G’OLÉ! (O filme oficial da Copa de 1982 – Espanha)

20/03/2023

Olá!

Hoje venho escrever sobre o filme oficial da Copa do Mundo de 1982, disputada na Espanha. Quem viveu se lembra. Impossível esquecer aquele que, provavelmente, foi o escrete nacional mais encantador, desde a década de 1970 (no meu caso, foi a segunda Copa que acompanhei e foi fascinante: frustrante e apaixonante). Pois bem, a Copa do Mundo da Espanha foi retratada direta ou indiretamente em algumas produções fílmicas. Conforme um levantamento próprio, que realizei para a produção de um capítulo em livro sobre o Mundial de 1982, três obras se destacam, a saber: G’Olé! Filme Oficial da Copa do Mundo FIFA de 1982 (RU, Tom Clegg,1983), Futebol Arte (RU, Richard Horne, 2014) e Corações de Campeões (Itália, Gianluca Fellini e Mechela Scolari, 2018). Hoje vou adiantar algumas observações sobre a primeira delas.

 “G’olé”, lançado em 1983, foi dirigido por Tom Clegg e produzido por Drummond Challis e Michael Samuelson. Tem como destaque especial a narração de Sean Connery e trilha sonora dirigida por Rick Wakeman (ex-tecladista do Yes[1]). Faz parte da coleção de registros cinematográficos da Federação Internacional de Futebol e pode ser acessado no site da FIFA (assim como os filmes disponíveis das demais Copas – https://www.fifa.com/fifaplus/pt/cat/s4xAD7wTR30jnTMLbxISS). Por ser obra encomendada pelos gestores internacionais do futebol e de sua realização maior (as Copas) parece razoável supor que essas produções podem ajudar a delinear o que a própria FIFA considerou mais relevante e destacável no megaevento em questão. Para tanto, a própria sinopse oficial já esclarece: 1982 teria sido a Copa “de um Diego Maradona de apenas 21 anos de idade”, expulso por agressão; dos “dribles e golaços de Falcão, Sócrates, Zico e Éder” e o torneio da “primeira disputa de pênaltis da história da competição”. Contou ainda com as “zebras da Argélia e Irlanda do Norte, uma intervenção real” e um “duro choque de Toni Schumacher com Patrick Battiston” (Disponível em: https://www.fifa.com/fifaplus/pt/watch/movie/ZU5G7eaVq1PNZNZWkSypT. Consultado em 26/02/23).

Para além das referências autoexplicativas, a disputa de pênaltis faz menção à eliminação da França pela Alemanha, nas semifinais, depois de um 3 x 3 em 120 minutos. As zebras dão conta da vitória da Argélia frente à mesma Alemanha (no jogo de estreia dos germânicos) e do 1 x 0 da Irlanda sobre a dona da Casa. A “intervenção real” trata da cobertura do inusitado evento da invasão de campo pelo Príncipe Fahad Al-Ahmed, do Kuwait, que conseguiu anular um gol da França[2]! No “choque” de Schumacher em Battiston (no mesmo jogo dos pênaltis) o atleta francês foi inapelavelmente nocauteado: perdeu três dentes, teve que ser levado ao hospital e chegou a entrar em coma. O juiz considerou o lance uma entrada normal de jogo[3].

Em termos fílmicos, temos um documentário tradicional. Uma história possível (a da Copa de 1982) é narrada por intermédio de uma sucessão de imagens de época, falas coetâneas, exposições circunstanciadas, depoimentos provocados, um roteiro específico. Se quiséssemos aproveitar a clássica categorização de Bill Nichols, a obra se situa como um modelo de não ficção que emprega uma narrativa histórica. Conta uma trajetória a partir de “uma interpretação ou perspectiva dos fatos” e é construída basicamente na combinação entre um “modo expositivo” (com amplo recurso ao voice over) e “participativo”, propondo a interação com os atores sociais diretamente envolvidos, com o uso intensivo de entrevistas (Introdução ao Documentário, 2016, pp. 159-161).

G’olé, com esse título estilístico (que faz um jogo explícito entre o tento e a interjeição espanhola “empregada para animar e aplaudir”[4]  – também ela apropriada pelo futebol) apresenta uma estrutura básica. Ela advém de uma proposição inicial. A voz over esclarece, logo aos dois minutos:

Sabíamos que, embora o futebol seja apenas um jogo, ele envolve uma certa quantidade de paixão”.

Esse mote básico vai reger a composição da montagem. De modo imediato e, inicialmente, intercalam-se cortes de menção lúdica e festiva a essa paixão: são cenas seguidas de comemorações eufóricas, fundamentalmente de gols marcados. Após esse conjunto, advém o outro lado da moeda, a paixão transformada em frustração, embate e violência: segue-se, assim, uma sequência de quedas, faltas, enfrentamentos. Esse vai e vem (entre confraternização e conflito) alterna-se duas vezes. É um enunciado que vaticina: vamos mostrar o espetáculo da paixão futebolística no show imagético das performances com a bola e das altercações em torno dela.

Estabelecido um fio condutor, os segmentos se descortinam. O documentário vai se iniciar acompanhando a Argentina até a expulsão de Maradona, a partir da qual, conclui: “O mundo deve esperar que seu novo rei atinja a maioridade”. Da Argentina, segue para o Brasil, que tem uma cobertura bastante significativa. Contundente e demasiadamente caricata, diga-se. Essa primeira parte, sul-americana, estanca na vitória nacional sobre os argentinos (3 x 1). Na continuidade, abre-se para a menção aos “peixes menores”: Honduras, El Salvador, Argélia, Nova Zelândia.

Depois vem a anfitriã (Espanha) e a Inglaterra. O retorno ao Brasil e ao fatídico jogo com a Itália (aproximadamente aos 44 minutos) marca os segmentos de arremate para as semifinais e para a grande decisão, com a qual o documentário chega ao fim.

Conforme já havia antecipado, a representação do Brasil (do selecionado e do brasileiro) é bem caricata. As tomadas relativas ao Brasil sempre vêm embaladas musicalmente (muito frequentemente ao som de “Voa Canarinho, voa”)[1] e com imagens de torcedores constantemente em movimento pélvico (dançando). O texto narrado e a entonação dada sugerem pequenas entradas de apelo cômico.

Não obstante, as associações (cômicas ou não) vinculadas à seleção e aos brasileiros são sistematicamente relacionadas ao “carnaval”, à música, aos “tambores”, ao samba e ao nosso “futebol romântico”. Aliás, aqui temos uma chave ‘explicativa’ para a tragédia do Sarriá (tragédia para nós, festa nacional para os italianos): teria sido por conta do nosso tal romantismo futebolístico que, mesmo com a vantagem do empate, nos impeliu “ao ataque”. Quando Falcão empata o jogo, a narração evidencia que o 2 x 2 classificaria o Brasil: “Mas seus instintos naturais [do futebol brasileiro] os levariam adiante” [ao ataque]. Perdemos porque maior que a possibilidade de jogar com a regra o que se fez valer foi nosso impulso irrefreável ao jogo ofensivo…

Também me parece-me interessante destacar que os gols da Itália contra nossa seleção são associados a descuidos/falhas do Brasil (e, desse modo, menos ao mérito do adversário). O segundo sucesso de Paolo Rossi, no caso, é explicado como “outro lapso [que] permite” o tento do atacante.

Com a consecução do hat-trick de Rossi, no entanto, “a bateria brasileira silencia” e o nosso time, “favorito, campeão [!] do futebol romântico”, ficava “fora da Copa do Mundo”. O mais notável é que nesse ponto o documentário sofre uma inflexão narrativa que mais se assemelha a um pesar. É definido mesmo como um “anticlímax”. Isso porque, dada a eliminação do selecionado canarinho,

“A Espanha recupera o fôlego. Com o Brasil fora, uma sensação de anticlímax prevaleceu. A vida voltou ao normal e se esqueceu do futebol”.

Imageticamente isso implica uma sequência (sem fala) com várias cenas cotidianas: no campo, no trânsito, nas terrazas madrileñas, nas praias. Somente após esse interregno, e de forma lenta e quase relutantemente, é que o país se preparou para a primeira das semifinais: Polônia conta Itália.

A leitura elementar parece nos levar a crer que a saída do Brasil impacta negativamente o desenrolar da Copa (e do próprio documentário). A admissão da perda do clímax, antes mesmo das semifinais, chega a surpreender. Os jogos são cobertos, é claro, e méritos são reconhecidos à Azzurra, mas alguma coisa tinha ficado pelo caminho (sempre segundo o documentário). Chega a impressionar o destaque da seleção brasileira de 1982 que, mesmo eliminada na segunda fase, consegue imprimir um sentido de qualidade e espetáculo cuja ausência é sentida como o princípio do fim. Também é de se registrar como é pujante uma concepção de que o futebol brasileiro teria uma espécie de natureza própria, de cunho artístico, romântico (estético), vital (instintivo) e gingado (rítmico, tal como na permanente trilha sonora que lhe é constantemente associada). Para mais, esperemos o livro.

Até a próxima!


[1] Povo feliz ou Voa Canarinho, voa! Canção de 1982, de autoria de Memeco e Nonô do Jacarezinho e gravada pelo lateral da seleção, Júnior (Disponível em: https://globoesporte.globo.com/futebol/selecao-brasileira/noticia/2014/06/voa-canarinho-voa-junior-lanca-regravacao-para-sua-famosa-musica.html. Consultado em 27/02/23.


[1] Para alguns detalhes e curiosidades publicadas sobre esse documentário, ver SCHOTT, Ricardo. G’olé!: lembra que tinha um filme oficial da Copa de 1982? Disponível em: https://popfantasma.com.br/gole-rick-wakeman/ (20/06/2018). Consultado em 26/02/23 e “G’Olé”. Disponível em: https://opoderosochofer.wordpress.com/2014/06/27/gole-filme-oficial-da-copa-do-mundo-espanha-1982/. Consultado em 27/02/23.

[2] Ver uma instrutiva matéria em: COPA, Copa Além da. Histórias das Copas do Mundo: o sheik e a invasão de campo. Ludopédio, São Paulo, v. 159, n. 14, 2022. Disponível em: https://ludopedio.org.br/arquibancada/historias-das-copas-do-mundo-o-sheikh-e-a-invasao-de-campo/. Consultado em 26/02/23.

[3] Ver detalhes em: https://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2014/07/04/franca-x-alemanha-teve-o-lance-mais-violento-da-historia-das-copas.htm. Consultado em 26/02/23.

[4] Conforme a Real Academia Española. Disponível em: https://www.rae.es/dpd/olé. Consultado em 27/02/23.


Marte um (Gabriel Martins, 2022)

06/12/2022


Eunice – Deivinho quer participar de uma missão que se chama Marte Um – colonizar o planeta.
Wellington (pai) – E como faz pra participar disso aí? Custa caro?
Deivinho – Milhões de dólares, pai…
Wellington – Uai, a gente dá um jeito.

Marte um desenvolve os percalços de uma família mineira negra, de classe média baixa. Esse protagonismo fílmico ainda pouco comum não é casual. A obra foi possível a partir do primeiro edital para negros do audiovisual no Brasil (Longa BO Afirmativo 2016), o qual viabilizou ainda Um dia com Jerusa, de Viviane Ferreira e Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso (MATHIAS, Roberta. O espaço é aqui. Disponível em: https://apostiladecinema.com.br/marte-um/. Consultado em 05/12/2022).

O enredo se desdobra pelos conflitos e dificuldades muito cotidianas da família Martins. O prenúncio que as coisas podem piorar parece ser anunciado, logo no início da película, pelo áudio em off da eleição de Jair Bolsonaro. Pois bem, o núcleo familiar é composto pelo porteiro Wellington (Carlos Francisco), sua esposa, a diarista Tercia (Rejane Faria) e seus dois filhos: o pequeno Deivinho (Cícero Lucas) e sua irmã, Eunice (Camila Damião). Wellington é dependente de álcool, mas ostenta uma medalha de quatro anos de abstinência. Tercia trabalha em casas de família, mas a oferta é incerta. Eunice está estudando direito e Deivinho é a grande aposta do seu pai: joga um bolão e parece ter futuro como futebolista. É aqui que entra o gancho para este post. Como já vimos muitas vezes (neste blog e pela literatura especializada), há múltiplas formas do esporte (no caso, o futebol) compor a trama narrativa de uma película. Neste caso, não se trata de um papel central, mas é importante o suficiente para estabelecer os termos de um sério dilema para Deivinho e Wellington e constituir-se em parte estruturante dos vários subtemas da trama. Por isso, talvez, tenha sido exibido no último cinefoot, inclusive na data significativa de 20 de novembro (https://cinefoot.org/filme/marte-um/).

Sumariando bastante, somos paulatina e seguidamente conduzidos a um conjunto de situações conflitivas. Wellington trabalha há anos em um prédio de classe alta. É considerado em seu local de trabalho, mas não ganha o suficiente e tem que lidar com favores não remunerados para a síndica do edifício (situação que vai acabar se tornando trágica). Eunice quer independência. Começa a namorar uma menina (de melhor condição) e conseguem viabilizar as condições para morarem juntas. Inicialmente, Eunice só se sente à vontade de falar sobre seu namoro com o irmão. Tem receio da oposição dos pais. Deivinho também tem seus problemas. É craque, joga com os mais velhos e é disputado pelos times amadores locais. No decorrer da história vai acabar ganhando a chance de entrar em uma “peneira”, com indicação de ninguém mais que Juan Pablo Sorin, ídolo do Cruzeiro, time do coração de seu pai. Sorin (o jogador, que interpreta a si mesmo) se muda para o prédio do zelador e as coisas são arranjadas. Mas, tem um problema. Apesar de gostar da bola, Deivinho quer mesmo é ir pra Marte… Aqui entra uma alusão a uma possível colonização do planeta vermelho até o ano 2030, pela NASA, em uma missão conhecida como Humans to Mars, ou Marte um. Deivinho é inteligente, estudioso e fã de Neil de Grasse Tyson, o astrofísico pop-star americano (HONORATO, Roberto. Um pouco de otimismo em tempos sombrios. Disponível em: https://www.planocritico.com/critica-marte-um/. Consultado em 05/12/2022).

Dona Tercia, por sua vez, vai passar por uma experiência ruim e, aparentemente, entrar ou pensar entrar em um período “carregado”. Vai a médicos e também procura ajuda espiritual.

A dinâmica dos acontecimentos vai ser contundente. A mudança de Eunice e sua relação com uma moça vão gerar resistências; a peneira de Deivinho vai bater com uma palestra de Neil de Grasse Tyson, para a qual o garoto, com a ajuda da irmã, fez de um tudo para conseguir ir e Wellington vai perder o emprego e, claro, ter uma recaída no vício. Mas, chega de spoiler.

Eu destacaria uma ou duas coisas. O conjunto das interpretações é convincente. É intimista e gera uma espiral (descendente, aparentemente) que incomoda (e, nesse sentido impacta). Há também o emprego de um conjunto de recursos narrativos e imagéticos que antecipam ou sugerem o rumo dos desdobramentos, além de claras intenções metafóricas. Colonizar Marte é o tamanho das possibilidades que essa família, com todas as dificuldades, não se permite estabelecer como um interdito. Deivinho poderia vir a brilhar como astro de futebol (um caminho raro, posto que difícil, mas já enfronhado na expectativa de possibilidades de um menino negro, habilidoso), mas ele também pode brilhar nas estrelas. Nem o céu é mais o limite. Daí o traço de otimismo e, diria eu, de militante e potente auto-estima, já assinalado por comentaristas (HONORATO, Roberto. Um pouco de otimismo em tempos sombrios. Disponível em: https://www.planocritico.com/critica-marte-um/. Consultado em 05/12/2022). Deivinho é bom de bola, mas também é bom de ciências. Monta um telescópio, com materiais do ferro velho e com uma lente, herança de seu avô (o qual também era engenhoso). Os Deivinhos podem fazer o que quiserem fazer, é o que nos é dito, filmicamente. E isso vale para os demais membros da família Martins, apesar dos duros empecilhos cotidianos e sociais.

E se os Deivinhos podem ir para marte, por que esse filme não pode ganhar o Oscar? Marte Um é o representante do Brasil na corrida para o Oscar de melhor filme internacional. Nesses tempos de Copa, fica mais essa torcida.

Até a próxima!

Ficha Técnica:

Marte Um – Brasil, 25 de agosto de 2022
Direção: Gabriel Martins
Roteiro: Gabriel Martins
Elenco: Rejane Faria, Carlos Francisco, Camilla Damião, Cícero Lucas, Ana Hilário, Russo APR, Dircinha Macedo, Tokinho e Juan Pablo Sorin.

Disponível em: https://www.planocritico.com/critica-marte-um/. Consultado em 05/12/2022.


Santo Time (Que Baje Dios y lo vea – Curro Velázquez, 2017)

16/08/2022

Cardeal: E é nesta catedral do futebol secular que eu os abençoo em nome do Pai, do Filho e de… Cristiano Ronaldo.

Ramon: Eu sabia! A cúria vaticana é merengue!

Uma comédia. É disso que se trata Santo Time (Que Baje dios y lo vea), primeiro longa de Curro Velásquez, disponível no Netflix. Uma película leve com alguns acertos cômicos, como o da epígrafe. O enredo básico é o seguinte: um pequeno monastério espanhol (San Teodosio) está com os dias contados. Vai se transformar em um albergue para turistas (não consegue mais se autofinanciar). A última esperança seria uma improvável vitória na “Champion Clerum”, uma competição de futebol entre clérigos da Europa. Quem aparece com essa ideia é o padre Salva, vivido por Alain Hernández. Trata-se do personagem dinamizador, aquele que vai sacudir a tradição, representada pelo personagem do padre Munilla (interpretado por Karra Elejalde). A tensão e progressivo ajuste entre essas duas forças dá o tom da narrativa. Para além da dupla, temos os monges-jogadores. Simón (Joel Basqued), um jovem religioso e sua amiga de infância, Sara (Macarena Garcia), vão colocar algum romance (proibido) no enredo. O personagem de Jesus Heredia (Guillermo Furiase) assume o papel de um reforço técnico: é o único que joga bola, porém tem que ser recrutado entre os evangélicos. E o pastor da ocasião não se furta a pedir luvas, pelo empréstimo… Vale a pena, porque a salvação vem de Jesus (não havia como errar a deixa-sinal).

Todo esse imbróglio se oferece como palco para uma sucessão de episódios jocosos. Dificilmente capazes de nos fazer gargalhar, mas divertidos, sim.

De forma clássica, temos o desfecho com um jogo decisivo: San Teodosio x Seleção Vaticana. Decidido nos pênaltis.

Talvez o mais curioso seja o fato de que realmente existe (ou existiu) uma “champions-clerum”. Em 2017 estava na sua 11ª edição e o selecionado lusitano se consagrou tricampeão (https://www.cmjornal.pt/desporto/futebol/detalhe/sacerdotes-tricampeoes-europeus-de-futsal?ref=Mais%20Sobre_BlocoMaisSobre). Não consegui muitas informações, mas trata-se de uma competição de futebol de salão, com algumas regras próprias e com uma ênfase mais manifesta com o fair play (mas com equipes que perdem e um campeão, é claro).

Seguindo uma tendência, a fita segue um pouco, em flashes, para além do desfecho tradicional. Sugere-se a possibilidade de uma continuação, para uma disputa mundial (a “World champions clerum”…). O filme é agradável e vale a diversão. Só não sei se pra uma continuação.

Abraços!

Referências:

https://www.abc.es/play/cine/noticias/abci-futbol-humor-y-monasterio-salvar-201612190126_noticia.html. Madrid, 19/12/2016, por Lorena Lopez.

Sobre a Champions clerum:

https://maisfutebol.iol.pt/champions-clerum-quando-os-calcoes-tomam-o-lugar-da-batina. Por Pedro Jorge da Cunha (19/02/2009).

https://www.jn.pt/arquivo/2006/champions-clerum-535305.html. 05/02/2006, por Almiro Ferreira.

https://www.cmjornal.pt/desporto/futebol/detalhe/sacerdotes-tricampeoes-europeus-de-futsal?ref=Mais%20Sobre_BlocoMaisSobre. 23/02/2017. Afirma que trata-se da 11ª edição da competição.


A solidão do corredor de longa distância (RU, Tony Richardson, 1962)

26/04/2022

Colin Smith (interpretado por Tom Courtenay):
Correr sempre foi algo importante em nossa família. Especialmente correr da polícia. (…). Tudo o que sei é que se deve correr. Correr sem saber porque pelos campos e bosques. E ser o vencedor não é a meta. Mesmo que torcedores malucos estejam vibrando como idiotas. Assim é a solidão de um corredor de longa distância.

A película que trago para esta breve apresentação de hoje não é sobre futebol (como de costume). Venho variando a modalidade e acho que vou continuar assim. Não obstante, até podemos encontrar o jogo bretão nesse magnífico filme de Tony Richardson: A Solidão do Corredor de longa distância (The loneliness of the long distance runner). Trata-se de uma primeira disputa desportiva do protagonista, o jovem Colin Smith (vivido por Tom Courtenay), com seus companheiros de reformatório. Smith rouba a bola de seu desafeto, Stacy (Philip Martin), demonstrando velocidade e chamando a atenção do diretor do Ruxton Towers (Michael Redgrave). A referência ao futebol fica por aí. A não ser, talvez, pela importante advertência que o mesmo diretor faz repetidamente ao seus internos: “Se vocês jogarem conosco, nós vamos jogar com vocês” (If you play ball with us, we play ball with you”). Pra quem não topa jogar (colaborar) é pão e água por três dias. Em Ruxton Towers a regra é clara.

Mas, como nosso jovem foi parar nessa instituição? Isso nós só ficamos sabendo ao longo da fita, a qual se inicia exatamente com o áudio transcrito em epígrafe e o qual sintetiza belamente a proposta da obra. No entanto, ofereçamos uma mini-sinopse, para localização.

Colin Smith é um rapaz pobre, de família complicada na cidade de Nottingham. Seu pai está muito doente (vindo a falecer rapidamente) e a mãe já tem outro pretendente e interesses. Para se distrair, Colin tem o amigo Mike (James Bolam) e uma quase-namorada, Audrey (Topsy Jane). Também sem muita consequência ou reflexão, cometem alguns delitos. “Empréstimo” de carro e, posteriormente, invasão e furto. É por este último motivo que Colin, descoberto, acaba parando no Reformatório. Ao se destacar como corredor, passa a se posicionar melhor na hierarquia e na graça do Diretor. Este último aposta todas as suas fichas no garoto. Sua obsessão é vencer a Cross Conty (uma corrida de 7,5 km), em um torneio que pela primeira vez vai colocar a Ruxton Towers frente a uma Public School inglesa, a Ranley. Esse é o enredo básico.

Esta, porém, não é uma película trivial. É parte importante do chamado novo cinema inglês. Foi baseada em um conto de autoria de Allan Sillitoe, que o publica em 1959. É ele próprio, inclusive, que assina o roteiro do filme. Sillitoe nasceu na mesma Nottingham, na qual se passa a história do nosso corredor. Era filho de um curtidor de peles analfabeto e desempregado durante muitos dos anos da depressão de 1930. “Fez parte do grupo dos ‘angry young men’ dos anos 50”. Escreveu seu primeiro romance, “Saturday night, Sunday morning” (1958), que também virou filme, novamente marcando a nouvelle vague inglesa (Ver: https://www.pipoca3d.com.br/2020/04/o-que-foi-nouvelle-vague-inglesa.html).

A repercussão da obra de Silltoe é considerável. O Iron Maiden produziu uma música homônima a nossa película (https://www.letras.mus.br/iron-maiden/79653/traducao.html). O Economista João Paulo Velloso escreveu um livro, recente, sobre os descaminhos do desenvolvimento nacional e, adivinhem, também o nomeou da mesma forma (https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/livro_asolidaodocorredor.pdf; para mais dezenas de referências, ver https://stringfixer.com/pt/The_Loneliness_of_the_Long-Distance_Runner).

Diretor (Tom Richardson) e atores (Michael Redgreve e, principalmente, Tom Cortenay) apresentam trajetórias importantes no cinema bretão e internacional.  Richardson assinou mais de 40 filmes e foi agraciado com vários prêmios internacionais (https://www.imdb.com/name/nm0724798/?ref_=nmawd_awd_nm). Caberia aqui, portanto, algumas palavras sobre as características da filmagem, produção e afiliação (talvez em outro escrito), mas vou ficar apenas com dois comentários.

A solidão do corredor de longa distância é sugestiva, de cara. Não seria preciso nem ver o filme para intuí-la. Trata-se de um exercício solitário, árduo, longo, exaustivo, no qual a tentação/possibilidade de se parar, de se dar um basta, pode aparecer a cada momento do trajeto. Simultaneamente (talvez estranhamente), as demonstrações de contentamento, satisfação, apego ou de liberdade parecem fazer parte de um rol de lugares-comuns na descrição da atividade por atletas e amadores. Paralelamente, as correlações metafóricas para com a existência de cada um de nós são por demais evidentes. O filme, porém, vai além. De uma dupla forma.

Primeiro, circunstancia uma situação. A difícil rotina de uma parcela da classe trabalhadora (ou sem trabalho) na Inglaterra do fim dos anos 50 e início dos 60 (um contraponto importante e uma presença fílmica fundamental para a trajetória do cinema como expressão cultural). Essa localização no tempo e no espaço (e pelo que se pode inferir, na trajetória do autor do texto/roteiro) confere estofo humano e histórico à trama.

Em segundo lugar (não menos relevante), essa obra, que teria tudo para se inserir no que se pode chamar de filme esportivo ou filme de esporte, é quase um anti-filme esportivo (pelo menos no sentido em que destoa de boa parte dos filmes que tematizam o esporte). Não trata de vencedores; mas também não é uma narrativa da derrota (de como lidar com a derrota). É uma história da conquista (efetivamente solitária e irremediavelmente individual) de uma escolha e de uma decisão potente na qual cruzar ou não a linha de chegada em primeiro lugar se torna uma coisa efetivamente menor do que a maneira como você vai percorrer a longa jornada. Não tenho dúvida que o desfecho narrativo desaponte uma parte da audiência, mas é nele que reside o diferencial e o atrativo da película. Existe um jogo poético entre o modo como a corrida (a competição) acaba e como a vida continua no reformatório, ilustrado pela última sequência fílmica. E existe, é claro, um jogo político entre o mesmo desfecho e a sinalização anterior de Smith, ainda no começo do filme (por volta do minuto 31):

Deixarei eles pensarem que me domesticaram. Mas nunca conseguirão, os desgraçados!

Meu nome é Joe (Ken Loach, 1998)

04/01/2022

Joe      – É realmente importante. Podem nos tirar do campeonato. É grave!

Sara (agente comunitária) – Isso não é grave!

Joe  –  Sim, isso é grave! Não leve para o lado pessoal, mas sabia que o sol brilha para além do seu rabo? Eu sei que é só futebol. Mas é importante para nós!

Ken Loach assinou a direção de mais de 50 títulos, entre produções cinematográficas e para a TV. É um cineasta reconhecido. Ganhou diversos prêmios, incluindo a Palma de Ouro de Canes, em duas ocasiões (2006 e 2016) e um Leão de Ouro por sua contribuição ao cinema, em 1994. Nascido em 1936, o cineasta inglês conta 86 anos e continua nos apresentando produções recentes e impactantes, como os ótimos Você não estava aqui (2019) e Eu, Daniel Blake (2016: estes dois disponíveis para quem tem acesso ao Telecine), além de clássicos como Terra e Liberdade (1995), Kes (1969) e muitos outros (Ken Loach Biografia. Disponível em: https://www.imdb.com/name/nm0516360/).

Meu nome é Joe (1998) é um belo filme de Loach, que retoma temas e ambiências comuns do cineasta. Trata-se de um lado menos explorado (cinematograficamente) do Reino Unido: do drama e dificuldades estruturais da parte menos favorecida da população. Joe Kavanagh, interpretado por Peter Mullan (melhor ator em Canes por conta dessa performance) é um alcoólatra que se encontra sem beber há dez meses. Sem fonte de renda, vive do seguro-desemprego. Ademais, treina um time de futebol amador, e esse é o link com o tema do esporte.

Como de costume, o futebol, aqui, não é apenas um jogo, mas um (raro) canal de confraternização e ludicidade. O principal da película não é a relação com o desporto, diga-se prontamente, mas sim as desventuras e os enredamentos sucessivos e dilacerantes em condições de desemprego, tráfico e consumo de drogas e poucas alternativas. A história se passa em um bairro pobre de Glasgow. Além de Joe e seus amigos, logo passamos a contar com a presença de Sara Downie, vivida por Louise Goodall, uma espécie de agente comunitária. A sensação de que seu trabalho expressa um constante enxugar de gelo é nítida e incômoda. De qualquer forma, a personagem é descrita por Joe como uma mulher que tem emprego e até um carro: alguém, portanto, muito acima dos padrões do protagonista. Não obstante, um romance acontece e constitui (a conturbada relação de Joe e Sara) parte importante do desenvolvimento narrativo.

Evidentemente as coisas não terminam bem. Conflitos com a seguridade social, dificuldades comezinhas e o envolvimento com o traficante/bandido local geram uma espiral de inter-compometimentos que conduzem à tragédia. É uma pancada, mas é ótimo cinema. Voltemos ao futebol.

Não sendo um elemento fulcral, o futebol, mesmo assim, ocupa um papel significativo na dura vida de Joe e seus pupilos (como o trecho em epígrafe deixa explícito). O time de Joe faz sua primeira aparição, logo no início da película, em um uniforme da Alemanha, imundo, quase irreconhecível. Na primeira partida enfrentam um adversário, fora de casa, trajando vestimenta idêntica (porém limpíssima). Como são visitantes, mesmo sob protestos, têm que iniciar o jogo sem camisa. E começam levando um gol. Devem ter sido derrotados, não temos como saber. Aliás, nenhum resultado nos é dado a conhecer: sabemos apenas que os jogos acontecem e são “importantes”, como Joe deixou claro.

O esporte (futebol) funciona como claro contraponto. Paralelamente ao afunilamento das tensões temos uma sequência de pura molecagem. Sem o conhecimento de Joe (que também faz as vezes de motorista de van), os quase-atletas orientam um trajeto até a frente de uma loja esportiva que está a receber mercadorias. Em uma ação de incrível e coordenada maestria, conseguem furtar algumas caixas (para inicial desespero de Joe). O conteúdo desses packs nós vemos no plano seguinte: tratava-se de uma equipagem completa com jogo de camisas do Brasil de 1970. Em uma alegria de meninos, vemos um “Pelé” branco e careca e um “Rivelino” que entrega um aparelho dentário (?) ao treinador. Dada a discrepância entre aquele escrete e os craques de 70, alguém vaticina:

– Isso é um sacrilégio!

Pode ser, mas também é o segmento mais divertido e jocoso dessa película. E é importante propor que, aqui, se foge a qualquer princípio de verossimilhança. Em uma obra cujo teor é fundamentalmente realista, roubar camisas em uma loja esportiva da cidade, em plena luz do dia, usando a própria van que era o meio de deslocamento rotineiro da equipe e à vista dos entregadores seria um convite ao duro enlace da Lei. Daí o papel/função do futebol como contraponto. Nesse sub-universo fílmico, não vale a mesma crueza da denúncia social. Na parte cinematograficamente dedicada ao futebol, à brincadeira, cabe uma outra lógica. E o jogo entre a gravidade da situação social e a gravidade (seriedade) da necessária e correlata brincadeira constitui parte importante desse grande filme.  

Um abraço, boas férias e um 2022 necessariamente melhor do que isso que vimos passando.

Referências:

Ken Loach – biografia (1936, Inglaterra…). Disponível em: https://www.imdb.com/name/nm0516360/bio?ref_=nm_ov_bio_sm. Consultado em 03/01/2022.

KEN LOACH – Filmografia (55). Disponível em:  https://www.imdb.com/name/nm0516360/. Consultado em 03/01/2022.

COUTO, José Geraldo. “Meu Nome É Joe”: Filme é drama ético em terra devastada. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u1378.shtml?origin=folha. Consultado em 03/01/2022.

VALENTE, Eduardo. Meu Nome É Joe,
de Ken Loach. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/criticas/meunomeejoe.htm. Consultado em: 03/01/2022.


Peleando no Cinema: Corpo e alma (Body and soul, Robert Rossen, 1947)

16/08/2021

Vamos variar um pouco.

Via de regra, eu escrevo, aqui, sobre filmes de/com futebol (vou continuar assim, claro). Mas hoje vamos mudar um pouco. Vou comentar um clássico do boxe filmado. Estava/estou vendo muitos filmes de esporte, no bojo da escrita de um texto, que acabei de entregar, sobre a possibilidade/proveito hermenêutico de uma noção como a de um gênero cinematográfico esportivo. A discussão é se tal gênero pode ser postulado/estabelecido e se poderíamos constatar ganho hermenêutico na análise fílmica. Não resolvi nada, mas colocamos o problema (faço a divulgação quando da publicação). Enfim, estou variando a assistência de películas. E vendo ou revendo pérolas do encontro do esporte com o cinema. Posto isso, tratemos de Corpo e alma (1947 e, claro, há spoiler).  

É Bacana! Um bom filme de boxe. Charley Davis (vivido por John Garfield) é um judeu pobre que demonstra capacidade pugilística. Sua mãe preferiria os estudos, mas a situação aperta e Charley parte mesmo é para o combate. E, para ganhar lutas, acorda com o gangster local. Isso vai ter um preço, é claro.

É uma clássica história de ascensão, deslumbramento, conquista, queda moral e redenção. Mas é bem feito e prende. Temos quase todos os elementos. Destacaria a pretendente feminina, mulher de boa índole e caráter (se envolve com Charley enquanto ele ainda não tem nada e o apóia em quase tudo, sendo, também, um esteio de amor, fidelidade e retidão moral – Peg Born, atriz Lilli Palmer). A mãe, que precisa ser amparada (mas também se constitui em fiel da balança do que é correto – Anna Davis, atriz Anne Revere) e o amigo inseparável (‘escada’ do protagonista, me parece – Shorty Polasky, ator Joseph Pevner), desde os tempos de perrengue.

Shorty começa ambicioso e audaz, mas ao ver o amigo tomando um rumo perigoso, tenta adverti-lo. Nesse movimento, entra em choque com o gangster e acaba por perder a vida (aliás, o nome Shorty, baixinho, talvez seja sintomático; ele é um personagem menor, de amparo. Não tem habilidade especial, seu capital é ser amigo do lutador promissor e agenciar parcialmente sua carreira). Shorty é a primeira baixa de Charley Davis. Na sequência vem o deslumbramento com uma linda piriguete (uma equivalente a Maria Chuteira… uma Corner’s Mary? Ou Glover’s Girl? Façam sua escolha! Alice, atriz Hazel Brooks). Pois bem, a morte de Shorty é seguida do rompimento com a noiva e com a mãe e a venda da luta final.

Talvez o mais curioso seja o desfecho. Charley acaba desafiando o arranjo do embate derradeiro. E, em uma luta na qual inicia perdendo, com várias quedas (até pq era o combinado), acaba por não se conter e parte para uma reviravolta, mantendo o título de campeão e quebrando o acordo com o gangster. Nesse momento final, reconcilia-se com sua amada (a qual sabia da situação e não aprovava a combinação da luta). O filme acaba com uma saída feliz do casal, re-aproximado, mas todos sabemos no que a quebra de acordos desse tipo implica…

Seán Crosson (que trata dessa película em mais de um momento, mas especialmente às páginas 88-90) vai salientar que, apesar do aparente happy end, insinua-se a possibilidade de retaliação. Isso acontece quando o gangster (Robert, ator Lloyd Gough) interpela o campeão, ameaçadoramente, ao fim da disputa e Charley afirma algo como: – Não se pode viver para sempre.

Mas o fato é que o assassinato não está na diegese. A caminhada do casal reconciliado, que vai se distanciando da câmera e abre a rolagem dos créditos, sim.

Uma bela película! É aconselhável, ainda, compará-la a um filme anterior: Conflito de duas almas (Golden Boy, 1939, Rouben Mamoulin). A estrutura é bem semelhante. O conflito inicial também. O dilema é mais específico e simbolicamente mais acentuado. Joe (Golden boy, vivido por um novíssimo Willian Holden) é um homem dividido entre o violino e o boxe. A metáfora é por demais evidente. Trata-se de uma cisão (em um mesmo indivíduo) entre a mão que toca, suave, artística, e os punhos rudes, agressivos e, no limite, assassinos (Joe quase mata um adversário; inutilizando-o para a carreira). Uma versão Jakyll e Hyde centrada nas mãos (na alma, passando pelas mãos). O médico e o monstro, aliás, é um outro filme, de 1931, do próprio Mamoulin. Faz lembrar também, é claro, de As mãos de Orlac (Robert Wiene, 1924). Mas sobre essa película (Golden Boy), talvez escrevamos algo mais à frente.

Até a próxima!

Referência citada:

CROSSON, Seán. Sport and Film (Frontiers of Sport). EUA: Routledge, 2013 (Edição do Kindle).


Pelé (David Tryhorn e Bem Nicholas, 2021): novo filme revisita temas polêmicos

30/03/2021

Entrevistador (em off)   – O que você sabia (…) na época?

Pelé   – Se eu dissesse que eu não sabia (…) eu estaria mentindo. Muitas coisas a gente ficava sabendo. Muitas coisas nós não tínhamos certeza (…).

Entrevistador  – Qual foi a sua relação com os governos?

Pelé – Eu sempre tive as portas abertas, todo mundo sabe disso. Até na época que era muito ruim.

(…)

Paulo Cézar Lima  – Eu amo o Pelé! Mas não posso deixar de criticá-lo. Eu achava que ele tinha um comportamento do negro sim senhor, submisso (…) que não contesta, que não critica (…) eu mantenho até hoje.

Neste triste feriadão pandêmico, venho tecer algumas poucas considerações sobre a mais nova película sobre Pelé. A obra, lançada há pouco mais de um mês pela Netflix, é uma grata contribuição ao conjunto de produções cinematográficas já realizadas sobre o atleta do século (para uma lista do nada desprezível rol de filmes com ou sobre Pelé, ver referência citada no meu último post: O Rei Pelé – Carlos Hugo Christensen, 1962:cinema, futebol e racismo: https://historiadoesporte.wordpress.com/2020/11/17/o-rei-pele-carlos-hugo-christensen-1962-cinema-futebol-e-racismo/).

O documentário é de responsabilidade dos cineastas David Tryhorn e Bem Nicholas. Ambos apresentam uma filmografia bastante reduzida, mas com uma pegada no tema do esporte. Dirigiram ou produziram fitas sobre ídolos do atletismo e do tênis (Ver perfis e obras em: https://www.imdb.com/name/nm8510460/?ref_=tt_ov_dr). Com seu último trabalho, Pelé (2021), abriram uma nova vereda em uma tradição da narrativa fílmica sobre o “Rei do futebol”.

A crítica vem demarcando, de modo quase consensual, o diferencial mais evidente da abordagem dos diretores britânicos, a saber, o enfrentamento (mesmo que deliberadamente contido e balanceado) de delicadas questões extra-campo na biografia de Pelé. Fundamentalmente no que se refere aos posicionamentos (ou falta de) do futebolista frente ao Regime Militar e seus máximos dirigentes. Conforme Diogo Magri sumariza, a “produção (…) fez o jogador falar, pela primeira vez de forma tão longa sobre ditadura, tortura e o uso do futebol  – e dele próprio –  como propaganda do regime militar” (Pelé encara seus dilemas com a ditadura na Netflix: https://brasil.elpais.com/esportes/2021-02-23/pele-encara-seus-dilemas-com-a-ditadura-na-netflix.html).

Esse é o tema-base. Mas a película não se resume a isso. Tem muito futebol, Copa do Mundo, disputas em torno da empreitada de 1970. Sobre as sempre acionadas discussões a respeito da Copa do México e a troca de comando às vésperas da competição (substituição de João Saldanha por Mário Zagalo), também são acrescidas imagens e colocações variadas. João Saldanha é retratado, ao meu ver de modo tendencioso, como um opositor do futebol “brasileiro”. Brito, Rivelino, Juca Kfouri, e até Delfim Netto são chamados à fala (a pronunciarem-se sobre suas memórias e avaliações sobre 1970). Este último senhor, aliás, além de assumir seu papel na assinatura do AI-5 (nenhuma novidade) chama a atenção por sua sinceridade, desprovida de qualquer prurido. Perguntado se estava ciente do uso do Ato Institucional como instrumento para a tortura, a resposta é imediata: “seguramente que sim”. Sobre o acompanhamento da Copa de 70 por Emílio Médici, acrescenta:

– Aquilo se transformou, para o presidente, pessoa física, uma coisa importante.

Entrevistador: Por quê?

– Porque se o povo fica contente, o governo fica contente [rindo].

A discussão segue por vários caminhos e personagens. Esta é uma pequena amostra. Reforço que o eixo narrativo está montado numa tentativa (interessante) de cruzar o homem, o jogador excepcional e sua lida com os muitos percalços de um país. Em uma narrativa centrada principalmente no intervalo entre 1958 e 1974, temos que dez desses anos estão indelevelmente atravessados pelo Regime Ditatorial. (Re)colocar Pelé no meio desse redemoinho é do que se trata. Para tanto são convocados depoimentos de época e contemporâneos (com alguma diversidade de posicionamentos). Mostra-se o relacionamento amistoso do Rei (digamos assim) para com as autoridades e chama-se o próprio, para uma conversa/balanço.  

O comentarista PC Vasconcelos sintetizou bem a dialética da fita. Uma discussão (inevitável, mas por muitas vezes malabaristicamente driblada) entre o dentro e o fora de campo (o famoso dentro das 4 linhas e o offside, em uma provavelmente cansada metáfora boleira). A fala de Vasconcelos vem em off, após as imagens que mostram a recepção a Pelé, no Palácio da Alvorada, confraternizando com Garrastazu Médici. O futebolista havia sido convidado para uma recepção pública, três dias após a marcação de seu milésimo gol. PC comenta:

Para muita gente vai se olhar menos para o que fez dentro do campo e mais para o que fez fora. E fora é caracterizado por uma ausência de posicionamento político. Nesse momento da história isso vai pesar muito contra ele.

Neste ponto ficarei por aqui. Para os arrazoados contextualizadores (alguns contemporizadores), prós e contras, remeto ao próprio documentário. Eu recomendo. Particularmente, eu sempre achei que se deve dar a Cezar o que é de Cézar. Pelé é eterno pelo que fez como jogador, como virtuose da bola (com todas as relevantes e profundas implicações advindas da assunção de um negro pobre, nas décadas de 50 a 70, num país pouco desenvolvido e racista como o Brasil). Não obstante, não se pode viver da glória, do reconhecimento e da imagem pública, sem uma cobrança pública. O que os grandes ídolos fazem têm repercussão para além de seus campos específicos de atuação. Ônus e bônus de cada atitude serão, necessaria e independentemente da vontade de cada um, postos na balança pública. O filme de Tryhorn e Bem Nicholas ajuda nesse sentido. E o faz de modo suave e razoavelmente equilibrado.

Mais duas ou três coisas rápidas. Alguns destaques que omiti e uma palavra sobre a construção fílmica.

Há duas cenas que não gostaria de deixar passar, mesmo que ligeiramente. A primeira é por puro deleite. Por volta do minuto 26, Pelé participa de um almoço, em uma casa em Santos, com a velha turma do famoso escrete. Dorval, Pepe, Edu e companhia. É como um churrasco de velhos e bons amigos, que dividiram a juventude e as aventuras de uma parte da vida que não volta mais. Quem já jogou bola, participou de torneios de rua, quadra, colégio, faculdade (que pareciam… e eram assumidos como a coisa mais importante do mundo) certamente vai se reconhecer nas brincadeiras, nas troças, nas histórias de décadas passadas, contadas com a vivacidade de uma memória afetiva. A diferença é que aqueles octagenários fizeram parte de um dos maiores times da história, duas vezes campeão da Libertadores e do mundo e tiveram como líder a quem carinhosamente chamam de “negão”, o maior jogador de todos os tempos (se isso não estava claro até agora, essa é a minha opinião). Entre uma e outra provocação, Pelé não é poupado. Basta ele começar a cantarolar uma música de sua autoria para ouvir prontamente:

– Em questão de cantar, ele tá melhorando!! [aí a gargalhada se torna irrefreável, inclusive para a assistência].

Pelé reconhece a riqueza do momento.

– Vocês são demais! Olha o sol que vocês trouxeram. Um dia maravilhoso! [uma sequência maravilhosa!].

Um segundo e último núcleo de observações se refere à forma como a história é contada filmicamente. Trata-se de um documentário bem tradicional, mas destacaria a qualidade de algumas das imagens de época e o recurso à montagem paralela que, já nas primeiras cenas, estabelece a proposição narrativa (com a alternação de planos do indivíduo, do jogador em atividade e de imagens de época, com ênfase em cenas da repressão ditatorial).

Somos, portanto, apresentados à película a partir de um contraponto entre o homem/indivíduo, um senhor de 80 anos, que chega de andador, devagar e o atleta magnífico, a personalidade pública e o jovem jogador, cuja história de uma conquista do mundo vai passar a ser contada. É como um convite a um balanço/retrospectiva (o título seco, “Pelé”, parece se coadunar com esses primeiros planos que preparam o desenrolar da trajetória a ser apresentada).

Uma cena inicial chama (muito) a atenção. Pelé surge dirigindo-se ao centro de uma ampla sala vazia, ocupada apenas por uma cadeira. Ao acomodar-se, com certa dificuldade, desvencilha-se do andador, com um empurrão ainda enérgico. É um estorvo que não condiz com o que nos vai ser mostrado. Deve ir para fora do enquadramento (para fora do campo de visão). Tal como ao final da Copa de 70 (e conforme depoimento de Rivelino, nessa película), parece que podemos ouvir um berro:

-Eu não morri! Eu não morri! Eu não morri! [assim mesmo, três vezes, como nos conta Riva].

Pelé é eterno.

Algumas referências:

Para dar uma olhada no Trailer, segue o link (mas o bom mesmo é ver na íntegra, no NETFLIX): https://youtu.be/GS0dFi63Nzg.

E listo um pequeno apanhado de publicações da crítica, em diferentes matizes:

A seleção que ‘presenteou’ a ditadura com uma taça. Disponível em: https://brasil.elpais.com/esportes/2020-06-07/a-selecao-que-presenteou-a-ditadura-com-uma-taca.html.

BARBOSA, Nathan Pereira. Pelé”, da Netflix: entre a tradição biográfica e o necessário desconforto político. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 54, 2021.

CASÉ, Rafael. O inesgotável Pelé (contém spoilers). Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 34, 2021. Disponível em: https://www.ludopedio.com.br/arquibancada/o-inesgotavel-pele/.

Documentário sobre Pelé retoma o debate em torno da postura do ídolo diante do arbítrio…. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/cultura/documentario-sobre-pele-retoma-o-debate-em-torno-da-postura-do-idolo-diante-do-arbitrio/

Documentário ‘Pelé’, da Netflix, peca pela falta de profundidade. Disponível em: https://liberal.com.br/colunas-e-blogs/estudio-52-documentario-pele-da-netflix-peca-pela-falta-de-profundidade/.

Michael Jordan e Pelé evitaram o ativismo, mas foram enormes agentes políticos. Disponível em:https://brasil.elpais.com/esportes/2020-10-23/michael-jordan-e-pele-evitaram-o-ativismo-mas-foram-enormes-agentes-politicos.html.

Pelé encara seus dilemas com a ditadura na Netflix. Disponível em:https://brasil.elpais.com/esportes/2021-02-23/pele-encara-seus-dilemas-com-a-ditadura-na-netflix.html


Para outros posts sobre filmes de/com Pelé, que escrevi neste blog, ver:

Os Trombadinhas (Anselmo Duarte, 1979): https://historiadoesporte.wordpress.com/?s=os+trombadinhas;

 Pelé – o nascimento de uma lenda (EUA/BRA, 2016, Jeff e Michael Zimbalist): https://historiadoesporte.wordpress.com/2017/12/21/pele-o-nascimento-de-uma-lenda-eua-bra-2016-jeff-zimbalist-e-michael-zimbalist/.

Isto é Pelé (Luiz Carlos Barreto/Eduardo Escorel, 1974): https://historiadoesporte.wordpress.com/?s=futebol+e+cinema+v.

O Rei Pelé (Carlos Hugo Christensen, 1962):cinema, futebol e racismo: https://historiadoesporte.wordpress.com/2020/11/17/o-rei-pele-carlos-hugo-christensen-1962-cinema-futebol-e-racismo/.


O Rei Pelé (Carlos Hugo Christensen, 1962): cinema, futebol e racismo

17/11/2020

– Pelé é bonzinho! (Silene, amiga adolescente)

– Pelé é uma criança! (mãe de Silene)

– Mas é preto! Eu sou um sujeito que não bebe cachaça,

porque cachaça é bebida de preto! (pai de Silene)

 

O inusitado diálogo acima é parte do enredo de O Rei Pelé, o primeiro longa sobre nosso futebolista-mor. Hoje, o post é sobre essa película. Na verdade, a lembrança veio após uma nova visita ao filme (disponível no youtube, aliás: https://www.youtube.com/watch?v=J0AmFTZ5TX8&t=491s) e no fato de que esta publicação estava agendada em meio às comemorações dos 80 anos de Edson Arantes do Nascimento, no último dia 23 de outubro e o dia da Consciência Negra, na próxima sexta (20 de novembro). Se as efemérides servem para algo (e servem), talvez valha a pena aproveitarmos essas referências para o breve comentário abaixo.

O último aniversário de Pelé, agora octagenário, suscitou comemorações e debates (Esporte da Globo celebra os 80 anos do Rei Pelé-https://imprensa.globo.com/programas/futebol/textos/esporte-da-globo-celebra-os-80-anos-do-rei-pele/).

Como não podia deixar de ser, dentre outras, a questão do racismo e das posturas do Rei voltaram à tona (Pelé: Racismo e esquecimento marcam os 80 anos do jogador. Disponível em: https://www.geledes.org.br/pele-racismo-e-esquecimento-marcam-os-80-anos-do-jogador/). Trata-se de uma discussão de longa data. Não vou entrar diretamente nessa seara; não agora, mas aproveito para mantê-la em mente, na apreciação da película (para uma pequena amostra do debate: Pelé: “o racismo não mudou, o que mudou foi a imprensa”. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/esporte/2020/03/17/pele-o-racismo-nao-mudou-o-que-mudou-foi-a-imprensa; Paulo C. Caju diz que Pelé também tem culpa por racismo no futebol. Disponível em: http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2014/04/10/paulo-c-caju-diz-que-pele-tambem-tem-culpa-por-racismo-no-futebol.htm).

O longa de Carlos Hugo Christensen, o sétimo de sua carreira, não apresenta uma trajetória muito avantajada; não no que tange a apreciação da crítica (ORICCHIO, 2006; MELO, 2009). Visto agora, quase sessenta anos depois, reveste-se de interesse histórico e reflexivo. Antes de mais nada, porém, cabe destacar que a fita constitui um marco no seio de uma considerável trajetória cinematográfica do nosso astro da bola e das telas (mais da bola; muito mais da bola, é claro). Não obstante, a presença de Pelé no cinema não é nada desprezível. O professor Victor Melo fez um apanhado em 2009: relacionou, na ocasião, 24 títulos (de todas as metragens) nos quais Pelé atua ou é representado (MELLO, 2009). Esse rol está desatualizado. As recentes produções Pelé – o nascimento de uma lenda (EUA/Brasil, Jeff Zimbalist e Michael Zimblist, 2016) e Pelé, a origem (Luiz Felipe Moura, 2019), por exemplo, precisam sem acrescidas ao conjunto. Mas vamos à obra.

O Rei Pelé mistura dramatização e documentário. Poderia ser confundido com uma concepção “moderna” no gênero, posto que evidencia sua condição de construto. Na verdade, porém, a intenção é assinalar verossimilhança. Nesse sentido, a narrativa entremeia temporalidades. Temos um Pelé adulto, já famoso, sendo interpelado ‘casualmente’ pelo produtor e argumentista Fábio Cardoso (ambos interpretam a si mesmos). Essa encenação de conversa informal/entrevista funciona como fio condutor à dramatização de uma biografia do astro-boleiro (para alguns bons detalhes, ver crítica de Gabriel Carneiro. Disponível em: http://www.portalbrasileirodecinema.com.br/christensen/filme-o-rei-pele.php?indice=filmes#).

Simultaneamente, abusa-se do modelo da narrativa heroica. O fado de Pelé está traçado desde a origem: garantido pelo oráculo local, a negra Raimunda, mãe de Santo que prevê que o menino que acabara de nascer iria consagrar-se “rei do mundo”. Seguindo o roteiro épico, temos a resistência ao chamado (Dico, apelido infantil de Edson, resiste à alcunha de Pelé… uma reticência ao destino). Com essa mesma função narrativa, temos a promessa do garoto de deixar de jogar bola (por pressão de sua mãe, Dona Celeste, interpretada pela própria!). Evidentemente a força da sina se impõe. E por aí vai, com a(s) queda(s), soerguimento e consagração. Tudo muito conhecido e, por isso, não insistiremos. O detalhe é que toda essa trajetória já pôde ser concebida (já reunia condições de possibilidade edificante) quando Pelé tinha somente 22 anos! Essa é a sua idade quando da realização do filme. Durante “a produção, o desportista conquista a Copa do Mundo, o Brasileiro, a Libertadores e o Intercontinental pelo Santos”(http://www.portalbrasileirodecinema.com.br/christensen/filme-o-rei-pele.php?indice=filmes#).

No final das contas, a película trata disso: da fulminante ascensão e extensão desse fenômeno (até aquele dado momento; sabemos que muita água, e gols, rolariam dali em diante). A narrativa é balanceada com imagens esportivas reais e com detalhes e passagens familiares e biográficos (mais ou menos romantizados – provavelmente mais) e afirmações do (bom) caráter do personagem/biografado.

Não obstante, o filme é rico. Vale um esquadrinhamento. Por hora ficarei com um único destaque. Retomando um pouco o fio desta meada (nossa conversa no início), chamo a atenção para uma discussão do enredo, a qual envolve a temática do racismo e seu lugar na biografia do jogador/personagem. Isso me saltou aos olhos desde a primeira vez que assisti ao filme, exatamente pela noção de como essa questão foi controversa ao longo da vida pública do astro. Também me chamou a atenção que alguns dos poucos comentários especializados sobre a obra não tenham desenvolvido esse ponto; fato compreensível, dada a limitação do escopo de suas abordagens específicas (estão a tratar de outros temas – ORICCHIO, 2006; MELO, 2009).

No entanto, ele está lá; de modo explícito, narrativamente significativo e curiosamente contraditório. Sintetizemos a situação e o imbróglio. Tudo começa com uma conversa entre o jogador do Santos e Fábio Cardoso, no modelo já descrito. Este último pergunta, na lata:

– Escuta, Pelé, você nunca teve problema racial?

Ao que Pelé retruca: – Não, nunca. Só uma vez. Na época em que eu jogava no Baquinho [time juvenil do Bauru Atlético Clube].

É dessa situação que trata a epígrafe deste post. Com essa “deixa”, somos transportados à dramatização do contexto de um Pelé garoto, um jovem adolescente. Na ocasião, ele contaria com uma amiga, uma menina de idade semelhante, branca. Seu nome é Silene.

A moça tem um indisfarçável crush pelo nosso protagonista. Uma atração infanto-juvenil, que envaidece a personagem de Pelé, mas frente a qual ele parece não dar muita pelota. Essa afeição, porém, é severamente reprimida. O problema: o pai da donzela. Um racista sem papas na língua. Mas é essa crueza que, em uma visão retrospectiva, potencializa a comoção. Já ilustramos sua verve na epígrafe, mas, se necessário, poderíamos acrescentar as expressões “preto sem vergonha” e “negro não é direito”, todas veementemente utilizadas pelo patriarca. Para além desse festival de horrores, parece relevante pontuar duas coisas. O importante papel desse personagem/conflito na narrativa fílmica e a constituição cinematográfica da mesma (ou seja, como ela foi escrita em termos cinematográficos). Irei me restringir a esses dois itens e encerraremos.

Para sumarizar, é importante atentar que, não bastasse o racismo, o pai de Silene é desonesto. Junto com um comparsa, ele oferece 200 cruzeiros (“dinheiro pra burro”) para que o jovem futebolista fizesse corpo mole (por arranjo de apostas, é claro). A sequência dessa primeira provação/tentação do herói é bem marcada. Acontece em uma espécie de Museu itinerante do horror, na cidade de Bauru. O garoto-Pelé é abordado e recebe a proposta indecorosa, primeiro com uma voz em off, seguida de cortes que intercalam closes do menino com a exibição de tenebrosas figuras, do acervo do tal museu. Depois de algum tempo, os personagens corruptores se fazem mostrar, estão posicionados atrás do jovem atleta, sugerindo, incentivando-o ao acordo nefasto.

Em desenho animado, isso corresponderia ao diabinho soprando a má sugestão ao incauto. Uma verdadeira encenação das encruzilhadas e tomadas de decisão, que determinam os rumos de uma vida. Essas figuras malévolas são incorporadas pelo pai da moça e um comparsa (sério candidato a assecla de Mefistófeles). Representam o mau caminho. As más práticas, o mau caráter, o racismo, o horror, explicitamente figurado nas carrancas e representações da morte da esquisita casa de entretenimento em Bauru.

A estória se desenrola, com percalços interessantes, aliás. Mas, a despeito de tudo, a opção é feita com a repulsa ao “dinheiro fácil” e à “traição aos companheiros”.

Esse ponto não é subsidiário. É crucial à trajetória que forja o herói, identifica o mal e constitui a narrativa fílmica. Para não haver dúvidas, é o próprio Pelé (na sua versão adulta, representada pelo próprio), que ‘esclarece’ o sentido ao produtor/argumentista Fábio Cardoso:

– Você comprende, Fábio? Foi bom que os caras tivessem querido me comprar. Aprendi pra toda a vida.

Dá vontade de continuar. Mas, creio que já estourei os limites razoáveis de extensão do post (vou complementar alhures: aviso ou republico aqui, para quem queira conferir).

Em arremate, uma última observação. Para uma única experimentação de racismo (à altura dos 22 anos, na década de 1960), a indicação do Pelé fílmico foi contundente (para cruzamento com declarações do Pelé histórico, voltamos a remeter aos links já citados). Foi responsável, junto com a tentativa corruptora (perpetrada pelo mesmo algoz), pelo delineamento do caráter do jogador/homem/herói. Foi constitutiva, portanto. Todo o esforço deste escrito foi motivado pelo estranhamento de, em um primeiro momento, não ter encontrado o destaque que parece cabível a essa trama, no campo dos escritos sobre cinema e futebol. Se este for o caso (o de uma ausência), espero ter contribuído para sua minimização, com este pequeno quinhão indicativo. Uma boa semana a todos!

Até a próxima!

Obras citadas:

MELO, V. A. Garrincha X Pelé: Futebol, Cinema, Literatura e a Construção da Identidade Nacional. In: MELO, V. A & DRUMOND, M. (orgs.). Esporte e Cinema: novos olhares. Rio de Janeiro, Apicuri, 2009.

ORICCHIO, Luiz Zanin. Fome de bola: cinema e futebol no Brasil. São Paulo, Imprensa Oficial, 2006.

Para outros posts que escrevi sobre filmes com/sobre o Pelé:

Os Trombadinhas (Anselmo Duarte, 1979) – https://historiadoesporte.wordpress.com/?s=os+trombadinhas

Pelé – o nascimento de uma lenda

(EUA/BRA, 2016, Jeff e Michael Zimbalisthttps://historiadoesporte.wordpress.com/2017/12/21/pele-o-nascimento-de-uma-lenda-eua-bra-2016-jeff-zimbalist-e-michael-zimbalist/

Isto é Pelé (Luiz Carlos Barreto/Eduardo Escorel, 1974) – https://historiadoesporte.wordpress.com/?s=futebol+e+cinema+v


O Medo do Goleiro diante do Pênalti (ALE Ocidental/Áustria, Wim Wenders, 1972)

16/06/2020

CARTAZ DE O MEDO DO GOLEIRO DIANTE DO PÊNALTI

Bloch, o goleiro-protagonista, na última sequência da película:

– Você já tentou manter a visão sobre o goleiro, ao invés dos atacantes?

É muito difícil deixar de olhar para a bola. É preciso fazer um esforço imenso. Ver o goleiro correr para trás e para frente, inclinar-se à direita e à esquerda, gritar com os zagueiros. Em geral, somente se presta atenção ao goleiro quando dos chutes a gol.

É engraçado observar o goleiro correndo com a bola (tradução livre; grifos próprios).

Boa noite!

Por dever, advirto sobre o óbvio: este post contém spoilers.

O extrato acima reproduz trecho do último diálogo do goleiro Joseph Bloch, vivido pelo ator Arthur Brauss. Dá-se diante de uma partida de futebol, em um uma localidade fronteiriça, em algum recanto da Alemanha ou Áustria… Nem Bloch nem seu interlocutor (um personagem sem nome, com essa única aparição) sabem quais os times estão em campo. Ambos estão de passagem e pararam para ver um jogo; fosse qual fosse. Este, talvez, seja um dos poucos pontos de contato entre essa película e alguns dos itens tradicionais de exibição e discussão de filmes que tematizam o futebol e uma cultura futebolística. Quem de nós nunca deixou de fazer qualquer coisa para se postar diante de um clássico obscuro, apenas para ver um futebolzinho qualquer… Nesses tempos de pandemia e recesso desportivo, então, campeonato do Turcomenistão ganha ares de Champions. Mas os encontros temáticos (situações, circunstâncias, conflitos) ligados a filmes de futebol (ou que tangenciam o esporte bretão) praticamente acabam aí. Por isso o destaque do diálogo em epígrafe.

Trata-se, aqui, de um convite a um “esforço imenso”, o de olhar o jogo pela ótica daquele(s) que menos aparece(m). Do ponto de vista não do goleador, do regente meio-campista, do grande craque, numa expressão: daqueles que conduzem a bola. Pelo contrário. E, nesse caso, o goleiro é a figura ideal.

Cinematograficamente, isso muda tudo. Em termos de gênero fílmico (se pensarmos em um subgênero de filmes esportivos, por exemplo) se vai na contramão do habitual. As histórias de sucesso, travessias heroicas e jornadas de superação (uma legião nas fitas de/sobre esporte) não encontram eco nessa desventura de Wim Wenders.

É, ainda não havia falado, mas é um filme de Wenders. O terceiro longa assinado pelo diretor alemão (o segundo com firma solo). E isso também muda tudo. Mas não queria me alongar em comentários sobre o diretor. Basta chamar a atenção (para futuras empreitadas ou investidas curiosas) que O Medo do goleiro é a primeira colaboração de Wenders com o escritor Peter Hanke (Nobel de literatura em 2019), em um conjunto que inclui Movimento em falso (1975) e o ilustre Asas do desejo (1987 – Ver https://www.uai.com.br/app/noticia/pensar/2017/03/03/noticias-pensar,202770/livro-analisa-parceria-entre-escritor-peter-handke-e-wim-wenders.shtml). A conexão entre essas três obras é patente e trata-se de grandes peças do cinema. Fica a dica.

Voltemos ao nosso filme.

Temos, portanto, uma anti-história heroica. E, é claro, essa imagem-narrativa não se limita ao espectro esportivo. Não é só no esporte (no futebol, no caso) que a absurda maioria não se encontra sob a luz dos holofotes. É evidente que o filme de Wenders não é sobre futebol; é sobre goleiros, ou melhor, sobre uma condição de des-protagonismo, desmotivação (ou desconhecimento mesmo de motivações/propósitos que pudessem se confundir com a busca pelo ‘sucesso’, fama…). É sobre o des-propósito, sobre a solidão, sobre a zona des-iluminada. É sobre um pouco de nós ou de porções nossas do dia a dia. Se isso tem sentido, é claro que a narrativa fílmica não poderia ser estandardizada (não poderia adotar o padrão dos filmes de superação heroica; não teria sentido fílmico/artístico; não seria Wenders).

Por isso o filme é descrito (é só conversar com os colegas que acharam que iam ver futebol alemão na película…) como arrastado, monótono, sem sentido.

– É puro nonsense! Vaticinou um outro. Não se pode saber o que se passa na cabeça de Bloch nem o porquê de suas ações des-propositadas, que incluem um homicídio sem nenhuma motivação.

E por um acaso se pode saber o que se passa na cabeça de alguém? Se nos lembrarmos de Asas do Desejo, vamos ver que este é um tema comum; somente os anjos de Wenders conhecem a natureza exata do pensamento dos homens, mas o preço é a des-humanidade; é nunca experimentar o que nos compõe/configura.

Nesse sentido, a narrativa imagética é ligeiramente esgarçada, temos cortes secos e sintéticos, assim como as conversas: curtas e enviesadas. Muitas vezes não há diálogo; embora em pretensa conversação, na verdade os interlocutores não são os outros, mas os próprios personagens que falam para si mesmos. Será que nos é impossível reconhecer situações semelhantes, presenciadas e/ou vivenciadas? Ou isso é mais uma parte do “esforço imenso” ao qual somos convidados pela fita?

Vou parar por aqui, mas admito que ainda nem comecei. Não falei nem do título… Pretendo retomar essa película como um gancho para uma mirada atualizada na literatura que lida com o futebol filmado. A relação futebol e cinema é escancarada e potencialmente rica na atuação do nosso goleiro anti-protagonista. São duas coisas (três, na verdade) que, independentemente de qualquer sorte (ou falta de), aparecem como constantes para Joseph Bloch: futebol, cinema (ele passa o filme entrando e saindo de salas de exibição) e mulheres, inclusive, e sintomaticamente, a… bilheteira de seu cinema de vizinhança.

Saúde,

Abraços!

 

Referências:

Artigo. Professor e crítico analisa significado da ligação entre escritor austríaco Peter Handke e cineasta alemão Wim Wenders. Por Carlos Marcelo. Disponível em: https://www.uai.com.br/app/noticia/pensar/2017/03/03/noticias-pensar,202770/livro-analisa-parceria-entre-escritor-peter-handke-e-wim-wenders.shtml. Consultado em 14 de junho de 2020.

Crítica: O medo do goleiro diante do pênalti de Wim Wenders (Die Angst des Tormanns beim Elfmeter, 1972). Disponível em: https://sigacena.blogspot.com/2015/07/o-medo-do-goleiro-diante-do-penalti-de.html?m=1. Consultado em 14 de junho de 2020.

Filme na íntegra (legendas em espanhol): O medo do goleiro diante do pênalti. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=kYmLkqox3hQ&feature=youtu.be. Acessado em 14 de junho de 2020.

IMDB. O Medo do goleiro diante do pênalti. Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt0066773/?ref_=tttr_tr_tt. Consultado em 14 de junho de 2020.


Kung Fu Futebol clube (Shaolin Soccer, China, Stephen Chow, 2001)

13/01/2020

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Jogador do Kung Fu Futebol clube – Como elas conseguem voar?

Cante (“poderoso perna de aço”) – São os efeitos especiais…

Kung fu (…) a tradução literal (…) é trabalhar duro ou tempo e habilidade, sendo que (…) esta expressão também é usada para se referir a algo que foi adquirido com mérito, esforço e competência na luta corporal (Disponível em: https://www.significados.com.br/kung-fu/, acessado em 11/01/2020).

Estamos em janeiro; período de férias. Nesse espírito, o filme que trago hoje é uma comédia; das mais bizarras (e divertidas). Shaolin Soccer tem enredo simples, capitaneado por seu protagonista (ator, diretor e co-roteirista) Stephen Chow. Esse faz-tudo cinematográfico do oriente interpreta o jovem Cante, o “Poderoso perna de aço”. Seu codinome faz jus a uma patada sobrenatural, adquirida com a prática Shaolin (um dos vários estilos de arte marcial chinesa).

Cante ganha a vida como catador de lixo. Via de regra não conta com um tostão no bolso, mas sua autoestima e confiança são impagáveis. Graças a sua fé no Kung Fu, nada lhe parece impossível. Sua crença é a de que o Kung Fu serve para tudo (literalmente). De fazer pães (ofício da protagonista Mui) a sobreviver incólume a incidentes corriqueiros, como escorregar numa casca de banana (há uma personagem, identificada nos créditos como “menina da casca de banana”, que tem duas aparições apenas: uma caindo de forma estabanada e a outra, na sequência final da película, esbanjando equilíbrio: o Kung Fu a salvou…).

Bom, Cante encontra um ex-jogador em péssimas condições (“Perna de ouro Fung”) e em uma conversa definem seus rumos (e o enredo da película). Vão unir esforços para juntar o Kung Fu com o futebol, explorando a fenomenal habilidade do “Perna de aço” e o Know How futebolístico de Fung. Acabam por disputar o campeonato chinês e, é claro, sagram-se campeões.

Desse ponto em diante o filme segue a estrutura narrativa básica de epopeias heroicas, mas de forma escrachada. Isso implica a formação de uma equipe de guerreiros-jogadores (quatro irmãos de Cante e coadjuvantes), sequências de treino e o percurso até um ápice desportivo: a final do campeonato. Para a incrível sucessão de mirabolantes desdobramentos, remetemos ao filme. De tão improvável, acaba consistindo em boa diversão. Cabe, no entanto, algumas palavras sobre as epígrafes acima.

A primeira se refere à natureza do gênero fílmico em questão: trata-se de uma comédia; do tipo que sabe rir de si própria e, por isso, denuncia suas autoevidências humorísticas (mais de uma vez).

A segunda tem a ver com o princípio narrativo básico da película. Um norte simplório, mas que não deixa de agradar pelo seu alegre e ingênuo otimismo. O Kung Fu, aqui, não se restringe a uma técnica de combate, mas à utilização de um conjunto tradicional de práticas corporais e mentais que servem, sim, para a luta. Não necessariamente com os punhos, mas à luta da (pela) vida. O Kung Fu Futebol clube foi composto por um bando de indivíduos descontentes, exercendo funções subalternas e desacreditados (inclusive por eles próprios). A partir do Kung Fu, Cante propõe o despertar da força interior de cada um. Trata-se, é claro, de mais uma narrativa de superação pelo esporte. O que chama a atenção, no entanto, é o inusitado da combinação (Kung Fu/Futebol) e a dinâmica e jocosidade das imagens, gerando uma certa originalidade ao produto.

Vale uma conferida nessas férias.

Bom proveito e até a próxima!

Referências:

Disponível em: https://www.ludopedio.com.br/biblioteca/kung-fu-futebol-clube/. Consultado em 11/01/2020.

Disponível em: https://www.imdb.com/title/tt0286112/. Consultado em 11/01/2020.

Disponível em: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-43986/. Consultado em 11/01/2020.