As “Seleções de Ouro” e a Literatura de Cordel – Quando duas artes populares se encontram

08/05/2023

Elcio Loureiro Cornelsen

Introdução – o encontro de duas artes populares

É de conhecimento geral que a Literatura de Cordel, sem dúvida uma das manifestações populares mais significativas da cultura brasileira, muito bem definida por Rosilene Alves de Melo (2019, p. 245) como “uma expressão da voz popular, da memória e da identidade nacional”, não ficou alheia à popularização do futebol no Brasil, sobretudo a partir da década de 1930.

Em pesquisa concluída recentemente, fizemos um mapeamento de 160 títulos em diversos acervos e publicações. De acordo com nosso inventário, as primeiras publicações datam das décadas de 1950 e 1960: Duelo Vasco x Flamengo: drama, comédia, futebol: história popular dedicada aos seus fãs e torcedores (Nilópolis, RJ: Gráfica Universal, 1954), de Pedro Ferreira dos Santos, A vitória do Brasil (sem local: sem editora, 195-), de João Severo de Lima, Copa do Mundo: 1962 (Nova Cruz, RN: Lux, 1962), de Raul de Carvalho, O Brasil na Copa do Mundo (sem local: sem editora, 1962), de Cuíca de Santo Amaro, e Peleja de Garrincha com Pelé (São Paulo: Prelúdio, 1965), de Antônio Teodoro dos Santos. Não obstante o fato de que este conjunto inicial de obras seja lacunar, já nos é possível identificar alguns temas: a rivalidade clubística entre o Clube de Regatas Vasco da Gama e o Flamengo de Futebol e Regatas já nos anos 1950; o interesse pelos craques da época; a participação da Seleção Brasileira nas Copas do Mundo de 1958 e 1962.

Todavia, foi na década de 1970 que se publicou o maior número de folhetos de cordel com o tema do futebol, em um total de 42 títulos inventariados. O tema que mais mobilizou cordelistas a escreverem seus folhetos de futebol nessa década, sem dúvida, foi a conquista do tricampeonato mundial pela Seleção Brasileira na Copa do México, em 1970. Ao todo, foram identificados em nosso inventário 14 folhetos com esse tema: Brasil tricampeão de futebol: história em versos dos três campeonatos (São Paulo: Prelúdio, 197-) e Brasil tricampeão do mundo (Aracaju, SE: Ed. do Autor, 1970), ambos de Manoel d’Almeida Filho; O Brasil tricampeão (sem local: A Voz da Poesia, 1970), de Mestre Azulão [nome artístico de José João dos Santos); Brasil 4×1 tricampeão mundial (Bezerros, PE: Ed. do Autor, 1970), de José Francisco Borges, Versos sobre as vitórias da Seleção Brasileira e a cheia de 70 (Recife, PE: Ed. do Autor, 1970), de Manoel Florentino Duarte; Romance da Copa de 70 (Gurupi, TO: Gráfica São Geraldo, 197-), de Napoleão Gomes Ferreira; A nossa Copa do Mundo 70 (Brasília, DF: Ed. do Autor, 1975), de Carolino Leóbas; Brasil 1958-1962-1970: tricampeão do mundo 4×1: campeão dos campeões (Rio de Janeiro: Ed. do Autor, 1970), de Palito; A vitória do Brasil: a Seleção Brasileira: o Brasil é Tricampeão (Campina Grande, PB: Ed. do Autor, 1970), de Antonio Patrício; Brasil tricampeão (Juazeiro do Norte, CE: Ed. do Autor, 197-), de Geraldo Amâncio Pereira; Brasil tricampeão: toda história da taça que é nossa pra sempre (Natal, RN: Clima, 1970), de W. Pinheiro; A vitória do Brasil na IX Copa do Mundo (sem local: Ed. do Autor, 197-), de João Severo da Silva; A Seleção Brasileira ganhou mais um canecão (4×1) (Recife, PE: Ed. do Autor, 1976) e Brasil campeão do mundo 1970: agora a taça é nossa (sem local: sem editora, 19–), ambos de José Soares.

Há décadas, alguns estudiosos da Literatura de Cordel têm afirmado que, inicialmente, o principal tema que despertou a atenção de cordelistas foram as conquistas da Seleção Brasileira. Dentre eles, figura Ivan Cavalcanti Proença, um dos pioneiros nos estudos sobre Literatura de Cordel nos anos 1970 e 1980. Na obra Futebol e palavra (1981), Proença dedica cinco preciosas páginas ao gênero cordel, como parte do capítulo intitulado “A Literatura no(do) Futebol” (PROENÇA, 1981, p. 9-51). Nas referidas páginas, descobrimos que folhetos foram publicados, pelo menos, desde a época da primeira conquista do título mundial pela Seleção Brasileira em 1958, na Suécia. De acordo com o autor,

[o]s poetas de cordel – […] – atentos ao rádio inicialmente, e às transmissões de TV, depois, registraram as façanhas de nossos jogadores: Liêdo Maranhão, folclorista de Pernambuco, coletou esse material, reunindo 18 folhetos de cordel, todos a partir do tema “O Brasil nas Copas” (matéria também publicada pelo ‘O Globo’). (PROENÇA, 1981, p. 17)

Ao todo, Ivan Cavalcanti Proença apresenta em seu livro fragmentos de oito folhetos de sete cordelistas diferentes: Francisco Ferreira de Paula, da Paraíba (Copa de 1958 e, respectivamente, Copa de 1970); José Severo de Lima, da Paraíba (Copa de 1958); Alípio Bispo dos Santos, da Bahia (Copa de 1962); Palito (Severino Marques de Souza), de Pernambuco (Copa de 1970); Manuel D’Almeida Filho, de Sergipe (Copa de 1970), Minelvino Francisco Silva, da Bahia (Copa de 1970); José Maria Rodrigues, do Rio de Janeiro (Copa de 1978). Em um estudo recente, a historiadora britânica Courtney Campbell indica outros dois folhetos de autoria de José Gomes e, respectivamente, de Manuel D’Almeida Filho, publicados no contexto do Mundial de 1958, disputado na Suécia:

A maior parte da literatura de cordel com tema de futebol narra um torneio vitorioso da Copa do Mundo ou sua partida final. ‘O Brasil na Copa do Mundo’ e ‘A vitória do Brasil na VI Copa do Mundo’, por exemplo, relatam cada partida, elogiam os jogadores e o técnico e afirmam que a conquista do Brasil na Copa de 1958 foi uma das maiores glórias do Brasil (Gomes, 1958; D’Almeida Filho, 1958). A rara menção de regiões evoca um sentimento de unidade nacional ao invés de divisão.[1] (CAMPBELL, 2019, p. 735; tradução nossa)

Outro pesquisador que menciona a presença do futebol como tema em folhetos de cordel é Raymond Cantel, ao afirmar que “[o] futebol é o único esporte que chama a atenção dos poetas do ‘cordel’ e apenas em ocasiões especiais, quando a Seleção Brasileira vence o campeonato mundial, por exemplo, quando aparecem numerosos folhetos fazendo vibrar os acordes patrióticos” (CANTEL, 1993, p. 73; tradução nossa).[2] Segundo o pesquisador francês, “[g]eralmente, são composições medíocres inspiradas em jornais. O mundo dos poetas de cordel quase não tem relação direta com o das grandes equipes internacionais” (CANTEL, 1993, p. 73; tradução nossa).[3]

De maneira precisa, como pudemos observar anteriormente, o escritor e jornalista Ivan Cavalcanti Proença, membro da Academia Carioca de Letras, reflete sobre o impacto que as conquistas dos três primeiros campeonatos mundiais tiveram sobre os cordelistas, a ponto de se tornarem tema de seus folhetos. Quase quatro décadas mais tarde, de maneira semelhante, Courtney Campbell também analisa e tira suas conclusões sobre o modo como cordelistas se dedicaram a tratar das memoráveis conquistas da Seleção Brasileira em seus folhetos:

Em 1962 e 1970, ambos os anos em que o Brasil ganhou a Copa do Mundo, essa forma de cordel reaparece, mas outras características da nacionalidade brasileira começaram a surgir. W. Pinheiro, em um cordel que detalha cada partida da Copa do Mundo de 1970, explica que o Brasil deve servir de exemplo para o resto do mundo.[4] (CAMPBELL, 2019, p. 736; tradução nossa)

Aparentemente, estamos diante de uma possível chave de entrada do futebol no âmbito da produção artística de cordelistas, apontada tanto por Ivan Cavalcanti Proença, quanto por Raymond Cantel e, respectivamente, Courtney Campbell: os êxitos esportivos da Seleção Brasileira como um dos pilares para a construção da identidade nacional.

Conforme demonstraremos a seguir, se a Literatura de Cordel se origina de relatos orais com traços poéticos, em que “o folheto impresso se tornou o suporte dessa forma poética até então marcada pela oralidade”, se formando “enquanto sistema literário a partir do final do século XIX” (MELO, 2019, p. 247-248), tornando-se uma forma literária popular no Brasil, o futebol, um dos vértices da cultura brasileira, fornece à Literatura de Cordel inúmeros temas, cantados pelos cordelistas em seus longos poemas rimados.

Para este breve estudo, baseados nos apontamentos anteriores, elegemos como corpus de análise três cordéis que têm por tema Copas do Mundo de futebol, com objetivo de evidenciarmos aspectos específicos de tal relação na “era de ouro” da Seleção Brasileira: Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi (1962), de Raul de Carvalho; O Brasil na Copa do Mundo (1962), de Cuíca do Santo Amaro; O Brasil tricampeão (1970), de José João dos Santos, o “Mestre Azulão”.

O folheto Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi

Iniciaremos nossa análise pelo folheto Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi (1962), do cordelista Raul de Carvalho, uma espécie de ode à Seleção Brasileira que conquistou o bicampeonato mundial de futebol no Chile. Em termos formais, esse folheto é composto por 95 estrofes em sextilhas, com versificação em redondilha maior, de sete sílabas poéticas, com rimas em a-b-c-b-d-b, traços característicos da Literatura de Cordel, e apresenta na capa a reprodução de uma fotografia da Seleção Brasileira. Aliás, o número elevado de estrofes (95) e de páginas (20) evidencia que estamos diante de um tipo textual “romance”, conforme postulado por Marlyse Meyer (1980, p. 3-4), e não de um tipo textual “folheto noticioso” que, em geral, possui apenas 32 estrofes e 08 páginas.

Além disso, esse folheto apresenta algo peculiar, não tão comum na Literatura de Cordel: um preâmbulo em prosa, que antecede à primeira estrofe:

A mais emocionante e sensacional campanha de atração futebolística da atualidade, aonde os brasileiros consagraram-se Bi-Campeões mundial de futebol, dominando e envolvendo de maneira espetacular, seus bravos e lutadores adversários.            

Onde tiveram a magnifica oportunidade de ofertarem ao público mundial, e com especialidade ao distinto povo brasileiro a hegemonia com a verdadeira classe e técnica do futebol Nacional. (CARVALHO, 1962, p. 1)

Além do tom superlativo evocado pela conquista, o cordelista apresenta o escrete como hegemônico em relação aos “seus bravos e lutadores adversários”, estabelecendo “a verdadeira classe e técnica do futebol Nacional”. Em sequência ao preâmbulo, o poeta constrói seu ethos de religiosidade e fé, antes de cantar em seus versos o torneio propriamente dito:

Ó meu “Jesus radiante”

dai-me luz e inspiração

para eu descrever em verso

com a maior sensação

como foi que os brasileiros

ganharam o Bi-Campeão.

(CARVALHO, 1962, p. 1)[5]

Trata-se de algo relativamente comum em folhetos desse tipo, em que a fé também é um elemento emocional do próprio torcer pelo escrete canarinho. Logo em seguida, o poeta enaltece em seus versos mais uma conquista da Seleção Brasileira, como continuidade do triunfo celebrado na Suécia, em 1958:

No ano cincoenta e oito

o Brasil foi “Campeão”

jogaram lá na Suécia

com o (mesmo) no coração

este ano lá no Chile

ganharam o Bi-Campeão.

(CARVALHO, 1962, p. 1)

Seus versos revelam também que o poeta associa o desempenho da Seleção Brasileira ao sentimento de identidade nacional, algo que, de fato, se estabeleceu em termos de representatividade esportiva e que se consolidou com a conquista do tricampeonato no México, em 1970, mas que já se evidenciava no folheto do início da década de 1960:

O Brasil tem uma equipe

que luta com heroísmo

sabendo se conduzir

pelo seu patriotismo

demonstrando disciplina

categoria e civismo.

CARVALHO, 1962, p. 2)

Desse modo, a Seleção é definida nesses versos por suas supostas virtudes: “heroísmo”, “patriotismo”, “disciplina”, “categoria” e “civismo”. E o poeta não deixa de destacar em seus versos também sua cor de camisa característica, idealizada por Aldyr Garcia Schlee em 1953, que a tornaria famosa mundo afora:

A equipe do Brasil

conhecida por Canarinho

lutou e ganhou o título

que estava em seu caminho

de volta foi recebida

com muito amôr e carinho.

(CARVALHO, 1962, p. 2)

Cabe ressaltar que foi o primeiro título conquistado pela Seleção jogando na final do torneio com a camisa canarinho, uma vez que, em 1958, os anfitriões suecos também jogavam com camisa amarela, o que gerou a necessidade de a CBD lançar mão da camisa azul na final. No referido folheto, o poeta também expressa seu desejo de fazer jus ao desempenho da Seleção na Copa do Chile, contando a saga que a levou a mais uma conquista mundial:

Falando sôbre o Brasil

eu quero então relatar

bem minuciosamente

sem cousa alguma aumentar

como portou-se este team

e como soube lutar

(CARVALHO, 1962, p. 3)

Cada jogador daquela Seleção foi agraciado pelos versos do poeta: o goleiro Gilmar, Mauro, Djalma Santos, Nilton Santos, Zózimo, Zito, Didi, Garrincha, Vavá, Amarildo, que substituiu Pelé lesionado após a primeira partida, e Zagalo. Mas é Garrincha aquele que se sobressai em seus versos:

Garrincha é o maior

de todos os mundiais

envolveu todas as defesas

com seus “DRIBLES” infernais

deixando desnorteados

de um a um seus rivais.

(CARVALHO, 1962, p. 19)

O folheto do poeta potiguar Raul de Carvalho, portanto, se enquadra no eixo temático “acontecimento de repercussão social”, conforme classificação proposta por Maria Elisabeth de Albuquerque (2011, p. 63), pautado por um tipo textual “romance” (MEYER, 1980, p. 3-4), em que os feitos da Seleção Brasileira nos gramados chilenos é cantado com traços épicos, jogo a jogo.

O folheto O Brasil na Copa do Mundo (1962)

Outro folheto dedicado à Seleção Brasileira e a um momento muito especial em sua história, o da conquista do bicampeonato mundial, é O Brasil na Copa do Mundo (1962), do cordelista Cuíca de Santo Amaro, apelido do poeta soteropolitano José Gomes Filho, autor de inúmeros folhetos publicados dos anos 1930 a meados dos anos 1960. Antes da estampa de seu nome na capa, figurava também a expressão “Autoria D’ele o Tal!”

Como é comum em folhetos de cordel, a capa é composta por imagem de xilogravura ou por reprodução fotográfica. No caso do folheto O Brasil na Copa do Mundo, publicado em 1962, figura uma fotografia da Seleção Brasileira que conquistou o Mundial naquele ano, no Chile. Logo na primeira estrofe, é possível notar que o folheto foi publicado após a conquista do título de bicampeão:

O Brasil conservou

Bem alto o seu pedestal

Honrou o seu grande nome

Impoz a sua moral

Demonstrando ser mesmo

O Campeão Mundial

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 1)

Em sua composição o folheto O Brasil na Copa do Mundo apresenta um total de 32 estrofes, com estrofação em sextilhas e versificação em redondilha maior, ou seja, em sete sílabas poéticas, com rimas em a-b-c-b-d-b, composição típica do gênero cordel. Os totais de estrofes (32) e, respectivamente, de páginas (08) demonstram que se trata do tipo textual “folheto noticioso” (MEYER, 1980, p. 3-4). Certo tom de religiosidade também se expressa nos versos de Cuíca de Santo Amaro ao decantar a façanha brasileira no Mundial do Chile, naquela máxima popular de que “Deus é brasileiro”:

Porque no Brasil

Onde Cristo foi nascer

Tinha de progredir

Havia de crescer

Portanto o Brasil

Só tinha que vencer

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 1)

Estudiosos do cordel apontam para o fato de que um dos temas preferidos dos poetas populares são os acontecimentos de grande projeção no cotidiano: fatos políticos, crimes, escândalos, tragédias, mas também eventos esportivos, sobretudo quando envolvem a participação da Seleção Brasileira em torneios mundiais. Ao perceber o potencial de tais eventos para atrair o público leitor de seus folhetos, Cuíca de Santo Amaro foi um pioneiro em produzir, com seus versos, uma ode laudatória àquela Seleção comandada pelo técnico Aymoré Moreira:

Parabéns ao Aimoré Moreira

O príncipe dos treinadores

Pelo estímulo e confiança

Aos nossos jogadores

Quem envia-lhes parabéns

É o decano dos Trovadores

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 8)

E com a ausência do Rei Pelé, lesionado logo no segundo jogo do torneio, contra a seleção da Tchecoslováquia, sendo substituído por Amarildo, o “Possesso”, o maior destaque dentre os titulares do selecionado canarinho ficou para Mané Garrincha, conforme demonstram os seguintes versos do poeta popular:

Sim!… o Garrincha

Jogador fenomenal

Seu Mané das pernas tortas

Como ele não tem igual

Infeliz se não fosse ele

Do quadro Nacional

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 6)

Para o cordelista, foi algo digno de se registrar na memória dos brasileiros:

O feito do Brasil

Nesta sua trajetória

Jamais Brasileiros!…

Sairá da nossa memória

Ficando também gravado

Nas páginas da nossa história

(CUÍCA DE SANTO AMARO, 1962, p. 8)

Por fim, ressalta-se que, não obstante o tom épico da vitória, o poeta se limita apenas a dedicar estrofes a apenas uma partida do torneio, justamente a final, disputada em 17 de junho de 1962 contra a seleção da Tchecoslováquia, derrotada pela Seleção Brasileira, pelo placar de 3×1, com gols de Amarildo, Zito e Vavá.

O folheto O Brasil tricampeão

Como terceira obra exemplar que compõe nosso corpus de análise, selecionamos o folheto O Brasil tricampeão (1970), do cordelista paraibano José João dos Santos, o “Mestre Azulão”, que se tornaria um dos fundadores da famosa Feira de São Cristóvão, centro da cultura nordestina no Rio de Janeiro. Em sua capa, o folheto apresenta uma fotografia em que aparecem o treinador da Seleção Zagallo e o capitão Carlos Alberto, trajados com ternos contendo o distintivo da CBD – a Confederação Brasileira de Desportos – e segurando a taça Jules Rimet, conquistada definitivamente no Mundial do México em 1970. Provavelmente, trata-se de reprodução de uma fotografia tirada durante a visita dos integrantes da Seleção e da Comissão Técnica à capital federal e aos detentores do poder em seu regresso ao Brasil. Não é por acaso que, logo na primeira estrofe, o tom ufanista se faz presente:

Desportista brasileiro

De conhecimento profundo,

Vibrai com patriotismo,

Hora, minuto e segundo,

O Brasil trouxe com glória

Os triunfos da vitória

Na grande Copa do Mundo.

(SANTOS, 1970, p. 1)

O folheto O Brasil tricampeão apresenta a composição típica desse gênero literário, ou seja, 32 estrofes, com estrofação em septilhas e versificação em redondilha maior, em sete sílabas poéticas, com rimas em a-b-c-b-d-d-b. Outra estrofe desse folheto parece reverberar um dos versos do jingle daquela Copa, “Pra frente, Brasil!”, de autoria de Miguel Gustavo:

Salve o Brasil verde-louro,

Salve a nossa seleção,

Pelé, Jair, Rivelino,

Gérson, Clodô e Tostão,

Que mostraram a nossa raça

Trazendo a glória e a Taça

Ao Brasil tri campeão.

(SANTOS, 1970, p. 1)

O folheto traz também como registro uma estrofe que transmite certo olhar crítico para o treinador e jornalista esportivo João Saldanha, demitido do cargo em 17 de março de 1970 e substituído por Zagallo, afastado de sua função por divergências políticas e pela inferência dos detentores do poder na Seleção Brasileira:

João Saldanha se enganou

Com seu plano e sua lei

Depois da grande vitória

Êle disse assim que eu sei

(Esta me serviu de escola

O nosso Pelé na bola

Me mostrou que ainda é rei).

(SANTOS, 1970, p. 2)

Não falta também nesse folheto uma estrofe que expresse a imensa alegria da torcida brasileira após a conquista do tri:

O Brasil vibrou em festa

Da cidade até a roça

Foguetes, bandas de música,

Com bebida e farra grossa,

Blocos nas ruas pulando

E torcedores gritando,

Viva a Deus que a Copa é nossa.

(SANTOS, 1970, p. 5)

Ao final, o poeta enaltece o futebol como sendo a manifestação cultural e esportiva em que o congraçamento, aparentemente, supera a diferença social:

Assim foi a grande festa

Zuando num tom profundo

Unindo ricos e pobres,

Leigo, justo e vagabundo,

Aclamando êste é Brasil

O tri campeão do mundo.

(SANTOS, 1970, p. 8)

Em O Brasil tricampeão, o cordelista dedica uma estrofe a cada partida disputada e vencida pelos comandados de Zagallo. O número de estrofes (32) e, respectivamente, de páginas (08) demonstra que se trata do tipo textual “folheto noticioso” (MEYER, 1980, p. 3-4), em que o poeta canta, com traços épicos, as façanhas da Seleção nos gramados mexicanos.

As Copas do Mundo de futebol na Literatura de Cordel – à guisa de conclusão

Nosso breve estudo evidenciou a significativa presença temática do futebol no âmbito da literatura de cordel. No dia 19 de setembro de 2018, a Literatura de Cordel foi reconhecida como Patrimônio Imaterial Cultural Brasileiro, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Tal reconhecimento atesta a relevância da chamada “poesia popular” (PROENÇA, 1976, p. 28) para a cultura brasileira. Fundada em 07 de setembro de 1988, a Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC), com sede no bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro, tem contribuído para manter viva a memória e a produção dessa manifestação cultural típica da Região Nordeste, mas que também se expandiu para outros centros urbanos do país. Contando com um acervo de mais de 13 mil títulos, a ABLC (http://www.ablc.com.br/noticias/ ), sem dúvida, é uma excelente referência para pesquisas sobre a Literatura de Cordel.

A expressão “Seleções de Ouro” de nosso título foi inspirada na seguinte estrofe do folheto O Brasil tricampeão, do Mestre Azulão:

Nossa seleção de ouro

Tem a quentura do Sol,

Joga com classe e não teme

Time de fama e farol

Desta vez o brasileiro

Mostrou para o mundo inteiro

Que é rei no futebol.

(SANTOS, 1970, p. 1)

Os mitos do “futebol arte” e, respectivamente, do Brasil como “país do futebol” foram pavimentados pelas conquistas de 1958, 1962 e 1970. Nesse sentido, os três folhetos de cordel analisados neste estudo atestam a construção narrativa sobre os feitos daquelas “Seleções de Ouro”, muitas vezes pautada por clichês. Além disso, todos os três se enquadram no eixo temático “acontecimento de repercussão social” (ALBUQUERQUE, 211, p. 63), dois deles – O Brasil na Copa do Mundo (1962) e O Brasil tricampeão (1970) – se configuram de acordo com o tipo textual “folheto noticioso” (MEYER, 1980, p. 3), composto por 32 estrofes e 08 páginas, enquanto o folheto Copa do Mundo: 1962 – os Reis do Bi (1962) se enquadra no tipo textual “romance” (MEYER, 1980, p. 3-4), composto por 95 estrofes e 20 páginas.

Ainda em relação a questões de ordem formal, constatamos o predomínio da versificação em redondilha maior, com sete sílabas poéticas, com rimas cruzadas (com estrutura a-b-c-b-d-b), típicas desse gênero literário, porém, com uma ligeira variação em relação ao folheto O Brasil tricampeão, que apresenta estrofação em septilha (com estrutura a-b-c-b-d-d-b).

Por fim, em relação ao modo de apresentar as conquistas da Seleção Brasileira em 1962 e 1970, há um aspecto em comum entre os três folhetos analisados: todos enaltecem o desempenho vitorioso da Seleção, após terminados os torneios. Todos eles demonstram também que, sem dúvida, as artes do futebol e do cordel se encontram nesse rico manancial da poesia e da cultura popular brasileira.

Referências Bibliográficas

ALBUQUERQUE, Maria Elisabeth Baltar Carneiro de. Literatura Popular de Cordel: dos ciclos temáticos à classificação bibliográfica. (doutorado em letras). João Pessoa, PB: Universidade Federal da Paraíba, 2011.

CAMPBELL, Courtney. The Northeast plays football, too: World Cup Soccer and regional identity in the Brazilian Northeast. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 32, n. 68, p. 720-743, set./dez. 2019. Disponível em: https://orcid.org/0000-0001-6918-6382 . Acesso em: 15 jun. 2022.

CANTEL, Raymond. La littérature populaire brésilienne. Poitiers: Centre de Recherches Latino-Américaines, 1993.

CARVALHO, Raul de. Copa do Mundo: 1962 – Os Reis do Bi. Nova Cruz, RN: Lux, 1962. Disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/DocReader.aspx?bib=Literatura%20de%20Cordel%20-%20C0001%20a%20C7176&PagFis=21299&Pesq=copa%20do%20mundo. Acesso em: 30 mar. 2023.

CUÍCA DE SANTO AMARO. O Brasil na Copa do Mundo. Sem local: Edição do Autor, 1962, 8p. Disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176. Acesso em: 27 abr. 2023.

IPHAN. Literatura de Cordel – Dossiê de Registro. Brasília, DF: IPHAN, 2018. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_Descritivo(1).pdf . Acesso em: 15 jun. 2022.

MELO, Rosilene Alves de. Do rapa ao registro: a literatura de cordel como patrimônio cultural do Brasil. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Dossiê: Cordel e patrimônio. São Paulo, n. 72, p. 245-261, abr. 2019. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/157060. Acesso em: 30 jun. 2022.

MELO, Rosilene Alves de. Literatura de Cordel: conceitos, intelectuais, arquivos. Projeto História. São Paulo, v. 65, p. 66-99, mai./ago. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.23925/2176-2767.2019v65p66-99 . Acesso em: 15 jun. 2022.

MEYER, Marlyse. Autores de cordel. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

PROENÇA, Ivan Cavalcanti. A ideologia do cordel. Rio de Janeiro: Imago, Brasília: INL, 1976.

PROENÇA, Ivan Cavalcanti Futebol e palavra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.

SANTOS, José João dos [Mestre Azulão]. O Brasil tricampeão. Sem local: A Voz da Poesia, 1970. Disponível em: http://acervosdigitais.cnfcp.gov.br/Literatura_de_Cordel_C0001_a_C7176. Acesso em: 27 abr. 2023.

Notas

[1]

No original:

Most football-themed cordel literature narrates a victorious World Cup tournament or its final match. ‘O Brasil na Copa do Mundo’ and ‘A vitória do Brasil na VI Copa do Mundo’, for example, relate each match, praise the players and the coach, and claim that Brazil’s 1958 World Cup win was one of Brazil’s greatest glories (Gomes, 1958; D’Almeida Filho, 1958). The rare mention of regions evokes a sense of national unity instead of divide.

[2]

No original:

Le football est le seul sport qui retienne l’attencion des poètes du cordel et  seulement dans les grandes occasions, quand l’équipe du Brésil remporte le championnat du monde, par exemple. Alors paraissent de nombreuses brochures qui font vibrer la corde patriotique.

[3]

No original:

Généralement ce sont des compositions médiocres inspirées par les journaux. Le monde des poètes du cordel n’a guère de rapports directs avec celui des grandes équipes internationales.

[4]

No original:

In 1962 and 1970, both years in which Brazil won the World Cup tournament, this form of cordel reappears, but other characteristics of Brazilian nationality began to surface. W. Pinheiro, in a cordel that details each match of the 1970 World Cup, explains that Brazil should serve as an example for the rest of the world.

[5] Nas citações de cordel, mantivemos sempre o texto original, mesmo que estes contenham alguns lapsos de digitação ou de redação.


O mundo circense na pintura de Marc Chagall

23/01/2023

ELCIO LOUREIRO CORNELSEN


Nos últimos dois anos, temos desenvolvido estudos sobre representações do lazer e do entretenimento nas artes plásticas, sobretudo em obras produzidas nas primeiras décadas do século XX. Especificamente, trabalhamos com pinturas de August Macke (1887-1914)[i] e desenhos de Heinrich Zille (1858-1929)[ii]. Para realizar a análise das obras, tomamos por orientação o procedimento proposto por Victor Andrade de Melo (2009, p. 22) ao partir das imagens para estudar representações artísticas do esporte e do lazer nas artes plásticas: “Isto é, não se tratou de buscar obras que ilustrassem o que as fontes documentais informavam sobre os temas tratados, mas sim partir do que as imagens informavam, não só no que se refere ao tema, como também naquilo que dizia respeito à forma e ao contexto de representação”.

Neste breve estudo, tomaremos por objeto o mundo circense e sua representação em obras do pintor Marc Chagall (Moshe Zakharovitch Shagal; 1887-1985), um dos expoentes da arte moderna e de vanguarda no século XX. Para isso, selecionamos um corpus formado pelas seguintes obras: Le Cirque (1922-1944; O circo), Le Grand Cirque (1956; O grande circo), Le Cirque bleu (1967; O circo azul), Le Cheval de Cirque (1964; O cavalo de circo), e Le Grand Cirque (1967; O circo).

Podemos afirmar, sem sombra de dúvida, que o tema do circo foi fonte de inspiração para Chagall ao longo de sua vida. Ainda criança em Vitebsk, distante aldeia natal na Rússia czarista, Chagall demonstrava verdadeira fascinação pelas companhias circenses itinerantes que se apresentavam nos pequenos vilarejos, com seus acrobatas, equilibristas, palhaços e animais. Mais tarde, quando se transferiu para Paris em 1910, aos 23 anos, após ter vivido em São Petersburgo desde 1907, passou a ir regularmente a grandes circos, na companhia de Ambroise Vollard (1866-1939), famoso marchand e curador de exposições de arte na capital francesa, que incentivou a produção artística da jovem geração que acorreu a Paris, considerada à época o centro artístico europeu. Sentado na plateia, Chagall esboçava e desenhava croquis para futuras telas. Inclusive, consta que, no início dos anos 1920, quando Chagall retornou a Paris, Vollard encomendou 19 pinturas em guache que formariam uma série temática sobre circo.

Cartaz de Jules Chéret (1836-1932) para o Nouveau Cirque de Paris (1886)

Fonte: Musée de la publicité, Paris

Circopedia – The Free Encyclopedia of the International Circus (http://www.circopedia.org/File:Nouveau_Cirque_Cheret.jpg )

Na Belle Époque, Paris era um dos principais centros de atrações na Europa, na qual o mundo circense viveu seu florescimento e também teve seu espaço de destaque, com o Le Noveau Cirque (1886-1926), o Le Cirque Fernando (1875-1897), o Le Cirque Mendrano (1873-1962), entre outros, verdadeiros templos de lazer e entretenimento. Certamente, os espetáculos circenses na capital francesa foram fontes de inspiração para as obras de Chagall que contemplam o tema, bem como espetáculos circenses na então capital russa, São Petersburgo, de 1907 a 1909, quando o artista teve aulas de pintura com Léon Bakst e de desenho com Mstilav Dobuzhinsky (MAGALHÃES, 2009, p. 163), entre eles, o Circus Ciniselli (1875-1921).

Cartaz para o Circus Ciniselli em São Petersburgo,

sob direção de Scipione Ciniselli (1900)

Fonte: Circopedia – The Free Encyclopedia of the International Circus

(http://www.circopedia.org/File:Ciniselli_-_Scipione.png )

A atmosfera lúdica e colorida do circo cativou Chagall desde cedo, mesmo com as pequenas companhias itinerantes do período de sua infância, cujos espetáculos eram muito mais modestos do que aqueles que conheceria nas grandes casas circenses de São Petersburgo, Moscou e Paris. O circo lhe transmitia a ideia de um ambiente artístico e de entretenimento em que todos os aspectos da vida eram representados, em uma ampla variação do trágico ao cômico. Os artistas de circo, com seus trajes excêntricos e maquiagem em cores vivas, tornaram-se personagens ideais para povoar as composições oníricas de Chagall.

Espetáculos circenses na pintura de Chagall

Iniciemos nossa análise de pinturas de Marc Chagall que contemplam o tema do circo por Le Cirque, tela em que o artista trabalhou por mais de duas décadas, de 1922, quando emigrou da Rússia em definitivo, a 1944, quando se encontrava exilado nos Estados Unidos, após ter deixado a França em 1941, invadida por tropas alemãs:

Le Cirque

(1922-1944; O circo)

Material: óleo sobre tela, 37,3 x 57,7 cm

(https://musees-nationaux-alpesmaritimes.fr/chagall/collection/objet/le-cirque )

Inegavelmente, as obras de Chagall são marcadas por um intenso hermetismo, fruto de sua poeticidade e lirismo, que resulta do rompimento com o conceito tradicional de arte como narração. Ao contrário, suas obras não narram cenas, elas expressam tanto o trabalho memorialístico do artista na escolha de determinados elementos icônicos, quanto o tratamento do onírico e do subconsciente, em que tais elementos são justapostos, sem produzir, necessariamente, uma unidade de sentido. De acordo com Ekaterina L. Selezneva (2009, p. 30), “para Chagall, o tema é tecido como uma teia de aranha. Os sentidos não se revelam um após o outro: podem ser percebidos todos juntos, oferecendo a possibilidade de uma leitura extremamente complexa”. Podemos afirmar que essa é a principal marca do estilo do pintor russo de origem judaica, naturalizado francês em 1937, sendo que o uso da cor representa o elemento básico de sua pintura, ao ser empregado, fequentemente, para produção de efeito anti-mimético, algo que nos faz lembrar, por exemplo, de obras de Franz Marc (1880-1916), um dos grandes expoentes do Expressionismo alemão. Em Le Cirque, temos um bom exemplo desse hermetismo que marca as obras de Chagall.

Inicialmente, constata-se que Le Cirque sintetiza temporalidades e espacialidades distintas, da infância e da vida adulta do artista, do picadeiro e da aldeia. Certa vez, Chagall afirmou: “Cada pintor nasceu em um determinado lugar: mesmo que, mais tarde, ele reaja a influências de novos ambientes, certa essência, certo perfume de seu país natal sempre persistirá em seu trabalho” (CHAGALL apud SELEZNEVA, 2009, p. 14). Desse modo, entendemos que as raízes judaicas e as memórias dos tempos da aldeia na Bielorússia são elementos fundamentais para se entender a arte chagalliana, incluindo a série dedicada ao mundo circense. Como bem ressalta Selezneva (2009, p. 16),

ao enfatizar sua nostalgia, retornava continuamente a visões inalteradas e amadas, sem classificá-las em sua alma como judaicas, bielo-russas ou russas. Essas imagens eram inerentes à natureza de Chagall, que foi impregnado com a cultura judaica pelo leite materno, e colheu a cultura russa de seu entorno e de suas relações de amizade.

Entretanto, em termos de contextualização há um dado fundamental como pressuposto para se analisar Le Cirque: a origem de sua composição. Após cinco anos, de 1910 a 1914, morando em Paris, período que marcou o ingresso de Chagall no cenário artístico europeu e mundial, o artista retornou a Vitebsk para rever a família e Bella (Berta Rosenfeld), sua noiva, aproveitando uma breve passagem por Berlim, onde expôs obras na galeria de arte do círculo expressionista Der Sturm (A Tempestade), dirigido por Herwarth Walden (1878-1941). Todavia, com a eclosão da Primeira Guerra Mundial em agosto de 1914, Chagall se vê impedido de regressar a Paris. No ano seguinte, casa-se com Bella e segue pintando novas obras e se transfere para São Petersburgo, capital da Rússia czarista, até 1917. Com a Revolução de Outubro, o artista se torna um dos principais nomes para promover o cenário artístico do país segundo diretrizes do novo Estado Soviético. Além de eleito para o cargo de Comissário de Artes da região de Vitebsk em 1918, e de ter fundado a Escola Popular de Arte em sua cidade natal no ano seguinte (MAGALHÃES, 2009, p. 165-166), Chagall pintou sete painéis em tela para compor grandes murais decorativos para o Teatro Municipal Judaico em 2020, na cidade de Moscou, nova capital do país sob o regime soviético (SHATSKIKH, 2018). Nos murais para o Teatro, o circo também se fez presente como tema da arte performática. Conforme Alexandra Shatskikh aponta,

[s]egundo Chagall, tudo no circo era real e autêntico. Animais e palhaços em sua astúcia, as ginastas e os acrobatas com seus corpos criativos atuando no extremo de seu potencial natural, não representavam – na verdade, eram. Os trajes coloridos dos artistas circenses apenas enfatizavam o impacto festivo de sua criação viva.[iii] (SHATSKIKH, 2018; tradução própria)

Todavia, em 1922, decepcionados com os rumos que a arte estava tomando sob a tutela do regime soviético, Chagall e Bella deixam sua terra natal em definitivo, vivem por alguns meses de 2023 em Berlim e se transferem para Paris, para atender ao chamado de Ambroise Vollard, que lhe encomendara algumas ilustrações de livros, incluindo uma série sobre o mundo circense, intitulada Le Cirque de Volard (MAGALHÃES, 2009, p. 41-42). Em um desses trabalhos, o artista refez de memória uma das telas que, originalmente, compunham o mural do Teatro Municipal Judaico de Moscou, a qual designou de Le Cirque. Por anos, Chagall a manteve em seu ateliê e a levou também para a América, quando se exilou em 1941.

Conforme podemos constatar, Le Cirque revela uma densidade de elementos em sua composição: três acrobatas dominam a cena, todos de ponta cabeça, se equilibrando sobre as mãos e sustentando o peso dos corpos com os braços esticados. Eles trajam vestes coloridas distintas, e apenas um deles está com o rosto virado para frente, na direção de quem contempla a cena. Justamente esse acrobata possui algo enrolado em seu braço esquerdo, que o diferencia dos demais: o filactério (tefilin), utilizado enrolado ao braço esquerdo – e também fixado à fronte – por judeus religiosos ao fazerem as orações diárias. Certamente, uma reminiscência do mural decorativo do Teatro Municipal Judaico de Moscou que foi mantida em sua versão de 1944, quando a tela vem a público. Além dos três acrobatas, outras duas figuras se destacam em Le Cirque: dois palhaços, sendo que um está sentado com suas vestes vermelhas em um banquinho, no canto direito inferior da tela, mirando os acrobatas, e o outro está um pouco mais atrás, entre a fileira dos acrobatas e a coluna de mulheres e homens que caminham por trás deles.

Em sua complexidade, Le Cirque estabelece uma relação entre, pelo menos, duas camadas: a do mundo circense e, respectivamente, do universo da aldeia. Ao fundo, vê-se casebres, por trás dos quais o sol crepuscular projeta luminosidade em direção à cena escura que domina a tela. A vaca de ponta cabeça que paira no ar entre os dois palhaços também é uma referência icônica da aldeia nas obras de Chagall. Desse modo, realidade e fantasia se fazem presentes na representação do mundo circense, mas não podemos deixar de notar também certo tom sombrio transmitido por Le Cirque. As figuras humanas que caminham em coluna atrás dos acrobatas podem significar o movimento de fuga daqueles que se viram impelidos a deixar sua terra natal para sobreviver à violência, em decorrência tanto da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa, quando ocorreu grande êxodo rumo ao Ocidente, quanto da Segunda Guerra Mundial e da Shoah, que chegara ao fim um ano após o artista ter concluído a obra. Aliás, uma das figuras humanas, posicionada à esquerda, parece tocar violino, e outra, mais ao centro da tela, trajando vestes escuras, carrega algo que parece ser os rolos da Torá, em que a tradição cultural e religiosa é levada por aqueles que são impelidos a deixar seus lugares de origem.

Por sua vez, a segunda obra de Chagall selecionada para análise é Le Grand Cirque, de 1956, que apresenta outros elementos importantes para se entender a representação do mundo circense nas obras desse mestre da pintura moderna:

Le Grand Cirque

(O Grande Circo; 1956)

Material: óleo e guache sobre tela, 159,5 × 308,5 cm

(https://www.sothebys.com/en/auctions/ecatalogue/2017/impressionist-modern-art-evening-sale-n09740/lot.48.html )

A obra Le Grand Cirque, conforme o título indica, se relaciona muito mais com as grandes casas circenses de São Petersburgo e de Paris, do que propriamente com os circos de modestas companhias itinerantes, dos tempos de infância e adolescência de Chagall. Na tela, está presente um conjunto de figuras humanas formado por acrobatas, trapezistas, bailarinas, palhaços e músicos em primeiro plano, e o público ao fundo. Reconhece-se que, especificamente, três grupos são destacados pela luminosidade que incide sobre o tom azul, predominante na tela: ao centro, vemos a figura de uma amazona, com seu vestido branco e tons coloridos, que se equilibra sobre um cavalo preto-esverdeado; do lado direito, pela coloração de suas vestes, em laranja, e de seus cabelos vermelhos, destaca-se a figura de uma violinista, cujo corpo está apoiado nas costas de um acrobata, com corpo em tamanho desproporcional, que se equilibra sobre as mãos no solo, de ponta cabeça; do lado esquerdo, vemos um conjunto composto por cinco figuras em destaque, precisamente uma bailarina, um acrobata, uma contorcionista, um animal, parecendo ser um cavalo, que se equilibra nas patas traseiras e segura uma sombrinha, e uma figura híbrida, com corpo humano e cabeça de bode, que segura um buquê de flores nas mãos.

Com relação a esse último aspecto, cabe aqui uma inferência que nos auxilia na análise da tela: o fato de que Marc Chagall expressa em suas obras um tom de nostalgia, que remete aos tempos de infância e adolescência em Vitbesk. Figuras híbridas como essa que vemos em Le Grand Cirque estão presentes também em outras obras do pintor russo, entre elas, La Danseuse au Bouc ou La Fiancée au Bouquet vert (1945; A Dançarina com o Bode ou A Noiva com o buquê verde), Le Printemps ou Le Bouc au violon (1938, A Primavera ou O Bode com violino), Songe d’une Nuit d’Été (1939; Sonho de uma Noite de Verão), Arlequin à la Lune jaune (1969; Arlequim na Lua amarela) e Le Bouc musician (1982; O Bode músico). Porém, muito antes, nas primeiras telas pintadas por Chagall em Paris que remetem a Vitebsk, a figura do bode já se fazia presente: Moi et le Village (1911; Eu e a Aldeia), La Pluie (1911; A Chuva) e Vitebsk, Scène de Village (1917; Vitebsk, Cena da Aldeia).

Haveria, ainda, muito mais elementos a se analisar em Le Grand Cirque, por exemplo, o corpo de um acrobata separado de sua cabeça, que paira no ar, ou mesmo a cabeça azul sem corpo, na parte superior direita da tela, ou as mãos vermelhas. Todos esses elementos aparecem em outras obras de Chagall, o que evidencia não somente uma ressonância entre elas, como também um modo de o pintor trabalhar, pictoricamente, a memória. Le Grand Cirque e as próximas obras a serem analisadas datam dos anos 1950 e 1960, quando o pintor já residia em Saint-Paul de Vence, no Sul da França, e, por certo, resultam de croquis desenhados pelo artista há várias décadas antes. Podemos supor que o modo como Chagall representa, pictoricamente, o circo produz uma junção entre o olhar do adulto que contempla a cena e as reminiscências da infância, inclusive como modo de celebração de suas raízes judaicas em Vitebsk. Não é por acaso, aliás, que Marc Chagall representa o shtetl, a aldeia judaica, e os seres que a habitam – humanos, animais, seres divinos etc. –, em que realidade e fantasia parecem entretecidas, bem ao gosto do universo hassídico do Leste Europeu no qual nasceu e cresceu, em que a harmonia entre homem e animal e a unidade entre divino e terreno ocupam lugar de destaque. Conforme aponta Ekaterina L. Selezneva (2009, p. 28), “o talento de Chagall reuniu os céus e a vida terrena”. E conforme apontamos em outro estudo, “[s]uas numerosas obras representam cenas do cotidiano nos vilarejos judaicos da Rússia czarista” e, ao mesmo tempo, se atrelam “à tradição oral de narrativas do Leste Europeu, sobretudo do shtetl com suas histórias povoadas de figuras fantásticas”. (CORNELSEN, 2006, p. 101). O universo hassídico, sem dúvida, seria um elemento que influenciaria a arte de Chagall por toda sua vida. As palavras de Fábio Magalhães (2009, p. 33), curador da exposição “O mundo mágico de Marc Chagall: o sonho e a vida”, que esteve em cartaz em algumas capitais brasileiras em 2009, dão a dimensão de tal influência:

O hassidismo desenvolveu para a alma popular o sentido profundo das tradições bíblicas. Fortaleceu o sentimento religioso na relação do divino no cotidiano e trouxe para a vida social, na trivialidade dos dias, o júbilo pela criação do mundo e do homem, ou seja, o entusiasmo pelas pessoas, pela natureza e pelas coisas do universo. No hassidismo, a relação com Deus é feita com intensa alegria, à procura do êxtase. Esse sentimento apareceu já nas primeiras obras de Chagall e se manteve como uma melodia constante durante toda a sua vida. Mesmo depois de se transformar em cidadão do mundo, vivendo na França e nos Estados Unidos, ele continuou carregando, consigo, como um caracol, a memória de sua aldeia, do bairro de judeus pobres de Vitebsk.

Desse modo, ao entretecer o divino e o terreno também nas telas que representam o mundo circense, como em Le Grand Cirque, por assim dizer, Chagall promove uma divinização da arte circense, algo que escaparia a uma representação meramente mimética dos espaços e das performances de suas personagens.

Passemos, agora, à análise da obra Le Cirque bleu (1967; O circo azul), que se compõe de outros elementos icônicos:

Le Cirque bleu
(1967; O circo azul)
Material: óleo sobre tela, 34,9 × 26,7 cm
(https://www.tate.org.uk/art/artworks/chagall-the-blue-circus-n06136 )

Mais uma vez, estamos diante de uma tela de Marc Chagall repleta de elementos que, em princípio, não permitem uma associação imediata entre si e demandam contextualização. Assim como em Le Grand Cirque, predomina a cor azul, um atributo do circo, aliás, destacado no próprio título da tela. Uma figura humana domina o centro da tela: uma jovem trajando um colant vermelho, que faz acrobacias aéreas no trapézio, de ponta cabeça. Outras figuras e objetos compõem a cena: um peixe azul na parte superior da tela, algo sempre associado pelos críticos de arte ao pai do pintor, que era comerciante de arenques em Vitebsk; um ramalhete de flores que é lançado por uma mão, também na parte superior da tela, talvez como sinal de reconhecimento à performance da trapezista; um galo verde tocando bumbo no canto superior direito; a cabeça de um cavalo verde em destaque, na parte inferior da tela, sendo que, segundo os críticos de arte, a cor verde nas telas de Chagall representaria o amor; no canto inferior direito, há outras duas figuras humanas que, todavia, não recebem maiores detalhes ou cores distintas, mas nota-se que se trata de uma jovem que flexiona seu corpo segurando um arco, e de um músico que toca violino; outro violino em menores proporções aparece também na cena, sobreposto à lua amarela e brilhante, na parte central direita da tela, o que reforça a impressão de uma cena noturna. Aliás, algo que já aparecia em Le Cirque, na personagem que acompanha a coluna humana em fuga, e Le Grand Cirque, no conjunto de músicos, mas que não foi analisado anteriormente, é o violino, objeto que recebe destaque especial na obra de Marc Chagall. Basta pensarmos na série chagalliana dos violinistas, que figura como a mais conhecida do público em geral. Conforme apontamos no estudo intitulado “De ‘Tévye, o leiteiro’ ao ‘Violinista no telhado’” (C0RNELSEN, 2016, p. 92), no documentário Le Peintre à la tête renversée (O Pintor com a cabeça virada), de Dominik Rimbault (1984), exibido pela TV Cultura dentro da série “Grandes Mestres da Pintura”, entre outros temas, Chagall fala sobre as memórias de infância em Vitebsk, em que havia a figura dos músicos nas cerimônias de casamento:

Sempre gostei de violino, muito. Vocês sabem… Quando ouvia os músicos, eu me comovia. Isso é importante! Não tinha o que olhar. Havia pássaros pretos no céu cinzento. Quando havia violinistas para os casamentos… não havia concertos, não havia Rubinstein…, Yehudi Menuhin… Havia músicos para os casamentos. […] Todos os sábados, o tio Leni punha um talit,[iv] não importa qual, e lia a Bíblia em voz alta. Ele tocava violino como um sapateiro. Meu avô ouvia e sonhava. (RIMBAULT, 1984)

Portanto, devemos entender a composição dessa e de outras telas de Chagall em sua complexidade, pois as perpassam espacialidades e temporalidades distintas, por exemplo, daquele que está sentado na plateia, no circo em Paris, e se entretém – porque, não, também esboçando seus croquis – e que rememora a infância e o circo no vilarejo natal e em outras localidades próximas na Bielorússia ou em São Petersburgo na Rússia. Isso nos permite inferir que o mundo circense do artista russo se difere sensivelmente, por exemplo, daquele representado pelo pintor expressionista August Macke (CORNELSEN, 2022), pois a subjetividade se faz presente em Le Cirque bleu e em outras telas pelo olhar do pintor enquanto parte do público. Além disso, o procedimento anti-mimético adotado por Chagall traz outra qualidade à representação do mundo circense, mesmo em telas nas quais o lirismo e a nostalgia se fazem presentes, como nessa, em que a cor azul, pertencente às cores frias no círculo cromático, se associa à espiritualidade. Sobre o procedimento anti-mimético e o uso de cores Fábio Magalhães tece a seguinte consideração, da qual partilhamos:

Há extraordinária força cromática em sua pintura. Em muitos casos os contrastes de cor pura contrariam a lógica dos seres e dos objetos representados. Uma vaca azul, um rabino vermelho, essa liberdade cromática reforça sua lírica e ajuda a criar um mundo plástico que flutua entre o real e o imaginário, dotado de intensa magia. Também a geometrização trouxe novas possibilidades de tratamento espacial. (MAGALHÃES, 2009, p. 36)

Posto isto, passemos à análise da quarta obra de Chagall, intitulada Le Cheval de Cirque (1964; O cavalo de circo):

Le Cheval de Cirque

(1964; O cavalo de circo)

Material: guache e nanquim sobre papel cartão, 49,5 x 62,8 cm

(http://www.artnet.fr/artistes/marc-chagall/le-cheval-de-cirque-WSX4QeFUieYJTssLfp5v5A2 )

De início, podemos salientar um elemento que, nas três telas anteriores analisadas, não recebe maior destaque: o espectador. Em Le Cheval de Cirque, vemos a galeria ao fundo, em que o público contempla a performance simultânea de diversos artistas circenses: a amazona, ao centro do quadro, que se equilibra sobre o cavalo branco com manchas amarelas; dois acrobatas com suas vestes coloridas, do lado direito, em que um sustenta com um único braço o peso do corpo do outro, que está de ponta cabeça; um equilibrista, na parte superior da tela, parece se sustentar sobre a corda bamba, enquanto outro, do lado esquerdo, junto à figura de um cavalo, parece pairar no ar; na parte baixa da tela, figura um homem, com cartola, talvez o diretor do circo ou mesmo um palhaço, pois tem o rosto pintado. Nota-se ainda, que predominam cores vibrantes em diversos matizes – amarelo, laranja e vermelho, algo que diferencia Le Cheval de Cirque de Le Grand Cirque e Le Cirque bleu, em que predomina a cor azul. De certo modo, as cores vivas evocam uma atmosfera de agitação e intenso movimento, seja dos artistas, seja do público que os contempla. Além disso, outro aspecto difere Le Cheval de Cirque das outras três telas analisadas até aqui: a quase ausência de elementos que se associam ao universo judaico da aldeia. Embora o cavalo seja o elemento destacado pelo próprio título da obra, nota-se um detalhamento muito maior da performance circense na própria perspectiva do picadeiro e de seu entorno. Trata-se, pois, de uma grande casa circense, em que números de trapézio e acrobacia são apresentados ao público simultaneamente.

Por fim, analisaremos a quinta e última tela de Marc Chagall selecionada para análise neste breve estudo, intitulada também de Le Grand Cirque (1967; O grande circo):

Le Grand Cirque

(1967; O grande circo)

Material: litografia colorida sobre papel, 51,5 cm x 37,5 cm (https://www.masterworksfineart.com/artists/marc-chagall/lithograph/le-cirque-the-circus-from-cirque-1967-m512/id/w-7095 )

Em certa medida, Le Grand Cirque (II) dialoga com Le Cheval de Cirque, pois possui cores vibrantes – amarelo, laranja e vermelho – que acentuam a luminosidade da tela e destacam tanto a performance de artistas no picadeiro e no ar, quanto o público que a contempla. Nesse conjunto, identifica-se cinco personagens: dois músicos, sendo que um deles, posicionado na parte inferior esquerda da tela, trajando vestes vermelhas, toca violino, enquanto o outro, na margem direita da tela, toca clarinete; centralizada, figura uma malabarista trajando roupas coloridas, que gira um arco com o braço direito; outras duas figuras femininas estão acima, como se pairassem no ar, sendo que uma delas, trajando vestido azul, parece ser uma amazona que teria saltado do cavalo vermelho em posição rampante, que está a seu lado, enquanto a outra, igualmente com roupas coloridas, parece ser uma trapezista em movimento de vôo.

Embora predomine a performance circense na tela, nota-se a presença de, pelo menos, dois elementos que remeteriam a temporalidades e espacialidades distintas, retomadas pela memória visual: o violino, já destacado anteriormente, e o peixe amarelo tocando bumbo no canto superior esquerdo da tela. Conforme indicado quando da análise de Le Cirque bleu, em geral, críticos de arte apontam o peixe em obras de Chagall como uma alusão à figura paterna, que era comerciante de arenques em Vitebsk. Inclusive, o peixe se faz presente em várias telas, entre elas, em Le petit poisson et le pêcheur (1926; O pequeno peixe e o pescador), Création (1959; Criação), Le Verger (1961; O pomar) e Le Songe du capitaine Bryaxis (1961; O sonho do capitão Bryaxis). Além disso, mais uma vez, o bumbo não é tocado por uma figura humana, mas, sim, pelo peixe, algo que já havia sido detectado na análise de Le Cirque bleu, mas que não havia sido pormenorizado, quando o bumbo é tocado por um galo, outro elemento muito presente em obras do pintor russo, por exemplo, em Le Coq (1928; O galo), Les Mariés et la Tour Eiffel (1939; Os noivos e a Torre Eiffel), Le coq rouge dans la nuit (1944; O galo vermelho na noite), Les Mariés au traineau et au coq rouge (1957; Os noivos com trenó e galo vermelho). Les Amoureux au coq (1957; Os amantes com galo) e Scene de village au coq jaune (1970; Cena do vilarejo com galo amarelo). Interessante notar que o galo figura em obras cujo tema central é o amor, intensamente representado por cores vivas, enquanto o peixe, associado ao pai e às origens na pequena aldeia russa, às águas e à noite, também alude a certa religiosidade, com conotações bíblicas.

O mundo circense nas obras de um mestre da iconicidade – a guisa de conclusão

Marc Chagall figura na célebre galeria de artistas plásticos que representaram o mundo circense em suas obras, entre eles, Georges Seurat (1859-891), Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901), Georges Rouault (1871-1958), Kees van Dongen (1877-1968), Pablo Picasso (1881-1973), August Macke (1887-1914) e Fernand Léger (1881-1955). Em meio a influências do Cubismo, do Fauvismo e do Expressionismo, detentor de uma obra inclassificável e mística, e de um estilo original e independente, o artista russo desenvolveu uma linguagem própria, a qual se evidencia também em seu amor pela arte orgânica do circo enquanto espaço de performance artística, lazer e entretenimento. Chagall considerava palhaços, equilibristas, acrobatas e atores como seres humanos em todo o seu lirismo e tragicidade, feitos personagens de certas pinturas religiosas.

A análise do conjunto de obras formado por Le Cirque (1922-1944; O circo), Le Grand Cirque (1956; O grande circo), Le Cirque bleu (1967; O circo azul), Le Cheval de Cirque (1964; O cavalo de circo) e Le Grand Cirque (1967; O circo), não obstante várias lacunas e superficialidades que permanecem abertas ou imprecisas neste breve estudo, nos permite, no entanto, certas inferências. A primeira delas diz respeito ao jogo de temporalidades e de espacialidades, que influencia no modo como Chagall representa pictoricamente o mundo do circo. Se o artista esteve atento para um dos principais espaços de lazer e entretenimento, bem como de elevada performance artística, o modo como expressou o circo nas diversas telas analisadas é indissociável de certa nostalgia da infância e de seu torrão natal, a aldeia de Vitebsk, na Bielorússia.

Outro aspecto evidente é certa divinização do espaço do circo resultante do ato de entretecer, iconograficamente, o divino e o terreno a partir da justaposição de certos elementos icônicos não necessariamente associados, em que o sobrenatural irrompe na vida cotidiana. Nostalgia, religiosidade, amor emanam das telas de Chagall, em que o mundo circense e a performance de suas personagens, em meio a um ambiente alegre e multicor, representam uma arte divinamente redimida: “Mon cirque se joue dans le ciel” (“Meu circo se diverte no céu”).

Referências Bibliográficas

CORNELSEN, Elcio Loureiro. De ‘Tévye, o leiteiro’ ao ‘Violinista no telhado’. WebMosaica: Revista do Instituto Cultural Judaico Marc Chagall, Porto Alegre, v. 8, n. 1, p. 83-105, jan./jun. 2016. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/webmosaica/article/view/71159. Acesso em: 19 jan. 2023.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. As artes plásticas e suas representações do lazer: uma questão de olhar social. História(s) do Sport (blog). 03 out. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/10/03/as-artes-plasticas-e-suas-representacoes-do-lazer-uma-questao-de-olhar-social/ . Acesso em: 05 out. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Banhistas e sua representação na pintura de August Macke. História(s) do Sport (blog). 13 jun. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/06/13/banhistas-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/ . Acesso em: 26 set. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Espaços de lazer em desenhos de Heinrich Zille – um olhar social na Berlim antiga. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 18 out. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em 18. out. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer em desenhos de Heinrich Zille no início do século XX. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 03 ago. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer na pintura de August Macke. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 14 dez. 2021. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

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CORNELSEN, Elcio Loureiro. O mundo circense e o jardim zoológico na pintura de August Macke. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 26 abr. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

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SHATSKIKH, Alexandra. The Theatre in the Biography of Marc Chagall. Tretyakov Gallery Magazine. 2018. Disponível em: https://www.tretyakovgallerymagazine.com/articles/special-issue-marc-chagall-bonjour-la-patrie/theatre-biography-marc-chagall. Acesso em: 20 jan. 2023.

Filmografia

RIMBAULT, Dominik. Le Peintre à la tête renversée. 1984, França, colorido, 60 min.

Notas


[i] Artigos de nossa autoria sobre obras do pintor expressionista alemão August Macke:

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Banhistas e sua representação na pintura de August Macke. História(s) do Sport (blog). 13 jun. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/06/13/banhistas-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 26 set. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer na pintura de August Macke. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 14 dez. 2021. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. O mundo circense e o jardim zoológico na pintura de August Macke. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 26 abr. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. O velejar como lazer na pintura de August Macke. História(s) do Sport (blog). 21 fev. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/02/21/o-velejar-como-lazer-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 26 set. 2022.

[ii] Artigos de nossa autoria sobre obras do pintor, fotógrafo, litógrafo, desenhista e caricaturista alemão Heinrich Zille:

CORNELSEN, Elcio Loureiro. As artes plásticas e suas representações do lazer: uma questão de olhar social. História(s) do Sport (blog). 03 out. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/10/03/as-artes-plasticas-e-suas-representacoes-do-lazer-uma-questao-de-olhar-social/ . Acesso em: 05 out. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Espaços de lazer em desenhos de Heinrich Zille – um olhar social na Berlim antiga. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 18 out. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em 18. out. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer em desenhos de Heinrich Zille no início do século XX. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 03 ago. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

[iii] No original:

Everything in the circus was real and authentic, according to Chagall. The clever animals and clowns, the gymnasts and acrobats with their creative bodies performing at the very extreme of their natural potential, did not represent — they actually were. The colourful costumes of the circus artistes merely underscored the festive impact of their life creating.

[iv] O talit é um xale usado por judeus religiosos para cobrirem a cabeça ao fazerem as primeiras orações da manhã.


As artes plásticas e suas representações do lazer: uma questão de olhar social

03/10/2022

Elcio Loureiro Cornelsen

Nos últimos anos, nosso interesse tem se voltado para representações do lazer nas artes plásticas, especificamente no contexto alemão da virada do século e das primeiras décadas do século XX, muito inspirados pela obra Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos (2009), de Victor Andrade de Melo. Em publicações recentes, pudemos focar na vasta obra de um artista em especial: o pintor August Macke (1887-1914), um dos grandes nomes da pintura vanguardista na transição do Impressionismo para o Expressionismo, tragicamente morto em campo de batalha nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, logo nos primeiros meses do conflito bélico. Trata-se dos artigos “Imagens do lazer na pintura de August Macke” (2021),[1] “O mundo circense e o jardim zoológico na pintura de August Macke” (2022),[2] “O velejar como lazer e sua representação na pintura de August Macke” (2022)[3] e “Banhistas e sua representação na pintura de August Macke” (2022).[4] Desses estudos, pudemos depreender que uma das principais características de sua pintura é a preferência temática por ambientações ao ar livre, em parques, bosques e lagos, principalmente em locais de veraneio, em que pessoas trajadas à moda burguesa são retratadas em diversas atividades, incluindo as de lazer e entretenimento.

Como já afirmamos em artigo anterior, não parece ser fortuito o fato de que paisagens urbanas – o mundo fabril ou das inovações técnicas, por exemplo – sejam pouco frequentes nas obras de August Macke, e tal ausência, sem dúvida, deriva do lugar social no qual suas obras são produzidas. Além disso, em suas inúmeras obras, paisagens e pessoas no cotidiano são, em geral, retratadas com cores intensas e formas que se distanciam da realidade objetiva, sem, entretanto, recair no abstracionismo, salvo algumas exceções. August Macke é considerado um grande mestre das cores, que expressa em suas pinturas e aquarelas um mundo colorido e alegre. Seus quadros expressam imagens positivas e otimistas de um mundo intacto, fazendo jus à harmonia das pessoas com as coisas que as cercam, conforme o próprio pintor certa vez definiu sua arte: um “canto à beleza das coisas” (Gesang von der Schönheit der Dinge) (citado in DEUTSCHE WELLE, 2015).

Por sua vez, paralelamente ao estudo sobre pinturas de August Macke, nos ocupamos também da vasta obra do pintor, fotógrafo, litógrafo, desenhista e caricaturista alemão Heinrich Zille (1858-1929), sem dúvida, o principal nome dentre os artistas que retrataram o universo proletário de Berlim, o chamado “Milljöh”, nas primeiras décadas do século XX. As conjecturas iniciais foram publicadas recentemente no artigo “Imagens do lazer em desenhos de Heinrich Zille no início do século XX” (2022).[5] O principal interesse pela obra desse artista, chamado pejorativamente de “Raffael dos cortiços” (Raffael der Hinterhöfe), foi seu caráter popular, associado às camadas pobres de Berlim, então capital do Império, que se alçava ao patamar de uma das principais metrópoles europeias, com seus contrastes sociais advindos, sobretudo, do processo de industrialização nas últimas décadas do século XIX.

Cabe ressaltar, também, que no gesto de adaptar, jocosamente, o termo francês “milieu”, “meio”, ao cunhar o termo “Milljöh”, Heinrich Zille respondia, de maneira crítica, aos positivistas defensores de uma abordagem determinista do comportamento humano. O artista conhecia bem o “Milljöh” berlinense, pois caminhava por becos, frequentava bares e botecos, e visitava os cubículos insalubres em que moravam famílias inteiras, em bairros humildes da capital alemã, onde grassavam o desemprego, a miséria, a criminalidade e a injustiça social.

De início, podemos considerar alguns pressupostos para os olhares sociais distintos evidenciados por esses artistas em suas obras: Se August Macke entendia sua produção artística como modo de enunciar um “canto à beleza das coisas”, Heinrich Zille colocava sua arte a serviço daqueles que viviam à margem, eram ignorados e estavam ausentes dos ateliês e das exposições dos grandes pintores da época. Em geral, não devemos nos esquecer, criticam-se análises de obras que tomem por base referências a origens e lugares sociais dos artistas. Todavia, no caso de August Macke e Heinrich Zille, não nos furtamos a isso, por entendermos que suas origens e lugares sociais nos auxiliam a entender as escolhas que fizeram ao colocar a arte a serviço de posicionamentos que consideramos diametrais.

Heinrich Zille – Selbstporträt
(1922; auto-retrato)
(https://www.wikidata.org/wiki/Q498211 )

Desde a tenra idade, a miséria se fez presente na vida de Heinrich Zille. Seus pais pertenciam à classe operária e viviam em estado de pobreza, na cidade de Dresden, capital do estado de Sachsen (KOLBE, 2015). Zille passou fome em sua infância. Aos nove anos, a família se transferiu para Berlim, em 1867, em busca de trabalho e de condições melhores na ainda capital da Prússia que, quatro anos mais tarde, com a Unificação dos Estados Alemães, em 1871, se tornaria a capital do Reich. Sem dúvida, tais vivências da infância e adolescência foram marcantes para a formação de Zille como ser humano e artista, tornando-o atento às preocupações e sensibilidades daqueles que figuravam na base da pirâmide social. O próprio artista, certa vez, afirmou: “As observações e vivências da infância e da juventude, provavelmente, me ajudaram mais tarde a criar algumas imagens”. [6] (ZILLE apud OSTWALD, 1929). E em sua carreira profissional, a despeito da preferência do pai, que queria que o filho se tornasse açougueiro, Zille optou pela carreira artística, iniciada como litógrafo, passando a fotógrafo, ilustrador e caricaturista.

August Macke – Selbstporträt mit Hut
(1909; Auto-retrato com chapéu)
Material: óleo sobre madeira, 41 x 32,5 cm
(https://www.arteeblog.com/2014/12/august-macke-um-artista-expressionista.html )

Por sua vez, August Macke possui origens burguesas. Seu pai era engenheiro civil e empreiteiro de sucesso. Sua família se mudou para a cidade de Colônia logo após seu nascimento, em 3 de janeiro de 1887, deixando a cidade natal de Meschede, região de Sauerland, na Vestfália. Após a formação escolar, August Macke dedicou-se à formação artística ao ingressar em 1904 na Academia Real de Artes, em Düsseldorf. Em uma viagem a Paris, ficou maravilhado com exposições de artistas impressionistas, o que o levou a se decidir, em 1907, por dar prosseguimento a sua formação na Escola de Arte de Lovis Corinth (1858-1925) em Berlim, um dos artistas do Impressionismo alemão.

Portanto, devemos ter atenção, de antemão, para as escolhas que Heinrich Zille e August Macke fizeram em seus processos de formação artística, sem perder de vista que cada um se destacou, principalmente, em suportes distintos das artes plásticas: o desenho e, respectivamente, a pintura. Sem dúvida, essa distinção implica não só a adoção de materialidades e técnicas distintas, como também, modos distintos de difusão de suas obras. Enquanto August Macke passou a exibir suas obras em exposições, entre elas as exposições do círculo artístico “Cavaleiro Azul” (Der Blaue Reiter), realizadas em 1911 e 1912 nas cidades de Munique, Colônia, Berlim, Hagen e Frankfurt, Heinrich Zille divulgava suas obras também em exposições, porém, sobretudo em periódicos caracterizados pelo tom satírico e burlesco, entre eles as revistas Simplicissimus, Jugend – Münchener Illustrierte Wochenschrift für Kunst & Leben e Die Lustigen Blätter.

Embora contemporâneos, mesmo pertencentes a gerações diferentes – quando August Macke estava com 25 anos no auge de sua produtividade artística, Heinrich Zille atingiu o reconhecimento artístico quando tinha o dobro de idade do pintor – ambos demonstram interesses distintos em relação à arte e a seu potencial de representar a sociedade.

Nesse sentido, o presente estudo de caráter comparativo pretende apresentar reflexões sobre a produção artística de August Macke e, respectivamente, Heinrich Zille. Para isso, selecionamos duas obras de cada um deles, as quais têm por tema ambientes de socialização e lazer: Wirtshausgarten (1907; Jardim da taverna) e Gartenrestaurant (1912; Restaurante ao ar livre), de August Macke; Gesellschaft in Altberliner Destille (1905; Sociedade em destilaria da Berlim Antiga) e Krach in der Destille (1921; Barulho na destilaria), de Heinrich Zille.

August Macke e sua pintura: a burguesia desfrutando de momentos de lazer em meio à natureza e ao ar livre

Iniciemos nossas considerações sobre o olhar social de August Macke com a breve análise de Wirtshausgarten (1907; Jardim da taverna). Em primeiro lugar, cabe ressaltar que o termo alemão Wirtshaus (taverna) designa um dos possíveis empreendimentos no setor gastronômico, ao lado de restaurantes, bares, pubs e botecos, mas que também pode oferecer quartos para hóspedes, como uma pousada ou hospedaria. Em geral, uma Wirtshaus pode possuir alguns quartos de hóspedes, a taverna propriamente dita e um amplo espaço externo ajardinado, como podemos notar em Wirtshausgarten:

Wirtshausgarten
(1907; Jardim da taverna)
Material: óleo sobre carvão sobre papel, 23 x 28,5 cm
(KUNST-FÜR-ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/561270/wirtshausgarten/index.htm )

O que essa pintura de August Macke nos oferece é justamente esse espaço, em que visualiza-se homens e mulheres sentados às mesas espalhadas pelo jardim, todos vestidos à moda burguesa: homens trajando calças, paletós e chapéus coco, e mulheres trajando longos vestidos e amplos chapéus com ornamentos. Por não se tratar de uma pintura sobre tela, e sim sobre papel, deduz-se que se trate de um estudo ou esboço que poderia servir para a futura composição de uma aquarela. Inclusive, os traços pouco definidos reforçam essa suposição, pois há, em primeiro plano, do lado direito, alguns traços que evidenciam o esboço inacabado de uma cadeira vazia.

Aparentemente, são seis grupos que ocupam mesas no jardim, sendo que apenas uma das mesas está ocupada por um cidadão solitário, que está sentado segurando uma bengala. No centro, um grupo de mulheres trajando vestidos de diversas cores parece animado pela conversa. Mais ao fundo, outras três mesas estão ocupadas, mas faltam maiores detalhes para se identificar as pessoas. Somente o cavalheiro solitário da mesa à direita e o casal da mesa à esquerda, em primeiro plano, são retratados com maiores detalhes. Porém, a figura feminina é retratada de costas, enquanto a figura masculina está de lado. Seu rosto e o rosto do cavalheiro solitário apresentam traços, ausentes nas demais figuras. Além das figuras humanas, em primeiro plano há um pequeno cão que parece olhar para aquele que está retratando a cena.

A cena retratada em Wirtshausgarten nos transmite uma atmosfera de harmonia, em que, sob as copas das árvores e em um clima aprazível, as pessoas passam o tempo, conversam e consomem bebidas em um local de convivência.

Do mesmo modo que em Wirtshausgarten (1907; Jardim da taverna), o olhar social proposto por Auguste Macke em Gartenrestaurant (1912; Restaurante ao ar livre) produz uma imagem de cidadãos pertencentes à classe burguesa, desfrutando de seu tempo livre, literalmente, no “restaurante jardim”:

Gartenrestaurant
(1912; Restaurante ao ar livre)
Material: óleo sobre tela, 81 x 105 cm
(KUNST-FÜR-ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/147398/gartenrestaurant/index.htm )

Cinco anos separam uma obra da outra, algo que nos permite afirmar que, enquanto Wirtshausgarten apresenta elementos do Impressionismo, Gartenrestaurant já foi composta no espírito do Expressionismo, no emprego de cores vivas e na adoção de traços curvilíneos, embora ainda mantenha traços impressionistas característicos, como a luminosidade e a pintura ao ar livre.

Apesar de não podermos afirmar categoricamente, parece-nos plausível o argumento de que, pelo menos parcialmente, a obra Wirtshausgarten, um esboço ou estudo, serviu de base para a composição de Gartenrestaurant. Basta observarmos, em ambas as pinturas, o homem e a mulher que estão sentados à mesa. Há mudanças nos traços e nas cores, além de ter sido adicionada mais uma figura masculina ao conjunto, sentada à mesa, que dialoga com ambos. Também nota-se certa semelhança na representação da mesa composta por figuras femininas, que conversam animadamente, no centro da tela. Todas as figuras estão trajadas à moda burguesa. Constata-se, mais uma vez, que há um recorte social no grupo de figuras representadas como modo de distinção de classe.

Todavia, há distinções significativas entre as obras, a começar pela figura masculina em primeiro plano, do lado direito, que está sentado lendo um jornal, e atrás dele se encontram mais duas figuras masculinas, uma delas aparentemente sentada em um banco, conversando com outro homem que está de pé. Além disso, nota-se também um adensamento e uma diversidade cromática na representação dos troncos e das copas das árvores. Ler, conversar, alimentar-se: momentos de lazer em um ambiente burguês aprazível e harmonioso.

Heinrich Zille e seus desenhos: o “Milljöh” proletário de Berlim e seus espaços de lazer e convivência

Analisar obras de Heinrich Zille é uma tarefa fascinante. Seus inúmeros desenhos nos permitem refletir sobre uma das principais capitais europeias na passagem do século XIX para o século XX, uma cidade que se transformava em metrópole, com todos os seus contrastes sociais: Berlim. Evidencia-se um olhar social do artista para tipos humanos que seriam considerados “associais”: proxenetas, prostitutas, vigaristas, ladrões etc. Todavia, para além do “lumpemproletariado” berlinense, Zille centra o foco na representação de áreas pobres e seus tipos sociais, entretanto, sem com isso criticá-los ou apresentá-los como algo exótico. Ao contrário, o artista produziu imagens – resultantes de suas interpretações – desses tipos sociais nas mais diversas atividades. Diferindo dos cidadãos burgueses que povoam as telas de August Macke, nos desenhos de Zille, o proletário ganha visibilidade. Suas obras desmascaram as mazelas do Império alemão sob o domínio de Guilherme II, o que fez com que o artista se tornasse persona non grata entre os poderosos e as classes abastadas. Principalmente os bares e botecos de Berlim, de acordo com Hans Ostwald, eram ambientes preferidos do artista para representar figuras à margem:

Quem quer entender Zille, precisa ir aos bares representados por ele. Ou seja, em locais nos quais o povo simples transita, e também em estalagens nas quais toda sorte de fracassados e desafortunados, sobretudo também os pobres de espírito e de dinheiro, procura companhia barata e um anestésico barato para sua miséria. Lá se encontrará não apenas suas figuras, mas também algumas informações sobre elas [7]. (OSTWALD, 1929)

A seguir, analisaremos duas obras de Heinrich Zille, que não se furtou a representar o proletariado pauperizado de Berlim em seus momentos de lazer. A primeira delas é o desenho intitulado Gesellschaft in Altberliner Destille (1905; Sociedade em destilaria da Berlim Antiga), uma evidente demonstração dessa postura:

Gesellschaft in Altberliner Destille
(1905; Sociedade em destilaria da Berlim Antiga)
Material: giz preto, pena e aquarela, 26,3 x 25,2 cm
(KUNST-FÜR-ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/heinrich-zille/28498/1/559076/gesellschaft-in-altberliner-destille/index.htm )

Inicialmente, é importante entender o que era, especificamente, uma Destille (destilaria): um restaurante em que se vendia e consumia bebidas alcoólicas destiladas: conhaque, whisky, Schnaps (aguardente) etc. Tal local, portanto, é um empreendimento no setor gastronômico, como a Wirtshaus e o Gartenrestaurant das pinturas de August Macke. Porém, a destilaria, como se nota pelo desenho, era um ambiente fechado, portanto, sem área externa. Constata-se que as seis figuras retratadas não estão vestidas à moda burguesa e – algo característico desse artista – possuem traços de obesidade. Apenas uma das figuras masculinas está usando chapéu coco, enquanto os outros utilizam bonés típicos de trabalhadores pertencentes à classe operária. A única figura que está de pé, aparentemente o garçom ou gerente do local, não se diferencia dos demais nas vestes ou na aparência, e todos estão olhando para ele. Além deles, duas figuras femininas não usam chapéus, exibem penteados amarrados por laço ou fivela e não trajam vestes finas, uma delas, de costas na cena, utiliza uma estola de pele.

Por sua vez, o local em si é simples, mas aparenta certo ordenamento, a começar pelas prateleiras ao fundo, onde estão, entre outros objetos, as garrafas dos destilados em diversas cores. Na parede, há um quadro pendurado, em que se reconhece uma figura masculina, e o quadro está envolto com alguma folhagem, que não se pode identificar nitidamente, e com uma fita preta na parte de baixo, o que pode significar sinal de luto. Além do quadro, o que é típico em bares e botecos, há outro quadro na parede com a seguinte inscrição em forma de quadra: “Der erste Kuss,/ Welch ein Genuss!/ Der erste Schluck,/ Nie lang genug!” (“O primeiro beijo,/ Que delícia!/ O primeiro trago,/ Nunca o suficiente!”).

Outro aspecto interessante é a própria composição da única mesa retratada no desenho, em madeira rústica, assim como a cadeira, os pratos estão vazios, como se as pessoas já tivessem terminado a refeição. Além dos pratos, sobre a mesa reconhece-se uma taça tipicamente usada para servir Berliner Weiße, um tipo de cerveja ácida e turva, tipicamente berlinense, produzida desde o século XVI, e, no lado oposto da mesa, um pequeno copo para servir bebida destilada. Algo curioso é uma base, aparentemente pesada e de metal, em que estão acorrentadas todas as colheres disponíveis na mesa, incluindo a colher que um dos homens está segurando.

Trata-se, portanto, de um espaço de convivência social de gente simples, com códigos e comportamentos distintos daqueles representados nas obras de August Macke, analisadas neste breve estudo.

Outro exemplo do olhar social proposto por Heinrich Zille em seus desenhos é a obra intitulada Krach in der Destille (1921; Barulho na destilaria):

Krach in der Destille
(1921; Barulho na destilaria)
Material: giz preto e colorido, 29,7 x 37,1 cm
(KUNST-FÜR-ALLE, s/d)
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/heinrich-zille/28498/28/558880/krach-in-der-destille/index.htm )

Mais uma vez, o espaço de socialização é uma Destille (destilaria). Esta se distingue da anterior pelo adensamento de figuras humanas, várias em pé, trajando roupas pesadas, de inverno. O próprio título do desenho, como principal paratexto, empresta uma especificidade à cena: a do “barulho” (Krach), em que várias pessoas estão falando ou gritando ao mesmo tempo, aparentemente todas voltadas para o lado direito da tela, em que se vê uma senhora, na soleira, que conversa com dois homens. Não se sabe se elas estão saudando, brindando ou formulando pedidos. São poucas as figuras destacadas na cena, todas vestidas de maneira simples, as mulheres não usam chapéus, e os homens usam ou chapéu coco, ou bonés típicos de trabalhadores.

Todavia, uma delas se destaca das demais pela posição em primeiro plano, como também por sua faixa etária: trata-se de uma menina com aparência pobre e com olhar triste, que tem uma faixa envolta do queixo à cabeça, como se estivesse com alguma dor ou ferimento. Ela está posicionada diante do balcão, sobre o qual jaz uma bandeja contendo copos, pratos e garrafas. Na mesa à esquerda, em que estão sentados um homem e uma mulher, vê-se, mais uma vez, uma taça típica de Berliner Weiße e um pequeno copo para destilados. Embora não seja possível justificar a presença da menina – seria ela filha de algum funcionário ou proprietário da destilaria? Ou de algum freguês ou alguma freguesa? –, evidencia-se certo clima de animação e alvoroço das pessoas em seu tempo livre, uma espécie de instantâneo do cotidiano de pessoas simples em uma metrópole em franca expansão.

O lazer de burgueses e proletários nas artes plásticas alemãs, na virada do século – à guisa de conclusão

Em nosso breve estudo, nos deixamos inspirar pelo historiador Victor Andrade de Melo (2009, p. 22) ao analisar representações artísticas do esporte nas artes plásticas, ou seja, a intenção de partir das próprias imagens para se tratar de determinado tema: “Isto é, não se tratou de buscar obras que ilustrassem o que as fontes documentais informavam sobre os temas tratados, mas sim partir do que as imagens informavam, não só no que se refere ao tema, como também naquilo que dizia respeito à forma e ao contexto de representação”.

Entretanto, estamos cientes de que a análise das quatro obras não esgotou as possibilidades que estas oferecem, de modo que alguns detalhes, pela brevidade do estudo, não foram aqui tratados. Não obstante tal fato, cremos que tal análise nos possibilitou a reflexão sobre a arte em geral enquanto manifestação advinda de lugares sociais, os quais reproduzem determinados olhares.

Nesse sentido, se, como aponta o historiador francês Alain Corbin, “[o] burguês aparece ‘em grande medida como o homem com tempo livre’. E isto, mais uma vez, não quer dizer que se trate de um ocioso, longe disso: ele tenta, como os seus contemporâneos, evitar o vazio das horas” (CORBIN apud MELO, 2009, p. 17), o proletário também procura desfrutar de seu tempo livre, mesmo que em condições sociais distintas e, muitas vezes, desfavoráveis em relação àquelas da burguesia.

Não podemos deixar de ressaltar, mais uma vez, que é inegável a preferência de August Macke por ambientações ao ar livre, algo muito valorizado pelos impressionistas, necessário para o trabalho pictórico com luminosidade em suas obras. Além disso, haveria uma espécie de busca pela natureza idílica, mesmo em espaços de socialização como a Wirtshaus e o Gartenrestaurant, frequentados por cidadãos burgueses, algo que se mantém também em obras consideradas pertencentes à fase expressionista.

Por sua vez, a arte do “Raffael dos cortiços”, conforme evidenciada na análise dos desenhos que apresentam a Destille como espaço, propõe um gesto distinto: nada de idílios, mas sim ambientações de uma metrópole que, na virada do século, produzia riqueza para poucos e miséria, para muitos. Sem a mesma atmosfera da Wirtshaus e do Gartenrestaurant, com suas etiquetas e modos de comportamento, em que seus frequentadores encontrariam refúgio e deleite, a Destille oferecia aos trabalhadores, aos desempregados e também aos lumpemproletários um espaço de fruição do tempo livre, sobretudo noturno. Se August Macke definia sua própria obra como “um canto à beleza das coisas”, Heinrich Zille coloca sua obra a serviço da representação daqueles que, à margem da sociedade, estavam excluídos também como objeto para as artes plásticas. Portanto, cada um a seu modo, procuravam resistir às transformações de seu tempo, sem deixar também de expressarem burgueses e proletários em sua busca pela fruição do tempo livre em determinados espaços que reproduziam traços distintivos de classe.

Referências Bibliográficas

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Banhistas e sua representação na pintura de August Macke. História(s) do Sport (blog). 13 jun. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/06/13/banhistas-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 26 set. 2022.

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DEUTSCHE WELLE. Rheinischer Expressionismus in Bonn: Museum August-Macke-Haus eröffnet. 2015. Disponível em: https://www.dw.com/de/rheinischer-expressionismus-in-bonn-museum-august-macke-haus-eröffnet/a-41630757. Acesso em: 06 dez. 2021.

KOLBE, Corina. “Man kann mit einer Wohnung töten”: Zilles Berlin. Der Spiegel. 29 jan. 2015. Disponível em: https://www.spiegel.de/geschichte/heinrich-zille-fotografien-aus-dem-alten-berlin-a-1013931.html. Acesso em:26 jul. 2022.

KUNST-FÜR-ALLE. Bilder von August Macke, s/d. Disponível em: https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/bilder/kuenstler/August+Macke/345/1/index.htm . Acesso em: 26 set. 2022.

KUNST-FÜR-ALLE. Bilder von Heinrich Zille, s/d. Disponível em: https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/bilder/kuenstler/Heinrich+Zille/28498/1/index.htm. Acesso em: 26 set. 2022.

MELO, Victor Andrade de. Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.

OSTWALD, Hans. Das Zillebuch. Berlin: Paul Franke Verlag, 1929. Disponível em: https://www.projekt-gutenberg.org/zille/zillebuc/chap002.html. Acesso em: 30 set. 2022.

Notas

[1] CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer na pintura de August Macke. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 14 dez. 2021. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

[2] CORNELSEN, Elcio Loureiro. O mundo circense e o jardim zoológico na pintura de August Macke. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 26 abr. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

[3] CORNELSEN, Elcio Loureiro. O velejar como lazer na pintura de August Macke. História(s) do Sport (blog). 21 fev. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/02/21/o-velejar-como-lazer-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 26 set. 2022.

[4] CORNELSEN, Elcio Loureiro. Banhistas e sua representação na pintura de August Macke. História(s) do Sport (blog). 13 jun. 2022. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/06/13/banhistas-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 26 set. 2022.

[5] CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer em desenhos de Heinrich Zille no início do século XX. BELA – Blog de Estudos do Lazer. 03 ago. 2022. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 26 set. 2022.

[6] Todas as traduções do Alemão para o Português são de nossa autoria. No original: „Das Sehen und Erleben in der Kinderzeit und in der Jugend half mir wohl später manche Bilder gestalten.“

[7] No original: Wenn man Zille will verstehn, muß man in Zillekneipen gehn. Also in die Lokale, in denen das einfache Volk verkehrt und auch in solche Gastwirtschaften, in denen allerlei Entgleiste und Verunglückte, vor allem auch die Armen im Geiste und im Gelde eine billige Geselligkeit und eine wohlfeile Betäubung ihres Elends suchen. Dort wird man nicht nur seine Menschen finden, sondern zugleich auch manche Aufschlüsse über sie.


Banhistas e sua representação na pintura de August Macke

13/06/2022

Elcio Loureiro Cornelsen

Recentemente, desenvolvemos e concluímos uma pesquisa sobre representações do lazer na pintura de August Macke (1887-1914), um dos principais pintores alemães do início do século XX, cujas obras são apontadas por críticos e historiadores da arte como de transição entre o Impressionismo e o Expressionismo. Parte do resultado dessa pesquisa já foi publicada nos artigos “Imagens do lazer na pintura de August Macke” (https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/ ), “O velejar como lazer e sua representação na pintura de August Macke” (https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/02/21/o-velejar-como-lazer-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/ ) e “O mundo circense e o jardim zoológico na pintura de Auguste Macke” (https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/ ).

Neste breve texto, trazemos mais um dos eixos temáticos da pintura de August Macke em relação a banhistas. Para isso, dentro do conjunto de 30 obras analisadas, selecionadas a partir do acervo digital disponível no portal Kunst für Alle (Arte para Todos), selecionamos cinco obras: Badende am grünen Abhang (1910; Banhistas na encosta verde), Badende Frauen I (1913; Mulheres banhistas I), Badende Frauen II (1913; Mulheres banhistas II), Badende Mädchen mit Stadt im Hintergrund (1913; Jovens banhistas com cidade ao fundo), e Badende und türkischer Reiter (1912/1913; Banhistas e cavaleiro turco).

Como pode ser observado pela datação, tais obras foram pintadas entre 1910 e 1913, período de intensa produção de August Macke, pouco antes de o pintor falecer, tragicamente, em combate no dia 26 de setembro de 1914, em batalha travada ao sul da cidade de Perthes-lès-Hurlus, na região francesa de Champagne. Convocado para integrar o Regimento de Infantaria nº. 160 do Exército Alemão, Macke faleceu aos 27 anos de idade, no auge de sua carreira como artista plástico. Como já havíamos assinalado em outro artigo, embora o início da década de 1910 na Europa já apresentasse indícios de um contexto turbulento no plano geopolítico, “é interessante notar que a iminência da guerra que eclodiria em agosto de 1914 deixou poucos vestígios [nas] obras [de Macke]” (CORNELSEN, 2021).

Iniciaremos nossas considerações sobre a representação de banhistas na obra de August Macke por Badende am grünen Abhang (1910; Banhistas na encosta verde):

Badende am grünen Abhang
(1910; Banhistas na encosta verde)
Material: óleo sobre cartolina, 27,2 x 34,7 cm
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/115559/badende-am-gruenen-abhang/index.htm )

De início, evidenciam-se traços do Impressionismo em sua composição pictórica. Conforme aponta Neusa Cavalcante, “[l]uz e movimento, obtidos por meio de pinceladas soltas, tornaram-se os principais elementos da pintura impressionista, feita geralmente ao ar livre para que o artista pudesse capturar melhor as variações de cor” (CAVALCANTE, 2018, p. 14). Na obra em questão, observam-se as pinceladas e as variações cromáticas em jogo de luz e cor, com o espelhamento dos corpos e da encosta nas águas, provavelmente, de um lago.

A referida obra nos permite uma série de conjecturas, fundamentadas a partir de sua contextualização e de referências biográficas acerca de August Macke. É de conhecimento que, conforme já havíamos afirmado em outro artigo, predominam em sua pintura cenas na natureza. Além disso, o pintor residiu às margens do Lago Tegern, na Baviera, por alguns meses, em 1910 (CORNELSEN, 2022a), ano em que produziu Badende am grünen Abhang. Como veremos a seguir, todas as obras aqui analisadas apresentam cenas de banhistas em lagos. Além disso, o Lago de Thun, localizado aos pés dos Alpes Suíços, no cantão de Berna, também foi retratado em várias obras de Auguste Macke, quando passou um período de veraneio, em 1913, em Hilterfingen, lugarejo localizado às margens do lago (CORNELSEN, 2022a).

Outra conjectura a se fazer diz respeito à representação dos corpos nus de mulheres. O estudo sobre a pintura de August Macke, realizado no acervo digital disponível no portal Kunst für Alle (Arte para Todos), permitiu-nos constatar que o pintor fez vários esboços de nus femininos, entre eles, os estudos Weibliche Akte (1907; Nus femininos), Weiblicher Akt IV (1907; Nu feminino IV), Weiblicher Akt 53 (1912; Nu feminino 53), Weiblicher Akt 70 (1912; Nu feminino 70), Sitzender Akt, vorgebeugt (1912; Nu sentado, curvado), Weiblicher Akt, stehend (1913; Nu feminino, em pé), e as pinturas Akt auf weißem Tuch (1909; Nu sobre lençol branco) Sitzender Akt mit Kissen (1911; Nu sentado com almofada), Drei Akte mit Rehen am Wasser (1912; Três nus com cervos junto à água), Drei Akte im Grünen (1913; Três nus na natureza), e Drei nackte Mädchen (1913; Três jovens nuas).

Na obra Badende am grünen Abhang, nota-se que os corpos nus parecem posados em estúdio, em certo estilo que remete às artes plásticas na Antiguidade, sobretudo na escultura. Todavia, há um aspecto contextual específico, que nos permite ampliar o próprio sentido da nudez associada a atividades e momentos de lazer. Sem dúvida, um movimento teve destaque singular nas primeiras décadas do século XX, na Alemanha: o naturismo e, especialmente, a FreiKörperKultur (cultura do corpo livre), conhecida popularmente pela sigla FKK.

De acordo com Kurt Fischer, presidente da Deutscher Verband für Freikörperkultur (Associação Alemã de Cultura do Corpo Livre), “[a] nudez no esporte, em jogos e no banho sempre houve em quase todos os tempos. Pensemos nos atletas gregos ou nos balneários dos princípios da Idade Média e no prazer de Goethe em banhar-se nu” (FISCHER, 2014).[i] Todavia, segundo Kurt Fischer, quando se busca as raízes da cultura do corpo livre na Alemanha, constata-se que elas se situam na virada do século XIX para o século XX, ou seja, exatamente no período em que as correntes artísticas europeias buscavam novos rumos estéticos frente ao mundo da técnica, da urbanização e da industrialização, e em que August Macke se formou como pintor. O movimento FKK visava, justamente, à superação da percepção da nudez como tabu, em que se propagava “o incentivo à manutenção da saúde, bem como o espírito de ‘retorno às origens naturais’” (FISCHER, 2014).[ii] Para divulgar as ideias do movimento, algumas revistas se tornaram atuantes, entre elas, a Kraft und Schönheit (Força e Beleza), fundada em 1901, que pregava a junção entre cultura física, exercício físico, banho ao ar livre e nudismo, bem como Schönheit (Beleza), fundada em 1903, órgão de imprensa da Verein für ideale Kultur (Associação para a Cultura Ideal), defensora de um programa para a cultura do nudismo, em que o hábito de se vestir era visto como um reflexo de pudores não naturais e de códigos morais inadequados (FISCHER, 2014).

Ao retomarmos a análise de Badende am grünen Abhang, notamos outro traço característico da pintura de August Macke, seja em obras mais próximas, esteticamente, do Impressionismo, seja em obras de sua fase expressionista: a ausência de detalhes dos rostos. Constata-se certa harmonia no modo como as duas figuras femininas desfrutam seu momento de lazer, banhando-se nuas, estando uma delas sentada à beira das águas, com apenas uma das pernas imersa, enquanto a outra está em pé, dentro do lago, com o nível da água um pouco acima dos joelhos. Embora seja evidente que esse tipo de representação de nus resulta dos diversos estudos que Macke desenvolveu a partir de 1907, ainda durante o seu período de formação no ateliê do pintor impressionista alemão Lovis Corinth (1858-1925), em 1908, na cidade de Berlim (CORNELSEN, 2021), ele integra à cena a natureza – as águas do lago e a relva da encosta, em que predomina uma variação cromática de tonalidades entre as cores verde e amarelo, como possibilidades de se produzir matizes resultantes da luz natural.

Por sua vez, nosso segundo exemplo da presença temática de banhistas na pintura de August Macke é Badende Frauen I (1913; Mulheres banhistas I), que, conforme poderá ser constatado, já apresenta elementos estéticos do Expressionismo:

Badende Frauen I
(1913; Mulheres banhistas I)
Material: óleo sobre tela, 59,5 × 73,5 cm

(https://www.meisterdrucke.com/kunstdrucke/August-Macke/689432/Badende-Frauen.html )

Enquanto a obra Badende am grünen Abhang representaria uma cena em que mulheres desfrutam momentos de lazer banhando-se nuas, nas águas de um lago, esteticamente adequada aos preceitos do Impressionismo, pautados pelo “naturalismo” e pela “preocupação com os efeitos momentâneos de luz, fundamentais para os impressionistas” (CAVALCANTE, 2018, p. 15), Badende Frauen I distancia-se, ainda mais, de uma reprodução mimética da cena na natureza, em que figuras femininas, todas nuas, banham-se ou estão sentadas às margens do lago. Ao fundo, vemos outras duas figuras de mãos dadas, aparentemente entrando no lago, cujos corpos resultam de poucas pinceladas na cor marrom, sem que possamos afirmar que se trata de mulheres ou de crianças. Assim como em outras pinturas, sem dúvida, o título, principal paratexto, nos induz à recepção e, de certo modo, limita a polissemia da própria imagem, uma vez que, de antemão, trata-se de “mulheres banhistas”.

Outro aspecto que pode ser destacado em Badende Frauen I é o modo como o momento de lazer das três mulheres ao banhar-se é retratado. Assim como ocorre em Badende am grünen Abhang, uma das mulheres está de costas para quem contempla o quadro, desta feita, apoiando-se à encosta, enquanto outra, do lado direito, está sentada na encosta oposta, e a terceira é a única que está dentro do lago, com água à altura dos joelhos, e parece elevar um jarro por sobre a cabeça. Na tela, predominam traços curvilíneos dos corpos, das encostas e da vegetação, com árvores e relva, com variações cromáticas acentuadas e incidência de luz, por contraste, sobre os corpos.

Já o terceiro exemplo da presença temática de banhistas na pintura de August Macke é Badende Frauen II (1913; Mulheres banhistas II), que evidencia o interesse do pintor em produzir uma série de obras sobre esse tema:

Badende Frauen II
(1913; Mulheres banhistas II)
Material: óleo sobre tela, 101,5 × 72,0 cm

(https://www.akg-images.de/archive/Badende-Frauen-2UMDHUWDOM0XB.html )

Desta feita, duas figuras femininas nuas se destacam na tela, uma delas em primeiro plano, frontalmente, e a outra em segundo plano, que parece estar saindo das águas do lago. Mais uma vez, predominam traços curvilíneos na representação dos corpos nus e dos elementos da natureza, com variação de cores, com incidência de luz sobre as banhistas, em contraste com a vegetação e as águas do lago. Assim como ocorre nas duas obras anteriores, os rostos das mulheres não apresentam detalhes.

Em todas as obras analisadas até este momento, deve-se considerar a própria figura da mulher para a representação do ato de banhar-se como lazer. Citada por Victor Andrade de Melo, a historiadora da arte Tamar Garb conclui o seguinte em relação à representação de mulheres na pintura francesa do século XIX, que parece adequado também à pintura de August Macke no início do século XX, na Alemanha: “A posição da mulher na representação é clara: ocupa o lugar familiar da musa, o referente da história da arte, a figura alegórica e até a corporificação do natural contra o qual o cultural é definido e sustentado” (GARB, 1998, p. 223 apud MELO, 2009, p. 51).

Dando sequência a nossa análise, o quarto exemplo da presença temática de banhistas na pintura de August Macke é Badende Mädchen mit Stadt im Hintergrund (1913; Jovens banhistas com cidade ao fundo):

Badende Mädchen mit Stadt im Hintergrund
(1913; Jovens banhistas com cidade ao fundo)
Material: óleo sobre tela, 100,0 x 80,0 cm
(http://www.sammlung.pinakothek.de/de/artwork/Qr4D8M24pE/august-macke/badende-maedchen-mit-stadt-im-hintergrund )

A sequência de obras analisadas até aqui evidencia a variação estilística de August Macke na produção de suas obras, com fortes traços impressionistas em Badende am grünen Abhang e uma crescente intensificação de cores e de formas geométricas nas obras subsequentes, concretizando aquela postura que o crítico de arte Paulo Sérgio Duarte designa de “a grande reviravolta expressionista”: “tomar partido da subjetividade contra as interpretações objetivas da realidade” (DUARTE, 2004). As cenas de banhistas em seus momentos de lazer recebem de August Macke tratamento pictórico diversificado em termos de formas e de luminosidade, que se afasta de uma representação mimética e academicista, rumo às possibilidades ilimitadas que a vanguarda oferecia em termos de inovação artística. Como bem nos lembra Victor Andrade de Melo (2009, p. 48), “[a]utores como Georges Vigarelo (1988) e Alain Corbin (1989) já demonstraram como o aumento da utilização e distribuição da água, bem como a ocupação de praias e rios, tem forte relação com o novo imaginário construído na modernidade”. A obra Badende Mädchen mit Stadt im Hintergrund se insere nesse quadro e, ao mesmo tempo, como já anuncia seu título, apresenta outro elemento: a cidade, pouco perceptível em termos pictóricos para aquele que contempla a tela, que pode divisar alguns elementos geométricos no plano de fundo como sendo de uma torre de igreja e de telhados de casas. Tal cidade poderia bem ser, enquanto motivação para o pintor, Hilterfingen, às margens do Lago de Thun, onde August Macke passou alguns meses, em 1913.

Em primeiro plano, a cena se compõe a partir da representação de algumas figuras femininas, quatro jovens, sendo que três delas estão nuas e banham-se, enquanto uma, de costas para quem contempla a tela, do lado direito, está sentada à margem, vestida. De seu lado esquerdo, jaz no solo a vestimenta de uma das jovens que estão se banhando, um vestido na cor azul, aparentemente idêntico ao vestido da jovem que está sentada à margem, podendo ser um uniforme escolar. Desta feita, é possível reconhecer alguns traços dos rostos das jovens, e a incidência de luz recai sobre seus corpos nus, no centro da tela. Há o predomino de traços curvilíneos na representação dos elementos da natureza e dos corpos das jovens, e de linhas retas da representação da cidade ao fundo, cujos traços se misturam com os traços das folhas das árvores e da densa vegetação às margens do lago.

Por fim, o quinto e último exemplo da presença temática de banhistas na pintura de August Macke é Badende und türkischer Reiter (1912/1913; Banhistas e cavaleiro turco), como representação do uso da água para atividades de lazer:

Badende und türkischer Reiter
(1912/1913; Banhistas e cavaleiro turco)
Material: lápis sobre papel, 28,5 x 39,5 cm – esboço para tapeçaria
(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/294/556483/badende-und-tuerkischer-reiter-stickereientwurf/index.htm )

A obra Badende und türkischer Reiter tem suas peculiaridades: a principal delas é o fato de ter sido esboçada para ser tela de tapeçaria. Nota-se que a tonalidade das cores se diferencia sensivelmente das demais obras analisadas, embora guarde certa semelhança no predomínio de traços curvilíneos. Mais uma vez, o título induz à recepção e delimita certa polissemia que a cena pode suscitar, pois duas jovens nuas, com semblantes tensos, olham em direção à figura masculina, um cavaleiro turco, trajando vestes e turbante, montando um cavalo branco rampante. Uma delas está sentada, enquanto a outra está em pé, mas não se visualiza a água. A vegetação rasteira e os arbustos são igualmente representados com traços curvilíneos.

Enfim, a breve análise dessas cinco obras de August Macke nos permitiu constatar questões tanto de ordem estética, quanto de ordem temática. Em termos estéticos, constata-se uma variação significativa de Badende am grünen Abhang, de 1910, com evidentes traços do Impressionismo, para as obras seguintes, todas pintadas no espírito do Expressionismo, algo que nos permite reafirmar o ponto de vista de alguns críticos que consideram August Macke um pintor de transição. Como bem aponta Neusa Cavalcante (2018, p. 16), “[a]s ideias sobre arte, que pairavam no período, negavam a ênfase na imitação e sublinhavam o papel da imaginação e do inconsciente como fatores criativos essenciais, fazendo com que muitos artistas começassem a aceitar as novas liberdades e responsabilidades implícitas nessa atitude”. Ainda segundo a arquiteta e urbanista,

[a]o declarar, em 1890, que uma imagem, antes de ser um cavalo de batalha, um nu, uma anedota ou outros enfeites, é essencialmente uma superfície plana coberta de cores reunidas numa certa ordem, Maurice Denis estabeleceu como princípio da abstração o distanciamento dos laços entre o quadro e seu referente, reafirmando a autonomia da criação. (CAVALCANTE, 2018, p. 16)

Nas obras de August Macke, entretanto, os laços entre quadro e referente ainda se fazem presentes, não obstante a variação estética apontada anteriormente. Além disso, em termos temáticos, como já afirmamos em outros artigos sobre a produção artística desse pintor (CORNELSEN, 2021; CORNELSEN 2022a), a forte relação de Macke com a vida na natureza, desfrutada, sobretudo, nos períodos de residência ou veraneio às margens do Lago Tegern, na Baviera, e do Lago de Thun, aos pés dos Alpes Suíços, fez com que atividades de lazer junto às águas se tornassem fonte de inspiração artística – o banhar-se, o velejar e o caminhar em suas margens, em uma junção entre o desejo de desfrutar o veraneio e a contemplação do belo, que, no caso da representação artística dos corpos nus, coloca em perspectiva também o olhar daquele que os observa.

Todavia, há um contraste significativo a se pontuar, quando comparamos o conjunto de obras, aqui analisado, com outras que retratam, por exemplo, velejadores ou caminhantes nas margens do lago. Enquanto as figuras masculinas e femininas são retratadas vestidas à moda burguesa, com seus trajes alinhados, mesmo desfrutando de momentos de lazer em meio à natureza, nesse conjunto cujo eixo temático é o ato de banhar-se, além da ausência de figuras masculinas, as figuras femininas são retratadas nuas, o que permite, por assim dizer, atrelá-las a uma longa tradição nas artes plásticas que remonta à Antiguidade e também ao Renascimento, mas também ao movimento da FKK, tão intenso no período em que August Macke produziu suas obras, em que o Expressionismo acenava com possibilidades de contestação social e moral. Como bem aponta Victor Andrade de Melo, havia “a concepção de uma nova permissividade para a expressão cultural. Isso ficava bastante notável nos quadros de banhistas, dançarinas, prostitutas e atrizes” (MELO, 2009, p. 142). Haveria, pois, uma variação nos costumes, em que a Freikörperkultur, prática popular ainda nos dias atuais na Alemanha, traria novos ares à rigidez prussiana da Era Guilhermina.

Referências Bibliográficas

AKGIMAGES. Bilder von August Macke, s/d. Disponível em: https://www.akg-images.com/archive/-2UMEBMH6Z1KC.html. Acesso em: 04 jun. 2022.

CAVALCANTE, Neusa. Do Impressionismo à arte abstrata: a influência da fotografia e das teorias da percepção. Paranoá – Cadernos de Arquitetura e Urbanismo. Brasília/DF, n. 21, p. 1-18, 2018. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/paranoa/article/view/24054. Acesso em: 04 jun. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. Imagens do lazer na pintura de August Macke. BELA – Blog dos Estudos do Lazer. Belo Horizonte, 14 dez. 2021. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 04 jun. 2022.
CORNELSEN, Elcio Loureiro. O mundo circense e o jardim zoológico na pintura de Auguste Macke. BELA – Blog dos Estudos do Lazer. Belo Horizonte, 26 de abril de 2022b. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 04 jun. 2022.

CORNELSEN, Elcio Loureiro. O velejar como lazer e sua representação na pintura de August Macke. História(s) o SPORT (Blog). Rio de Janeiro, 21 fev. 2022a. Disponível em: https://historiadoesporte.wordpress.com/2022/02/21/o-velejar-como-lazer-e-sua-representacao-na-pintura-de-august-macke/. Acesso em: 04 jun. 2022.

DUARTE, Paulo Sérgio. Expressionismo: ontem e hoje. Zero Hora. Porto Alegre, Caderno de Cultura, 04 dez. 2004. Disponível em: http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/roteiropedagogico/publicacao/1020_APC_1020_Expressionismo_artigo.pdf. Acesso em: 05 jun. 2022.

FISCHER, Kurt. Die Geschichte der Freikörperkultur. Deutscher Verband für Freikörkerkultur, out. 2014. Disponível em: https://www.dfk.org/geschichte-der-freikoerperkultur. Acesso em: 04 jun. 2022.

GARB, Tamar. Gênero e representação. In: FRASCINA et al. (orgs.). Moderindade e Modernismo: a pintura francesa no século XIX. São Paulo: Cosac & Naify, 1998, p. 219-290.

KUNST FÜR ALLE, Bilder von August Macke, s/d. Disponível em: https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/bilder/kuenstler/August+Macke/345/1/index.htm. Acesso em: 06 dez. 2021.

MEISTERDRUCKE. Bilder von August Macke, s/d. Disponível em: https://www.meisterdrucke.pt/artista/August-Macke.html. Acesso em: 06 dez. 2021.

MELO, Victor Andrade de. Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.

SAMMLUNG PINAKOTHEK. Bilder von August Macke, s/d. Disponível em: https://www.sammlung.pinakothek.de/de/artist/anxgBP84Eq. Acesso em: 04 jun. 2022.

Notas


[i] Todas as traduções do alemão são de nossa autoria. No original:

Nacktheit bei Sport und Spiel und Baden hatte es schon zu fast allen Zeiten gegeben. Wir denken an die griechischen Athleten, oder an die Badehäuser des frühen Mittelalters und an Goethes Freude am unbekleideten Baden.

[ii] No original:

Gesundheitsförderung und Gesundheitserhaltung, sowie „Zurück zu den natürlichen Ursprüngen“.


O velejar como lazer e sua representação na pintura de August Macke

21/02/2022

Elcio Loureiro Cornelsen

O pintor alemão August Macke (1887-1914) é considerado um dos grandes expoentes do Expressionismo nas Artes Plásticas. Em estudo iniciado em 2021, que se pauta pela análise de um conjunto de 30 obras selecionadas a partir do acervo digital disponível no portal Kunst für Alle (Arte para Todos), é possível constatar que algumas atividades de lazer e entretenimento ganham expressão em suas obras, entre elas, o banho de mar e também em lagos, o passeio em parques e alamedas, o convívio em locais de alimentação, a visita a locais de entretenimento, e o ato de velejar. A maioria dessas atividades, no início do século XX, já se relacionava tanto com o turismo, quanto com o mercado de entretenimento.

Em seu belíssimo estudo intitulado Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos (2009), o historiador Victor Andrade de Melo assim caracteriza o Expressionismo:

“O rótulo ‘expressionista’ é aplicado a um conjunto de artistas do Norte europeu, reunidos, em linhas gerais, em torno da crença de que a produção deveria expressar plenamente suas sensações interiores. Preconizavam um engajamento sentimental e físico intenso. Do ponto de vista formal, percebe-se uma distorção da forma e exagero no uso de cores, quebra-se com a da figura e caminha-se para a abstração. Havia nos seus intuitos uma visão de rebeldia contra a sociedade burguesa, ainda que conectada com a concepção de progresso.” (MELO, 2009, p. 142)

Lidarmos, analiticamente, com obras de Auguste Macke nos possibilita reconhecer que sua pintura apresenta elementos de transição entre o Impressionismo e o Expressionismo. Se, por um lado, evidencia-se em suas obras certa distorção da forma e emprego de cores vivas, sem se enveredar para o total abstracionismo, por outro, há elementos que apontam para traços característicos do Impressionismo nas Artes Plásticas, entre eles, a luminosidade e a pintura ao ar livre. De acordo com Neusa Cavalcante,

“[l]uz e movimento, obtidos por meio de pinceladas soltas, tornaram-se os principais elementos da pintura impressionista, feita geralmente ao ar livre para que o artista pudesse capturar melhor as variações de cor. Muitas vezes um mesmo tema era pintado em diferentes horas do dia de modo a reter os múltiplos matizes cromáticos produzidos pelas variações da luz natural.” (CAVALCANTE, 2018, p. 14)

Neste artigo, analisaremos seis obras de August Macke que apresentam o velejar como atividade de lazer, pintadas entre 1910 e 1914, que expressam também a passagem do estilo impressionista para o expressionista. Todas elas se relacionam com dois topônimos que tiveram grande significado na vida do pintor: o Tegernsee (Lago Tegern) e o Thuner See (Lago de Thun), locais de veraneio visitados por August Macke no início do século XX, sendo que o pintor chegou a residir em Hilterfingen às margens do Lago de Thun no outono de 1913, e também por alguns meses, em 1910, em Tegernsee (CORNELSEN, 2021). O primeiro deles, o Lago Tegern, se localiza na Baviera e pertence a um ciclo de estação de águas, que inclui às suas margens cidades e vilarejos como Egern, Staudach, Rottach, Bad Wiessee e Tegernsee. Já o segundo topônimo, o Lago de Thun, é um lago aos pés dos Alpes, situado no cantão suíço de Berna, que tem às suas margens os vilarejos de Oberhofen, Gunten, Merligen, Darligen, Hilterfingen, entre outros. Ainda em nossos dias, ambos os lagos são locais de veraneio, atraindo muitos turistas (CORNELSEN, 2021).

A profunda ligação de Auguste Macke com a natureza parece ter a ver com a própria origem do pintor, que nasceu em 03 de janeiro de 1887 na pequena cidade de Meschede, na região montanhosa de Sauerland, na Renânia, e que cresceu na cidade de Bonn (WALTHER; IMWOLDE, 2014). Além de ser possível constatar que proliferam imagens da natureza nas obras desse pintor, paisagens urbanas marcadas pelo mundo fabril e de inovações técnicas nas primeiras décadas do século XX, ao contrário, são pouco frenquentes, não obstante o fato de Auguste Macke, já adulto, ter viajado e conhecido a efervescência de outras cidades europeias, como Paris, e ter residido em 1908, em Berlim, no período de sua formação no ateliê do pintor impressionista alemão Lovis Corinth (1858-1925). Aliás, percebe-se que Corinth influenciou Macke decisivamente em sua produção artística, que apresenta traços do estilo impressionista. Além da predominância de luz e cor, cenas lúgubres são raras em suas obras. A mais marcante de todas, aliás, é a pintura em que Macke apresenta o tema de sua despedida, ao ser convocado para a guerra, em 08 de agosto de 1914, a última que pintara e deixara exposta no cavalete, em seu ateliê:

Abschied

(1914; A despedida)

Material: óleo sobre tela, 130,0 x 101,0 cm

(AUGUST MACKE, s/d) (https://www.augustmacke.org/Leave-Taking-Abschied-1914.html )

Diferindo de outros contemporâneos, como o pintor Franz Marc (1880-1916) e o escritor Alfred Döblin (1878-1957), August Macke não se voluntariou como soldado para ir ao front, mas sim foi convocado, por ter servido ao exército em 1909 e pertencer à reserva, a integrar o Regimento de Infantaria nº 160 na patente de oficial adjunto, aos 27 anos de idade. Pouco menos de dois meses da convocação, Macke foi uma das primeiras vítimas da guerra, morto ao ser atingido por um tiro na cabeça em 26 de setembro de 1914, em batalha travada ao sul da cidade de Perthes-lès-Hurlus, na região francesa de Champagne. Aliás, seis dias antes de morrer, foi promovido a oficial e recebeu a Cruz de Ferro, condecoração por atos de bravura. Coube a Elisabeth Gerhardt, sua esposa, atribuir o título de Abschied (“Despedida”) ao último quadro pintado (WALTHER; IMWOLDE, 2014).

Retomando o tema deste breve estudo, a primeira obra a ser analisada é o quadro Segelboot am Morgen (1910; Barco à vela de manhã), em que se destacam a luminosidade e as formas geométricas das imagens:

Segelboot am Morgen

(1910; Barco à vela de manhã)

Material: óleo sobre tela, 55,6 x 49,7 cm

(MEISTERDRUCKE, s/d) (https://www.meisterdrucke.de/kunstdrucke/August-Macke/824637/Segelboot-am-Morgen,-1910.html )

Sem dúvida, trata-se de uma apresentação pictórica dos preparativos para velejar ao amanhecer, em que dois homens içam e amarram a vela em um barco, às margens de um lago. Pela datação, pressupõe-se que se trate do Lago Tegern, onde August Macke residira por alguns meses, em 1910. A imagem da vela amarela atrelada ao mastro, que será tema de outra obra, se destaca no do quadro. Além das águas calmas do lago, vê-se em primeiro plano a margem parcialmente recoberta com grama e, do lado esquerdo, as copas de duas árvores frondosas. Ao fundo, têm-se as imagens da margem oposta do lago, aparentemente com montanhas e vegetação, e um céu que vai clareando e revelando no horizonte um tom avermelhado do nascer do sol. Além de transmitir um tom harmonioso para a cena, o quadro alude ao prazer de velejar ao amanhecer e ao desfrutar da natureza. As duas figuras humanas, que se ocupam dos preparativos para singrar as águas do lago ao vento, não recebem maiores detalhes, como em outras pinturas que contemplam esse tema, algo que será possível constatar em exemplos posteriores. Pressupõe-se que sejam ou barqueiros trabalhando, que locam suas embarcações para passeio turístico, ou que estão, eles próprios, desfrutando das águas calmas do lago para poder velejar enquanto lazer.

O segundo quadro de August Macke, selecionado para análise, é Ansicht vom Tegernsee (1910; Vista do Lago Tegern). Desta feita, trata-se de uma paisagem panorâmica, como que captada de um ponto elevado, uma encosta, em que somos convidados a contemplar a vegetação, as montanhas, o vilarejo, o lago e dois barcos à vela:

Ansicht vom Tegernsee

(1910; Vista do Lago Tegern)

Material: óleo sobre tela, 47,5 x 54,5 cm

(KUNST FÜR ALLE, s/d)

(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/132332/ansicht-vom-tegernsee/index.htm )

Pintado no mesmo ano que o quadro Segelboot am Morgen (Barco à vela de manhã), Ansicht vom Tegernsee (Vista do Lago Tegern), como o próprio título indica, ambienta-se no Lago Tegern, na Baviera, tendo, provavelmente, ao fundo, o vilarejo de Tegern, uma das localidades de veraneio pertencente ao ciclo de águas. Nele, o elemento humano está ausente, mas pressuposto nos dois barcos à vela que se movimentam no lago. Mais uma vez, o tom harmonioso se faz presente entre os elementos que o compõem. Pode-se dizer que a imagem é um desfrute para quem a contempla, mas também para quem está velejando nas águas calmas do lago. Este quadro, aliás, evidencia a influência do Impressionismo sobre a pintura de Macke, que nos remete a paisagens pictóricas de nomes famosos, como Claude Monet (1840-1926) e Pierre-Auguste Renoir (1841-1919).

Por sua vez, o terceiro exemplo selecionado para análise é Segelboot auf dem Tegernsee (1910; Barco à vela no Lago Tegern), com traços e cores vivas, distintas da pintura anterior, desta feita, mais próxima do Expressionismo:

Segelboot auf dem Tegernsee

(1910; Barco à vela no Lago Tegern)

Material: óleo sobre madeira, 72,3 x 50,7 cm

(KUNST FÜR ALLE, s/d)

(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/120754/segelboot-tegernsee/index.htm )

Conforme pode ser observado na pintura, o foco se distingue das duas anteriores, pois, desta feita, estão em destaque as figuras humanas, dois homens e uma mulher, todos trajados à moda burguesa no início do século XX, sendo que um dos homens está sentado na proa e conduz o leme, enquanto o casal está junto, sentado na lateral do barco, homem e mulher parecem contemplar pontos distintos da paisagem. Não há maiores detalhes da embarcação em primeiro plano, com seu casco e proa em tom marrom e sua vela amarela. Já no plano médio da pintura visualiza-se a representação pictórica das águas do Lago Tegern e mais um barco à vela, nas mesmas características que o primeiro: casco marrom e vela amarela. Ao fundo, predomina a imagem da paisagem, com montanhas e vegetação. Esse quadro exemplifica o tema do lazer praticado por um casal, que desfruta de momentos passeando de barco à vela pelas águas do lago e, igualmente, evidencia certo lugar social, tanto pelas vestes, quanto pelo acesso a um local de veraneio como Tegern. Assim como os demais quadros, Segelboot auf dem Tegernsee transmite uma ideia de harmonia, não só em termos estéticos, como também em relação às figuras humanas e à natureza.

Outra obra de August Macke que contempla o tema do velejar como lazer é a aquarela Am Thuner See Picknick nach dem Segeln (1913; Piquenique junto ao Lago de Thun após velejar):

Am Thuner See Picknick nach dem Segeln

(1913; Piquenique junto ao Lago de Thun após velejar)

Material: Aquarela sobre papel, montada em cartão, 27,0 × 39.6 cm

(AKG-IMAGES, s/d)

(https://www.akg-images.com/archive/On-Lake-Thuner–Picnic-after-Sailing-2UMDHUQ1OMYW.html )

Se os dois últimos quadros analisados são associados, através do título em relação de paratextualidade, com o topônimo “Tegernsee” (Lago Tegern), a aquarela Am Thuner See Picknick nach dem Segeln traz, conforme apontado anteriormente, outro topônimo significativo para o pintor Auguste Macke: “Thuner See” (Lago de Thun), localizado aos pés dos Alpes Suíços, no cantão de Berna, em cujas margens fica Hilterfingen, lugarejo de veraneio onde o pintor residiu por alguns meses em 1913. Por seus traços, cores e material, bem ao estilo expressionista, essa aquarela evidencia ser um estudo preliminar para uma pintura. Diferindo dos demais quadros analisados até o presente momento, ela se compõe, predominantemente, a partir de três cores: preto, verde e amarelo, com gradações variando de acordo com a intensidade do traço. Em primeiro plano, estão representados pictoricamente dois casais, também vestidos à moda burguesa do início do século XX, sem detalhes precisos, sendo que um dos homens e uma das mulheres estão em pé, enquanto os demais estão sentados no chão. Os homens trajam ternos e chapéus, e as mulheres também trajam chapéus com arranjos (visualmente, pouco definidos), blusas e saias longas, denotando certa formalidade social, não obstante a cena se referir a um momento de lazer: o desfrute de um piquenique às margens do Lago de Thun, após terem velejado. Alguns objetos pouco definidos estão sobre o chão, parecendo ser uma toalha sobre a qual jaz um jarro e, a seu lado, uma cesta. Também em primeiro plano, do lado esquerdo, figura a embarcação sem maiores detalhes, com vela em contornos verdes e casco em tons pretos e verdes. O entorno é representado com poucos traços, com as águas do lago, a vegetação e as montanhas. Mais uma vez, Am Thuner See Picknick nach dem Segeln reforça o caráter social relacionado ao ato de lazer, com certa formalidade evidenciada pelas vestes das pessoas, e também reitera o tom harmonioso que se estabelece entre as figuras humanas e a natureza.

O quinto exemplo da presença temática do velejar enquanto atividade de lazer na obra do pintor expressionista alemão August Macke, selecionado para análise neste breve estudo, é a aquarela Gelbes Segel (1913; Vela amarela):

Gelbes Segel

(1913; Vela amarela)

Material: aquarela sobre lápis em papel de desenho, 25,0 x 16,0 cm

(KUNST FÜR ALLE, s/d)

(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/120039/gelbes-segel/index.htm )

Mais uma vez, um detalhe presente em outros quadros analisados recebe destaque especial a partir do título da aquarela: a vela da embarcação, em cor amarela. Embora não haja nenhuma informação paratextual ou visual que indique isso inequivocamente, pela datação, trata-se de cena pictórica no Lago de Thun. Nela, identifica-se quatro figuras humanas, sendo dois barqueiros que se ocupam do içamento da vela e um casal posicionado do lado esquerdo, em primeiro plano, que está na margem do lago, sem que se possa afirmar que está contemplando a natureza ou aguardando o barco à vela para embarcar. Enquanto os traços que expressam os barqueiros são pouco definidos, com predominância da cor vermelha, o casal possui traços mais definidos do corpo, que os distingue dos barqueiros pelas vestes à moda burguesa, reiterando o sentido de lazer como evento social em um local de veraneio. Mais próxima do Expressionismo, essa aquarela de Auguste Macke reitera o gesto de representação pictórica da paisagem idílica de um lago rodeado de montanhas e de vegetação, em que se destaca o ato de velejar enquanto possibilidade de lazer, mas também de trabalho, no caso dos barqueiros que, supostamente, locam seu barco para passeios turísticos. A aquarela Gelbes Segel é marcada por sua luminosidade e por traços fortes no destaque das copas das árvores às margens do lago e também das montanhas ao fundo, predominando o tom harmonioso.

O último exemplo de obras do pintor August Macke, selecionado neste estudo, é a aquarela Hilterfingen am Thuner See (1914; Hilterfingen às margens do Lago de Thun):

Hilterfingen am Thuner See

(1914; Hilterfingen às margens do Lago de Thun)

(Material: aquarela sobre lápis em papel de desenho, 22,5 x 25,8 cm)

(KUNST FÜR ALLE, s/d)

(https://www.kunst-fuer-alle.de/deutsch/kunst/kuenstler/kunstdruck/august-macke/345/1/562538/hilterfingen-at-lake-thuner/index.htm )

Conforme mencionado anteriormente, Auguste Macke residiu em Hilterfingen, nos pés dos Alpes Suíços, por alguns meses em 1913. A aquarela Hilterfingen am Thuner See, embora em seu título não faça nenhuma menção ao ato de velejar, traz em destaque, no centro, uma embarcação à vela, uma “chalupa”, contendo um mastro e duas velas triangulares, atracada na margem do lago, em que está uma figura humana, provavelmente um barqueiro que controla o leme, pois as velas estão içadas. Em seu estilo expressionista, essa aquarela é marcada por traços fortes, cores vivas e luminosidade, sem que haja definição nítida dos elementos componentes da paisagem. Em primeiro plano, figuram troncos de árvore em um chão arenoso da margem do Lago de Thun. O plano de fundo é dominado pela composição da paisagem, com traços fortes em tom verde, representando pictoricamente a vegetação, além de elementos em formato de cubo que, supostamente, aludem a edificações na encosta ao redor do lago, referindo-se a Hilterfingen e sua importância como local de veraneio ao qual acorrem turistas em busca de descanso, lazer e entretenimento. Como traço predominante desse conjunto de obras analisadas destaca-se o tom harmonioso. A figura humana, mais uma vez, não recebe maiores contornos.

Considerado um grande mestre das cores, Auguste Macke expressa em seus quadros e aquarelas um mundo colorido e alegre. Nos primeiros anos de sua produção artística, aos quais pertencem as três primeiras obras analisadas neste breve estudo – Segelboot am Morgen (1910; Barco à vela de manhã), Ansicht vom Tegernsee (1910; Vista do Lago Tegern) e Segelboot auf dem Tegernsee (1910; Barco à vela no Lago Tegern) – seu estilo evidenciava traços do Impressionismo, marcante em sua formação artística na primeira década do século XX. Entretanto, tais traços seriam atualizados, nos anos seguintes, com elementos do futurismo, do cubismo e do fauvismo, sobretudo na crescente simplificação das formas (BORNEMANN, 2017), algo perceptível nas três últimas obras analisadas – Am Thuner See Picknick nach dem Segeln (1913; Piquenique junto ao Lago de Thun após velejar), Gelbes Segel (1913; Vela amarela) e Hilterfingen am Thuner See (1914; Hilterfingen às margens do Lago de Thun).

O fato de Auguste Macke ter visitado e residido em localidades de veraneio como Tegern, na Baviera, e Hilterfingen, na Suíça, ambos localizadas à beira de lagos, possibilitou ao pintor o contato com esses lugarejos idílicos e, ao mesmo tempo, com uma das atividades de lazer predominantes: o ato de velejar. Certamente, essas localidades não deixam de ser um refúgio turístico e, ao mesmo tempo, uma possibilidade de se estar em meio à natureza e desfrutar de momentos de harmonia, em que predominam as belas paisagens. Os lagos com suas pequenas embarcações à vela transportando figuras da burguesia nas primeiras décadas do século XX, certamente, incluindo o próprio Macke, serviram de inspiração para o pintor. Nesse ponto, reitera-se um aspecto apontado pelo historiador francês Alain Corbin ao associar o lazer ao tempo livre, citado por Victor Andrade de Melo: “O burguês aparece ‘em grande medida como o homem com tempo livre’. E isto, mais uma vez, não quer dizer que se trate de um ocioso, longe disso: ele tenta, como os seus contemporâneos, evitar o vazio das horas.” (CORBIN apud MELO, 2009, p. 17). Conforme pudemos observar, a pintura de Auguste Macke revela o poder da arte em incorporar e produzir imagens de uma dada atividade específica, em um momento de emergência e valorização do lazer: o ato de velejar como modo de não só preencher o “tempo livre” e de “evitar o vazio das horas”, como também de estar em espaços idílicos, em meio à natureza. Tal perspectiva reitera a afirmação de Carlos Gonçalves Terra, ao argumentar que “[o] ‘prazer do lazer’, em diversas épocas, pode ser conhecido pela observação de várias obras da pintura, em que a realidade fica materializada pela mão de um determinado artista” (TERRA, 2010, p. 78). Podemos considerá-las também registros artísticos da relação entre turismo e lazer, no sentido que o historiador Bernardo Lazary Cheiub emprega: “O turismo, historicamente e enquanto fenômeno contemporâneo, apresenta-se como uma das mais atraentes e distintivas manifestações de lazer, motivada pela ‘quebra’ da rotina, na busca pela mudança de paisagens, hábitos e ritmos de vida e o contato com diferentes tradições e costumes.” (CHEIUB, 2019, p. 219) As estadas de Auguste Macke em locais de veraneio podem ser pensadas como atividades de turismo e de lazer e como fuga da rotina que, ao mesmo tempo, lhe inspiravam artisticamente.

Portanto, seus quadros e aquarelas evidenciam o anseio por imagens positivas de um mundo intacto, em que se expressa a harmonia das pessoas com as coisas que as cercam, conforme o próprio pintor certa vez definiu sua arte: um “canto à beleza das coisas” (Gesang von der Schönheit der Dinge) (citado in DEUTSCHE WELLE, 2015). Em um curto espaço de tempo, de 1910 a 1914, o conjunto de quadros e aquarelas analisados reitera essa visão do pintor, talvez ainda pautado por lampejos de otimismo frente a um contexto que, cada vez mais se tornava ameaçador, e que o vitimaria, em 26 de setembro de 1914, em uma das inúmeras trincheiras no front ocidental. Como bem aponta Victor Andrade de Melo,

“[n]aquelas duas primeiras décadas [do século XX], os conflitos materiais e simbólicos da sociedade capitalista se acirraram e a ‘Belle Époque’ caminha para seu fim com a chegada da Primeira Grande Guerra. A suposta ideia, mais fortemente estabelecida na França, de que se vivia uma época de beleza, diversão e paz, movimentada pelo grande progresso, que paulatinamente tornava mais confortável a vida de alguns, vai entrar em crise pelas próprias contradições pelo modelo econômico gestado desde o século XVIII.” (MELO, 2009, p. 113)

Naquele último quadro pintado por Macke, intitulado por sua esposa postumamente como Abschied (Despedida), deixado em seu cavalete, é o oposto dessas representações pictóricas de lazer ao velejar em lagos, em estações de veraneio, sob o signo de “uma época de beleza, diversão e paz”. Nele, longe das paisagens de Tegern e de Hilterfingen, o que nos é apresentado é uma cena de rua, algo não tão comum na pintura de Macke, em que figuram dez adultos, duas crianças e um cachorro, à noite. A escuridão que se abateria sobre a Europa Central se faz presente nessa cena, em que as pessoas parecem não estar flanando ou fazendo compras. Todas trajam vestes escuras, de luto, evocando não harmonia, mas apreensão pelo o que está por vir. Um dos mestres do Expressionismo alemão, August Macke nos deixou obras primas de uma época em que, não obstante seu caráter sombrio, se fazia expressar em sua pintura marcada por luminosidade e pelo dourado do sol, pelo tom amarelo das velas das embarcações, do azul celeste e suas variações nas águas dos lagos, da vegetação e das montanhas na Baviera e nos Alpes Suíços, e de figuras humanas, membros da burguesia europeia do início do século XX, que buscavam o lazer ao velejar e ao contemplar paisagens idílicas em estações de veraneio como as de Tegern e de Hilterfingen.

Referências Bibliográficas

AKG-IMAGES. s/d. Disponível em: https://www.akg-images.com/archive/On-Lake-Thuner–Picnic-after-Sailing-2UMDHUQ1OMYW.html. Acesso em: 15 fev. 2022.

BORNEMANN, Sandra. August Macke. In: Portal Rheinische Geschichte. 2017. Disponível em: http://www.rheinische-geschichte.lvr.de/Persoenlichkeiten/august-macke/DE-2086/lido/57c9469241d290.28232784 . Acesso em: 06 dez. 2021.

CAVALCANTE, Neusa. Do Impressionismo à arte abstrata: a influência da fotografia e das teorias da percepção. Paranoá – Cadernos de Arquitetura e Urbanismo. Brasília, DF, n. 21, p. 1-18, jul./dez. 2018. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/paranoa/article/view/24054. Acesso em: 17 fev. 2022.

CHEIUB, Bernardo Lazary. Turismo social e mediações: problematizando um projeto de extensão da Universidade Federal Fluminense. In: GOMES, Christianne Luce; DEBORTOLI, José Alfredo Oliveira; SILVA, Luciano Pereira da (orgs.). Lazer: práticas sociais e de mediação cultural. Campinas, SP: Autores Associados, 2019, p. 219-235.

CORNELSEN, Elcio. Loureiro. Imagens do lazer na pintura de August Macke. BELA – Blog Estudos do Lazer. 14 dez. 2021. Disponível em: https://estudosdolazer.wordpress.com/author/elcornelsen/. Acesso em: 15 fev. 2022.

DEUTSCHE WELLE. Rheinischer Expressionismus in Bonn: Museum August-Macke-Haus eröffnet. 2015. Disponível em: https://www.dw.com/de/rheinischer-expressionismus-in-bonn-museum-august-macke-haus-eröffnet/a-41630757. Acesso em: 06 dez. 2021.

MEISTERDRUCKE. Bilder von August Macke, s/d. Disponível em: https://www.meisterdrucke.pt/artista/August-Macke.html. Acesso em: 15. fev. 2022.

TERRA, Carlos Gonçalves. O prazer no jardim. In: MARZANO, Andrea; MELO, Victor Andrade de (orgs.). Vida divertida: histórias do lazer no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Apicuri, 2010, p. 75-95.

WALTHER, Lutz; IMWOLDE, Janca. August Macke. In: LeMO – Lebendiges Museum Online. 14 set. 2014. Disponível em: https://www.dhm.de/lemo/biografie/august-macke . Acesso em 06 dez. 2021.


IMAGENS DO LAZER NA PINTURA, NA ERA BIEDERMEIER

25/10/2021

Elcio Loureiro Cornelsen

INTRODUÇÃO

A era da história alemã na primeira metade do século XIX é conhecida pelo termo “Biedermeier” e tem como marcos temporais o Congresso de Viena, de 1815, e a Revolução de Março de 1848. Tais marcos nos permitem inferir que, se o início do período é marcado pela política restauradora no sentido de garantir as fronteiras dos diversos Estados, que vigoravam antes das invasões napoleônicas, seu fim culmina com movimentos revolucionários burgueses contra os poderes monárquicos (KITCHEN, 2013).

Na historiografia, o período em questão deve seu conceito definidor, cunhado a posteriori, ao professor e poeta Gottlieb Biedermaier, personagem literária criada por Ludwig Eichrodt e Adolf Kußmaul. Tal personagem possuiria dois traços característicos: ter bom coração e ser um pequeno burguês conservador. O historiador Martin Kitchen define com precisão o espírito da época a partir da etimologia do sobrenome da personagem:

[…] “Bieder” significa convencional, comedido e um tanto insípido, com mais do que apenas um vestígio de provincianismo presunçoso. “Maier” é a pessoa comum, o João de Souza ou da Silva. Era um reflexo da atmosfera de paz e tranquilidade da restauração depois dos dias tumultuados da revolução. […] (KITCHEN, 2013, p. 54)

O termo “Biedermeier”, com esta grafia, impôs-se como designação a partir do final do século XIX, inicialmente nos âmbitos da Arquitetura e das Artes Plásticas. E é justamente nas Artes Plásticas do período que recai o interesse do presente estudo, no intuito de analisar imagens do lazer em obras de dois pintores: Adrian Ludwig Richter (1803-1884) e Carl Spitzweg (1808-1885). Em termos metodológicos, foram selecionadas três pinturas de cada um, cobrindo o período de 1830 a 1850. Ressalta-se, ainda, que corroboramos o posicionamento do historiador Victor Andrade de Melo que, baseado em reflexões de Peter Burke, considera “as obras de arte como fontes históricas propriamente ditas (…), e não como ilustrações” (MELO, 2009, p. 21).

O ESPÍRITO BIEDERMEIER E O LAZER NA PINTURA DE CARL SPITZWEG

Uma das características principais da primeira fase da pintura de Carl Spitzweg Spitzweg é o retrato de pessoas em seu ambiente pequeno burguês, que desfrutam do tempo de diversas maneiras, incluindo atividades de lazer em ambientes fechados e, sobretudo, na natureza, bem ao gosto do idílio provinciano que marca o espírito Biedermeier. Uma famosa pintura de Carl Spitzweg que retrata ambiente fechado, mas que evidencia atividades de lazer, é “Bücherwurm” (“Traça”. Fig. 1), de 1848, em que vemos um homem de mais idade bem vestido sobre uma escada, diante de estante repleta de livros até o teto, e este parece ler avidamente um deles, segura outro livro aberto em outra mão, prende ao tronco com o braço outro livro, e tem mais um livro preso entre os joelhos, denotando o gosto pela leitura.

Fig. 1 – “Traça”. Fonte: Wikimedia Commons

Mas é, sobretudo, nas pinturas de Carl Spitzweg que retratam cenas na natureza que se evidenciam práticas de lazer. Uma das mais famosas é “Sonntagsspaziergang” (“Passeio ao domingo”; Fig. 2), de 1841. Nela, é retratada uma família em seu passeio dominical, em um dia de sol, em meio a um campo de centeio. São cinco figuras que se deslocam pela trilha, da direita para a esquerda: à frente, o homem corpulento protege-se do sol com a cartola espetada na bengala, seguido da mulher bem vestida usando chapéu e segurando uma sombrinha. Um pouco mais atrás, há uma menina que também se protege do sol com uma sombrinha, seguida de uma adolescente, bem vestida como a mãe, e, um pouco mais para traz, distraída com a caça de borboletas, aparece uma menina. No quadro, predomina a atmosfera do idílio rural em um dia de descanso, em que a família passeia e leva cestos para um piquenique.

Fig. 2 – “Passeio ao domingo”. Fonte: Wikimedia Commons

Outra pintura de destaque, quando se toma por tema o lazer, é “Der Schmetterlingjäger” (“O caçador de borboletas”; Fig. 3), de 1840. Nela, visualizamos em primeiro plano, do lado esquerdo, duas borboletas azuis, e mais ao fundo, no centro, um homem todo aparamentado, com cantil, mochila e outros apetrechos, segurando na mão direita uma longa haste com uma rede diminuta na ponta.

Fig. 3 – “O caçador de borboletas”. Fonte: Wikimedia Commons

Ao redor e no fundo, é representada uma natureza aparentemente selvagem, com árvores, arbustos, roseiras e plantas rasteiras. O homem se desloca em uma trilha íngreme, à caça das borboletas. Essa pintura denota não só a caça de borboletas, como também o colecionismo como atividade de lazer.

O ESPÍRITO BIEDERMEIER E O LAZER NA PINTURA DE ADRIAN LUDWIG RICHTER

Uma das características principais da pintura de Adrian Ludwig Richter é o predomínio de paisagens panorâmicas que transmitem um sentido de leveza e harmonia com o elemento humano. Uma delas é “Abendandacht im Walde” (“Prece noturna na floresta”; Fig. 4), de 1842, em que as copas de duas árvores frondosas servem de abrigo para o descanso de um grupo de mulheres e de crianças, mas também de carneiros. Algumas jovens estão sentadas, enquanto outras mulheres estão ajoelhadas, e duas estão em pé, com as mãos em posição de oração.

Fig. 4 – “Prece noturna na floresta”. Fonte: Wikimedia Commons

Assim como Carl Spitzweg, Adrian Ludwig Richter valoriza também em suas pinturas passeios e caminhadas ao ar livre como atividades de lazer. Um de seus quadros, intitulado “Italienische Landschaft mit ruhenden Wandersleuten” (“Paisagem italiana com caminhantes descansando”; Fig.5), de 1833, retrata uma cena em que homens, mulheres e crianças descansam à beira do caminho, assim como animais. Todavia, as pessoas estão modestamente vestidas, parecem integrar uma família, a hierarquia entre elas parece se expressar através da figura do homem em pé, enquanto a mulher, sentada, acolhe uma de suas filhas pequenas, e logo atrás está uma mulher de mais idade, provavelmente a avó, e um homem mais jovem, à esquerda das demais figuras, comodamente sentado. Há também objetos que remetem a uma pausa para piquenique.

Fig. 5 – “Paisagem italiana com caminhantes descansando”. Fonte: Wikimedia Commons

Sem dúvida, a atmosfera idílica predomina nas pinturas de Adrian Ludwig Richter, sempre explorada pela construção de imagens de harmonia entre a paisagem natural, as pessoas e os animais. Outro exemplo disso é o quadro “Frühlingsabend” (“Noite de primavera”; Fig. 6), de 1844, em que vemos ao centro um casal de amantes, bem vestidos, sentados contemplando o fim do entardecer e a chegada da noite, tendo ao lado um cão pastor e algumas ovelhas deitadas na relva.

Fig. 6 – “Noite de primavera”. Fonte: Wikimedia Commons

Nas pinturas de Richter, predominam imagens do lazer associadas ao descanso e à contemplação da natureza, num sentido quase religioso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise de pinturas de Carl Spitzweg e Adrian Ludwig Richter, objetivo do presente estudo, evidenciou que elas tanto refletem o espírito da época, quanto transmitem em imagens do lazer valores sociais decorrentes da política de Restauração. Sobretudo, figuras da burguesia, seja o pequeno burguês ou o abastado, são retratadas em atividades de lazer, seja a família que passeia em um domingo, que reflete a hierarquia de papeis sociais, seja o indivíduo em sua relação com a natureza, em que predomina a harmonia, o desfrute e a fruição. São imagens que não reservam espaço para a miséria e a pobreza que atingia amplamente os Estados alemães no período, nem o aumento populacional e o crescente processo de urbanização e de industrialização (KITCHEN, 2013).

Por se tratar de estudo em andamento, ainda há aspectos que demandam desenvolvimento, entre outros, a análise de obras de outros pintores do período, dentre eles, Moritz von Schwind, Friedrich Gauermann e Eduard Gaertner, que nos permitam uma avaliação precisa se havia uniformidade na representação de imagens do lazer, ou se havia também trabalhos distintos que possam ter produzido um contradiscurso, revelando a complexidade social e as correntes políticas antagônicas que se moviam entre a restauração conservadora de 1815 e o ímpeto revolucionário de 1848.

REFERÊNCIAS

KITCHEN, M. História da Alemanha moderna de 1800 aos dias de hoje. Tradução: Cláudia Gerpe Duarte. São Paulo: Cultrix, 2013.

MELO, V. A. de. Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos. Rio de Janeiro: Apicuri, 2009.


“Força pela Alegria” ou o lazer sob o jugo totalitário – o caso da Alemanha Nazista

02/07/2021

por Elcio Cornelsen

(cornelsen@ufmg.br)

Introdução

Em regimes totalitários, que procuram controlar todos os âmbitos da vida social, nenhum segmento da cultura permanece incólume a uma intervenção. Sem dúvida, a Alemanha nazista é um exemplo patente de tal processo, inclusive nos âmbitos do esporte e do lazer. Por um lado, o uso propagandista do esporte no contexto dos XI Jogos Olímpicos de Berlim, realizados em agosto de 1936, é uma dessas facetas. Por outro, o lazer, menos estudado se comparado à prática esportiva, também se tornou instrumento de política de indução de adesão da população ao regime. Este estudo, realizado entre março de 2014 e novembro de 2017, teve por objetivo enfocar as organizações do Estado nazista alemão que instrumentalizaram o âmbito do lazer, sobretudo a Deutsche Arbeiterfront (DAF; Frente Alemã de Trabalho) e a Kraft durch Freude (KdF; Força pela Alegria). Para isso, tomou-se por base estudos históricos e documentários sobre o lazer sob o jugo totalitário.

Metodologia

A metodologia empregada no estudo em questão pautou-se, basicamente, por dois procedimentos: em primeiro lugar, foi necessário selecionar e ler obras de cunho teórico que contemplassem o tema da relação entre história, memória, políticas públicas e lazer; em segundo lugar, o estudo orientou-se também por seleção de pesquisas históricas e documentários (Kloft, 2001; Mühlen, 2009) sobre o tema, que demandaram leitura e análise. Para lazer e políticas públicas, tomamos por base os estudos de Linhales (2001), Marcellino (2001; 2008), Gomes (2008), e Isayama (2010). Para história e memória do lazer, nos orientamos pelos estudos de Melo (2011; 2013). Por fim, para a contextualização do lazer no período nazista, adotamos os estudos de Grube e Richter (1982), Giesecke (1983), Kammer e Bartsch (1992), Studt (1995), Wendt (1999), Schneider (2004), Baranowski (2004), e Dillon e Richthofen (2008).

Resultados e Discussão

A criação de uma instância reguladora de políticas de lazer na Alemanha nazista resultou de uma política de intervenção no âmbito do trabalho, como parte de uma política de Gleichschaltung (“Sincronização”), promovida pelo partido nazista no sentido de uniformizar e controlar, sob princípios ideológicos, todas as instituições públicas e sociais até então autônomas (BROSZAT, 1995, p. 62). Segundo o historiador Bernd Jürgen Wendt, a extinção dos sindicatos das inúmeras categorias profissionais e de suas centrais sindicais em 02 de maio de 1933 foi seguida pela criação de uma organização totalitária em 10 de maio de 1933, que deveria abranger todos os trabalhadores e segmentos profissionais: a DAF – Deutsche Arbeitsfront (Frente Alemã de Trabalho) (WENDT, 1999, p. 64).

Por sua vez, diretamente subordinada a essa organização surgiu em novembro de 1933 outra organização destinada, exclusivamente, a instrumentalizar o lazer e o esporte no âmbito trabalhista: a KdF Nationalsozialistische Gemeinschaft Kraft durch Freude (Comunidade Nacional-Socialista Força pela Alegria) (KAMMER; BARTSCH, 1992, p. 104). Entre outras atribuições, destinava-se a promover políticas de higiene e saúde no âmbito das empresas, bem como de construção de restaurantes, espaços de descanso e de centros esportivos mantidos pelas próprias empresas, destinados a seus trabalhadores, além de determinar um aumento das férias anuais remuneradas, de 3 para 12 dias, e de promover uma ampla oferta de programas de lazer culturais e esportivos (WENDT, 1999, p. 65).

De acordo com os historiadores Frank Grube e Gerhard Richter, esse tipo de organização não foi uma invenção do nazismo, mas sim criada a partir das estruturas pré-existentes do movimento sindical na República de Weimar, bem como a partir de um modelo italiano de organização do tempo livre e do lazer: a “Il Dopolavoro” (Após o Trabalho), criada em maio de 1925 por Benito Mussolini (GRUBE; RICHTER, 1982, p. 123). Em seu ápice, a KdF contou com mais de 150.000 funcionários encarregados de organizar o tempo livre e o lazer do trabalhador alemão. Sua estrutura organizacional abrangia cinco instâncias: o “Serviço de Nacionalidade e Pátria” (Amt Volkstum und Heimat), encarregado de organizar a participação de trabalhadores em eventos de caráter popular; o “Serviço de Formação Popular Alemã” (Deutsches Volksbildungswerk), encarregado de promover cursos para adultos; o “Serviço de Esporte” (Sportsamt), que se tornou um fator de concorrência para os clubes tradicionais ao promover, entre os trabalhadores, a prática de determinadas modalidades esportivas; o “Serviço para Viagens, Passeios e Férias” (Amt für Reisen, Wandern und Urlaub), responsável pela ampla oferta de viagens de férias ou mesmo de excursões aos fins de semana; por fim, o âmbito “Beleza do Trabalho” (Schönheit der Arbeit), responsável por melhorias nas instalações dos locais de trabalho (GRUBE; RICHTER, 1982, p. 124-126).

Sem dúvida, a KdF incentivou, sobretudo, o turismo de massa, à época um verdadeiro “luxo” para o trabalhador. De acordo com Ursula Becher, até os anos 1920, devido às crises econômicas enfrentadas pelo país e às limitações salariais, o trabalhador alemão não dispunha de meios próprios ou mesmo de financiamento para empreender viagens de férias. A pouca oferta de lazer limitava-se a atividades nos finais de semana, como, por exemplo, a organização de caminhadas e passeios em parques e em áreas verdes próximas às cidades (BECHER, 1995, p. 126). Segundo a autora, tal organização visava a duas metas: “Para os nacional-socialistas, ela era um excelente meio de propaganda no sentido de combater a resistência dos trabalhadores ao programa ideológico e, respectivamente, de ganhar novos adeptos” (BECHER, 1995, p. 126-127).


Nosso estudo revelou que o programa da KdF previa uma ampla oferta de atividades de lazer: idas a teatros, cinemas, concertos e exposições; formação de grupos de passeios e de práticas desportivas, bem como de danças folclóricas; exibição de filmes nas empresas; promoção de cursos sobre os mais variados temas. Todavia, o carro-chefe de tal intervenção política no âmbito do lazer era, sem dúvida, a promoção de viagens a partir de programas de subsídios, não apenas para regiões da Alemanha, como também para viagens marítimas ao Exterior, principalmente a Portugal e ao Mediterrâneo, contando com uma frota de 12 navios. As estatísticas apresentadas por Grube e Richter impressionam: de 2,3 milhões de pessoas que viajaram de férias, atendidas pela organização em 1934, esse número elevou-se em 1938 para 10,3 milhões. No mesmo período, o número de pessoas que buscaram orientação e subsídio junto à KdF para outras atividades de lazer subiu de 9,1 para mais de 54 milhões (GRUBE; RICHTER, 1982, p. 123).
Mesmo que tais números possam ser questionados, e mesmo que, como salienta Ursula Becher, seja difícil mensurar o nível de adesão em termos ideológicos (BECHER, 1995, p. 129), a popularidade da KdF é inegável, embora ela tenha sido muito mais motivada pela carência de “alegria” (Freude), do que propriamente pela “força” (Kraft), um dos vetores da doutrinação ideológica. Além disso, para o ramo de hotelaria e para a Rede Ferroviária Alemã – a Deutsche Reichsbahn –, o turismo subvencionado pelo Estado significou uma lucratividade garantida.


Os resultados de uma pesquisa de opinião realizada com empregados da Siemens em Berlim, no ano de 1937, demonstram bem que o aparente sucesso da KdF deveu-se justamente pela organização ter ocupado um segmento do mercado até então não explorado nessas proporções. Dos 42.000 entrevistados, 28.000 ainda não tinham passado férias fora de Berlim (GRUBE; RICHTER, 1982, p. 123).

Em primeira linha, pode-se afirmar que o intuito de uma política dessa natureza era organizar o tempo de descanso, relaxamento e lazer (não trabalho) frente ao tempo de produção (trabalho), no sentido de possibilitar aos trabalhadores uma recuperação das forças física e psíquica exigidas por suas funções, através do empreendimento de atividades lúdicas. Esse parece ser, aliás, um fenômeno comum, oriundo da própria industrialização e da formação de centros urbanos, conforme aponta Victor Andrade de Melo: “A estruturação das fábricas e a subsequente necessidade de facilitar a circulação de mercadorias transformaram a cidade no novo lócus privilegiado de vivências sociais, sede das tensões que se estabeleceram na transição entre o novo e o antigo regime” (MELO, 2011, p. 68). E o autor prossegue em sua argumentação: “À necessidade de gestar um novo conjunto de comportamentos considerados adequados para a consolidação do modelo de sociedade em construção, adenda-se a reorganização dos tempos sociais: a artificialização do tempo do trabalho, uma decorrência da industrialização, dá origem a um mais claro delineamento do tempo livre” (MELO, 2011, p. 68-69).

Todavia, nosso estudo nos permitiu constatar também que a promoção de atividades de lazer com vistas à recuperação da força de trabalho não era o único aspecto que levou a cúpula nazista a interferir, através de política de Estado, na organização do tempo livre, não a deixando mais a cargo do indivíduo ou da população. Segundo Ursula Becher, tal intervenção foi motivada pelo ceticismo diante da capacidade do trabalhador organizar, ele mesmo, o seu tempo livre, pois se temia que o tempo livre produzisse ócio, e que dele surgissem “pensamentos, tolos, difamatórios e, por fim, criminosos” (LEY apud BECHER, 1995, p. 128), como o próprio dirigente da Frente Alemã de Trabalho (DAF), Robert Ley, certa vez formulou. Portanto, a organização do tempo livre e do lazer não escapou ao controle “total” do Estado, como Robert Ley afirmou: “Não temos mais pessoas num sentido privado. O tempo, onde cada um podia e era permitido fazer o que quisesse, passou” (LEY apud BECHER, 1995, p. 128).

Cabe, aliás, ressaltar que até mesmo o Volkswagen (literalmente, “veículo do povo”) foi idealizado como parte da política da DAF e da KdF. A produção do KdF-Wagen, como também era chamado, começou no segundo semestre de 1938. No final daquele ano, cerca de 150.000 pessoas já haviam encomendado o carro e estavam esperando ansiosamente pela entrega. Eles deveriam começar a receber seus carros no início de 1940. Entretanto, com a eclosão da guerra em setembro de 1939, a produção foi direcionada para a construção de veículos de combate.

Sendo assim, é patente o grau de intervenção do Estado nazista num âmbito em que, tradicionalmente, haveria uma liberdade maior de escolha por parte do individuo de suas atividades de lazer, frente a suas necessidades e possibilidades. Pois o controle de cada indivíduo em todo o tempo, inclusive no tempo livre e nas férias, era uma meta do nazismo. Portanto, o lazer durante o regime nazista tornou-se mais um campo social abarcado por uma política de cerceamento de liberdade e de doutrinação de valores.

Considerações finais

O presente estudo permitiu-nos constatar que o lazer sofreu a interferência do Estado com fins de propaganda e de estabilização política, do mesmo modo como havia ocorrido no âmbito do esporte, principalmente no contexto dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936. Inegavelmente, o lazer sob o jugo totalitário foi um âmbito que garantiu a adesão de amplos segmentos da sociedade alemã à ideologia nazista. Se, por um lado, a Olimpíada de Berlim serviria – como realmente serviu – de “vitrine”, através da qual a cúpula nazista empreenderia todos os meios para mostrar ao mundo – e, portanto, fabricar – uma bela imagem da “nova” Alemanha (das neue Deutschland), bem diferente daquela vivenciada no dia-a-dia de um Estado totalitário erigido sobre a base de uma ideologia carismática e imperialista defendida por um líder – o Führer –, um único partido populista – o NSDAP, “Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães” –, aparelhos de repressão – SA, SS e Gestapo – e um monopólio de armas, informações e propaganda, por outro, desde que chegaram ao poder em janeiro de 1933, os governantes nazistas implantaram políticas de lazer que fomentassem entre os trabalhadores um sentido de adesão e, ao mesmo tempo, reduzisse a possível resistência entre eles, uma vez que modificações drásticas ocorreram no âmbito trabalhista com a supressão dos sindicatos e a criação de uma instituição centralizadora, a Frente Alemã do Trabalho (Deutsche Arbeiterfront ou DAF), lembrando, mais uma vez, que a ela se vinculava a organização Força pela Alegria (Kraft durch Freude ou KdF), responsável pelos âmbitos do lazer e do turismo no Terceiro Reich.

Referências

BARANOWSKI, Shelley. Strength Through Joy: Consumerism and Mass Tourism in The Third Reich. New York: Cambridge University Press, 2004, p. 1-10. Disponível online: http://catdir.loc.gov/catdir/samples/cam041/2003060603.pdf. Acesso em 18 dez. 2014.

BECHER, Ursula A. J. Kraft durch Freude. In: STUDT, Christoph (org.). Das Dritte Reich: Ein Lesebuch zur deutschen Geschichte 1933-1945. München: Beck, 1995, p. 126-129.

BROSZAT, Martin. Gleichschaltung. In: STUDT, Christoph (org.). Das Dritte Reich: Ein Lesebuch zur deutschen Geschichte 1933-1945. München: Beck, 1995, p. 62-64.

DILLON, Chris; RICHTHOFEN, Esther von. Alltag im Dritten Reich. Erfuhrt: Sutton Verlag, 2008.

GIESECKE, Hermann. Leben nach der Arbeit: Ursprünge und Perspektive der Freizeitpädagogik. München: Juventa-Verlag, 1983.

GOMES, Christianne Lucy. Lazer, trabalho e educação: relações históricas, questões contemporâneas. 2. ed., Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008. [coleção “Aprender“]

GRUBE, Frank; RICHTER, Gerhard. Alltag im Dritten Reich: So lebten die Deutschen 1933-1945. Hamburg: Hoffmann und Campe, 1982.

ISAYAMA, Hélder Ferreira (org.). Lazer em estudo: currículo e formação profissional. Campinas, SP: Papirus, 2010.

KAMMER, Hilde; BARTSCH, Elisabet. Nationalsozialismus: Begriffeaus der Zeit der Gewaltherrschaft 1933-1945. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1992.

LINHALES, Meily Assbú. Jogos da Política, Jogos do Esporte. In: MARCELLINO, Nelson Carvalho (org.). Lazer e Esporte: políticas públicas. Campinas/SP: Autores Associados, 2001, p. 31-56.

MARCELLINO, Nelson Carvalho (org.). Lazer e Esporte: políticas públicas. Campinas/SP: Autores Associados, 2001.

MARCELLINO, Nelson Carvalho (org.). Políticas públicas do lazer. Campinas, SP: Alínea, 2008. [coleção “Estudos do Lazer”]

MELO, Victor Andrade de et al. (org.). Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2013.

MELO, Victor Andrade de. O lazer (ou a diversão) e os estudos históricos. In: ISAYAMA, Hélder Ferreira; SILVA, Silvio Ricardo da (org.). Estudos do lazer: um panorama. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011, p. 65-80.

SCHNEIDER, Claudia. Die NS-Gemeinschaft Kraft durch Freude (2004). Disponível em: http://www.zukunft-braucht-erinnerung.de/die-ns-gemeinschaft-kraft-durch-freude/. Acesso em 21 fev. 2015.

STUDT, Christoph (org.). Das Dritte Reich: Ein Lesebuch zur deutschen Geschichte 1933-1945. München: Beck, 1995.

WENDT, Bernd Jürgen. Das nationalsozialistische Deutschland. Berlin: Landeszentrale für politische Bildung, 1999.


A Associação Portuguesa de Desportos e a simbologia da cruz

18/01/2021

por Elcio Cornelsen

(cornelsen@letras.ufmg.br)

A já centenária Associação Portuguesa de Desportos, diferindo de outros clubes brasileiros de origem lusitana, como, por exemplo, o Club de Regatas Vasco da Gama e a Tuna Luso Brasileira, não surgiu, originalmente, no âmbito dos esportes náuticos, mas sim como clube de futebol. Fundado em 14 de agosto de 1920 com o nome de Associação Portuguesa de Esportes, o clube resultou da fusão de outras cinco agremiações já existentes à época: o Luziadas Futebol Club, a Associação 5 de Outubro, o Esporte Club Lusitano, a Associação Atlética Marques de Pombal e o Portugal Marinhense, formando um único clube de futebol da colônia lusitana em São Paulo, apto a disputar a primeira divisão do campeonato paulista. [1]

A data de fundação da Portuguesa, longe de ser fortuita, remonta a um fato histórico fundamental para a construção de Portugal enquanto nação, ocorrido na Idade Média: o dia 14 de agosto de 1385 entrou para a história como o dia da Batalha de Aljubarrota, em que Portugal derrotou a Espanha e conseguiu se afirmar como reino independente de Castela e Leão. Lideradas por D. João, mestre da Ordem de Avis, as tropas portuguesas derrotaram as tropas espanholas sob o comando de D. Juan I de Castela no campo de São Jorge, próximo à vila de Aljubarrota, nas imediações de Leiria e Alcobaça, no centro de Portugal. Um dos acontecimentos mais significativos da história de Portugal, a Batalha de Aljubarrota marcou o inicio da Dinastia de Avis, que permaneceria no poder até 1580, abrangendo, portanto, a era dos Descobrimentos, e garantiu ao reino português sua soberania diante das pretensões do reino de Castela e Leão e promoveu a consolidação da identidade nacional enquanto nação livre e independente. [2]

Figura 1 – A Batalha de Aljubarrota
Fonte: https://www.fundacao-aljubarrota.pt/

No Mundo Ocidental, a simbologia da cruz consolidou-se, sobretudo, pela difusão do Cristianismo, em que a cruz aparece como símbolo do sofrimento de Cristo e da fé cristã. De acordo com o jornalista e historiador Guss de Lucca, a Cruz Cristã, também denominada de Cruz Latina, remonta à cruz utilizada pelos romanos para executar criminosos e inimigos do Império. No contexto cristão, “ela nos remete ao sacrifício que Jesus Cristo ofereceu pelos pecados das pessoas. Além da crucificação, ela representa a ressurreição e a vida eterna”. [3] Dessa tradição, surgiram outras cruzes, como, por exemplo, a Cruz de Santo André, a Cruz de Santo Antonio, a Cruz Patriarcal ou de Caravaca, a Cruz de Jerusalém, a Cruz da Páscoa, a Cruz do Calvário, a Cruz da Ordem dos Templários, a Cruz de Malta, a Cruz da Ordem de Cristo e a Cruz da Ordem de Avis. Para nosso estudo, interessa-nos, justamente, esta última.

Figura 2 – A Cruz da Ordem de Avis
Fonte: http://paineis.org/C06.htm

Além de atrelarem-se à história de Portugal através da data de fundação, os laços de origem da Associação Portuguesa de Desportos, como não poderia deixar de ser, foram reforçados através de elementos de identidade simbólica. As cores escolhidas para o uniforme foram o verde e o vermelho, as mesmas cores de Portugal. E o primeiro distintivo do clube, adotado no ato de fundação, foi composto pelo escudo português sobre um fundo verde e vermelho. Por sua vez, este foi substituído em 1923 pela Cruz de Avis, adotada como elemento componente de seu brasão. [4]

Além de símbolo das glórias lusitanas nas Cruzadas, a Cruz de Avis também representava o fim do domínio do Reino de Castela sobre Portugal com a batalha de Aljubarrota, de modo que, simbolicamente, a adoção do novo brasão associava-se diretamente à data de fundação do clube. Cabe ressaltar que a Ordem de Avis, fundada em 1319 e, portanto, posterior às Cruzadas, é uma continuidade, em Portugal, da Ordem dos Templários, dissolvida pelo Papa Clemente V em 1312.


Figura 4 – Os escudos e as mascotes da Portuguesa
Fonte: http://www.acervodalusa.com.br/

A Lusa, como é carinhosamente denominada por seus torcedores, originalmente, teve um primeiro hino, composto por Arquimedes Messina e Carlos Leite Guerra:

Você faz parte de uma grande família

Que muito pode se orgulhar

E a família unida e muito amiga

Da Portuguesa querida

Muitas obras vai realizar

Pelo esporte brasileiro

Rubro verde espetacular

Esportivo recreativo clube de tradição

E o clube da amizade orgulho da cidade O clube do coração

Viva a Lusa

Viva a Lusa

Clube Esportivo e social

Portuguesa de desportos

Orgulho do esporte nacional [5]

Em termos textuais, o primeiro hino da Portuguesa, além do nome do clube e da expressão carinhosa “Lusa”, traz ainda a identidade simbólica a partir das cores mencionadas no verso “Rubro verde espetacular”, mas não faz menção à Cruz de Avis.

Todavia, no início dos anos 1980, o hino original da Portuguesa de Desportos foi substituído por outro, composto por um de seus torcedores ilustres, o saudoso cantor Roberto Leal (1951-2019), em parceira com a compositora Márcia Lúcia. Em entrevista concedida ao Globo Esporte, datada de 11 de janeiro de 2011, Roberto Leal fez a seguinte declaração a respeito do novo hino por ele criado nos anos 1980:

O hino da Portuguesa era bonito, mas os torcedores queriam uma coisa mais forte. Resolvi fazer um e sempre cantava nos encontros. Quando os diretores perceberam que a música estava na boca das pessoas, resolveram fazer uma assembléia no clube e oficializaram o hino que criei. […] [6]

Composta e gravada em 1983, a letra do novo hino da Portuguesa reproduz em seus versos alguns traços de identidade simbólica:

Vamos à luta, ó campeões,

hão de vibrar os nossos corações

Na tua glória, toda certeza,

que tu és grande, ó Portuguesa!

Vamos à luta, ó Campeões,

há de brilhar a cruz dos teus brasões

E tua bandeira verde-encarnada,

que é a luz da tua jornada!

Vitória e a certeza

da tua forca e tradição

Em campo, ó Portuguesa, pra nós,

és sempre um time campeão! [7]

Além do nome do clube, e das cores mencionadas no verso “E tua bandeira verde-encarnada”, a letra do novo hino retoma a simbologia da cruz, presente no distintivo, no verso “há de brilhar a cruz dos teus brasões”. Desse modo, a letra do novo hino, de maneira implícita, reforça o laço entre a data de fundação como marco histórico – a Batalha de Aljubarrota e a Cruz da Ordem de São Bento de Avis –, o distintivo do clube – a Cruz de Avis em verde sobre escudo de fundo branco e contornos vermelhos – e suas cores.

Portanto, a simbologia da cruz, no caso específico da Associação Portuguesa de Desportos, discursivamente, atrela o clube às tradições medievais da Ordem de São Bento de Avis, ordem religiosa militar de cavaleiros portugueses surgida no século XII, e à era de ouro da Dinastia de Avis nos séculos XV e XVI. O hino e sua letra também contribuem discursivamente para a divulgação dessa simbologia.

Notas

[1] As informações históricas contidas neste item foram coletadas no site oficial do clube – disponível em: http://www.portuguesa.com.br/fhistorico.asp; acesso em: 11 jan. 2021 –, bem como no blog “Alma Lusa” – disponível em: http://almalusa.net/curiosidades.html; acesso em: 21 fev. 2012.

[2] MONTEIRO, João Gouveia. Aljubarrota, 1385: A batalha real. Lisboa: Tribuna da História, 2003, p. 26-27. Conferir também: http://www.fundacao-aljubarrota.pt/?idc=21 ; acesso em: 11 jan. 2021.

[3] LUCCA, Guss de. A Cruz e seus Simbolismos. Disponível em: http://www.spectrumgothic.com.br/ocultismo/simbolos/cruz_simbolismos.htm; acesso em: 11 jan. 2021.

[4] Disponível em: http://almalusa.net/distintivos.html; acesso em: 21 fev. 2012.

[5] Disponível em: http://www.acervodalusa.com.br/; acesso em: 11. jan. 2021.

[6] In: Meu jogo inesquecível (entrevista datada de 11/01/2011); disponível em: http://globoesporte.globo.com/futebol/times/portuguesa/noticia/2011/01/meu-jogo-inesquecivel-finalda-lusa-fez-roberto-leal-abandonar-seu-carro.html ; acesso em: 06 mar. 2012.

[7] Disponível em: http://www.acervodalusa.com.br/; acesso em: 11. jan. 2021.


Futebol e Lazer em dois contos de Antônio de Alcântara Machado

24/08/2020

Por Elcio Loureiro Cornelsen

Desde os primórdios do futebol no Brasil, intelectuais não ficaram alheios àquela modalidade esportiva e de lazer que, gradativamente, ultrapassava os limites do ground e do field dos clubes nobres de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro e alcançava os campos improvisados, as ruas e os terrenos baldios das cidades brasileiras. A crônica seria o gênero eleito por intelectuais para versarem sobre o esporte bretão, seja para criticá-lo, seja para louvá-lo. Numa seleta galeria figuram nomes como João do Rio, Coelho Neto, Lima Barreto, Graciliano Ramos, entre outros, que trouxeram o football para os debates nos salões literários.

No final da década de 1910, o futebol já iniciava a sua franca popularização, que se intensificaria nas décadas seguintes. Um dos grandes marcos literários da época foi o movimento modernista, capitaneado, entre outros, por escritores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Antônio de Alcântara Machado. E o futebol não ficou de fora do projeto modernista. Um dos expoentes da vanguarda paulista, Mário de Andrade fez uma referência ao futebol em sua obra prima, o romance Macunaíma (1928). De maneira inusitada, o “herói sem nenhum caráter”, ao mesmo tempo índio e negro, surgiria como o inventor do futebol em terras brasilis, em uma espécie de mito fundador antropofágico. Vejamos o trecho a seguir, extraído do capítulo “A francesa e o gigante”, em que os irmãos Manaape, Jiguê e Macunaíma encenam a invenção do futebol:

[…] O herói não maliciava nada. Vai, Jiguê pegou num tijolo, porém pra não machucar muito virou-o numa bola de couro duríssima. Passou a bola pra Maanape que estava mais a frente e Maanape com um pontapé mandou ela bater em Macunaíma. Esborrachou todo o nariz do herói. – Ui! Que o herói fez. Os manos bem sonsos gritaram: – Uai! Está doendo, mano! Pois quando bola bate na gente nem não dói! Macunaíma teve raiva e atirando a bola com o pé bem pra longe falou: – Sai, peste! Veio onde estavam os manos: – Não faço mais papiri, pronto! E virou tijolos pedras telhas ferragens numa nuvem de iças64 que tomou São Paulo por três dias. O bichinho caiu em Campinas. A taturana caiu por aí. A bola caiu no campo. E assim foi que Macunaíma inventou o bicho-do-café, Jiguê a lagarta-rosada e Macunaíma o futebol, três pragas. (ANDRADE, 1992, p. 62)

E a “praga” do futebol, como é designada pelo narrador do romance, se alastraria ainda mais nas décadas seguintes, tornando-se um dos traços culturais, esportivos e de lazer de grande significado para o Brasil. Outro expoente da vanguarda paulista, Oswald de Andrade, também abriu espaço para o futebol no célebre romance Memórias sentimentais de João Miramar (1924), no qual incluiu um poema intitulado “Bungalow das rosas e dos pontapés”, no qual o futebol aparece como parte de um cenário urbano:

Bondes gols
Aleguais
Noctâmbulos de matches campeões
E poeira
Com vesperais
Desenvoltas tennis girls
No Paulistano
Paso doble. (ANDRADE, 1967, p. 123)

De acordo com o historiador Bernardo Borges Buarque de Hollanda,

Oswald de Andrade registra com seus versos livres, em forma de instantâneos fotográficos, a mesma presença do futebol na cidade moderna de São Paulo. Ao lado dos bondes eletrificados, elemento simbólico do progresso […], bem como da eletricidade de modo geral, que possibilita as primeiras partidas noturnas na cidade, em princípio dos anos 1920, os gols integram-se a esse novo tempo de agitação e frenesi que contagia as grandes metrópoles sob o influxo da modernização. (HOLLANDA, 2015, p. 26-27)

O poema “Bungalow das rosas e dos pontapés” é composto por uma única estrofe que contém 08 versos livres, ou seja, com métricas variáveis. Em seu segundo verso, composto apenas pela palavra “Aleguais”, temos uma gíria do jargão do futebol nos anos 1920: de acordo com o dicionário Aulete, tal expressão teria sido um dos primeiros “cantos de guerra” da torcida brasileira, que teria origem no enunciado “Allez! Go! Hack!”, transformado em “Aleguá-guá-guá”. E segundo o historiador Bernardo Borges Buarque de Holanda,

[a] palavra “Aleguais”, por exemplo, era um grito usual no período, abrasileiramento de uma expressão francesa. Com ela, o torcedor paulistano tradicionalmente comemorava o gol de sua equipe. A bem dizer, tratava-se de uma interjeição similar a outra bem comum á época, ‘hip, hip, hurrah’, dos torcedores no Rio de Janeiro. (HOLLANDA, 2015, p. 27)

Se em Macunaíma o futebol surge numa linha de passe entre os irmãos Manaape, Jiguê e Macunaíma, em Memórias sentimentais de João Miramar o futebol já faz parte do cenário urbano da “pauliceia desvairada”, e os “aleguais” atestam que o esporte bretão já era parte do lazer daqueles que acorriam aos clubes – no caso, o tradicional Clube Athletico Paulistano – para vibrar e torcer por seus times.

Entretanto, seria em dois contos de Antônio de Alcântara Machado, publicados na obra Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), que o futebol surgiria como lazer para garotos do bairro étnico do Brás. O primeiro deles é “Gaetaninho”, em que o protagonista, filho de italianos, gostava de jogar bola na rua. Como em flashes, o narrador assim se refere à habilidade de Gaetaninho que, mesmo quando tentava fugir das chineladas de sua mãe, valia-se da ginga do futebol: “Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia-volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro. Eta salame de mestre!” (MACHADO, 2010, p. 27). E os jogos na rua representavam o momento de lazer dos meninos: “O jogo na calçada parecia de vida ou morte” (MACHADO, 2010, p. 28). Nino, Beppino e Gaetaninho jogavam futebol animados:

Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ele cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
─ Vá dar tiro no inferno!
─ Cala a boca, palestrino!
─ Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola, um bonde o pegou. Pegou e matou. No bonde vinha o pai de Gaetaninho. (MACHADO, 2010, p. 28)

Além do momento trágico alcançado no conto com o atropelamento e morte de Gaetaninho, ironicamente, ele realizou seu sonho de um dia poder andar de carro, como o Beppino já havia feito no início do conto, ao acompanhar o féretro da Tia Peronetta, que fora sepultada no Cemitério do Araçá. Gaetaninho seria levado para o cemitério de carro: “Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho caixão fechado com flores pobres em cima” (MACHADO, 2010, p. 29).

Portanto, nesse conto de Antônio de Alcântara Machado, o futebol aparece como prática urbana de lazer em um bairro étnico, com vários representantes da colônia italiana de São Paulo. Com todos os riscos que se corria ao se jogar bola nas calçadas e vias, com um trânsito já em expansão no final da década de 1920, o protagonista acaba sendo vitimado por correr atrás de uma bola perdida sem prestar atenção e acaba atropelado por um bonde.

Entretanto, é no conto “Corinthians 2 x Palestra 1” que o futebol ganha maiores contornos enquanto lazer. Numa disputa entre dois dos principais clubes de São Paulo, o Sport Club Corinthians Paulista, fundado em 1910, e o Palestra Itália, fundado em 1914, time da colônia italiana, constroi-se uma imagem do torcer como lazer. No estádio do Parque Antártica, os torcedores vibram com seus times:

[…] Em torno do trapézio verde a ânsia de vinte mil pessoas. De olhos ávidos. De nervos elétricos. De preto. De branco. De azul. De vermelho.
Delírio futebolístico no Parque Antártica. (MACHADO, 1993, p. 32)

Quando o Corinthians marca o primeiro tento, as arquibancadas extravasam a emoção:

─ Aleguá-guá-guá! Aleguá-guá-guá! Urrá-urrá! Corinthians!
Palhetas subiram no ar. Com os gritos. Entusiasmos rugiam. Pulavam. Dançavam. E as mãos batendo nas bocas:
─ Go-o-o-o-o-o-ol! (MACHADO, 1993, p. 33)

Nota-se que o narrador se esmera em descrever algo que é da ordem da performance do torcedor, como movimentos corporais, gestos e cânticos. E os torcedores do Palestra Itália também tiveram o seu momento de euforia:

Matias centrou. A assistência silenciou. Imparato emendou. A assistência berrou.
─ Palestra! Palestra! Aleguá-guá! Palestra! Aleguá! Aleguá! (MACHADO, 1993, p. 34)

E o comportamento da torcida também é tema em um lance da arbitragem:

Mas o juiz marcou um impedimento.
─ Vendido! Bandido! Assassino!
Turumbamba na arquibancada.
[…]
─ Nem torcer a gente pode mais! Nunca vi! (MACHADO, 1993, p. 35)

Após o Corinthians marcar o segundo gol e findar a partida, as ruas da cidade foram tomadas pelos torcedores eufóricos pela vitória de seu time: “A alegria dos vitoriosos demandou a cidade. Berrando, assobiando e cantando” (MACHADO, 1993, p. 39).

A título de conclusão, reconhece-se que esses flashes urbanos ficcionais da Paulicéia no final da década de 1920 evidenciam a crescente popularização pela qual o futebol passava, como lazer para muitos, seja nos jogos dos garotos no Brás, seja no comportamento dos torcedores nas arquibancadas do estádio do Palestra Itália diante de um clássico reunindo dois clubes cada vez mais populares naquela época. Essas cenas da vida cotidiana, de Brás, Bexiga e Barra Funda, pautadas pelas trivialidades e pelo corriqueiro, fazem desfilar seus tipos humanos em meio a eventos hilários ou trágicos, em que o futebol aparece como um momento de lazer.

Referências

ANDRADE, Mário. Macunaíma (1928). São Paulo, Círculo do Livro, 1992.

ANDRADE, Oswald de. Bungalow das rosas e dos pontapés (1024). In: PEDROSA, Milton. Gol de letra: o futebol na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Gol, 1967, p. 123.

AULETE. Aleguá (verbete). Disponível em: http://www.aulete.com.br/alegu%C3%A1. Acesso em: 09 jul. 2020.

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Ecos da Semana de Arte Moderna? A recepção ao futebol em São Paulo e o movimento modernista nas décadas de 1920 e 1930. In: CORNELSEN, Elcio; AUGUSTIN, Günther; SILVA, Silvio Ricardo da (orgs.). Futebol, linguagem, artes, cultura e lazer. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2015, p. 17-26.

MACHADO, Antônio de Alcântara. Corinthians 2 x Palestra 1 (1927). In: RAMOS, Ricardo (org.). A palavra é… futebol. São Paulo: Scipione, 1993, p. 31- 39.

MACHADO, Antônio de Alcântara. Gaetaninho (1927). In: In: LIMA, João Gabriel de (org.). Livro Bravo! Literatura e Futebol. São Paulo: Ed. Abril, 2010, p. 27-29.


Futebol e Lazer em dois contos de Antônio de Alcântara Machado

24/08/2020

Elcio Loureiro Cornelsen

Desde os primórdios do futebol no Brasil, intelectuais não ficaram alheios àquela modalidade esportiva e de lazer que, gradativamente, ultrapassava os limites do ground e do field dos clubes nobres de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro e alcançava os campos improvisados, as ruas e os terrenos baldios das cidades brasileiras. A crônica seria o gênero eleito por intelectuais para versarem sobre o esporte bretão, seja para criticá-lo, seja para louvá-lo. Numa seleta galeria figuram nomes como João do Rio, Coelho Neto, Lima Barreto, Graciliano Ramos, entre outros, que trouxeram o football para os debates nos salões literários.

No final da década de 1910, o futebol já iniciava a sua franca popularização, que se intensificaria nas décadas seguintes. Um dos grandes marcos literários da época foi o movimento modernista, capitaneado, entre outros, por escritores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Antônio de Alcântara Machado. E o futebol não ficou de fora do projeto modernista. Um dos expoentes da vanguarda paulista, Mário de Andrade fez uma referência ao futebol em sua obra prima, o romance Macunaíma (1928). De maneira inusitada, o “herói sem nenhum caráter”, ao mesmo tempo índio e negro, surgiria como o inventor do futebol em terras brasilis, em uma espécie de mito fundador antropofágico. Vejamos o trecho a seguir, extraído do capítulo “A francesa e o gigante”, em que os irmãos Manaape, Jiguê e Macunaíma encenam a invenção do futebol:

[…] O herói não maliciava nada. Vai, Jiguê pegou num tijolo, porém pra não machucar muito virou-o numa bola de couro duríssima. Passou a bola pra Maanape que estava mais a frente e Maanape com um pontapé mandou ela bater em Macunaíma. Esborrachou todo o nariz do herói. – Ui! Que o herói fez. Os manos bem sonsos gritaram: – Uai! Está doendo, mano! Pois quando bola bate na gente nem não dói! Macunaíma teve raiva e atirando a bola com o pé bem pra longe falou: – Sai, peste! Veio onde estavam os manos: – Não faço mais papiri, pronto! E virou tijolos pedras telhas ferragens numa nuvem de iças64 que tomou São Paulo por três dias. O bichinho caiu em Campinas. A taturana caiu por aí. A bola caiu no campo. E assim foi que Macunaíma inventou o bicho-do-café, Jiguê a lagarta-rosada e Macunaíma o futebol, três pragas. (ANDRADE, 1992, p. 62)

E a “praga” do futebol, como é designada pelo narrador do romance, se alastraria ainda mais nas décadas seguintes, tornando-se um dos traços culturais, esportivos e de lazer de grande significado para o Brasil. Outro expoente da vanguarda paulista, Oswald de Andrade, também abriu espaço para o futebol no célebre romance Memórias sentimentais de João Miramar (1924), no qual incluiu um poema intitulado “Bungalow das rosas e dos pontapés”, no qual o futebol aparece como parte de um cenário urbano:

Bondes gols
Aleguais
Noctâmbulos de matches campeões
E poeira
Com vesperais
Desenvoltas tennis girls
No Paulistano
Paso doble. (ANDRADE, 1967, p. 123)

De acordo com o historiador Bernardo Borges Buarque de Hollanda,

Oswald de Andrade registra com seus versos livres, em forma de instantâneos fotográficos, a mesma presença do futebol na cidade moderna de São Paulo. Ao lado dos bondes eletrificados, elemento simbólico do progresso […], bem como da eletricidade de modo geral, que possibilita as primeiras partidas noturnas na cidade, em princípio dos anos 1920, os gols integram-se a esse novo tempo de agitação e frenesi que contagia as grandes metrópoles sob o influxo da modernização. (HOLLANDA, 2015, p. 26-27)

O poema “Bungalow das rosas e dos pontapés” é composto por uma única estrofe que contém 08 versos livres, ou seja, com métricas variáveis. Em seu segundo verso, composto apenas pela palavra “Aleguais”, temos uma gíria do jargão do futebol nos anos 1920: de acordo com o dicionário Aulete, tal expressão teria sido um dos primeiros “cantos de guerra” da torcida brasileira, que teria origem no enunciado “Allez! Go! Hack!”, transformado em “Aleguá-guá-guá”. E segundo o historiador Bernardo Borges Buarque de Holanda,

[a] palavra “Aleguais”, por exemplo, era um grito usual no período, abrasileiramento de uma expressão francesa. Com ela, o torcedor paulistano tradicionalmente comemorava o gol de sua equipe. A bem dizer, tratava-se de uma interjeição similar a outra bem comum á época, ‘hip, hip, hurrah’, dos torcedores no Rio de Janeiro. (HOLLANDA, 2015, p. 27)

Se em Macunaíma o futebol surge numa linha de passe entre os irmãos Manaape, Jiguê e Macunaíma, em Memórias sentimentais de João Miramar o futebol já faz parte do cenário urbano da “pauliceia desvairada”, e os “aleguais” atestam que o esporte bretão já era parte do lazer daqueles que acorriam aos clubes – no caso, o tradicional Clube Athletico Paulistano – para vibrar e torcer por seus times.

Entretanto, seria em dois contos de Antônio de Alcântara Machado, publicados na obra Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), que o futebol surgiria como lazer para garotos do bairro étnico do Brás. O primeiro deles é “Gaetaninho”, em que o protagonista, filho de italianos, gostava de jogar bola na rua. Como em flashes, o narrador assim se refere à habilidade de Gaetaninho que, mesmo quando tentava fugir das chineladas de sua mãe, valia-se da ginga do futebol: “Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia-volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro. Eta salame de mestre!” (MACHADO, 2010, p. 27). E os jogos na rua representavam o momento de lazer dos meninos: “O jogo na calçada parecia de vida ou morte” (MACHADO, 2010, p. 28). Nino, Beppino e Gaetaninho jogavam futebol animados:

Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ele cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
─ Vá dar tiro no inferno!
─ Cala a boca, palestrino!
─ Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola, um bonde o pegou. Pegou e matou. No bonde vinha o pai de Gaetaninho. (MACHADO, 2010, p. 28)

Além do momento trágico alcançado no conto com o atropelamento e morte de Gaetaninho, ironicamente, ele realizou seu sonho de um dia poder andar de carro, como o Beppino já havia feito no início do conto, ao acompanhar o féretro da Tia Peronetta, que fora sepultada no Cemitério do Araçá. Gaetaninho seria levado para o cemitério de carro: “Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho caixão fechado com flores pobres em cima” (MACHADO, 2010, p. 29).

Portanto, nesse conto de Antônio de Alcântara Machado, o futebol aparece como prática urbana de lazer em um bairro étnico, com vários representantes da colônia italiana de São Paulo. Com todos os riscos que se corria ao se jogar bola nas calçadas e vias, com um trânsito já em expansão no final da década de 1920, o protagonista acaba sendo vitimado por correr atrás de uma bola perdida sem prestar atenção e acaba atropelado por um bonde.

Entretanto, é no conto “Corinthians 2 x Palestra 1” que o futebol ganha maiores contornos enquanto lazer. Numa disputa entre dois dos principais clubes de São Paulo, o Sport Club Corinthians Paulista, fundado em 1910, e o Palestra Itália, fundado em 1914, time da colônia italiana, constroi-se uma imagem do torcer como lazer. No estádio do Parque Antártica, os torcedores vibram com seus times:

[…] Em torno do trapézio verde a ânsia de vinte mil pessoas. De olhos ávidos. De nervos elétricos. De preto. De branco. De azul. De vermelho.
Delírio futebolístico no Parque Antártica. (MACHADO, 1993, p. 32)

Quando o Corinthians marca o primeiro tento, as arquibancadas extravasam a emoção:

─ Aleguá-guá-guá! Aleguá-guá-guá! Urrá-urrá! Corinthians!
Palhetas subiram no ar. Com os gritos. Entusiasmos rugiam. Pulavam. Dançavam. E as mãos batendo nas bocas:
─ Go-o-o-o-o-o-ol! (MACHADO, 1993, p. 33)

Nota-se que o narrador se esmera em descrever algo que é da ordem da performance do torcedor, como movimentos corporais, gestos e cânticos. E os torcedores do Palestra Itália também tiveram o seu momento de euforia:

Matias centrou. A assistência silenciou. Imparato emendou. A assistência berrou.
─ Palestra! Palestra! Aleguá-guá! Palestra! Aleguá! Aleguá! (MACHADO, 1993, p. 34)

E o comportamento da torcida também é tema em um lance da arbitragem:

Mas o juiz marcou um impedimento.
─ Vendido! Bandido! Assassino!
Turumbamba na arquibancada.
[…]
─ Nem torcer a gente pode mais! Nunca vi! (MACHADO, 1993, p. 35)

Após o Corinthians marcar o segundo gol e findar a partida, as ruas da cidade foram tomadas pelos torcedores eufóricos pela vitória de seu time: “A alegria dos vitoriosos demandou a cidade. Berrando, assobiando e cantando” (MACHADO, 1993, p. 39).

A título de conclusão, reconhece-se que esses flashes urbanos ficcionais da Paulicéia no final da década de 1920 evidenciam a crescente popularização pela qual o futebol passava, como lazer para muitos, seja nos jogos dos garotos no Brás, seja no comportamento dos torcedores nas arquibancadas do estádio do Palestra Itália diante de um clássico reunindo dois clubes cada vez mais populares naquela época. Essas cenas da vida cotidiana, de Brás, Bexiga e Barra Funda, pautadas pelas trivialidades e pelo corriqueiro, fazem desfilar seus tipos humanos em meio a eventos hilários ou trágicos, em que o futebol aparece como um momento de lazer.

Referências

ANDRADE, Mário. Macunaíma (1928). São Paulo, Círculo do Livro, 1992.

ANDRADE, Oswald de. Bungalow das rosas e dos pontapés (1024). In: PEDROSA, Milton. Gol de letra: o futebol na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Gol, 1967, p. 123.

AULETE. Aleguá (verbete). Disponível em: http://www.aulete.com.br/alegu%C3%A1. Acesso em: 09 jul. 2020.

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Ecos da Semana de Arte Moderna? A recepção ao futebol em São Paulo e o movimento modernista nas décadas de 1920 e 1930. In: CORNELSEN, Elcio; AUGUSTIN, Günther; SILVA, Silvio Ricardo da (orgs.). Futebol, linguagem, artes, cultura e lazer. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2015, p. 17-26.

MACHADO, Antônio de Alcântara. Corinthians 2 x Palestra 1 (1927). In: RAMOS, Ricardo (org.). A palavra é… futebol. São Paulo: Scipione, 1993, p. 31- 39.

MACHADO, Antônio de Alcântara. Gaetaninho (1927). In: In: LIMA, João Gabriel de (org.). Livro Bravo! Literatura e Futebol. São Paulo: Ed. Abril, 2010, p. 27-29.