Por: Coriolano P. da Rocha Junior
Neste blog tenho me ocupado de abordar aspectos referentes a história do esporte e das práticas corporais na Bahia. Em tempos de distanciamento social, em meio a uma pandemia que nos assola e nos faz revisitar e repensar nossos modos de vida, a opção de hoje foi escrever sobre um assunto que toca a todas as pessoas, de maneiras diferentes, claro, mas que está conectada a sensações e emoções que o esporte nos traz, no caso, o futebol, mais especificamente a figura do ídolo nesta modalidade e isso, na tentativa de ter mais leveza, em tempos de enormes dificuldades.
Na cidade da Bahia (aqui me refiro a Salvador), o futebol teve início logo que a localidade começou a experimentar as vivências esportivas em seu cotidiano, tendo rapidamente chamado a atenção da população, tanto sob o aspecto positivo, quando sob o negativo, ou seja, a modalidade rapidamente foi alçada a principal prática, fato que não se deu sem algum tipo de oposição, mas que também gerou adoração e por extensão, criou ídolos.
Se fala que na Bahia Zuza Ferreira foi o responsável pela introdução do futebol. Essa posição representa a ideia de um mito fundador, de simbolizar numa pessoa, a responsabilidade social de ser a expressão de uma prática social. Rocha Junior (2011) afirma que
…entendemos que figuras como (…) Zuza contribuíram diretamente para a sistematização do futebol. Entretanto, é difícil atribuir a eles, isoladamente, o “nascimento” do futebol (…) em Salvador, pois este resultou de um complexo processo de desenvolvimento, com realidades específicas… (p.69).
Assim, entendemos que a modalidade faz parte de um complexo tecido social, que envolve sua prática, sua representação, sua organização, seus espaços, seus praticantes e sua apropriação. Daí, na Bahia, assim como em outras cidades, o futebol foi parte de um conjunto de práticas sociais que tentavam dar a Salvador e ao Estado, uma nova forma de vivenciar o cotidiano e suas expressões.
O futebol e sua prática, para a Bahia, representavam o novo, tinha nele a marca de uma ação que era vivida na Europa, ou seja, ele era carregado de marcas que o associavam a ideia de uma nova sociedade, que queria se fazer moderna. Todavia, assim como era e mesmo é a própria sociedade baiana, também o futebol viveu experiências sociais diferentes, a partir do estrato social que com ele tinha contato.
Se praticado por uma elite política e econômica, ele simbolizava ares de civilidade, quando jogado pelas classes populares, era tido como algo inadequado, impróprio, grotesco e digno de ações policiais repressoras. Assim era ou é a cidade e assim se constituiu o futebol, com as marcas de uma divisão de classes, sendo, portanto, uma significativa forma de melhor entender a sociedade e suas incongruências e recortes. Exemplos disto podemos ver abaixo:
Em Salvador, a aceitação do futebol como um esporte das elites se vê em passagens de jornais como esta:
correu brilhante e animadamente a correcta diversão deste tão bemquisto divertimento que entre nós tanto acolhimento tem adquirido. Ao signal dado, os clubes Victória e São Paulo Bahia principaram os renhidos ataques, tendo sempre, no primeiro tempo, o São Paulo Bahia se defendido heroicamente, no segundo tempo, porem, os lutadores do Victoria conseguiram fazer dos pontos, sendo vivamente aclamados.[1]
Em contrapartida a essa aceitação da prática de futebol, também encontramos notícias falando mal do esporte, quando este era jogado entre populares. Vejamos, por exemplo, a nota publicada em A Tarde:
moradores à Rua Ferreira França, ao Polytheama, estão inhibidos de chegar as jannelas das respectivas residências, porque garotos, de manhã a noite, jogam bola, com uma gritaria infernal, com gestos e palavras obscenas. Os guarda civis que ali fazem seu quarto de policiamento, não tem ouvidos para ouvir taes offensas a moral e nem energia para cohibilos ao jogo perene.[2]
Foi nesse meio, nesse embate de compreensões e imagens sociais do esporte, que a Bahia viu surgir aquele que é tido como seu primeiro ídolo esportivo, a pessoa que primeiro carregou plateia. Seu nome era Apolinário Santana, ou simplesmente, Popó.
É sabido o potencial que os esportes tem de gerar paixão, seja espontânea ou criada. Na Bahia, o futebol, mesmo não tendo sido a primeira experiência esportiva, já que outras modalidades foram praticadas antes, foi a que logo alcançou o interesse e coração das pessoas, de todos os estratos sociais e por isso, veio dele o surgimento de um ídolo, alguém capaz de levar as pessoas aos campos (a Bahia ainda não tinha um estádio).
Mas afinal, que futebol era esse o baiano? Quem era Apolinário Santana?
Salvador viu surgir entre fins do século XIX e início do XX, equipes que logo aderiram ao futebol após sua fundação e outras, já fundadas para a prática do esporte. Na cidade, durante longos anos, não existiu um estádio de futebol. Sua vivência ocorria em campos espalhados pela cidade, sendo os mais notáveis o Campo da Pólvora e o Campo do Rio Vermelho.
Em 1904 foi fundada uma entidade organizadora, que foi a Liga Baiana de Sports Terrestres (esta vinculada a elite local) e já em 1905 ocorreu o primeiro campeonato, que foi organizado por esta liga até 1912, sendo a partir de 1913 tocado por outra entidade, a Liga Brazileira de Sports Terrestres (esta mais popular).
Com isso, como vimos, desde seu início o futebol em Salvador mobilizou interesse de todas as classes, tendo vivido adesões e resistências na sociedade, mas logo se firmou como a modalidade de maior interesse e assim, logo as pessoas, mesmo sem estarem nos campeonatos foram as ruas para jogarem seus “babas” e foi neles que surgiu o Popó e isto, no Rio Vermelho, o arrabalde esportivo da cidade.
Nascido em 1902 e falecido em 1955, Popó iniciou suas peripécias com a bola no bairro do Rio Vermelho, local onde nasceu e que contou com vários times de futebol ao longo dos tempos e que sempre teve vários espaços para jogos de futebol. Desde o começo ele se destacava, demonstrando habilidade e qualidade física e técnica, que o distinguiam dos demais praticantes, fato este que fez com que logo se chamasse atenção para seu jogo.
Popó começou cedo a jogar nas equipes de futebol de Salvador e ao todo esteve em onze equipes da cidade, que foram: Sul América, Fluminense, Bahiano de Tênis, Internacional, São Bento, Auto Bahia, Botafogo, Ypiranga, São Cristovão, Royal e S.C.Brasil. Destes, por duas oportunidades jogou pelo Botafogo e pelo Ypiranga (GOMES, 1999). Popó ainda esteve no futebol alagoano (sobre esta passagem não falaremos aqui).
Esta movimentada vida futebolística de Popó nos dá margem para várias interpretações. Uma é a de que ele realmente representava a figura de um jogador que era desejado pelas equipes e seus torcedores, outra, nos faz compreender uma ideia de amadorismo no esporte local, que o fazia e mesmo lhe dava a oportunidade de circular por vários clubes e ainda, confirma nele a condição de ídolo, já que foi pretendido por clubes diferentes, de variados bairros da cidade.
Esta “circulação”, ou melhor, transferência do jogador pelos clubes era noticiada com atenção pelos jornais, a exemplo da edição do A Manhã (08 de maio de 1920). Como esta, outras tantas vezes os jornais deram destaque a mudança de clubes por Popó. Também se notava essa mudança dos clubes, nas escalações trazidas pelas páginas dos periódicos locais.
Outro aspecto notável de Popó é que ele foi capaz de atuar em diversas posições. Tal condição se observa nos jornais, que traziam as escalações e as descrições dos jogos, que o mostram da defesa ao ataque. Ele, desde criança se caracterizou também pelo tipo físico, fato que o fez iniciar nos campeonatos ainda quando adolescente. Abaixo vemos uma figura do astro[3].
Popó também jogou em certames de caráter nacional pela seleção da Bahia. Tal condição o fez ser reconhecido como um grande jogador por jornais cariocas, que viam nele um grande talento, como a exemplo do O Globo Sportivo (13 de janeiro de 1950), em matéria que se refere ao campeonato de 1934, vencido pela Bahia. Em edição com data não identificada, de 1952, o jornal carioca O Globo Sportivo traz o seguinte texto:
Não devemos esquecer o maior centro-medio de todos os tempos surgido ou consagrado fora do Rio e São Paulo: o célebre Popó, da Bahia. Jogador fenomenal, cuja infelicidade foi unicamente não ter sido atraído por nenhum grande clube das duas capitais. Grande craque foi Popó, com a grande vantagem de ser um jogador “7” instrumentos , pois atuava em qualquer posição (p. 21).
Outra forma de reconhecer seu valor, mesmo em âmbito nacional como futebolista, foi que o Jornal O Globo (RJ), noticiou no dia 20 de setembro de 1955 sua morte. Na página 12, uma nota escrita em letras maiúsculas e com uma foto tinha o título – Morreu Popó -. O texto fazia menção a sua destacada qualidade técnica, ao fato de ter jogado por vários clubes, em diversas posições e ao título brasileiro de 1934 e ainda fala do luto oficial decretado a altura, pela Federação Baiana de Futebol. Estas matérias dão bem a dimensão do que foi Popó como jogador, que mesmo sem ter circulado nos chamados grandes centros, foi reconhecido como um grande jogador. Abaixo uma outra imagem de Popó, com uniforme do S.C. Brasil, de O Imparcial (19 de dezembro de 1935, p.7).
Enfim, Popó foi um jogador de talento, um homem capaz de atuar em diferentes funções, com qualidade física destacada, um homem de gols e que viveu um futebol onde o jogo ainda não gerava renda substancial a quem jogava, um homem que explorou o desejo pelo jogo, numa Bahia dividida socialmente, com marcas de racismo, segregação e segmentação social.
A idolatria por Popó foi além de seu tempo de jogador, tanto que fãs fundaram o Popó Bahiano, que chegou a jogar no campeonato local. Tal clube teve a intenção, de já pelo nome homenagear o ídolo baiano. Ídolo, que fora do futebol (parou de jogar em 1937) viveu as amarguras de quem tem de abandonar seu jogo (parou de jogar em 1936) e de não ter podido dele extrair formas melhores de vida. Popó foi um exemplo do futebol e suas paixões, um jogador que viveu as expressões e as dores máximas de uma prática que movimenta multidões e, por tanto, tem significados múltiplos.
Referências:
PIRES, Aloildo Gomes. Popó o craque do povo: a trajetória de Apolinário Santana. SAlvador: EPS, 1999.
ROCHA JUNIOR, Coriolano P da. Esporte e modernidade: uma análise comparada da experiência esportiva no Rio de Janeiro e na Bahia nos anos finais do século XIX e iniciais do século XX. Tese (Doutorado em História Comparada) – Instituto de História – Programa de Pós-Graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
[1]Correio do Brasil, 11 de agosto de 1903, p.1.
[2]A Tarde, 08 de dezembro de 1914, p.2.
[3] O Globo, 20 de setembro de 1955, p. 12.
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