riqueza, porque ofende e faz pouco nos outros, que não tem a felicidade de agarrarem boas empresas, que não tem lucros fabulosos, podendo por essa razão gastarem a grande. (Correio Paulistano, 22 out. 1872, p. 2)

O investimento nas roupas e adornos era um imperativo para aqueles que frequentavam espaços de sociabilidade, o que acabava por deles excluir uma parcela nada pequena da população da capital. Pois, a sociedade paulistana era “muito desigual, hierarquizada ao extremo e com elevado índice de concentração de riqueza” (DIAS, 1995, p. 192).


Referências

DIAS, Maria Odila Leite da Sila. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1995.

CANDIDO, A. The Brazilian family. In: LYNN SMITH, T. e MARCHANT, A. Brazil: portrait of half a continent. New York: Dryden, 1951, p. 291-312.


“Hemerotecando” a esgrima em São Paulo

05/07/2021

Flávia Cruz/flacruz.santos@gmail.com

Em 1854 já há notícia da existência de uma sala de esgrima em São Paulo. Mas a presença sistemática de tal prática na capital paulista se dá mesmo a partir de 1862, quando começam a chegar na cidade mestres de armas vindos da Europa. Mestres de armas é como são denominados os professores de esgrima.

A despeito da inexistência de ferrovias que ligassem a capital ao litoral, e das dificuldades desse trajeto, que se dava pela serra do mar, a presença de europeus na cidade foi mesmo uma constante, desde seus primórdios. Os mestres de armas que chegavam eram alemães, italianos, franceses.  

Eles ministravam aulas e cursos em suas próprias residências, em instituições de ensino, como o Liceu Alemão, e em associações, como o Clube Ginástico Português. Algumas vezes, além de europeus esses professores eram também militares, como era o caso do capitão do exército prussiano, Theodoro Maximilio de Krans, que dava lições de esgrima.

.

Flavinha.1

Jornal da Tarde, 3 de abril de 1879

.

A esgrima se desenvolveu na capital paulista atrelada a esses dois elementos: os europeus e os militares. Foi com professores europeus que os paulistanos aprenderam a esgrima, e foi por influência inglesa que eles desejaram aprendê-la. A esgrima compunha a formação de militares, e estes também eram mestres de armas, não apenas nas escolas militares, mas também em cursos para civis.

Os militares possuem, no entanto, uma especificidade em sua relação com a esgrima, que pode ser notada principalmente a partir da primeira década do século 20. Enquanto no meio civil as armas estudadas eram o sabre, a espada e o florete, os militares se dedicavam também à esgrima de baioneta. Baioneta é uma espécie de punhal, que é acoplado ao cano da arma de fogo, geralmente um fuzil. 

As utilidades da esgrima eram apregoadas pelos jornais: eficaz para o desenvolvimento da força física e da coragem, distração agradável e elegante. Prescrita desde forma de tratamento da melancolia a componente da educação das elites, a esgrima era apresentada como uma prática apreciada pelos ingleses.

Inglaterra e França eram países referência para a construção de gostos e hábitos, também na capital paulista. Se uma prática era apreciada nesses países, era sinal de que deveria ser apreciada também pela população paulistana. Senão por toda ela, pelo menos por suas elites. Afinal, esses países eram símbolos de civilidade e de modernidade.

Apesar de chegarem de Londres e também de Buenos Aires, desde o último quartel do século 19, notícias de assaltos de esgrima entre mulheres, e entre mulheres e homens, o mesmo não aconteceu em São Paulo. Não há notícia de sequer um assalto entre mulheres na capital, ou de sua participação em cursos e associações de esgrima até 1920.

É somente em 1879 que começamos a ter notícias de assaltos públicos de esgrima. Em um primeiro momento, eles aconteciam como parte de festividades de instituições que a tinham como objeto de ensino, ou como uma estratégia de propaganda utilizada pelos professores, para demonstrar sua perícia com a esgrima e, assim, conquistar alunos. Posteriormente os assaltos passaram a acontecer também entre os alunos dos cursos existentes na cidade.

.

Flavinha.2

O Estado de São Paulo, 13 de julho de 1899

.

A partir da década de 1880 um maior número de associações que tem como um de seus objetivos, ou o único objetivo, desenvolver a esgrima são fundadas na cidade: Real Sociedade Clube Ginástico Português, Clube de Esgrima, Congresso Brasileiro, Cercle de Esgrima Franco Brasileiro, Clube Brasileiro de Esgrima e Tiro, Grêmio do Comércio de São Paulo, Academia de Esgrima, Clube Internacional de Ginástica e Esgrima, Grêmio Recreativo Filhos do Trabalho, Clube de Esgrima Kosmos.

.

Flavinha.3

A Província de São Paulo, 5 de julho de 1881

.

Competições de esgrima só começam a acontecer a partir de 1896. Nesse ano houve a realização de torneio pelo Clube Ginástico Português, e em 1897 pela Escola Normal. Em 1899 há notícia da realização de um torneio internacional de esgrima. Internacional porque seus participantes e as escolas de esgrima participantes, eram de diferentes nacionalidades.

Não havia qualquer organização das associações e escolas de esgrima em instituições que as normatizasse, e organizasse torneios. As competições se davam por iniciativa dos mestres de armas dos cursos.  Apesar de associada à ginástica e à educação física, a esgrima não era tida ainda como um esporte. Sequer estava presente nas colunas esportivas dos jornais. Suas notícias estavam nas colunas de Notícias Diversas ou no Noticiário.

Não se falava ainda em esgrimistas, esse termo não era empregado. Os participantes dos torneios eram os professores e seus alunos de esgrima. Mas apesar disso, sem que os sujeitos desse tempo soubessem ou tivessem consciência, o campo esportivo já estava em gestação na capital paulista. E a esgrima ajudava a compor esse campo.

Tanto é que em 1905 a esgrima já figurava nas colunas esportivas dos jornais, e seus praticantes já eram chamados de esgrimistas. A esgrima participou, assim, do mesmo movimento de institucionalização vivido pelas demais práticas esportivas em São Paulo, a partir da segunda metade do oitocentos.

Com a especificidade de ter se desenvolvido nos momentos iniciais, como objeto de ensino em instituições instrutivas e cursos, como parte da educação formal e não formal, a esgrima passou a figurar, pouco a pouco, no quadro das atividades das associações recreativas e esportivas, e a possuir competições.

As comemorações cívicas também passaram a contar com a esgrima em suas programações. Em 1913, por exemplo, houve assaltos de esgrima nas comemorações pelo aniversário da proclamação da república e pelo dia da bandeira.

.

Flavinha.4

O Estado de São Paulo, 20 de novembro de 1913

.

No entanto, a esgrima não gozou de grande sucesso na capital paulista. O número de praticantes e de espectadores da esgrima não alcançou números muito alvissareiros. A revista Vida Sportiva, de agosto de 1904, apresenta estatísticas que o comprovam. Das 118 associações esportivas existentes na capital, apenas 4 eram de esgrima, enquanto 8 eram de atletismo, 9 de ginástica e 72 de futebol!

* Fontes

Correio Paulistano – 1854, 1855, 1856, 1857, 1858, 1859, 1862, 1863, 1864, 1865, 1866, 1867, 1868, 1869, 1870, 1871, 1872, 1873, 1874, 1875, 1876, 1877, 1878, 1879, 1880, 1881, 1882, 1883, 1884, 1885, 1886, 1887, 1888.

A Província de São Paulo / O Estado de São Paulo – 1875, 1876, 1877, 1878, 1879, 1880, 1881, 1882, 1883, 1884, 1885, 1886, 1887, 1888, 1889, 1890, 1891, 1892, 1893, 1894, 1895, 1896, 1897, 1898, 1899, 1900, 1901, 1902, 1903, 1904, 1905, 1906, 1907, 1908, 1909, 1910, 1911, 1912, 1913, 1914, 1915, 1916.

Jornal da Tarde – 1870, 1871, 1872, 1873, 1874, 1875, 1876, 1877, 1878, 1879.

Vida Sportiva – 1904.

.


PESQUISA DE MESTRADO NA UFRJ IRÁ COMPARAR PICOS CLÁSSICOS EM SÃO PAULO/SP E RIO DE JANEIRO/RJ[1]

10/05/2021

Entrevista realizada por: Prof. Dr. Leonardo Brandão (FURB)

Instagram: leobrandao77


As pesquisas universitárias sobre skate no Brasil vem crescendo tanto em quantidade quanto em qualidade. Já são vários os Trabalhos de Conclusão de Curso (os famosos TCC’s) que abordam, sob diferentes ângulos, a prática e a cultura do skateboard. Algumas pesquisas avançam também na Pós-Graduação, com dissertações de Mestrado   e Teses de Doutorado. Neste âmbito, a mais recente pesquisa aprovada para se tornar uma dissertação de Mestrado vem do Rio de Janeiro/RJ, na pessoa do geógrafo e skatista Luciano Hermes (43 anos), que recentemente foi aprovado no Mestrado em História Comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e com um projeto que visa comparar os processos de reivindicação da prática do skate em dois picos clássicos, o Vale do Anhangabaú em São Paulo (que agora é o Memorial) e a famosa Praça XV no Rio de Janeiro/RJ

Conversei um pouco com Luciano para conhecê-lo melhor e saber um pouco mais de seu projeto de pesquisa, seus objetivos e como ele pretende realizá-lo. A seguir, nosso bate-papo:

1 – Olá Luciano! Gostaria que você se apresentasse, contando um pouco sobre você, em especial sua trajetória na cena do skate e acadêmica.

Olá! Meu nome é Luciano Hermes da Silva. Tenho 43 anos e sou skatista desde 1989. Comecei a andar de skate no breve período de existência da Associação de Skate de São Gonçalo (ASSG). A primeira coisa que se reparava era que os próprios skatistas, em regime de mutirão, montavam rampas e trilhos para andarem de skate em uma rua de asfalto liso. A família de um dos skatistas não se incomodava com a sessão em frente de casa, como também deixava guardar na garagem os obstáculos. A ASSG organizou alguns campeonatos de skate entre 1988 e 1989 que foram muito importantes para a História do skate no RJ.

Bom que se diga, que na virada da década de 1980 até meados da década de 1990, muita coisa mudou no skate e na sua própria prática. Daí que a cada nova fase, um certo tipo de pico se tornava mais frequentado por nós. De início as rampas de madeira da ASSG, e depois, o ringue de patinação do Campo de São Bento, as mini-ramps (Lauro Müller, Urca, Piratininga e Mutuá), a pista de São Francisco, além dos precários picos de rua.

A prática de skate intensa até 1997 foi interrompida por causa de trabalho e estudos, até que só foi ‘resgatada’ junto com a liberação do skate na Praça XV, em 2011.

Atuo como professor de Geografia desde 2001 e, de 2012 até os dias de hoje, trabalho como professor de Geografia na rede municipal do Rio de Janeiro.

A partir de 2013, juntamente com Nelson Diniz, que é também skatista, professor e pesquisador em Planejamento Urbano e Regional, iniciou-se um esforço analítico sobre a prática do skate. Em coautoria, publicamos e apresentamos ao debate acadêmico algumas elaborações nossas a respeito dos conflitos relativos à prática do skate em espaços públicos no Rio de Janeiro.

Fui recentemente aprovado no mestrado no Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ (PPGHC-UFRJ), na turma de 2021, com o projeto cujo título é: “O skate conquista o centro da cidade: Praça XV-RJ e Vale do Anhangabaú-SP em perspectiva comparada”.

2 – Explique como você teve a ideia de escrever este projeto de mestrado que foi aprovado na UFRJ e qual o seu objetivo?

A pesquisa sobre a prática do skate em espaços públicos nos permitiu identificar padrões de ação dos skatistas e dos gestores urbanos no caso da Praça XV, no Rio de Janeiro. De modo que, ao observar o que se passou no Vale do Anhangabaú, já se dispunha de alguns conceitos.

A ideia decorreu do interesse em identificar semelhanças e diferenças nos dois casos. O objetivo central do projeto é estabelecer uma perspectiva comparada dos padrões de ação dos skatistas organizados no Coletivo XV e no Salve o Vale nos processos de reivindicação de uso dos espaços públicos da Praça XV e do Vale do Anhangabaú.

Entre os objetivos específicos da pesquisa, um merece destaque: a discussão sobre a centralidade da categoria espaço público nos discursos dos dois casos considerados.

3 – Como você fará esta pesquisa? Fale um pouco sobre a questão do método.

O projeto está sob orientação do Professor Dr. Fernando Luiz Vale Castro e sob co-orientação da Professora Drª Andréa Casa Nova Maia, o que significa algumas mudanças de estratégia no decorrer do curso. De toda forma, o plano inclui os seguintes procedimentos: revisão da literatura, realização de entrevistas, trabalhos de campo de observação participante, pesquisa iconográfica e audiovisual.

A análise dos Decretos e dos Planos Diretores subsidiará o estabelecimento dos marcos temporais, bem como a elaboração dos questionários das entrevistas.

Como se trata de um processo recente e de pouca sistematização a respeito, o recurso das entrevistas é de grande relevância. Pretende-se realizar entrevistas com os skatistas responsáveis pela organização do Coletivo XV e do Salve o Vale, com representantes das instituições da administração públicas envolvidas nos processos de negociação (Secretaria de Parques e Jardins e Instituo Nacional do Patrimônio Histórico, no Rio de Janeiro e Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras, em São Paulo), bem como com representantes das empresas responsáveis pela construção dos mobiliários urbanos adicionados à Praça XV.

A observação participante é o recurso ao qual se recorrer para o registro da dinâmica da normalidade dos espaços públicos considerados. Pretende-se adotar a prática do registro em diário de campo para a tomada de notas a respeito, por exemplo, do convívio entre skatistas e demais frequentadores e transeuntes tanto da Praça XV, quanto do Vale do Anhangabaú.

Através dos registros fotográficos e audiovisuais, tanto das mídias especializadas, quanto dos acervos particulares, pretende-se reconstituir a trajetória da ocupação dos skatistas na Praça XV e no Vale do Anhangabaú.

4 – O espaço final é seu. Deixe algum recado para quem está lendo essa entrevista e pretende pesquisar skate na Universidade.

Muito obrigado pela recepção e pela consideração à pesquisa.

Diria que o mais importante é definir qual aspecto do skate se vai investigar. Com o objeto bem definido é que se elabora uma questão para ser pesquisada. Um exemplo banal, no caso da História do skate: “Quais manobras já mandaram subindo o corrimão tal?” Nenhuma das manobras descendo o corrimão responde à questão.

No mais, diria que a recepção é sempre muito boa quando se apresenta a ideia a outros pesquisadores.

O caminho está minimamente pavimentado, na medida em que há, tanto no Brasil quanto em outros países, uma produção considerada válida para se tomar por referência.

SAIBA MAIS

“O que o skate pode dizer sobre o ensino de geografia?”

Luciano Hermes da Silva e Nelson Diniz (2014)

https://www.cp2.g12.br/ojs/index.php/GIRAMUNDO/article/view/50

“Contra-uso skatista de espaços públicos no Rio de Janeiro”

Nelson Diniz e Luciano Hermes da Silva

http://emetropolis.net/artigo/202?name=contra-uso-skatista-de-espacos-publicos-no-rio-de-janeiro


[1] Publicado originalmente, com pequenas alterações, no site da revista CemporcentoSKATE.


Europeus e cariocas nos momentos iniciais do esporte em São Paulo

19/09/2020

Por Flávia da Cruz Santos
flacruz.santos@gmail.com

 

As primeiras experiências esportivas desenvolvidas em São Paulo, não constituíam, ainda, o chamado campo esportivo, mas foram fundamentais para o desenvolvimento deste, anos mais tarde. Tais experiências, no entanto, eram compreendidas explicitamente, desde os seus primórdios, como divertimento. O fim dos esportes era promover alegria e prazer.

Os imigrantes europeus, presentes na cidade desde a sua fundação, tiveram papel central nesse processo de desenvolvimento dos esportes. Eles foram os responsáveis pelas presenças iniciais das duas primeiras práticas esportivas que surgiram em São Paulo, a esgrima e o críquete.

.

O Estado de São Paulo, 20 de novembro de 1913

.

Os mestres de esgrima, responsáveis pelas pioneiras presenças dessa prática nos jornais paulistanos, eram europeus: alemães, italianos e franceses. Foi com professores europeus que os paulistanos aprenderam a esgrima, e foi por influência inglesa que eles desejaram aprendê-la. A mesma presença determinante dos europeus, pode ser sentida nos momentos iniciais do críquete na cidade. Eles foram praticantes e organizadores da prática, cujas primeiras aparições nos jornais se deram, em língua inglesa, em 1872.

.

A Província de São Paulo, 31 de agosto de 1888

.

Os europeus, principalmente os ingleses e os franceses, foram decisivos para a chegada e o desenvolvimento dos esportes em São Paulo. Não apenas uma referência ou um modelo a ser seguido, eles foram os fomentadores, aqueles que desenvolveram as pioneiras iniciativas esportivas na capital paulista e que seguiram implementando e fazendo avançar o esporte na cidade.

A tese de que o Rio de Janeiro foi o ponto de onde o esporte se irradiou para o Brasil, se confirma aqui, no caso de São Paulo, apenas parcialmente. As relações comerciais, políticas e culturais entre estas duas cidades vinham de muito tempo, favorecidas pela proximidade geográfica entre elas.

.

Correio Paulistano, 27 de maio de 1875

.

Era noticiado nos periódicos paulistanos o desenvolvimento esportivo carioca, indicando que o mesmo deveria se dar em São Paulo. O Rio foi uma referência a ser seguida, e também a ser combatida. Combatida não no sentido de ser negada, mas de ser superada. A referência mesmo era a Europa. Com a intenção de se aproximar ao máximo desse continente, é que a corte deveria ser superada. O gosto pelos esportes devia ser maior em São Paulo do que na corte, a performance dos paulistanos também devia ser melhor do que a dos cariocas.

Mas os paulistanos e cariocas foram importantes uns para os outros, no que tange ao desenvolvimento esportivo. Os primeiros adversários dos paulistanos foram os cariocas. As equipes viajavam de uma província para a outra para se enfrentar, o que contribuiu para o desenvolvimento esportivo em ambas as cidades.

.


SKATE POÉTICO: UM PROJETO SOCIAL NA PERIFERIA DE SÃO PAULO/SP

03/09/2020

Por Leonardo Brandão

(Historiador/FURB)

Skate e Poesia podem andar – ou deslizar – juntos! Esta é a ideia de um projeto social surgido de um skatista, professor de Educação Física e morador do Jardim Romano, na periferia da cidade de São Paulo. Seu nome é Nanderson Silveira dos Santos, mais conhecido como Nando. Segundo ele, o Projeto Skate Poético (PROSKAP) começou no ano de 2016, inicialmente com a ideia de oferecer aulas de skate e produção de poesias para crianças e adolescentes do Jardim Romano, bairro carente situado no extremo leste da periferia de São Paulo.

Nando explica que, para entendermos melhor a gênese deste projeto, é necessário retornar alguns anos no tempo, ou melhor, ao ano de 2004.  Pois foi neste ano que ocorreu as eleições para a prefeitura de São Paulo, sendo que a atual prefeita à época, Marta Suplicy, prometeu, caso fosse reeleita, a construção do Centro Educacional Unificado (CEU) Três Pontes, no bairro Jardim Romano. Entretanto, esse fato não se consolidou naquele momento em função da vitória do candidato da oposição, José Serra (PSDB). Mesmo assim, essa promessa, segundo ele, fez surgir o sonho de uma pista de skate no local, uma vez que todos CEUs construídos pelas administrações petistas contavam com pistas de skate em suas dependências.

Passados quatro anos, no dia 31 de agosto de 2008, fora inaugurado o CEU Três Pontes, sob a administração do vice de Serra, Gilberto Kassab (DEM), mas sem nenhuma pista de skate. A partir dessa conjuntura, surgiu um movimento dos skatistas locais com o objetivo de reivindicar um espaço qualquer para à prática do skate na região. Porém, somente em 2014, depois de muito diálogo e insistência, foi cedido pela diretoria do CEU Três Pontes uma quadra poliesportiva e um espaço para guardar os obstáculos de skate (rampas, “caixote”, corrimãos etc.) feitos de madeira.

Assim, foi nesse contexto de luta por espaço e reconhecimento que surgiu a ideia de dar aulas de skate e, por conseguinte, em 2016, foi desenvolvido o Projeto Skate Poético. Nesta época, Nando explica que estava escrevendo com frequência poesias e também frequentando Saraus de “poesias periféricas” em seu bairro; e em função disso, embora a ideia ainda estivesse pouco madura, surgiu o objetivo de unir skate com a prática da leitura de poesias, visto que esse gênero dá mais liberdade e é mais fácil de ser trabalhado com crianças e adolescentes, pois permite ir além da norma culta da língua portuguesa (recurso conhecido como licença poética).

Na época, o projeto já contava com oficinas de customização de skates, rodas de conversa, saraus e pequenos campeonatos de skate. Contudo, as atividades aconteciam de maneira muito esporádica. Foi somente em 2017 que o projeto começou a ter um calendário organizado. Isso ocorreu quando Kevin Nascimento da Silva (skatista e professor de História no município) passou a integrar o projeto Skate Poético e, com a sua ajuda, foi possível revisar o projeto original e incluir mais oficinas, como a de mercenária e de produção de “shapes sustentáveis”, essa última ainda em fase de experimentação. Neste mesmo ano, logo após a entrada de Kevin, Rafael Souza Alves Diniz (skatista e também professor de História do município) se voluntariou a participar, fechando a equipe atual. De lá para cá, o projeto amadureceu, expandiu e conseguiu se sustentar com periodicidade e um bom número de participantes fixos.

Atualmente, Nando conta que ainda utilizam a quadra poliesportiva do CEU Três Pontes para as aulas de skate, rodas de conversa, leitura e interpretação de textos, sendo que o projeto passou a contar também com oficinas de marcenaria (em que os alunos aprendem a construir seus próprios obstáculos de skate); oficinas de customização de lixas (na qual os alunos aprendem a criar estêncil com uso de ferramentas manuais e digitais); oficinas de fabricação de shapes sustentáveis, jogos e brincadeiras.

Sobre os desafios atuais para a continuidade deste projeto, Nando explica que como se trata de um projeto independente e que atua no extremo leste da periferia de São Paulo, eles não contam com nenhum apoio governamental, nenhuma política de fomento ao esporte, lazer e educação e nem com recursos privados. Evidentemente, em virtude disso, eles tem algumas dificuldades, sobretudo para a aquisição dos utensílios próprios de skate, como shapes, rodas e equipamentos de segurança, pois aos poucos, os skates montados com peças usadas já não são mais suficientes para atender a demanda crescente de novos alunos. Em razão disso, ele explica que separam os alunos em grupos, de acordo com a idade e nível de habilidade, e fazem um rodízio para o uso dos skates. Também faltam livros suficientes e significativos para atividades de leitura e escrita, bem como materiais para atividades lúdico-recreativas. A maior parte dos materiais que usamos, explica Nando, como poemas impressos em papel sulfite, cones esportivos, bambolês, skates e equipamentos de segurança, são comprados com dinheiro do próprio bolso e/ou com rifas que organizamos junto à comunidade.

A falta de apoio prejudica, por exemplo, quando eles se organizam para fazer passeios às pistas de skate de outros bairros ou em museus, pois nem todos alunos conseguem ir, devido à falta de dinheiro para a passagem de trem e/ou ônibus. Por isso, este ano começaram a buscar informações de como formalizar e regularizar o projeto com o intuito de conseguir recursos públicos e/ou privados para a aquisição de skates, equipamentos de segurança, livros de poemas/poesias e outros materiais para a realização das demais atividades. Por esse motivo, recentemente responderam a um formulário realizado pela Confederação Brasileira de Skate e a ONG Social Skate, o qual tinha como objetivo mapear, conhecer e colaborar com ações sociais em todo Brasil que utilizam skate como ferramenta de inclusão social.

A seguir, apresentamos algumas fotos do Projeto Skate Poético cedidas e legendadas pelo próprio Nando e que estão disponíveis no Instagram @projetoskatepoetico de modo público.

Imagem 1: Oficina experimental no recreio do CEU Três Pontes.

 

Imagem 2: Aula de “tail drop” na rampa reta.

 

Imagem 3: Aluna do Projeto trabalha equilíbrio numa gangorra proprioceptiva.

 

Imagem 4: Aula de ‘rolamento’ (quedas) com skate.

Imagem 5: Roda de conversa sobre diversidade e respeito às diferenças

Para ajudar esse projeto com doação de livros, peças de skate, equipamentos de proteção e/ou ver mais fotos das atividades realizadas, siga e entre em contato com seus idealizadores através do Instagram @projetoskatepoetico


Momentos iniciais do turfe em São Paulo

16/06/2019

Por Flávia da Cruz Santos
flacruz.santos@gmail.com

Foi no último quartel do século XIX que o turfe se organizou na capital paulista, ocupando lugar de destaque nas colunas esportivas dos jornais. Durante décadas ele foi mesmo o único esporte a figurar em tal coluna no jornal A Província de São Paulo (que com a República passou a se chamar O Estado de São Paulo).

O turfe, assim como a equitação, era uma prática das elites, a elas ligada e por elas valorizada. As famílias tradicionais paulistanas, além de frequentarem as corridas eram proprietárias dos cavalos corredores. Elas adquiriam cavalos direto da Europa, para correr em São Paulo, e as apostas efetuadas nessas corridas movimentavam altos valores monetários. Assim, além de ser um animal valorizado devido à sua importância na realização de trabalhos cotidianos, o cavalo era um animal valorizado também por estar ligado às práticas de divertimento das elites, apesar de o argumento utilizado ser o de melhoramento da raça cavalar.

Em 22 de outubro de 1876 a capital paulista inaugurou o seu primeiro espaço destinado às corridas de cavalos: o Hipódromo Paulistano[1]. No entanto, há indícios de que antes do hipódromo as corridas de cavalos já aconteciam em espaços improvisados na cidade, mas nos faltam dados. E há indícios também da existência de um outro prado, o Derby Club, que parece ter funcionado a partir do ano de 1891[2].

.

.

As corridas que ocorreram no Hipódromo Paulistano foram organizadas, sobretudo, pelo Jockey Club, fundado em 1875 com o nome Club de Corridas Paulistano. Essa associação abria inscrições para as corridas uma ou duas semanas antes das mesmas acontecerem. Era quando então, os proprietários dos cavalos podiam inscrever seus animais e seus jóqueis. Os sócios do clube recebiam ingressos para assistir às corridas, enquanto os demais interessados deviam compra-los.

Raphael Aguiar Paes de Barros, depois de voltar de uma viagem à Inglaterra, se uniu a mais quatorze membros da seleta elite paulistana para fundar tal clube. Eles eram filhos de senadores, de barões, de ricos fazendeiros de café. Raphael era filho do Barão de Itu e neto do Barão de Iguapé. Um outro fundador do clube de corridas foi Antônio da Silva Prado, que a essa época também se tornara empresário do Teatro São José, e era membro de uma das famílias mais ricas da cidade. Raphael de Barros havia estudado na Inglaterra, e Antônio Prado na França.

Ser membro da elite não significava apenas possuir muito dinheiro e títulos aristocráticos, era preciso também estar afinado com os padrões comportamentais europeus. Daí o envolvimento da elite paulistana na criação de sociedades de caráter cultural. Era uma estratégia de legitimação social, além de ser uma forma de obter lucros monetários.

As provas no hipódromo aconteciam aos domingos, sem, no entanto, uma constância regular ou calendário fixo. Em alguns anos houve corridas distribuídas ao longo de todos os meses, em outros, entretanto, as corridas se concentraram em alguns meses. Em 1891, por exemplo, o calendário de corridas só teve início em maio, mas perdurou até dezembro. Enquanto em 1895, as corridas aconteceram de janeiro a abril, sofreram interrupção em maio, só voltando a ser promovidas em julho.

 O motivo, apresentado pelos jornais, das irregularidades da presença do turfe na cidade, era a falta de animais adequados[1]. Quando o Jockey Club realizava corridas com poucos cavalos inscritos, como fez em 1894, o volume de apostas era menor, em relação às corridas com número maior de animais.

Assim, ao invés de obter lucro, como era comum acontecer em associações dessa natureza, o Jockey Club obteve prejuízos. E sem lucro, cessava a importação de parelhas (como também são chamados os cavalos corredores), o que muito impactava o turfe, já que os cavalos de corrida nacionais não apresentavam a mesma qualidade e desempenho dos importados. Menor qualidade dos animais significava menores apostas.

Numa tentativa de resolver o problema, houve a importação de cavalos por membros da elite paulistana, como foi o caso de Francisco de Queiroz Netto, que realizou importações entre 1894 e 1895. No entanto, tal iniciativa não foi suficiente, pois nos anos seguintes as corridas continuaram a acontecer de modo irregular.

As dificuldades financeiras enfrentadas pelo turfe eram tamanhas, que os membros do Jockey Club pediram auxílio ao poder estadual, que atendendo à solicitação, passou a financiar uma prova de turfe por ano. Era o chamado Grande Prêmio Estado de São Paulo. Não era a primeira vez, no entanto, que os poderes públicos auxiliavam tal associação. Na época do Império, os cofres provinciais também financiaram um prêmio anual.

.

Hipódromo Paulistano, s/d. Fonte: < http://www.jockeysp.com.br/historia.asp >

.

Apesar de ser uma prática ligada às elites e de possuir status, o turfe foi alvo de críticas por ser um esporte envolvendo apostas. Essas críticas se deram em um momento, 1895, em que a Câmara Municipal proibia os frontões justamente por realizarem apostas, e não agia do mesmo modo com as corridas de cavalo. Os adeptos do jogo da pela, então, reagiram. E como dizem que a melhor defesa é o ataque, eles foram aos jornais atacando não apenas a Câmara por tal atitude, mas também o Jockey Club. Se as elites podiam realizar apostas em suas práticas esportivas, porque as camadas populares não podiam fazer o mesmo?

Para se defender, o Jockey Club e os adeptos das corridas de cavalo sempre diziam que possuíam um objetivo nobre: o de desenvolver a raça cavalar brasileira, o que era chamado por eles de indústria pastoril. Objetivo que, aliás, diziam eles, estava muito de acordo com o momento vivido por São Paulo, de expansão, desenvolvimento e progresso industrial.

Quando em 1900, um deputado finalmente incluiu tal sociedade na lista daquelas que exploravam o jogo na capital paulista, o jornal O Estado de São Paulo saiu em sua defesa[1]. Houve discussão entre os jornais Correio Paulistano e O Estado de São Paulo quanto a essa questão. O Estadão criticava os frontões e apoiava a Câmara na decisão de proibi-los, enquanto o Correio, fazia exatamente o oposto: apoiava os frontões e criticava a proibição da Câmara. Isso era uma mostra dos interesses defendidos por esses jornais.

O ano de 1900 não foi mesmo um bom ano para o turfe paulistano. As corridas foram esparsas, houve uma em janeiro, outra em junho e somente a partir de outubro é que elas tiveram alguma frequência até dezembro. Em 1901 o Jockey Club mais uma vez recorreu aos poderes públicos, dessa vez municipais, que financiaram uma prova, intitulada Grande Prêmio Municipal. Essa prova continuou acontecendo nos anos que seguiram, mas não foi suficiente para devolver ao turfe o sucesso dos primeiros anos.

O turfe paulistano fechou a primeira década do século XX em crise. Suas receitas não eram suficientes sequer para arcar com as despesas do hipódromo e do Jockey Club Paulistano, que a essa altura devia impostos, corridas eram canceladas devido ao pequeno número de cavalos inscritos, e o público já não tinha o mesmo interesse de outrora, comparecendo pouco.

Mas foi entre altos e baixos que o turfe se fixou na capital paulista. Ele surgiu em um momento de grandes transformações não apenas para São Paulo, mas para toda a nação. Atravessou mudanças sociais, culturais, econômicas e políticas. Viveu o momento em que a cidade abandonava definitivamente sua condição de pouca expressividade para se tornar a maior metrópole do país.

Atravessou a transição do Estado imperial escravocrata para a república de trabalho assalariado. Viveu os momentos prósperos do café, e também seus momentos de crise, que fizeram com que alguns de seus adeptos e promotores deixassem a condição de elite para se tornarem membros da classe média. E foi em meio a esse contexto efervescente de mudanças, que o turfe passou a fazer parte da vida de São Paulo, estando até hoje presente no cotidiano da cidade.

—-xxxxxx

[1] O Estado de S. Paulo, 9 de janeiro de 1895, p. 1.

[1] O Estado de S. Paulo, 28 de junho de 1891, p. 2; O Estado de S. Paulo, 24 de janeiro de 1895, p. 1.

[1] A Província de S. Paulo, 15 de outubro de 1876, p. 4.

[2] O Estado de S. Paulo, 18 de agosto de 1891, p. 2.

.


Esporte em São Paulo

12/03/2018

Por Flávia da Cruz Santos (flacruz.santos@gmail.com)

Cidade atualmente instigante, sobre a qual abundam estudos que tratam de sua contemporaneidade, São Paulo tem seu passado mal conhecido quando o tema são os divertimentos em geral e os divertimentos esportivos, mais especificamente. Uma das maiores potencias esportivas nacionais, a capital paulista tem os primórdios de seus esportes quase desconhecidos.

Soa estranha tal afirmação, que pode ser facilmente contestada com o argumento de que existem sim estudos, não muitos, sobre os esportes na capital paulista na transição dos séculos 19 e 20, momento tido com inicial na configuração do campo esportivo brasileiro. Algumas questões, no entanto, são: os indícios que nos ajudariam a compreender tal fenômeno não estariam presentes na cidade desde momentos anteriores? Não valeria a pena estudá-los? Porque toma-se como certa a ideia de que não há esporte em São Paulo antes dessa data?

Parte da resposta a essas questões, reside no fato de que a industrialização, tida como sinônimo de modernidade, é considerada condição para a configuração do campo esportivo (tema abordado no post anterior, por Rafael Fortes). Como antes da virada do século, a industrialização em São Paulo era insipiente, não se fala, ou pouco se fala, em esporte antes desse momento.

Mais do que uma cidade de industrialização insipiente, a fama da São Paulo oitocentista não é nada boa, e tão pouco demostra qualquer continuidade com o que sabemos da cidade que nos é contemporânea. Ao contrário, nos faz pensar que se trata mesmo de outra cidade:

Daqui a cinco minutos podemos estar à vista da cidade. Há de vê-la desenhando no céu suas torres escuras e seus casebres tão pretos de noite como de dia, iluminada, mas sombria como uma eça de enterro.

(…)

Demais, essa terra é devassa como uma cidade, insípida como uma vila, e pobre como uma aldeia. Se não estás reduzido a dar-te ao pagode, a suicidar-te de spleen[1], ou alumiar-te o rolo, não entres lá. É a monotonia do tédio. Até as calçadas![2]

Muitos são aqueles que viveram a São Paulo daquele tempo, ou que ao menos lá estiveram, e que nos deixaram relatos sombrios como este, de Álvares de Azevedo, importante nome da dramaturgia paulistana. Exemplos muito conhecidos e usados na historiografia são os relatos de viajantes como os alemães Spix, Martius e Rugendas, os franceses Alcide D’Orbigny e Saint-Hilaire, e o inglês Jonh Mawe. Informados por certos valores e sentimentos, eles possuíam compreensão nada positiva da cidade. Compreensão essa que se disseminou pelos estudos que focalizam tal contexto.

Essa São Paulo não convida o historiador do esporte a investigá-la, não é nem um pouco atraente ou condizente com o que se espera de uma cidade em que há esporte. E aqui outra questão: não deveríamos desconfiar dessa versão, desconfiar que a atual, e já há algum tempo, fervilhante cidade possa ter sido forjada, de repente, em um curto espaço de tempo?

Soma-se a essa compreensão de São Paulo e ao pressuposto da industrialização, o fato de que é em 1875 que surgem agremiações esportivas na cidade, como o Jockey Club e o São Paulo Críquete Clube, e que no ano seguinte foi inaugurado o primeiro hipódromo paulistano. Daí para frente as novidades esportivas não param.

Antes disso, no entanto, numa São Paulo que ainda construía as condições para sua industrialização, os divertimentos esportivos já estavam presentes. Em 1864 já se jogava críquete numa chácara no Campo Redondo[3]. No ano da chegada das ferrovias, 1868, por exemplo, foi constituído um clube de tiro, sobre o qual pouco se sabe. Ele destinava-se à prática do tiro com pistola ao alvo, que era tido como “um novo e útil exercício”[4]. As regatas também já faziam parte do cotidiano da cidade a essa altura, ainda que desenvolvidas no porto de Santos, para onde grande quantidade de paulistanos se dirigia.

Não haveria, então, elementos mais importantes do que a industrialização para o desenvolvimento dos esportes na capital paulista? Não seria tal capital mais dinâmica do que se costuma apregoar? Convido o/a leitor/a, nesse primeiro momento, a me ajudar a pensar na pertinência dessas questões.

————–xxxxxxx

[1] Spleen foi termo difundido por Charles Baudelaire, e significa um estado de desencanto e melancolia, que resulta em apatia e indiferença e pode levar à transgressão e perversão. Caracteriza o ser romântico (ANFORA, pp. 13-15).

[2] AZEVEDO, Álvares de.  Macário. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. Disponível em: <http://www.aliteratura.kit.net&gt;. Acesso em: 11 dez. 2014, grifo no original.

[3] Correio Paulistano, 6 de setembro de 1864, p. 2.

[4] Correio Paulistano, 1 de abril de 1868, p. 1.

.


A São Silvestre e São Paulo

30/12/2013

O último post no ano de 2013 ficou a meu encargo. Como era de se esperar, minha primeira ideia foi fazer uma retrospectiva de 2013, como as milhares de retrospectivas que invadem as TVs e monitores de todos, por tudo o quanto é canto.  No entanto, tenho uma particularidade nesse sentido: odeio retrospectivas de fim de ano. Assim, minha primeira ideia não seria aproveitada.

Decidi então escrever sobre a corrida de rua de maior longevidade no país, a São Silvestre, realizada todo dia 31 de dezembro, desde 1924. Completando neste dia 31 de dezembro 89 anos, a corrida foi realizada até mesmo no ano de 1932, após a derrota paulista na chamada Revolução Constitucionalista, e durante os anos da Segunda Guerra Mundial.

A corrida foi criada por Cásper Líbero, jornalista paulista que criou A Gazeta em 1918, de onde surgiria o semanário A Gazeta Esportiva, em 1928. Muito ligado aos esportes, Líbero teria presenciado uma corrida noturna durante uma viagem à França, em 1924, e resolveu patrocinar uma corrida no último dia do mesmo ano, em São Paulo. A corrida veio depois a ser batizada com o nome do santo homenageado no dia 31, São Silvestre. Com um percurso inicial de 8,8 km, a corrida não foi reconhecida como uma prova oficial pela Federação Internacional de Atletismo até o ano de 1991, quando passou a ter um percurso de 15km. Talvez por seu pequeno trajeto, ou pela data festiva, a corrida tem também como atrativo pessoas com fantasias e muita descontração de grande parte dos participantes, um de seus charmes especiais.

No entanto, não é exatamente com a história da São Silvestre que este post se preocupa. Pretendo, na verdade, oferecer um pequeno olhar sobre a relação entre a corrida São Silvestre e a identidade da cidade de São Paulo. 

O esporte e identidades locais

Não deve ser novidade para o leitor deste blogue que o esporte está intimamente ligado a profundos sentimentos de identificação dos indivíduos. Foram tantos os artigos aqui já postados sobre isso que não tenho nem mais a conta. No entanto, não me recordo de um póst que abordasse de forma mais direta a relação entre o esporte (no caso, uma prova esportiva) e a identidade da cidade. A visão do evento esportivo como o que Pierre Nora chamou de lieu de memóire, ou lugar de memória; lugares (físicos ou não) em que a consciência histórica de um povo é construída. Os lugares de memória podem ser, assim, monumentos, personalidades, edifícios, festividades, ou outros marcos que sustentam uma visão em comum de um passado, ajudando a materializar uma identidade compartilhada. E eventos esportivos podem funcionar nesse sentido (Para mais informações, ver artigo de Pierre Nora, na revista Projeto História, n. 10).

A São Silvestre apareceria assim como um dos marcos da memória paulistana. Mas não é apenas sua realização e repetição, já por quase 90 anos, que a imbui de tal representatividade. Podemos começar pelo trajeto atual da corrida (disponível no site oficial do evento).

Image

Percurso da São Silvestre em 2013, disponível em http://www.saosilvestre.com.br/percurso.

Um olhar um pouco mais atento pode facilmente observar que diversos pontos chave para a identidade paulistana são “visitados” pela São Silvestre: o MASP, o Memorial da América Latina, o Teatro Municipal, a Praça da República, o estádio do Pacaembu, o Viaduto do Chá e a prefeitura da cidade, com a chegada em frente à Gazeta (Fundação Cásper Líbero), em homenagem ao criador do evento.

Tal mobilização de símbolos não deve ser vista como algo acidental, ainda mais nos dias de hoje, quando a transmissão da corrida pela televisão é tão significativa. A imagem a ser transmitida de São Paulo é a da cidade do MASP, do Teatro Municipal, com seu marco histórico no viaduto do Chá e o esportivo no Pacaembu. Transmite-se uma imagem selecionada da cidade, que será vista por milhares, e será compartilhada por muitos como a imagem de São Paulo. 

Image

O MASP e a São Silvestre. Fonte: http://fotos.estadao.com.br

Ao assistir a corrida, lembre-se que ela não é famosa pela dificuldade de seus parcos 15 km, mas pela sua “tradição” e pela imagem que representa da cidade de São Paulo. Esse fato não diminui sua importância. Na verdade, ele coloca a São Silvestre ao lado de eventos esportivos de grande renome no mundo, como o Tour de France ou as 500 milhas de Indianápolis; ela se torna um evento que marca sua cidade, ou seu país, se tornando um símbolo dela. Só que nas outras, não encontraríamos o the Flash.

Image

 

 

 


O Estado e o Jockey Club: relações para a formação de um monopólio

20/08/2012

Por João Malaia

Como um clube esportivo consegue se transformar em um grande centro de referência em uma cidade, ou em um país? Como os grandes clubes esportivos se tornaram grandes?

Essas são perguntas que exigem uma resposta bastante complexa que envolve questões políticas e econômicas. Se os empreendedores precisam fazer investimentos em estádios e atletas de ponta para vencerem a concorrência, apenas o dinheiro não seria suficiente para fazer com que uma agremiação se torne grande. Além do dinheiro, se torna necessário costurar relações políticas com a chamada grande imprensa e com pessoas de relevância no Estado.

Para o post de hoje, apresento uma das primeiras agremiações a conseguir costurar relações com a imprensa e o Estado brasileiro, tornando-se um dos clubes mais ricos e mais importantes do país no final do século XIX e início do XX. E nosso foco recai justamente na questão política.

É já sabido que, desde os anos iniciais da segunda metade do século XIX, até mesmo o Imperador D. Pedro II se fazia presente em corridas de cavalo e outros eventos esportivos. Abaixo, o cartaz de uma prova de regatas em Niterói com a presença de Sua Majestade D. Pedro II, em 1868:

Image

Já estabelecido como um dos dois maiores clubes, ao lado do Derby Club, o Jockey tinha uma estrutura excelente para a realização de corridas. Um prado formidável com grandes pistas e arquibancadas em frente à estação de trem com o mesmo nome do clube, um público fidedigno que chegava a realizar mais de 10 mil apostas em uma só corrida, oferecendo os maiores prêmios a proprietários de cavalos e cavaleiros, o clube vinha se tornando um dos principais centros de recreação esportiva da então Capital Federal.

Image

No entanto, havia outros clubes de corridas na concorrência que precisavam ser derrotados, como o Prado Villa Izabel:

Image

A par dos investimentos em infraestrutura, em mão-de-obra e em prêmios, o clube procurava expor ao máximo suas corridas nos principais periódicos da cidade, bem como criar facilidades para aqueles que quisessem se dirigir ao prado do Jockey. Não são poucos os avisos publicados no Diário Oficial sobre as facilidades criadas pelo Jockey Club para seus espectadores:

Para conhecimento do público, declara-se que, domingo, 5 do corrente [outubro de 1890], por ocasião das corridas do Prado Fluminense, haverá trens especiaes directos para conducção de passageiros, desde ás 10 horas da manhã até a 1 hora e 30 minutos da tarde e depois de concluídas as corridas. Os trens especiaes não pararão nas estações S. Diogo, S. Christovão e Madureira. O preço da passagem de ida e volta, sem distinção de classe, é de $500 (Diario Oficial, 4 de outubro de 1890, p. 4.434). Notícias como essas eram comuns para anunciar àqueles que simpatizavam com a atividade turfística sobre as facilidades de transporte para se chegar aos recintos, principalmente de clubes como o Jockey e o Derby.

No entanto, exposição na imprensa, facilidades de transporte e investimentos em infraestrutura não eram suficientes para que o Jockey e o Derby conseguissem concentrar o capital e monopolizar o mercado. Tornava-se imperioso ter como aliado o Estado e isso só seria conseguido se tais clubes conseguissem provar que tinham uma validade social maior que os outros.

As ligações dos membros do Jockey Club com o Estado brasileiro fez com que esta agremiação concentrasse as atenções das autoridades e, obviamente, algumas facilidades só alcançadas para quem tem relacionamento íntimo com figuras de grande poder. A brecha encontrada pelo Jockey para que fosse considerado uma espécie de parceiro do governo brasileiro foi a de se auto afirmar como os únicos capazes de organizar e melhorar a raça dos animais brasileiros, principalmente as raças cavalares.

O clube realizou, a partir de 1893, exposições anuais de raças cavalares nacionais. De acordo com o relatório do enviado do governo que foi jurado do concurso, José Joaquim de Negreiros Sayão Lobato, que se definia como uma pessoa “sem estudos especiaes de zootechnia, mas apenas simples e despretensioso amador do sport”, a pouca concorrência de animais se devia a dois fatores, ambos econômicos. O primeiro, a falta de prêmios em dinheiro para os primeiros colocados e o segundo, a dificuldade e os elevados custos com de locomoção dos animais por meios de transporte. Nas palavras de Sayão Lobato, o representante do Ministro de Estado e dos Negócios Interiores, General Bibiano Fontoura.  Para além das medalhas de ouro, prata e bronze ao melhor cavalo, à melhor égua e melhor potro, faltavam prêmios em dinheiro “que atraísse os proprietários de animais pelo incentivo do lucro, compensando de alguma sorte muitas despesas e mesmo perigos que há na viagem de animais”. O representante do governo elogiava a atitude do Jockey Club e fazia um pedido ao governo:

“Parece-me que o governo poderia animar taes exposições concedendo condução gratuita nas vias de transporte fluviais e terrestres do Estado, ou por ele subvencionadas ou garantidas, e concedendo um prêmio pecuniário ao melhor produto de puro sangue”.

Afirmava ainda que tais “favores” seriam limitados às exposições e não poderiam das lugar a “abusos, nem a grandes despesas para os cofres públicos”. Justificava a necessidade da atenção especial para a necessidade do governo contribuir para o desenvolvimento de uma “indústria a que o governo não pode ser indiferente” (Diário Official. Diretoria Geral da Indústria / Indústria Pastoril. 22 de maio de 1894, p. 676.).

Dois anos depois, o mesmo José Joaquim de Negreiros Sayão Lobato, foi novamente designado para representar o governo na IV Exposição Nacional do Jockey Club, mais uma vez como jurado do concurso, mesmo sem os conhecimentos devidos para tal, como o mesmo afirmara anteriormente. Lobato insistia na mesma tecla. Reafirmava as dificuldades e os altos custos de transporte de animais caríssimos, como grande impedidor de uma maior popularidade do evento. E clamava novamente para o que já havia afirmado no relatório de dois anos antes: a necessidade do governo em ajudar o evento com transporte gratuito aos expositores nas vias férreas e fluviais públicas e concedendo prêmios em dinheiro aos vencedores (Diário Official, 9 de junho de 1896, pp. 2.619-2.620).

Apenas em 1898 é que o governo autorizou a formação da Sociedade Animação da Indústria Pastoril, que passaria a ser responsável pela organização das exposições anuais das raças nacionais cavalares, bovinas, muares e suínas. A sede da sociedade seria no Jockey e o clube deveria organizar um Stud Book em que deveria anotar os registros dos animais brasileiros.

Os prêmios passariam a ser pagos em dinheiro para os primeiros e segundos colocados entre as raças cavalares e bovinas, divididos em categorias de macho, fêmea e filhote. O dinheiro para o pagamento dos prêmios viria da criação de um novo imposto sobre o valor de cada bilhete de aposta que se fizesse nas casas de poules das sociedades de corridas, frontões, velódromos, jardins zoológicos e outros estabelecimentos congêneres. As sociedades de corrida “de forma recreativa” pagavam 1% do valor de cada bilhete como imposto. Já as “sociedades anônimas”, caso dos grandes clubes de corridas como o Jockey e o Derby, pagavam imposto de 2%. As demais sociedades e empresas, 3%. Do dinheiro arrecadado, um terço deveria ser destinado ao pagamento dos prêmios da Exposição Anual. O outro terço deveria ser usado para custeio da escola de veterinária e o outro para a criação de uma escola de equitação (Diario Official, Intendência Municipal/ Atos do Poder Executivo. 1º de janeiro de 1898, p. 9-10).

Na VIII Exposição, realizada em 1900, a lista de jurados do evento contava com o prefeito do Distrito Federal, Antonio Coelho Rodrigues, além de representantes do Jóquei Club, do Rio de Janeiro e de São Paulo, e do Derby Club carioca (Diario Official, 11 de agosto de 1900, p. 3490). A presença dessas figuras atestava a crescente importância que o evento ia ganhando com o passar dos anos.

No entanto, o apoio que clubes como o Jockey Club, tanto o paulista, quanto o carioca, recebiam do Estado chagava mesmo a incomodar figuras antigas e tradicionais da política brasileira. Na votação da lei orçamentária do Estado de São Paulo, o senador Ezequiel Ramos, propunha a suspensão da verba de 10:000$000 (dez contos de réis) destinada ao Jockey Club de São Paulo. Tais despesas, em sua visão, só atendia “a satisfação de necessidades privadas”. O senador argumentava que o serviço a que o clube de corridas se dizia prestar (melhorar a raça cavalar brasileira) não vinha sendo realizado. O clube havia se transformado “em um jogo esportivo de venda de poules onde os potentados, os poderosos da terra vão frequentemente satisfazer os seus legítimos desejos quanto a corridas de cavalo. […] Quando estamos fazendo rigoroso esforço para equilibrar o orçamento, quando chegamos a tirar da Biblioteca Pública as verbas necessárias para manter-se, vai o Estado contribuir para a sociedade do Jockey Club?!” (Diario Official de São Paulo, 18 de novembro de 1898, p. 25.292).

Image

Mesmo não sendo unanimidade entre políticos cariocas e paulistas, os clubes de corrida conseguiram apoio governamental para que pudessem conquistar e monopolizar seus mercados. Hoje, vimos apenas um exemplo do Jockey Club do Rio de Janeiro que, através da presença de figuras importantes da sociedade carioca, conseguiu atrair os investimentos do governo como legitimador das raças cavalares e bovinas no Brasil.

Essa foi uma das muitas estratégias do Jockey Club, que posteriormente se fundiria ao Derby Club, formando o Jockey Club Brasileiro e consolidando a monopolização da produção dos espetáculos turfísticos na cidade, a partir da década de 1930.

Ao analisarmos as estruturas que deram às atividades esportivas comercializáveis seu formato atual, precisamos estar atentos às investidas dos representantes dos grandes clubes e federações com o poder público. Já vimos em outra oportunidade como Arnaldo Guinle, presidente do Fluminense, passou a ser presidente da Confederação Brasileira de Desportes e se aproximou do presidente Epitácio Pessoa para levar os Jogos Sul-Americanos de 1919 e 1922 para dentro de seu clube, que se tornou um dos maiores centros esportivos da America Latina. Essas e outras histórias ainda estão para ser contadas.

E só para terminar: é no mínimo curioso ver o Derby e o Jockey combinando suas atividades com a Central do Brasil e fornecendo trens rápidos para os clubes, a preços únicos e com horários especiais. Curioso, pois vemos hoje os torcedores deixando de ir aos estádios de futebol no Brasil pelo fato dos jogos começarem às 22h e terminando após a meia-noite, quando já não há transporte público para voltar para casa. Evolução?


As “Seleções de Ouro” e a Literatura de Cordel – Quando duas artes populares se encontram

08/05/2023

Elcio Loureiro Cornelsen

Introdução – o encontro de duas artes populares

É de conhecimento geral que a Literatura de Cordel, sem dúvida uma das manifestações populares mais significativas da cultura brasileira, muito bem definida por Rosilene Alves de Melo (2019, p. 245) como “uma expressão da voz popular, da memória e da identidade nacional”, não ficou alheia à popularização do futebol no Brasil, sobretudo a partir da década de 1930.

Em pesquisa concluída recentemente, fizemos um mapeamento de 160 títulos em diversos acervos e publicações. De acordo com nosso inventário, as primeiras publicações datam das décadas de 1950 e 1960: Duelo Vasco x Flamengo: drama, comédia, futebol: história popular dedicada aos seus fãs e torcedores (Nilópolis, RJ: Gráfica Universal, 1954), de Pedro Ferreira dos Santos, A vitória do Brasil (sem local: sem editora, 195-), de João Severo de Lima, Copa do Mundo: 1962 (Nova Cruz, RN: Lux, 1962), de Raul de Carvalho, O Brasil na Copa do Mundo (sem local: sem editora, 1962), de Cuíca de Santo Amaro, e Peleja de Garrincha com Pelé (São Paulo: Prelúdio, 1965), de Antônio Teodoro dos Santos. Não obstante o fato de que este conjunto inicial de obras seja lacunar, já nos é possível identificar alguns temas: a rivalidade clubística entre o Clube de Regatas Vasco da Gama e o Flamengo de Futebol e Regatas já nos anos 1950; o interesse pelos craques da época; a participação da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1958 e 1962.

Todavia, foi na década de 1970 que se publicou o maior número de folhetos de cordel com o tema do futebol, em um total de 42 títulos inventariados. O tema que mais mobilizou cordelistas a escreverem seus folhetos de futebol nessa década, sem dúvida, foi a conquista do tricampeonato mundial pela Seleção Brasileira na Copa do México, em 1970. Ao todo, foram identificados em nosso inventário 14 folhetos com esse tema: Brasil tricampeão de futebol: história em versos dos três campeonatos (São Paulo: Prelúdio, 197-) e Brasil tricampeão do mundo (Aracaju, SE: Ed. do Autor, 1970), ambos de Manoel d’Almeida Filho; O Brasil tricampeão (sem local: A Voz da Poesia, 1970), de Mestre Azulão [nome artístico de José João dos Santos); Brasil 4×1 tricampeão mundial (Bezerros, PE: Ed. do Autor, 1970), de José Francisco Borges, Versos sobre as vitórias da Seleção Brasileira e a cheia de 70 (Recife, PE: Ed. do Autor, 1970), de Manoel Florentino Duarte; Romance da Copa de 70 (Gurupi, TO: Gráfica São Geraldo, 197-), de Napoleão Gomes Ferreira; A nossa Copa do Mundo 70 (Brasília, DF: Ed. do Autor, 1975), de Carolino Leóbas; Brasil 1958-1962-1970: tricampeão do mundo 4×1: campeão dos campeões (Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1970), de Palito; A vitória do Brasil: a Seleção Brasileira: o Brasil é Tricampeão (Campina Grande, PB: Ed. do Autor, 1970), de Antonio Patrício; Brasil tricampeão (Juazeiro do Norte, CE: Ed. do Autor, 197-), de Geraldo Amâncio Pereira; Brasil tricampeão: toda história da taça que é nossa pra sempre (Natal, RN: Clima, 1970), de W. Pinheiro; A vitória do Brasil na IX Copa do Mundo (sem local: Ed. do Autor, 197-), de João Severo da Silva; A Seleção Brasileira ganhou mais um canecão (4×1) (Recife, PE: Ed. do Autor, 1976) e Brasil campeão do mundo 1970: agora a taça é nossa (sem local: sem editora, 19–), ambos de José Soares.

Há décadas, alguns estudiosos da Literatura de Cordel têm afirmado que, inicialmente, o principal tema que despertou a atenção de cordelistas foram as conquistas da Seleção Brasileira. Dentre eles, figura Ivan Cavalcanti Proença, um dos pioneiros nos estudos sobre Literatura de Cordel nos anos 1970 e 1980. Na obra Futebol e palavra (1981), Proença dedica cinco preciosas páginas ao gênero cordel, como parte do capítulo intitulado “A Literatura no(do) Futebol” (PROENÇA, 1981, p. 9-51). Nas referidas páginas, descobrimos que folhetos foram publicados, pelo menos, desde a época da primeira conquista do título mundial pela Seleção Brasileira em 1958, na Suécia. De acordo com o autor,

[o]s poetas de cordel – […] – atentos ao rádio inicialmente, e às transmissões de TV, depois, registraram as façanhas de nossos jogadores: Liêdo Maranhão, folclorista de Pernambuco, coletou esse material, reunindo 18 folhetos de cordel, todos a partir do tema “O Brasil nas Copas” (matéria também publicada pelo ‘O Globo’). (PROENÇA, 1981, p. 17)

Ao todo, Ivan Cavalcanti Proença apresenta em seu livro fragmentos de oito folhetos de sete cordelistas diferentes: Francisco Ferreira de Paula, da Paraíba (Copa de 1958 e, respectivamente, Copa de 1970); José Severo de Lima, da Paraíba (Copa de 1958); Alípio Bispo dos Santos, da Bahia (Copa de 1962); Palito (Severino Marques de Souza), de Pernambuco (Copa de 1970); Manuel D’Almeida Filho, de Sergipe (Copa de 1970), Minelvino Francisco Silva, da Bahia (Copa de 1970); José Maria Rodrigues, do Rio de Janeiro (Copa de 1978). Em um estudo recente, a historiadora britânica Courtney Campbell indica outros dois folhetos de autoria de José Gomes e, respectivamente, de Manuel D’Almeida Filho, publicados no contexto do Mundial de 1958, disputado na Suécia:

A maior parte da literatura de cordel com tema de futebol narra um torneio vitorioso da Copa do Mundo ou sua partida final. ‘O Brasil na Copa do Mundo’ e ‘A vitória do Brasil na VI Copa do Mundo’, por exemplo, relatam cada partida, elogiam os jogadores e o técnico e afirmam que a conquista do Brasil na Copa de 1958 foi uma das maiores glórias do Brasil (Gomes, 1958; D’Almeida Filho, 1958). A rara menção de regiões evoca um sentimento de unidade nacional ao invés de divisão.[1] (CAMPBELL, 2019, p. 735; tradução nossa)

Outro pesquisador que menciona a presença do futebol como tema em folhetos de cordel é Raymond Cantel, ao afirmar que “[o] futebol é o único esporte que chama a atenção dos poetas do ‘cordel’ e apenas em ocasiões especiais, quando a Seleção Brasileira vence o campeonato mundial, por exemplo, quando aparecem numerosos folhetos fazendo vibrar os acordes patrióticos” (CANTEL, 1993, p. 73; tradução nossa).[2] Segundo o pesquisador francês, “[g]eralmente, são composições medíocres inspiradas em jornais. O mundo dos poetas de cordel quase não tem relação direta com o das grandes equipes internacionais” (CANTEL, 1993, p. 73; tradução nossa).[3]

De maneira precisa, como pudemos observar anteriormente, o escritor e jornalista Ivan Cavalcanti Proença, membro da Academia Carioca de Letras, reflete sobre o impacto que as conquistas dos três primeiros campeonatos mundiais tiveram sobre os cordelistas, a ponto de se tornarem tema de seus folhetos. Quase quatro décadas mais tarde, de maneira semelhante, Courtney Campbell também analisa e tira suas conclusões sobre o modo como cordelistas se dedicaram a tratar das memoráveis conquistas da Seleção Brasileira em seus folhetos:

Em 1962 e 1970, ambos os anos em que o Brasil ganhou a Copa do Mundo, essa forma de cordel reaparece, mas outras características da nacionalidade brasileira começaram a surgir. W. Pinheiro, em um cordel que detalha cada partida da Copa do Mundo de 1970, explica que o Brasil deve servir de exemplo para o resto do mundo.[4] (CAMPBELL, 2019, p. 736; tradução nossa)

Aparentemente, estamos diante de uma possível chave de entrada do futebol no âmbito da produção artística de cordelistas, apontada tanto por Ivan Cavalcanti Proença, quanto por Raymond Cantel e, respectivamente, Courtney Campbell: os êxitos esportivos da Seleção Brasileira como um dos pilares para a construção da identidade nacional.

Conforme demonstraremos a seguir, se a Literatura de Cordel se origina de relatos orais com traços poéticos, em que “o folheto impresso se tornou o suporte dessa forma poética até então marcada pela oralidade”, se formando “enquanto sistema literário a partir do final do século XIX” (MELO, 2019, p. 247-248), tornando-se uma forma literária popular no Brasil, o futebol, um dos vértices da cultura brasileira, fornece à Literatura de Cordel inúmeros temas, cantados pelos cordelistas em seus longos poemas rimados.

Para este breve estudo, baseados nos apontamentos anteriores, elegemos como corpus de análise três cordéis que têm por tema Copas do Mundo de futebol, com objetivo de evidenciarmos aspectos específicos de tal relação na “era de ouro” da Seleção Brasileira: Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi (1962), de Raul de Carvalho; O Brasil na Copa do Mundo (1962), de Cuíca do Santo Amaro; O Brasil tricampeão (1970), de José João dos Santos, o “Mestre Azulão”.

O folheto Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi

Iniciaremos nossa análise pelo folheto Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi (1962), do cordelista Raul de Carvalho, uma espécie de ode à Seleção Brasileira que conquistou o bicampeonato mundial de futebol no Chile. Em termos formais, esse folheto é composto por 95 estrofes em sextilhas, com versificação em redondilha maior, de sete sílabas poéticas, com rimas em a-b-c-b-d-b, traços característicos da Literatura de Cordel, e apresenta na capa a reprodução de uma fotografia da Seleção Brasileira. Aliás, o número elevado de estrofes (95) e de páginas (20) evidencia que estamos diante de um tipo textual “romance”, conforme postulado por Marlyse Meyer (1980, p. 3-4), e não de um tipo textual “folheto noticioso” que, em geral, possui apenas 32 estrofes e 08 páginas.

Além disso, esse folheto apresenta algo peculiar, não tão comum na Literatura de Cordel: um preâmbulo em prosa, que antecede à primeira estrofe:

A mais emocionante e sensacional campanha de atração futebolística da atualidade, aonde os brasileiros consagraram-se Bi-Campeões mundial de futebol, dominando e envolvendo de maneira espetacular, seus bravos e lutadores adversários.            

Onde tiveram a magnifica oportunidade de ofertarem ao público mundial, e com especialidade ao distinto povo brasileiro a hegemonia com a verdadeira classe e técnica do futebol Nacional. (CARVALHO, 1962, p. 1)

Além do tom superlativo evocado pela conquista, o cordelista apresenta o escrete como hegemônico em relação aos “seus bravos e lutadores adversários”, estabelecendo “a verdadeira classe e técnica do futebol Nacional”. Em sequência ao preâmbulo, o poeta constrói seu ethos de religiosidade e fé, antes de cantar em seus versos o torneio propriamente dito:

Ó meu “Jesus radiante”

dai-me luz e inspiração

para eu descrever em verso

com a maior sensação

como foi que os brasileiros

ganharam o Bi-Campeão.

(CARVALHO, 1962, p. 1)[5]

Trata-se de algo relativamente comum em folhetos desse tipo, em que a fé também é um elemento emocional do próprio torcer pelo escrete canarinho. Logo em seguida, o poeta enaltece em seus versos mais uma conquista da Seleção Brasileira, como continuidade do triunfo celebrado na Suécia, em 1958:

No ano cincoenta e oito

o Brasil foi “Campeão”

jogaram lá na Suécia

com o (mesmo) no coração

este ano lá no Chile

ganharam o Bi-Campeão.

(CARVALHO, 1962, p. 1)

Seus versos revelam também que o poeta associa o desempenho da Seleção Brasileira ao sentimento de identidade nacional, algo que, de fato, se estabeleceu em termos de representatividade esportiva e que se consolidou com a conquista do tricampeonato no México, em 1970, mas que já se evidenciava no folheto do início da década de 1960:

O Brasil tem uma equipe

que luta com heroísmo

sabendo se conduzir

pelo seu patriotismo

demonstrando disciplina

categoria e civismo.

CARVALHO, 1962, p. 2)

Desse modo, a Seleção é definida nesses versos por suas supostas virtudes: “heroísmo”, “patriotismo”, “disciplina”, “categoria” e “civismo”. E o poeta não deixa de destacar em seus versos também sua cor de camisa característica, idealizada por Aldyr Garcia Schlee em 1953, que a tornaria famosa mundo afora:

A equipe do Brasil

conhecida por Canarinho

lutou e ganhou o título

que estava em seu caminho

de volta foi recebida

com muito amôr e carinho.

(CARVALHO, 1962, p. 2)

Cabe ressaltar que foi o primeiro título conquistado pela Seleção jogando na final do torneio com a camisa canarinho, uma vez que, em 1958, os anfitriões suecos também jogavam com camisa amarela, o que gerou a necessidade de a CBD lançar mão da camisa azul na final. No referido folheto, o poeta também expressa seu desejo de fazer jus ao desempenho da Seleção na Copa do Chile, contando a saga que a levou a mais uma conquista mundial:

Falando sôbre o Brasil

eu quero então relatar

bem minuciosamente

sem cousa alguma aumentar

como portou-se este team

e como soube lutar

(CARVALHO, 1962, p. 3)

Cada jogador daquela Seleção foi agraciado pelos versos do poeta: o goleiro Gilmar, Mauro, Djalma Santos, Nilton Santos, Zózimo, Zito, Didi, Garrincha, Vavá, Amarildo, que substituiu Pelé lesionado após a primeira partida, e Zagalo. Mas é Garrincha aquele que se sobressai em seus versos:

Garrincha é o maior

de todos os mundiais

envolveu todas as defesas

com seus “DRIBLES” infernais

deixando desnorteados

de um a um seus rivais.

(CARVALHO, 1962, p. 19)

O folheto do poeta potiguar Raul de Carvalho, portanto, se enquadra no eixo temático “acontecimento de repercussão social”, conforme classificação proposta por Maria Elisabeth de Albuquerque (2011, p. 63), pautado por um tipo textual “romance” (MEYER, 1980, p. 3-4), em que os feitos da Seleção Brasileira nos gramados chilenos é cantado com traços épicos, jogo a jogo.

O folheto O Brasil na Copa do Mundo (1962)

Outro folheto dedicado à Seleção Brasileira e a um momento muito especial em sua história, o da conquista do bicampeonato mundial, é O Brasil na Copa do Mundo (1962), do cordelista Cuíca de Santo Amaro, apelido do poeta soteropolitano José Gomes Filho, autor de inúmeros folhetos publicados dos anos 1930 a meados dos anos 1960. Antes da estampa de seu nome na capa, figurava também a expressão “Autoria D’ele o Tal!”

Como é comum em folhetos de cordel, a capa é composta por imagem de xilogravura ou por reprodução fotográfica. No caso do folheto O Brasil na Copa do Mundo, publicado em 1962, figura uma fotografia da Seleção Brasileira que conquistou o Mundial naquele ano, no Chile. Logo na primeira estrofe, é possível notar que o folheto foi publicado após a conquista do título de bicampeão:

O Brasil conservou

Bem alto o seu pedestal

Honrou o seu grande nome

Impoz a sua moral

Demonstrando ser mesmo

O Campeão Mundial

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 1)

Em sua composição o folheto O Brasil na Copa do Mundo apresenta um total de 32 estrofes, com estrofação em sextilhas e versificação em redondilha maior, ou seja, em sete sílabas poéticas, com rimas em a-b-c-b-d-b, composição típica do gênero cordel. Os totais de estrofes (32) e, respectivamente, de páginas (08) demonstram que se trata do tipo textual “folheto noticioso” (MEYER, 1980, p. 3-4). Certo tom de religiosidade também se expressa nos versos de Cuíca de Santo Amaro ao decantar a façanha brasileira no Mundial do Chile, naquela máxima popular de que “Deus é brasileiro”:

Porque no Brasil

Onde Cristo foi nascer

Tinha de progredir

Havia de crescer

Portanto o Brasil

Só tinha que vencer

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 1)

Estudiosos do cordel apontam para o fato de que um dos temas preferidos dos poetas populares são os acontecimentos de grande projeção no cotidiano: fatos políticos, crimes, escândalos, tragédias, mas também eventos esportivos, sobretudo quando envolvem a participação da Seleção Brasileira em torneios mundiais. Ao perceber o potencial de tais eventos para atrair o público leitor de seus folhetos, Cuíca de Santo Amaro foi um pioneiro em produzir, com seus versos, uma ode laudatória àquela Seleção comandada pelo técnico Aymoré Moreira:

Parabéns ao Aimoré Moreira

O príncipe dos treinadores

Pelo estímulo e confiança

Aos nossos jogadores

Quem envia-lhes parabéns

É o decano dos Trovadores

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 8)

E com a ausência do Rei Pelé, lesionado logo no segundo jogo do torneio, contra a seleção da Tchecoslováquia, sendo substituído por Amarildo, o “Possesso”, o maior destaque dentre os titulares do selecionado canarinho ficou para Mané Garrincha, conforme demonstram os seguintes versos do poeta popular:

Sim!… o Garrincha

Jogador fenomenal

Seu Mané das pernas tortas

Como ele não tem igual

Infeliz se não fosse ele

Do quadro Nacional

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 6)

Para o cordelista, foi algo digno de se registrar na memória dos brasileiros:

O feito do Brasil

Nesta sua trajetória

Jamais Brasileiros!…

Sairá da nossa memória

Ficando também gravado

Nas páginas da nossa história

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 8)

Por fim, ressalta-se que, não obstante o tom épico da vitória, o poeta se limita apenas a dedicar estrofes a apenas uma partida do torneio, justamente a final, disputada em 17 de junho de 1962 contra a seleção da Tchecoslováquia, derrotada pela Seleção Brasileira, pelo placar de 3×1, com gols de Amarildo, Zito e Vavá.

O folheto O Brasil tricampeão

Como terceira obra exemplar que compõe nosso corpus de análise, selecionamos o folheto O Brasil tricampeão (1970), do cordelista paraibano José João dos Santos, o “Mestre Azulão”, que se tornaria um dos fundadores da famosa Feira de São Cristóvão, centro da cultura nordestina no Rio de Janeiro. Em sua capa, o folheto apresenta uma fotografia em que aparecem o treinador da Seleção Zagallo e o capitão Carlos Alberto, trajados com ternos contendo o distintivo da CBD – a Confederação Brasileira de Desportos – e segurando a taça Jules Rimet, conquistada definitivamente no Mundial do México em 1970. Provavelmente, trata-se de reprodução de uma fotografia tirada durante a visita dos integrantes da Seleção e da Comissão Técnica à capital federal e aos detentores do poder em seu regresso ao Brasil. Não é por acaso que, logo na primeira estrofe, o tom ufanista se faz presente:

Desportista brasileiro

De conhecimento profundo,

Vibrai com patriotismo,

Hora, minuto e segundo,

O Brasil trouxe com glória

Os triunfos da vitória

Na grande Copa do Mundo.

(SANTOS, 1970, p. 1)

O folheto O Brasil tricampeão apresenta a composição típica desse gênero literário, ou seja, 32 estrofes, com estrofação em septilhas e versificação em redondilha maior, em sete sílabas poéticas, com rimas em a-b-c-b-d-d-b. Outra estrofe desse folheto parece reverberar um dos versos do jingle daquela Copa, “Pra frente, Brasil!”, de autoria de Miguel Gustavo:

Salve o Brasil verde-louro,

Salve a nossa seleção,

Pelé, Jair, Rivelino,

Gérson, Clodô e Tostão,

Que mostraram a nossa raça

Trazendo a glória e a Taça

Ao Brasil tri campeão.

(SANTOS, 1970, p. 1)

O folheto traz também como registro uma estrofe que transmite certo olhar crítico para o treinador e jornalista esportivo João Saldanha, demitido do cargo em 17 de março de 1970 e substituído por Zagallo, afastado de sua função por divergências políticas e pela inferência dos detentores do poder na Seleção Brasileira:

João Saldanha se enganou

Com seu plano e sua lei

Depois da grande vitória

Êle disse assim que eu sei

(Esta me serviu de escola

O nosso Pelé na bola

Me mostrou que ainda é rei).

(SANTOS, 1970, p. 2)

Não falta também nesse folheto uma estrofe que expresse a imensa alegria da torcida brasileira após a conquista do tri:

O Brasil vibrou em festa

Da cidade até a roça

Foguetes, bandas de música,

Com bebida e farra grossa,

Blocos nas ruas pulando

E torcedores gritando,

Viva a Deus que a Copa é nossa.

(SANTOS, 1970, p. 5)

Ao final, o poeta enaltece o futebol como sendo a manifestação cultural e esportiva em que o congraçamento, aparentemente, supera a diferença social:

Assim foi a grande festa

Zuando num tom profundo

Unindo ricos e pobres,

Leigo, justo e vagabundo,

Aclamando êste é Brasil

O tri campeão do mundo.

(SANTOS, 1970, p. 8)

Em O Brasil tricampeão, o cordelista dedica uma estrofe a cada partida disputada e vencida pelos comandados de Zagallo. O número de estrofes (32) e, respectivamente, de páginas (08) demonstra que se trata do tipo textual “folheto noticioso” (MEYER, 1980, p. 3-4), em que o poeta canta, com traços épicos, as façanhas da Seleção nos gramados mexicanos.

As Copas do Mundo de futebol na Literatura de Cordel – à guisa de conclusão

Nosso breve estudo evidenciou a significativa presença temática do futebol no âmbito da literatura de cordel. No dia 19 de setembro de 2018, a Literatura de Cordel foi reconhecida como Patrimônio Imaterial Cultural Brasileiro, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Tal reconhecimento atesta a relevância da chamada “poesia popular” (PROENÇA, 1976, p. 28) para a cultura brasileira. Fundada em 07 de setembro de 1988, a Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), com sede no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, tem contribuído para manter viva a memória e a produção dessa manifestação cultural típica da Região Nordeste, mas que também se expandiu para outros centros urbanos do país. Contando com um acervo de mais de 13 mil títulos, a ABLC (http://www.ablc.com.br/noticias/ ), sem dúvida, é uma excelente referência para pesquisas sobre a Literatura de Cordel.

A expressão “Seleções de Ouro” de nosso título foi inspirada na seguinte estrofe do folheto O Brasil tricampeão, do Mestre Azulão:

Nossa seleção de ouro

Tem a quentura do Sol,

Joga com classe e não teme

Time de fama e farol

Desta vez o brasileiro

Mostrou para o mundo inteiro

Que é rei no futebol.

(SANTOS, 1970, p. 1)

Os mitos do “futebol arte” e, respectivamente, do Brasil como “país do futebol” foram pavimentados pelas conquistas de 1958, 1962 e 1970. Nesse sentido, os três folhetos de cordel analisados neste estudo atestam a construção narrativa sobre os feitos daquelas “Seleções de Ouro”, muitas vezes pautada por clichês. Além disso, todos os três se enquadram no eixo temático “acontecimento de repercussão social” (ALBUQUERQUE, 211, p. 63), dois deles – O Brasil na Copa do Mundo (1962) e O Brasil tricampeão (1970) – se configuram de acordo com o tipo textual “folheto noticioso” (MEYER, 1980, p. 3), composto por 32 estrofes e 08 páginas, enquanto o folheto Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi (1962) se enquadra no tipo textual “romance” (MEYER, 1980, p. 3-4), composto por 95 estrofes e 20 páginas.

Ainda em relação a questões de ordem formal, constatamos o predomínio da versificação em redondilha maior, com sete sílabas poéticas, com rimas cruzadas (com estrutura a-b-c-b-d-b), típicas desse gênero literário, porém, com uma ligeira variação em relação ao folheto O Brasil tricampeão, que apresenta estrofação em septilha (com estrutura a-b-c-b-d-d-b).

Por fim, em relação ao modo de apresentar as conquistas da Seleção Brasileira em 1962 e 1970, há um aspecto em comum entre os três folhetos analisados: todos enaltecem o desempenho vitorioso da Seleção, após terminados os torneios. Todos eles demonstram também que, sem dúvida, as artes do futebol e do cordel se encontram nesse rico manancial da poesia e da cultura popular brasileira.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, Maria Elisabeth Baltar Carneiro de. Literatura Popular de Cordel: dos ciclos temáticos à classificação bibliográfica. (doutorado em letras). João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba, 2011.

CAMPBELL, Courtney. The Northeast plays football, too: World Cup Soccer and regional identity in the Brazilian Northeast. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 32, n. 68, p. 720-743, set./dez. 2019. Disponível em: https://orcid.org/0000-0001-6918-6382 . Acesso em: 15 jun. 2022.

CANTEL, Raymond. La littérature populaire brésilienne. Poitiers: Centre de Recherches Latino-Américaines, 1993.

CARVALHO, Raul de. Copa do Mundo: 1962 – Os Reis do Bi. Nova Cruz, RN: Lux, 1962. Disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Literatura%20de%20Cordel%20-%20C0001%20a%20C7176&PagFis=21299&Pesq=copa%20do%20mundo. Acesso em: 30 mar. 2023.

CUÍCA DE SANTO AMARO. O Brasil na Copa do Mundo. Sem local: Edição do Autor, 1962, 8p. Disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176. Acesso em: 27 abr. 2023.

IPHAN. Literatura de Cordel – Dossiê de Registro. Brasília, DF: IPHAN, 2018. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_Descritivo(1).pdf . Acesso em: 15 jun. 2022.

MELO, Rosilene Alves de. Do rapa ao registro: a literatura de cordel como patrimônio cultural do Brasil. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Dossiê: Cordel e patrimônio. São Paulo, n. 72, p. 245-261, abr. 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/157060. Acesso em: 30 jun. 2022.

MELO, Rosilene Alves de. Literatura de Cordel: conceitos, intelectuais, arquivos. Projeto História. São Paulo, v. 65, p. 66-99, mai./ago. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.23925/2176-2767.2019v65p66-99 . Acesso em: 15 jun. 2022.

MEYER, Marlyse. Autores de cordel. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

PROENÇA, Ivan Cavalcanti. A ideologia do cordel. Rio de Janeiro: Imago, Brasília: INL, 1976.

PROENÇA, Ivan Cavalcanti Futebol e palavra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.

SANTOS, José João dos [Mestre Azulão]. O Brasil tricampeão. Sem local: A Voz da Poesia, 1970. Disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176. Acesso em: 27 abr. 2023.

Notas

[1]

No original:

Most football-themed cordel literature narrates a victorious World Cup tournament or its final match. ‘O Brasil na Copa do Mundo’ and ‘A vitória do Brasil na VI Copa do Mundo’, for example, relate each match, praise the players and the coach, and claim that Brazil’s 1958 World Cup win was one of Brazil’s greatest glories (Gomes, 1958; D’Almeida Filho, 1958). The rare mention of regions evokes a sense of national unity instead of divide.

[2]

No original:

Le football est le seul sport qui retienne l’attencion des poètes du cordel et  seulement dans les grandes occasions, quand l’équipe du Brésil remporte le championnat du monde, par exemple. Alors paraissent de nombreuses brochures qui font vibrer la corde patriotique.

[3]

No original:

Généralement ce sont des compositions médiocres inspirées par les journaux. Le monde des poètes du cordel n’a guère de rapports directs avec celui des grandes équipes internationales.

[4]

No original:

In 1962 and 1970, both years in which Brazil won the World Cup tournament, this form of cordel reappears, but other characteristics of Brazilian nationality began to surface. W. Pinheiro, in a cordel that details each match of the 1970 World Cup, explains that Brazil should serve as an example for the rest of the world.

[5] Nas citações de cordel, mantivemos sempre o texto original, mesmo que estes contenham alguns lapsos de digitação ou de redação.