Sábados e domingos no Rio são dias de… aeromodelismo!

28/08/2017

Por Valeria Guimarães

Salve, salve!

Lembrei-me esses dias de um sujeito que conheci, anos atrás, praticante do aeromodelismo. Aos domingos, quando retornava do seu aeroclube, desmontava as peças, limpava-as e cuidava do seu equipamento fitando-o demoradamente. Deixava-o tomando ar na varanda e depois o guardava meticulosamente para o próximo final de semana. Parecia um menino admirando encantado o seu brinquedo favorito. Na verdade, ele era um esportista nato.

Neste post falarei do aeromodolismo no Rio de Janeiro, aquela prática de projetar e pilotar aviões em miniatura, que alcançou relativa popularidade no Brasil, e que para muitos é um esporte levado bastante a sério, sendo reconhecido como desporto aéreo pela Federação Aeronáutica Internacional.

O aeromodelismo possui várias modalidades, como o Voo Circular Controlado ( VCC), também chamado de U-control, onde o piloto está ligado ao avião por cabos que fazem a aeronave subir ou descer;  Rádio Controlado, a mais praticada no Brasil, e Voo livre.

O ruído característico dos aviõezinhos no ar aos finais de semana no Campo dos Afonsos, na zona oeste do Rio de Janeiro, já faz parte da paisagem do bairro há longas décadas e atrai aficionados pela arte do aeromodelismo de todas as partes do Rio de Janeiro. Num dos berços da aviação brasileira, além do Museu Aeroespacial, que possui um acervo inestimável, reunindo exemplares raros desde os tempos de Santos Dumont à aviação civil comercial, e dos tradicionais shows da Esquadrilha da Fumaça durante a Semana da Asa, encontra-se também a sede da Associação Carioca de Aeromodelismo, ACA, fundada em 1949, herdeira do antigo Departamento de Aeromodelismo do Aeródromo de Manguinhos.

O Aeródromo de Manguinhos, por sua vez, praticamente esquecido pela história, foi outro palco importante para a aviação e para a prática do aeromodelismo no Rio de Janeiro. Fundado em 1936, o aeródromo localizava-se às margens da Avenida Brasil, onde atualmente encontra-se a comunidade da Vila do João. O local foi utilizado para o aperfeiçoamento de instrutores e a formação de pilotos para recreio e desporto, tendo  sediado acontecimentos importantes relacionados ao desporto aéreo, como o primeiro Campeonato Brasileiro de Acrobacia (cuja data ainda não foi possível apurar), além dos shows acrobáticos da Semana da Asa (PIRES, 2009). O aeródromo foi desativado em 1961. Como dito antes, um departamento de aeromodelismo foi criado naquele aeródromo e há raros registros fotográficos em blogues na internet de jovens no local praticando o desporto, que era também um momento de lazer para as crianças, como se vê nas fotos de família enviadas ao blog Saudades do Rio (http://saudadesdoriodoluizd.blogspot.com.br/2017/02/aeromodelismo-em-manguinhos.html).

Em 1963 foram inauguradas pelo governador Carlos Lacerda no Parque do Flamengo duas pistas para a prática do aeromodelismo na modalidade Voo Circular Controlado. As pistas até hoje são utilizadas pelos membros da Associação de Aeromodelismo do Aterro.

Na Ilha do Fundão, onde se localiza o campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro, funciona o clube de aeromodelismo AMA UFRJ, que inclui o drone entre as suas modalidades. Neste vídeo é possível ver a estrutura do clube e conhecer um pouco da prática do aermodelismo:

A cultura do aeromodelismo, que ao que parece se consolida no Rio de Janeiro por volta da década de 1940, deu origem a diversos clubes, pistas e lojas de materiais especializados, fomentando um mercado em expansão, ainda mais agora, considerando a chegada do drone. Novos clubes e encontros de apaixonados pelo esporte se manifestam não só na capital como na região metropolitana, como os que acontecem aos finais de semana em Icaraí (Niterói), na Vila Olímpica de Mesquita e no Parque Natural de Gericinó, em Nilópolis, os dois últimos na Baixada Fluminense.

O aeromodelismo mobiliza seus praticantes e familiares mas também os que aproveitam o lazer de final de semana ao ar livre, contemplando aquelas pequenas aeronaves colorindo os céus nos clubes e pistas cariocas e a perícia de seus pilotos.

Até o próximo post!

 

Referências

AMA UFRJ. Disponível em: https://www.amaufrj.com.br/heli

PARQUE DO FLAMENGO. Pistas de Aeromodelismo. Disponível em: http://www.parquedoflamengo.com.br/equipamentos/pistas-de-aeromodelismo-2/

FAY, Claudia Musa e FONTES, Rejane de Souza. O papel do Aeroclube do Brasil na construção de uma política nacional de aviação brasileira (1911-1972). In: História (São Paulo). vol. 36. 5 ed., 2017. Disponível em: http;//www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742017000100505.

SAUDADES DO RIO, 08 de fevereiro de 2017. Aeromodelismo em Manguinhos. Disponível em: http://saudadesdoriodoluizd.blogspot.com.br/2017/02/aeromodelismo-em-manguinhos.html


As viagens motorizadas, os acampamentos na Flórida e seus intrépidos aventureiros: notas históricas sobre os Tin Can Tourists

04/04/2017

Por Valeria Guimarães

 

Quando a expansão do uso do automóvel, proporcionada pelo desenvolvimento econômico dos Estados Unidos após a I Guerra se juntou ao desejo dos norte-americanos de ir ver a América explorando as suas novas estradas em direção ao Sul, no início do século XX, formou-se um movimento singular de aventureiros que tinham em comum o gosto pela prática do camping e pelas viagens em seus veículos particulares – adaptados para longas jornadas e convertidos em trailers.

Assim surgiam os Tin Can Tourists, um grupo organizado, cujo nome não se sabe ao certo a razão, mas que tem muita história para ser contada. Especula-se que há alguma referência ao uso de alimentos enlatados nos acampamentos ou, por outra via, que tivesse relação com o popular modelo Ford “T”, apelidado de “Tin Lizzie” (FLORIDA MEMORY, s/d).

Seja como for, esse movimento organizado, que teve seu pioneirismo na Flórida, chama a atenção por diversos motivos, como a sua estruturação em torno de interesses comuns voltados para o desfrute do lazer, a união da viagem em veículos de passeio customizados com a prática do campismo, a força com que atraiu praticantes da classe média americana, o conjunto de valores morais, regras e rituais cultuados pelos adeptos, as novas sociabilidades surgidas, os jogos esportivos, danças e formas de entretenimento, os impactos na comunidade receptora, entre outros fatores que merecem, sem dúvida, ser estudados com profundidade pelos pesquisadores.

Atribui-se a fundação do movimento ao ano de 1919, em Tampa, na Flórida, época em que também começou a crescer vertiginosamente o turismo receptivo na região, com a chegada de turistas vindos das regiões agrícolas do Norte e do Centro-Oeste do país. Os carros desses viajantes eram modificados, adaptados para receberem barris de água potável e de combustível extra, acoplados na parte traseira, enquanto que no seu interior carregavam suas barracas, peças de vestuário, roupas de cama e muitas latas de comida para garantir a sobrevivência fora de casa, que em muitas viagens se estendiam por semanas.

O filme de animação “Tin can Tourist”, de 1937, satiriza toda a parafernália utilizada pelos proprietários desses modernos trailers que viajavam ao menos duas vezes ao ano para os encontros da organização. É o que se vê na cena abaixo, onde o viajante, um fazendeiro chamado “Al Fafa” encontra-se no interior do seu trailer adaptado com toda a tecnologia para lhe prover dos confortos e facilidades da vida moderna na estrada. A cada alavanca acionada, equipamentos automáticos vão surgindo, como fogão, cama, cabideiro, banheira com chuveiro e água encanada e sofá.

tin can

O filme, que é mudo, possui algumas cenas e legendas que enfatizam toda a excitação com a experiência moderna da viagem, ao mesmo tempo em que demonstram que o turista não está disposto a ter grandes despesas no período, como na passagem logo após a cena destacada acima, em que aparece a seguinte informação: “Everything’s automatic, Life is filled with trhills, Now we can forget about the – laundry – bills!”

Por outras fontes, como no blog Tin Can Tourist (https://tincantourists.com/blog/2016/02/01/tin-can-tourists-history/), consta a informação de que o consumo de grandes quantidades de comida enlatada foi uma estratégia característica desses viajantes para baratear o preço da viagem, dispensando a alimentação em restaurantes. Também eram escassos (e caros) os meios de hospedagem e os veículos adaptados com barracas para acampamento supriam essas necessidades.

Ainda de acordo com a mesma fonte, os veículos avariados na estrada exibiam uma lata no capô e eram identificados por outros tin can tourists, recebendo ajuda para prosseguirem viagem. O principal lema do movimento era unir fraternalmente todos os “autocampers”, e seus valores propagavam a limpeza dos locais de acampamento, a amizade entre os participantes, a prática de entretenimento saudável e zelar pela segurança entre os membros.

Em 1921, passados apenas dois anos da fundação do movimento Tin Can Tourists, esses já somavam 17.000 membros, entre adeptos dos Estados Unidos e do Canadá, o equivalente a 1/3 da população de Tampa, na Flórida. A movimentação gerou grandes impactos sociais e econômicos na região, inclusive forte especulação imobiliária, apontando para antecipações do turismo de massa, fenômeno frequentemente atribuído ao período pós II Guerra Mundial.

Acusações como a de abrirem negócios e fazerem concorrência com o comércio local, entre outros fatores, fizeram com que, ainda na década de 1920, esses turistas fossem tachados pela municipalidade da Flórida de “indesejáveis” e uma mobilização de moradores locais forçou o fechamento do De Soto Park em 1924 para evitar a presença desses forasteiros, obrigando os Tin Can Tourists a escolher outras sedes para as suas convenções anuais.

Essa história em muito se parece com os conflitos que ocorrem entre população residente e turistas em muitas cidades do mundo, especialmente nos balneários, inclusive nos dias de hoje. E no Brasil não é diferente. Pelas bandas de cá, adota-se de tudo para coibir nossos turistas de lata, desde a cobrança de altas taxas para ônibus de excursão ou mesmo a proibição de sua entrada nas cidades até o desenvolvimento de um planejamento turístico voltado para construir destinos de turismo de luxo, a preços proibitivos para a maior parte dos turistas.

A história do movimento Tin Can Tourist não para por aqui. Estas notas introdutórias têm a pretensão de levantar a bola e estimular, quem sabe, novos estudos que mobilizem buscas nos arquivos históricos, nos sites, filmografia e instituições ainda existentes que possam trazer novas luzes a esse tema ainda pouco conhecido entre nós. Os Tin Can Tourists surgem poucos anos antes do aparecimento de movimentos automobilísticos organizados no Brasil, como o Touring Club e o Automóvel Club. Estes, certamente mais elitizados, são ancestrais da popularização do automóvel por aqui. Mas, se procurarmos bem, encontraremos nossos tin can tourists por toda parte, buscando o prazer de viajar e de experimentar novas relações sociais por meio do turismo.

Termino este post com as cenas do encontro anual dos Tin Can Tourists de 1939, de volta à Tampa, na Flórida. O esporte, como não poderia deixar de ser, estava inserido entre as atrações do evento, com exibições de boxe, ginástica e outras modalidades. Vale a pena conferir:

 

Para saber mais:

LONG, LONG TRAILERS. British Pathé, 1939. Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Rh6zcokUjRg&gt;

TIN CAN TOURIST. Dir. Davis, Mannie, Gordon, George. Estados Unidos:  20th Century Fox Film Corporation, 1937 (10 min.). Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=JASz9B1ROlE>.

TIN CAN TOURIST – Rollying History. Disponível em: <https://tincantourists.com/blog/2016/02/01/tin-can-tourists-history/&gt;

WYNNE, Nick. Tin Can Tourists in Florida 1900-1970.  Charleston, South Carolina: Arcadia Publishing, 2003.


O casamento da bicicleta com o turismo: discutindo a relação

31/10/2016

Por Valeria Guimarães

Salve, salve, estimados leitores!

Neste post a conversa une duas paixões contemporâneas: os pedais e o turismo. Fazer turismo de bicicleta é um movimento que vem crescendo em todo o mundo, acompanhado da tendência do crescimento do ciclismo urbano, seja como meio de transporte, seja como lazer. Muitos países europeus perceberam – não sem antes terem sofrido muita pressão da sociedade civil organizada e feito as contas do quanto economizam (e aí entram até os custos com o tratamento da obesidade em função do sedentarismo) e quanto arrecadam – que o futuro da mobilidade nas cidades depende do desestímulo ao uso do carro e de um incentivo cada vez maior à cultura do uso da bike.

O projeto EuroVelo, iniciativa da Federação Europeia de Ciclistas, é um dos principais fomentadores do cicloturismo no continente, que destaca-se pela ambiciosa meta de construir até 2020 uma rede integrada de ciclovias que conecta mais de 40 países do Velho Mundo. Por enquanto já foram lançadas 15 rotas. O principal destaque é a rota Eurovelo 13, também conhecida como Cortina de Ferro. A mais extensa de todas as rotas ciclísticas europeias, se estende da Noruega à Turquia, ligando 20 países em seus 10.400 km.

Mapa das rotas integrantes do projeto Eurovelo

eurovelo

http://www.eurovelo.com/en/eurovelos

No Brasil, o cicloturismo vem se desenvolvendo a passos lentos, requerendo ainda muito esforço de mobilização da sociedade civil organizada para sensibilizar governos, iniciativa privada (inclusive os atores do chamado trade turístico) motoristas, ciclistas e pedestres sobre a importância da cultura das viagens realizadas com a magrela, dentro e fora das cidades, inclusive como dinamizadora das economias locais, especialmente na baixa temporada. A falta de infraestrutura de apoio ao cicloturismo e de segurança para a prática são dois dos maiores entraves para a atividade, que acabam desestimulando muitos ciclistas e cicloturistas em potencial.

Algumas rotas são bem conhecidas pelos praticantes do cicloturismo no Brasil, com destaque para o Vale Europeu, em Santa Catarina, que integra 9 municípios do médio Itajaí e é considerada uma referência nacional em cicloturismo, com sinalização específica para a realização de um percurso autoguiado. Podem ser citadas também a Rota Montanhas Mágicas da Mantiqueira, no sudeste de Minas Gerais, abrangendo 8 municípios, e a Rota Franciscana Caminhos de Frei Galvão, no Estado de São Paulo, que é compreendida por 5 caminhos diferentes cujo epicentro é a cidade de Guaratinguetá.

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Sinalização para o cicloturismo autoguiado no Vale Europeu. Fonte: http://cicloturismo.circuitovaleeuropeu.com.br/

No ambiente urbano, além do Rio de Janeiro e de São Paulo, a cidade de Niterói, localizada na região metropolitana do Rio de Janeiro, tem buscado tornar-se uma referência no cicloturismo no país, ampliando a sua malha de ciclovias, criando ciclofaixas, bicicletários e projetos de passeios de bicicleta, como o Niterói Bike Tur, organizados pela secretaria de turismo local em parceria com a sociedade civil organizada. No entanto, depoimentos de usuários apontam para a fragilidade da segurança das ciclovias e ciclofaixas projetadas na cidade, como a presença da ciclofaixa à esquerda dos carros em determinados trechos, lado utilizado para a ultrapassagem de veículos, potencializando o risco de acidentes; trechos onde o ciclista tem que desviar para a pista de rolamento; placas de sinalização dando preferência aos ciclistas somente das 6 às 10 da manhã, entre outras reclamações que alertam principalmente para o risco de atropelamento.

Já escrevi tempos atrás neste blog sobre a construção de uma ciclovia sobre as calçadas em alguns bairros da zona oeste do Rio de Janeiro. Abre-se o portão da residência e pam! Risco de batida na bicicleta ou no pedestre; ao sair de um estabelecimento comercial, pow! Risco de por os pés na ciclovia e sofrer um atropelamento. Criança saindo de creche e… procuro nem imaginar. Os detalhes estão aqui:

https://historiadoesporte.wordpress.com/2012/01/15/manual-de-sobrevivencia-na-calcada-um-guia-pratico-para-pedestres-e-ciclistas-nas-novas-ciclovias-da-zona-oeste-do-rio-de-janeiro/

Há poucos dias, em 26 e 27 de outubro de 2016, a cidade de Niterói sediou o Encontro para o Desenvolvimento do Cicloturismo Urbano, organizado por iniciativa da Faculdade de Turismo e Hotelaria da UFF, por meio do projeto PedalUFF-Tur, orientado pela Prof. Dra. Priscila Edra, em parceria com o Núcleo de Planejamento Estratégico de Transporte e Turismo da COPPE, UFRJ, a Prefeitura da cidade e o Coletivo Mobilidade Niterói. Foram dois dias intensos de discussão, mostra acadêmica, apresentação de casos de sucesso no Brasil e no exterior, proposições para melhores práticas no cicloturismo no país, além de realização de roteiro cicloturístico pelo Caminho Niemayer.

 

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http://www.fth.uff.br/cicloturismoemfoco/wordpress/

Ficou claro pelo evento, tanto nas análises bibliométricas sobre os trabalhos publicados a respeito do tema quanto nos debates apresentados sobre os principais “gargalos” para o desenvolvimento do cicloturismo no Brasil, se comparado à realidade de outros países, que o tema é ainda muito incipiente e a relação entre a bicicleta e o turismo precisa ser muito discutida. Há lacunas em diversos aspectos, como os estudos de gênero no cicloturismo, uma atividade predominantemente masculina, ao que se pode constata a olhos vistos. Mas, não seria ainda no Brasil o lazer no espaço público um privilégio masculino? Aos finais de semana enquanto vejo homens nos bares, praças e campos de futebol, me pergunto: onde estão as mulheres? Por falar nisso, enquanto me dirigia para o segundo dia do evento de cicloturismo, ouvia numa rádio AM a notícia de que o consumo de bebidas alcóolicas se equiparou entre homens e mulheres no Brasil, ao que o apresentador do popular programa de rádio lançou a enquete aos ouvintes: “Na sua opinião, o que é mais feio: homem ou mulher bêbada?”, pergunta que reforça a discriminação de gênero associada ao lazer da bebida.

Discutir a relação no casamento entre a bicicleta e o turismo é sim muito necessário e urgente, ainda mais quando o futuro prefeito de São Paulo, metrópole que vem procurando desenvolver a cultura da bicicleta, declara a intenção de aumentar a velocidade dos veículos e extinguir a ampliação das ciclovias.

Depois de tudo que ouvi e aprendi no seminário, deu vontade de pegar a velha bike enferrujada na garagem, recauchutá-la e sair pedalando por aí, driblando os obstáculos de uma cidade ainda hostil à bicicleta, ou quem sabe até empreender uma cicloviagem por uma dessas rotas que são referência para uma vida mais contemplativa.

Até breve!

 

 

 

 

 


Flanando pelo Rio de Janeiro: um tributo aos rádio-ginastas

07/06/2016

Por Valeria Guimarães

Salve, salve! A semana começou mais triste com a notícia da passagem do mito Mohammad Ali, uma figura inestimável para o esporte mundial, tanto pelos seus feitos no boxe quanto fora do ringue. De sua vida marcante, o que mais me tocou foi a sua recusa em participar da Guerra do Vietnã, o que lhe custaria um alto preço. Foi-se um grande nome do século XX, protagonista da história, notabilizado pelo seu desempenho no esporte, pela sua personalidade irreverente e pelas suas posturas políticas. Um grande esportista e cidadão, sem dúvida…

No post desta semana quero falar sobre uma experiência recente que vivi andando pela Praça Saens Peña, no bairro da Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro. Andando não, correndo, porque estava atrasada para uma consulta médica. O logradouro não me é familiar. Não tenho o costume de frequentá-lo tanto por ser distante de meu circuito casa-trabalho-lazer quanto por querer evitar a tumultuada Rua Conde de Bonfim quando preciso fazer algo por aquelas imediações.

Mas há poucos dias fui parar numa clínica próxima à Praça Saens Peña para a realização de uns exames. Somente ali encontrei prazos decentes para meu atendimento. Valia a pena o deslocamento. Por causa disso, correndo no meio da Praça à saída do metrô, avistei com o faro de flaneur que não sai do historiador nem quando se está com toda pressa do mundo, um monumento que me chamou muita atenção. Uns minutinhos de apreciação não iriam me fazer perder a viagem, mas perder o exame, talvez.

Lá estava o meu personagem, acolhendo quem saía do metrô e todos os passantes.

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Fonte: Wikipédia

Fiquei ali parada observando aquele monumento e vendo os transeuntes e frequentadores da praça admirando a minha admiração. Mas o que era aquilo? Uma escultura de um esportista? Lembro-me de ter visto poucas esculturas de esportistas em logradouros públicos no Rio de Janeiro, a cidade que esmera-se em ser reconhecida como uma cidade esportiva, haja vista os esforços realizados acima de qualquer racionalidade para os megaeventos esportivos que vem sediando nesta década.

O mais notável, sem dúvida era o Bellini, na entrada do Maracanã, lá posicionado desde 1960. Mas e aquele esportista ali? De quem se trata? O personagem deve ser velho conhecido dos tijucanos (talvez nem seja mais notado, de tão familiar), mas para mim era um verdadeiro mistério.

Uma voltinha em torno do pedestal e já estava parcialmente esclarecido: tratava-se de um monumento em homenagem ao rádio-ginasta e a seu mestre, Oswaldo Diniz Magalhães. Inaugurado em 1957, o monumento é composto por um pedestal de granito, encimado por um atleta em tamanho natural empunhando um bastão, o rádio-ginasta. Na face principal do pedestal lê-se “O pioneiro da ginástica pelo rádio”, com um perfil em bronze do mestre homenageado, conforme se vê na foto abaixo, provavelmente tirada no dia de sua inauguração.

blog

Fonte: Blog O rádio faz história

A internet ajudou a desvendar o restante do mistério que se colocou para uma leiga como eu e fiquei com vontade de ir aos livros, saber mais: Oswaldo Diniz Magalhães foi um professor de Educação Física, nascido na Tijuca, que muito contribuiu para disseminar a ginástica, de forma pioneira, através de um programa de rádio. O atleta desconhecido representa os alunos, fãs de Oswaldo que, por gratidão e organizados sob a Associação de Rádio-Ginastas, ofereceram à cidade do Rio de Janeiro a homenagem pela passagem dos 25 anos do programa de rádio sob o comando do seu professor, num tempo em que não havia muitos recursos para a formação do profissional de Educação Física (ele próprio formou-se no Uruguai) e para a popularização do esporte.

O programa de rádio do Professor Oswaldo, com o nome de “Hora da Ginástica”, foi transmitido de 1932 a 1936, às 6 da manhã, pela Rádio Educadora Paulista. Com o grande sucesso, passou a ser transmitido pela Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, cumprindo um importante papel social em todo o território brasileiro, com aulas de ginástica, cidadania e boa conduta. Sua filosofia relacionava os princípios do higienismo e do civismo que se coadunavam com o ideário estadonovista de formação do corpo sadio da nação.

O programa foi um sucesso e teve grande longevidade, tendo passado pela Rádio Mec e pela Rádio Globo, ficando no ar até 1983, por ininterruptos 51 anos!  A idealizada família brasileira, branca, saudável e atlética, poderia se exercitar reunida, portando cada pessoa um bastão e seguindo as orientações do professor pelo rádio e por um mapa de exercícios comprado na banca de jornal. Na Praia de Copacabana, por exemplo, um grupo de rádio-ginastas exercitava-se sob as orientações de seu mestre, com o ouvido atento na latinha para seguir seus exercícios e aconselhamentos sobre o ideal de felicidade. Para além da ginástica, o programa estimulava a realização de atividades filantrópicas e propagava dicas de bem estar e harmonia com o corpo, a mente e a coletividade.

Oswaldo Diniz Magalhães é reconhecido como uma referência no desenvolvimento da Educação Física no país e quase atropelar na minha pressa o monumento que o homenageia e a seus seguidores , naquele dia tão corrido, em plena agitação da Praça Saeñs Pena, foi uma grata lição.

Até o próximo post!

Referências:

Acervo escultórico do Rio de Janeiro. Monumento a Oswaldo Diniz Magalhães. Disponível em: http://www.brasilcult.pro.br/rio_antigo2/esculturas/esculturas12.htm

O rádio faz história. Hora da Ginástica, com Oswaldo Diniz Magalhães. Disponível em: http://radionahistoria.blogspot.com.br/2015/01/hora-da-ginastica-com-oswaldo-diniz.html


O esporte na filmografia dos Trapalhões – Parte II: Os Trapalhões e o Rei do Futebol

11/01/2016

Por Valeria Guimarães

Salve, Salve! Feliz Ano Novo!

Neste primeiro post de 2016 cumpro a promessa do ano passado de dar continuidade a um breve inventário do esporte dentro da produção cinematográfica de um dos maiores recordistas de público do cinema brasileiro em todos os tempos, que fez história também na tv e marcou gerações. Destaco desta vez o filme do famoso quarteto de humoristas que mais deu visibilidade ao esporte: Os Trapalhões e o Rei do Futebol.

O filme foi exibido tempos atrás numa sessão do Cineclube Sport e na ocasião tive a honra e o prazer de mediar o debate, que sempre cerca as interessantes e animadas exibições.  Deu vontade de um dia voltar ao assunto e escrever algumas linhas sobre a obra. Eis aqui uma boa chance.

Com a direção do tarimbado Carlos Manga, roteiro dos novelistas Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares, a produção de 1986 arrastou para os cinemas naquelas férias de julho um público estimado em 3.650.000 pessoas, segundo o site Adoro Cinema. No Youtube, já somam mais de 350.000 visualizações.

O elenco reuniu nomes costumazes das obras dos Trapalhões, como Russo e Maurício do Valle, além de atores consagrados, como José Lewgoy, Older Cazarré e Milton Moraes. Na turma jovem, destacaram-se Luiza Brunet e Marcelo Ibrahim, o galã fortão do momento. No Papel-título, ninguém menos que Pelé.

A junção de tantos fenômenos de massa, Os Trapalhões, o futebol,  Pelé, e o cinema, resultou num grande sucesso e numa experiência memorável para muitas pessoas que se referem ao filme com nostalgia nas rodas de conversa e nas redes sociais.

A história gira em torno da corrupção no fictício Independência Futebol Clube, que estava afundando em função dos interesses da “cartolagem”, amargando uma sequência de maus resultados. Cardeal, interpretado por Renato Aragão, assume o cargo de treinador da equipe e, com o apoio do jornalista Nascimento (Pelé), implanta métodos de treinamento nada convencionais, que dão o tom do humor. Como resultado, o time começa a conquistar uma sequência de vitórias, podendo ser campeão, o que contrariava os interesses escusos da diretoria do clube.

A mocinha do filme, que não precisa dizer que era o sonho impossível de Cardeal, interpretada por Luíza Brunet no auge da sua beleza, é sequestrada e os dirigentes e seus capangas ameaçam matá-la caso o time fosse campeão. Cabisbaixos, os jogadores entram em campo decididos a perder a partida da final do campeonato.

Com a ajuda de Nascimento, Elvis Presley (Dedé), Fumê (Mussum) e Tremoço (Zacarias), mais os reservas do time, resgatam a moça. Por sorte, Nascimento consegue voltar ao Maracanã (local onde foram gravadas as cenas antes de uma partida entre Flamengo e Vasco) antes do término do jogo, quando faltavam 10 minutos para acabar a decisão do campeonato. O   Independência, entretanto, perdia por 3×0 para o Gavião.

Aí vem a sequência memorável do filme, que até hoje mexe com o imaginário dos marmanjos que eram crianças na época: sem reservas e sem goleiro, que acabara de ser expulso (interpretado pelo ator e esportista Marcelo Ibrahim, falecido precocemente na época da exibição do filme), Cardeal e Nascimento entram em campo e fazem as jogadas mais improváveis do futebol, levando o estádio lotado e o público do cinema ao delírio.

Primeiro vem o gol contra de Cardeal em Nascimento, fazendo o Independência perder de 4×0.

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Cena antológica do filme Os Trapalhões e o Rei do Futebol: Cardeal faz gol contra em Nascimento

Depois de comemorar o gol contra, com soco no ar, dancinha e benzer-se, para desespero da torcida, Cardeal reage e faz uma sequência de belíssimos gols.  O primeiro, do meio de campo, foi “o gol que Pelé tentou e não fez”, como gritou Nascimento. Cardeal prometeu fazer outro. E fez aquele famoso gol que Pelé perdeu contra o Uruguai na Copa de 1970, no final da partida, dando um sensacional “drible da vaca” no goleiro, para êxtase do público.

drible da vaca

Cardeal faz o lindíssimo “quase gol” de Pelé na Copa de 1970

Sem perder o fôlego, o público ainda assiste ao inverossímil gol em que Cardeal bate o escanteio para ele mesmo cabecear e marcar, misturando humor e adrenalina. No lance seguinte, o gol é de bicicleta, numa deliciosa sequência de futebol e ação. Àquela altura, o placar estava 4×4 e faltava 1 minuto para a partida terminar, quando o jogador do Gavião sofre um pênalti. Ao comemorar a defesa feita por Nascimento, Cardeal, sempre ele, segura a bola e provoca outro pênalti contra o Independência. Ele pede a ajuda ao “Fantasma do Maracanã” ou, se quisermos, ao Sobrenatural de Almeida, de Nelson Rodrigues. A sequência é de tirar o fôlego dos amantes do futebol e apreciadores do humor de fórmula simples e eficaz dos Trapalhões. O cobrador joga a bola para fora.

O lance final da partida é espertíssimo e coroa a homenagem a Pelé, que atua também como co-produtor do filme: aos 45 minutos do segundo tempo, com a bola do jogo nas mãos, final de campeonato, partida em 4×4, o goleiro Nascimento faz um golaço de dentro da sua própria área.

nascimento

Golaço de goleiro e homenagem ao craque Pelé selam a vitória do Independência e a conquista do campeonato

O filme dialoga fortemente com o contexto político da época de sua produção, fazendo várias alusões à ditadura civil-militar no Brasil e à abertura política, metaforizadas no clube de futebol.  Logo no início, o jornalista Nascimento, empenhado em moralizar o futebol, critica a forma de escolha do novo presidente interino do Independência Futebol Clube, dizendo:  “Presidente tem que ser eleito. Nomeado não tá com nada”, numa clara alusão à eleição para presidente da República, feita indiretamente pelo Colégio Eleitoral no ano anterior (1985).

Há também referências à violência da ditadura em algumas passagens, à própria ditadura como modelo de gestão do clube, ao medo de uma revolução popular caso a candidatura de Cardeal à presidência do clube obtivesse sucesso (candidatura esta construída com a participação da torcida), entre outras alusões às questões políticas do período.

O gesto final de Didi, quando perguntado se aceitaria ser presidente do clube, é embaçado propositalmente, mas com sentido nítido para o entendedor, antecipando o de Reginaldo Faria na novela Vale tudo (1988), escrita pelo mesmo Aguinaldo Silva, em colaboração com Giberto Braga e Leonor Basseres.

Um dos momentos mais bonitos do filme é o encontro de Cardeal e Nascimento à noite no Maracanã, misturando a mística do estádio, as histórias do “fantasma” do Maracanã e a nostalgia e magia do futebol-arte nos pés de Pelé.

Quem quiser assistir a um bom filme de humor sobre futebol, que ainda traz o Pelé no papel-título jogando futebol e nos oferece a oportunidade de matar as saudades do Maracanã dos anos 1980, não pode perder o filme, que é também um interessante (e quase despercebido) documento de uma época.


O esporte na filmografia dos Trapalhões – Parte 1

30/08/2015

Por Valeria Lima Guimarães

Tempos atrás, numa sessão do Cineclube do Sport, o nosso Laboratório de História do Esporte e do Lazer da UFRJ, tive a honra e o prazer de debater o filme Os Trapalhões e o Rei do Futebol, uma produção de 1986, dirigida por Carlos Manga. Rever e comentar um dos filmes da minha infância décadas depois com um olhar acadêmico foi uma experiência muito interessante. Na ocasião, realizei uma pesquisa sobre a filmografia do quarteto que por décadas divertiu dezenas de milhões brasileiros. Por isso, resolvi revisitar o tema, prolongando o sabor da discussão e registrando nessas mal traçadas linhas um pouco do que conversamos naquele dia.

A filmografia dos Trapalhões é bem extensa e soma quase 50 produções cinematográficas, entre os anos de 1965 (quando os Trapalhões eram apenas Didi e Dedé) e 2008. Mussum e Zacarias se integraram ao grupo no cinema em 1976 (O Trapalhão no Planalto dos Macacos) e 1978 (Os Trapalhões na Guerra dos Planetas), respectivamente. Seus filmes figuram entre as maiores bilheterias do cinema brasileiro. Para se ter uma ideia, dos 50 filmes de maior público, 20 são dos Trapalhões.[1] O sucesso foi tão grande, que os Trapalhões na virada para os anos 1980 passaram a produzir de 2 a 3 filmes por ano.

Muitos diretores trabalharam com os comediantes mais queridos do Brasil, entre eles Carlos Manga, José Alvarenga Jr.,Roberto Farias, Sílvio Tendler, Tizuka Yamasaki, J.B. Tanko e Adriano Stuart, esses dois últimos os mais recorrentes.

Os filmes dos Trapalhões sempre dialogaram com as tendências da cultura de massa da época em que foram produzidos, fórmula que ajudaria a alavancar o sucesso de suas produções no cinema. O primeiro deles, “Na onda do iê-iê-iê” (1965), pegava carona na Beatlemania, em seu auge, e fazia referência também aos festivais nacionais da canção. Como se tornaria de praxe, vários artistas famosos participaram do filme, reunindo diferentes gerações que à época  faziam sucesso no rádio, como Sílvio César, Mário Lago, Paulo Sérgio, Wilson Simonal, Wanderley Cardoso, Rosemery, The Fevers e Os Vips. Além das antigas e novas gerações de cantores do rádio, artistas do circo, mais recorrentemente Beto Carrero, do teatro de revista, como José Lewgoy, Wilza Carla e Wilson Grey, artistas de cinema e televisão, como Mário Cardoso, Roberto Guilherme e Eduardo Conde, e jovens atrizes, modelos/manequins conhecidas pela sua beleza, como Mila Moreira, Lucinha Lins, Luiza Brunet, Xuxa e Luma de Oliveira, comporiam os elencos, garantindo ainda mais sucesso aos filmes.

As histórias clássicas da literatura infantil inspiraram muitos filmes dos Trapalhões, que arrancavam boas risadas do público, como as paródias: Ali Babá e os 40 Ladrões (1972); Aladim e a Lâmpada Maravilhosa (1973); Robin Hood, o Trapalhão da Floresta (1974); Simbad, o Marujo Trapalhão (1976); O Cinderelo Trapalhão (1979); Os Três Mosqueteiros Trapalhões (1980); Os Saltimbancos Trapalhões (1981); Os Trapalhões e o Mágico de Oroz (1984), entre muitos outros.

A maior parte das produções atingia um público maior que 2 milhões de espectadores. Era um tempo em que o cinema era uma das principais opções de lazer das massas, especialmente nas férias escolares. Não havia shopping center, os cinemas eram todos de rua e se pagava um ingresso para ver o filme em qualquer altura da sua exibição, podendo-se permanecer por todas as sessões do dia em salas de cinema lotadas, mal ventiladas e com um som sofrível, que mal dava para entender o que os personagens falavam, sem esquecer daqueles  fortes estalos característicos do áudio da exibição e de uns risquinhos que apareciam na tela. Não havia combos nem poltronas luxuosas e as salas eram gigantescas, mas sempre lotadas. Várias vezes assisti os filmes em pé, sentada no chão na frente da primeira fila ou na “carcunda” de meu pai, como diria Didi Mocó.

Os filmes dos Trapalhões, em seu conjunto, trazem invariavelmente cenas de muita ação, velocidade e movimento, com fugas, lutas e perseguições em lanchas, carros, motos, veículos improvisados com ferro velho, pedalinho e até jegue, como marca de uma certa “nordestinidade” tão fortemente impressa nos filmes de Renato Aragão, com elementos como humildade, bom humor, bravura, honestidade e persistência.

Outros ingredientes se somam à fórmula que rendeu tanto sucesso ao grupo, como o humor simples e de grande aceitação popular; a escolha das locações; os estereótipos bem marcados, definindo os mocinhos e os vilões, que entram em conflito; a frustração e ingenuidade do protagonista em perder a mocinha para algum tipo bonitão, jovem e urbano, restando-lhe o posto de melhor amigo de sua amada; os temas de grande identificação das massas.

A temática dos esportes, associada às cenas de ação, esteve muito presente nos filmes dos Trapalhões, tendo surgido pela primeira vez em 1967, com o filme Dois na Lona, estrelado por Renato Aragão e pelo lutador ítalo-brasileiro Ted Boy Marino, no auge do sucesso dos programas de Telecatch.

Cena de Dois na Lona (1967)

Cena de Dois na Lona (1967)

Ted Boy Marino interpreta o papel de um lutador de vale-tudo estreante, descoberto por acaso numa briga num parque. Com a ajuda de seu amigo (Renato Aragão),  disputa o cinturão com o campeão da categoria e fica em grande desvantagem até o 9º assalto. Ao ver seus amigos torcendo e gritando o seu nome, num rompante de superação característico do discurso sobre o esporte, o lutador no último assalto passa a lutar extraordinariamente, com coreografias magistrais, numa plasticidade que funciona muito bem no cinema. O personagem vence por nocaute, conquista o público presente na luta, a arbitragem, o cinturão e, pode-se deduzir, os espectadores do filme.

Em O Incrível Monstro Trapalhão (1980), uma paródia das histórias de O Médico e o Monstro, Hulk e dos Super-Heróis, Didi, o Doutor Jegue, inventa um combustível extraído de marmeleiro nordestino e o testa numa corrida de Stock Car em Interlagos, cenário de muitas cenas do filme, inclusive de uma longa sequência de abertura.

No grande dia da corrida, todos os carros partem, mas o do personagem de Didi, uma estranha espécie de carro, “vindo de outra galáxia”, como anuncia o locutor, não consegue largar. Numa divertida sequência, Renato Aragão tenta de todas as formas fazer o veículo partir e utiliza até o triângulo de sinalização em plena pista de corrida, driblando os demais carros que completavam várias voltas. A torcida se desespera. Depois de várias tentativas frustradas, o personagem resolve utilizar uma gota do seu novo combustível e o veículo dispara, ultrapassando todos os demais e, novamente, atingindo a superação das dificuldades e vencendo a competição, num dos clichês mais fortes no que se refere aos filmes populares envolvendo a temática esportiva.

fig 2

Renato Aragão (no estranho veículo) em cena no autódromo de Interlagos

Outro filme que trouxe o esporte em primeiro plano foi Os Trapalhões e o Rei do Futebol (1986), com Pelé no papel-título. O último filme dirigido por Carlos Manga, conhecido diretor de filmes de chanchada da companhia Atlântida, tinha como fórmula a junção de dois fenômenos de massa – O quarteto de comediantes e o futebol, estrelado pelo nosso herói brasileiro de fama mundial. O resultado foi um extraordinário sucesso, com aproximadamente 3.650.000 expectadores, segundo o site Adorocinema.

Cartaz oficial do filme

Cartaz oficial do filme

O filme uniu adultos e crianças para verem dois ídolos dos brasileiros no cinema, em cenas antológicas rodadas no Maracanã, inverossímeis e inesquecíveis, como o lance do Didi cobrando escanteio para si mesmo e fazendo gol de cabeça, e aquele em que Nascimento (Pelé) defende um pênalti e faz gol de tiro de meta.

Embora não figure nas listas de filmes interessantes ao estudo da história de sua época de produção, o filme traz fortes elementos da cultura política do momento, sendo mais um documento alusivo ao contexto do fim da ditadura civil-militar no Brasil, citada diversas vezes entre falas mais sutis e outras mais explícitas, associadas à crítica à cartolagem e à corrupção no futebol brasileiro.

Mas isso é assunto para um outro post, quando retornarei dedicando um espaço exclusivo à análise desse filme sobre futebol que marcou a vida de muita gente, especialmente do público infanto-juvenil de férias naquele inverno de 1986.

Até lá!

[1] Os filmes dos Trapalhões não circularam no exterior, exceto Os Trapalhões no Auto da Compadecida (1987), que foi exibido em Portugal.


Seria a Escola Nacional de Educação Física e Desportos uma nova atração turística do Brasil na Era Vargas?

20/04/2015

Olá,

Sabem aqueles guardados que todo historiador tem, para um dia, quem sabe, acessar novamente e produzir algum texto sobre o assunto? Pois é, durante as pesquisas de doutorado, “guardei para depois” uma questão que nunca saiu da minha cabeça. Talvez seja a hora de rascunhar algo sobre o assunto.

Certo dia, pesquisando fontes sobre a história do turismo no Brasil na Era Vargas, na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, me deparei com um periódico chamado Travel in Brazil, talvez o mais importante veículo de divulgação turística do país no exterior na década de 1940. Trata-se de uma publicação em língua inglesa, produzida durante o Estado Novo pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), para circular junto ao público estrangeiro com interesse no Brasil.

As edições, com uma tiragem de 25.000 exemplares, eram distribuídas nos Estados Unidos e nos luxuosos navios de cruzeiro que aportavam na Praça Mauá, nos idos dos anos 1940, trazendo os gringos da terra do Bom Vizinho para conhecer as belezas da capital federal e dela partirem para outros destinos também já famosos no exterior, como Ouro Preto.

Folheando as edições semestrais existentes na BN, publicadas entre 1941 e 1942, é possível notar a percepção da principal agência do regime varguista quanto ao papel estratégico do turismo para a promoção da nação junto aos Estados Unidos, país com quem o Brasil manteve uma estreita relação diplomática durante o período.

Um time de nossos mais ilustres artistas e intelectuais da época, como Mário de Andrade, Cecília Meireles, José Lins do Rego, Manuel Bandeira e Raquel de Queiroz      foi escalado para divulgar em longas e belas páginas, ilustradas com fotografias exuberantes em preto e branco, os brasileiros, o patrimônio histórico, a cultura popular e a diversidade regional do país como nossos potenciais recursos para o turismo. O material de em média 33 páginas é de fato muito caprichado, feito para encher os olhos dos nossos visitantes preferenciais.

De repente, no volume, 2, número 4,  de 1941, apareceu algo incomum ao conjunto do material visto em todos os exemplares da revista disponíveis na Biblioteca. Em vez das longas matérias sobre a cultura popular, cidades interessantes para se conhecer no país ou a oferta comercial de destinos, com apresentação dos serviços, da infraestrutura turística, dicas de passeio e outros, eis que a Escola Nacional de Educação Física e Desportos surge como uma das principais estrelas da publicação.

A Escola Nacional de Educação Física e Desportos, criada por Decreto-Lei em 1939, foi assunto de 7 páginas, assinadas por J. M. de Souza e ilustrada com belíssimas imagens de alunos exercitando-se ao ar livre, tendo como cenário a Praia de Copacabana e seu calçadão, que àquela altura já eram mundialmente conhecidos.

A associação entre a primeira instituição superior de ensino de Educação Física no país e tais ícones turísticos tem um sentido lógico numa revista de turismo, mas logo a matéria vai assumindo um outro tom. Detalhes sobre os conteúdos curriculares, a formação do corpo docente, a procedência dos alunos matriculados, o perfil desejado dos estudantes, as habilitações oferecidas pela Escola e outras informações acadêmicas foram bastante enfatizados. Olhando mais atentamente, percebe-se que o tom propagandístico, repleto de adjetivos que exaltavam as qualidades nacionais, pendia mais para o lado da propaganda do ideário estadonovista e da apresentação de uma das mais novas instituições que compunham o projeto de reconstrução nacional de Vargas, do que propriamente para o turismo.

A tônica do texto era a importância da ENEFD, incorporada à Universidade oficial do país, a Universidade do Brasil, para o projeto de construção de uma “nova ordem moral, higiênica e patriótica”, que conduziria o país à modernização. A matéria vincula diretamente a ENEFD ao Estado Novo e a apresenta como uma das mais importantes ferramentas para se alcançar os objetivos do regime. Tinha, portanto, um papel particularmente importante na disciplinarização dos corpos e mentes visando à construção do homem novo[1], o que não por acaso foi tantas vezes ressaltado no texto.

O leitor estrangeiro ficaria sabendo pelas páginas da revista Travel in Brazil que os profissionais formados na ENEFD seriam, então, multiplicadores dos valores difundidos na instituição e no país, levando para as suas regiões de origem, de todos os cantos do Brasil, um conhecimento capaz de auxiliar na preparação de nosso povo para construir um futuro de progresso da moderna nação.

Selecionei abaixo alguns extratos do texto publicado na revista, em livre tradução. A Escola Nacional de Educação Física e Desportos:

  • “Cria uma consciência moral e cívica que marca um elemento ativo e eficiente de cooperação para a unidade nacional”;
  • “É prova clarividente das realizações da administração do atual governo do Brasil”;
  • “A ENEFD é boa referência da política inteligente de reconstrução nacional, em operação no Brasil.”
  • [Tem o papel de] “inculcar hábitos higiênicos e construir o espírito de cooperação e solidariedade cívica em todas as classes, e acima de tudo dando-lhes um senso de esforço e organização para a melhoria do padrão de vida de todos.”
  • “(…) emerge de um completo programa político de governo empenhado em dar à sua população uma vida feliz e à nação uma ampla e sólida soberania”.
  • [Tem o papel de] “Formar profissionais que colaborem com o governo para o progresso e civilização da nação”.

Tudo leva a crer que a divulgação da ENEFD nesse periódico de turismo tinha menos a ver com as práticas turísticas da época e com os atrativos visitados na capital federal e mais com a formação de uma opinião do público externo sobre o país. A revista Travel in Brazil mostrava-se, assim, um interessante espaço para a divulgação da jovem nação em construção que sintetizava por meio de suas novas instituições, como a ENEFD, o sentido da modernização que o regime do Estado Novo procurava construir.

[1] Recomendo a leitura da dissertação de Mestrado de nosso Victor Melo, que investiga com profundidade a história dessa instituição considerada patrimônio da Educação Física no Brasil. Ver: MELO, Victor. Escola Nacional de Educação Física e Desportos: uma possível história. Campinas-SP: UNICAMP: Programa de Pós-Grduação em Educação Física, 1996.


2 de dezembro, Dia Nacional do Samba: O Trem do samba e o subúrbio carioca como novas atrações turísticas

01/12/2014

Por Valeria Guimarães

Olá, no post de hoje venho falar de lazer, na forma de uma festa muito peculiar e de um tipo diferente de turismo que está se consolidando na cidade do Rio de Janeiro: conhecer o subúrbio carioca. Já escrevi aqui antes sobre a presença de turistas, especialmente afro-americanos, no Mercadão de Madureira (https://historiadoesporte.wordpress.com/2011/10/01/as-antigas-e-as-novas-faces-do-rio-turistico/). Outra motivação da ida de turistas ao subúrbio carioca, sem dúvida, são as festas e feijoadas nas quadras das escolas de samba suburbanas. Mas de longe a principal atração de forasteiros (de outras nacionalidades, de outros estados, e por que não dizer de outras partes dessa cidade partida?) é o Trem do Samba, um evento anual que reúne multidões no subúrbio de Oswaldo Cruz.

Todos os anos, no dia 2 de dezembro, comemora-se o Dia Nacional do Samba. A data foi instituída em 1940 pela Câmara dos Vereadores de Salvador, em homenagem ao compositor Ary Barroso. Hoje, por todo o país registram-se várias festas populares para celebrar o mais brasileiro dos ritmos num dia dedicado a ele. Por aqui, no Rio de Janeiro, além da tradicional festa organizada pela Liga das Escolas de Samba, ganhou força nos últimos anos um evento bastante interessante, chamado Trem do Samba.

Com o nome inicial de Pagode do Trem, começou nos idos dos anos 1990 como uma tímida ação de um grupo de ativistas de Oswaldo Cruz, bairro do subúrbio carioca, onde está sediada a escola de samba Portela, dentro do trem que liga o bairro à gare Central do Brasil. O grupo, liderado pelo sambista Marquinhos de Oswaldo Cruz, buscava a elevação da auto-estima de seus moradores a partir da invenção de uma tradição que remonta à memória e resistência operárias com o batuque no trem no início do século XX, cujo protagonista, como conta-se, era Paulo Benjamim de Oliveira, o notável Paulo da Portela.

O Pagode do Trem envolvia alguns rituais cuidadosamente repetidos a cada edição, como a festiva acolhida das Velhas Guardas do Império Serrano e da Mangueira nos vagões dos trens, em alusão às práticas de hospitalidade dos antigos sambistas dessas agremiações, e o canto de sambas tradicionais de ilustres moradores de Oswaldo Cruz e de outros bairros do subúrbio, incluindo-se Paulo da Portela, Cartola e Silas de Oliveira.

O que era uma ação pontual de um grupo de ativistas do bairro suburbano rapidamente caiu no gosto popular e transformou-se num grande evento da cidade, incluído no calendário oficial, tendo recebido também o apoio do Ministério do Turismo. Hoje, chamado de Trem do Samba, o evento mobiliza vários trens que partem da Central do Brasil com destino a Oswaldo Cruz . Em cada vagão uma roda de samba é comandada por grupos musicais da cidade ou da região metropolitana, algo de encher os olhos de turistas e cariocas, que sambam no sacolejo do trem e no embalo do samba.

Ao chegarem ao destino, em Oswaldo Cruz, a 16ª estação do ramal da Central do Brasil, os participantes são recebidos com queima de fogos e existem várias rodas de samba espalhadas pelo bairro com renomados artistas populares. A cada ano, o evento ganha novas atrações. Nas últimas edições, foram criadas as “tendas do conhecimento”, com debates acadêmicos sobre o samba, o subúrbio e sua história e foi criado um tour pelo bairro, organizado por agência de turismo especializada em atrativos histórico-culturais.

A expressão cultural identitária de um grupo suburbano é hoje, 20 anos depois, um evento de massas conhecido internacionalmente e organizado com os sofisticados recursos da indústria cultural. Por iniciativa do prefeito de Nice, o Trem do Samba desembarcará também na França.

http://www.tremdosamba.com/2014/

A festa popular, que reivindicou tradições de um passado histórico apropriado às suas demandas do presente (e aqui é uma leitura própria a partir da ideia de Hobsbawn e Ranger (1990)), foi ressignificada, ganhou o mundo, mas não perdeu, no íntimo, o charme do samba e da alma suburbana, os seus principais atrativos.

Axé!

 


Sobre a Copa do Mundo e o turismo sul-americano

27/07/2014

Por Valeria Guimarães

 

Não é de hoje que sabemos que turismo e esporte estão intimamente ligados. Na sua forma moderna, são duas práticas sociais gestadas simultaneamente, com as transformações sócio-culturais e econômicas decorrentes da modernidade, inclusive o desejo de se praticar o lazer ao ar livre. Já comentamos aqui que o turismo, nos primórdios do século XX era considerado uma modalidade esportiva. Viajar por esporte ou viajar para ver ou praticar algum esporte sempre fez parte da cultura do turismo moderno.

Neste post atenho-me à chamada invasão argentina, a chegada em massa dos hermanos amantes do futebol às cidades-sede dos jogos de sua seleção na Copa do Mundo do Brasil, quer dizer, da FIFA, no Brasil. Voltando ao post do nosso amigo André Alexandre Guimarães Couto referente à retórica da imprensa esportiva sobre o Maracanazo e o agora “Mineirazo” (https://historiadoesporte.wordpress.com/2014/07/13/por-que-nao-esquecemos-de-1950/), é possível fazer o mesmo exercício e perceber os discursos construídos por setores expressivos da imprensa e também por alguns profissionais do turismo sobre a presença dos “durangos” (e esse termo tomo de empréstimo da imprensa) argentinos entre nós, fala sempre recorrente e depreciativa.

Nos estudos acadêmicos em turismo muito se propala a importância da relação turismo e inclusão social em nossos dias. O turismo não mais como um privilégio, mas como um instrumento de democratização que está diretamente ligado ao direito ao lazer. Na prática, o que vimos na cobertura dos jornais, salvo raras exceções, e nos depoimentos de alguns especialistas do turismo foi um total ataque ao que parecia-lhes ser uma invasão bárbara: sujeitos taxados de despossuídos e mal educados que não queriam ou não podiam pagar pelos caríssimos serviços necessários à sobrevivência no país da Copa e causavam constrangimentos aos residentes, não deixando nada de positivo por aqui. Choveram comentários intolerantes e xenófobos dos leitores ao final das matérias publicadas nos sites da imprensa e nas redes sociais. Essa motivação, sem dúvida, veio da repetição explícita ou velada no discurso dos formadores de opinião de que o argentino é um povo desordeiro e indesejável, apimentada, é claro, pela rivalidade futebolística.

Uma apresentadora de televisão assim se referiu à fan fest na final da Copa: “Vamos ver como está o tumulto na fan fest lá na Praia de Copacabana”, em alusão à presença massiva dos argentinos. Não se viu na matéria nenhum tumulto e ela não se referiu assim a nenhuma outra fan fest. A repórter, que fez sua participação ao vivo do local, relatou com entusiasmo uma grande festa e entrevistou alguns dos animados participantes, contrariando as expectativas da apresentadora.

Por outro lado, muito se endeusou o comportamento dos alemães durante a Copa e de outros povos vindos do hemisfério norte. Ao mesmo tempo, já é frequente entre nós em fontes diversas, como os jornais e os blogs de viagem, a publicação de dicas de como gastar pouco viajando pela Europa, recado destinado a todos os públicos, especialmente aos intercambistas e mochileiros, e visto como uma atitude “cult”, moderninha e descolada.

Nosso maior emissor de turistas, em qualquer época e não só durante os megaeventos ou alta temporada, entretanto, sofreu com uma avalanche de matérias depreciativas e com as críticas do setor turístico sobre os seus gastos muito contidos. E reforçaram-se as desigualdades e estereótipos pelo turismo. Li as opiniões de alguns profissionais em turismo conceituadíssimos no mercado e influentes formadores de opinião a respeito de o turismo não ser para qualquer um, que esse não era o público pretendido por não deixar nenhum legado financeiro e sujar a cidade, envergonhando a todos.

Antes de culpar o visitante e taxá-lo de indesejável, cabe refletir muito seriamente sobre o assunto e questionar por que não planejamos e não criamos condições para receber os vizinhos amantes do futebol e turistas costumazes e apenas fizemos propaganda turística em seus países, aguçando ainda mais o seu desejo de nos visitar. Isso incluiria reconhecer que seria preciso garantir que esse público também pudesse se instalar e gastar na cidade, com serviços e preços mais acessíveis a esses visitantes e também aos moradores, que sofreram com o alto custo de vida provocado pela Copa do Mundo. Da mesma forma, por que não instruímos os visitantes sobre as leis em nosso país e não fomos tão atuantes nos casos de comportamentos indevidos de alguns, como nos episódios de racismo?

Em resposta, o que se viu e tanto incomodou foram o improviso, a sobrevivência precária, mas também o direito conquistado de estar aqui e desfrutar, cada um à sua maneira, desse evento caríssimo do qual muito poucos de fato saíram lucrando.

Na contramão desse discurso corrente, autoridades municipais e estaduais têm dado declarações sobre a importância de se criar para 2016 uma infraestrutura na cidade-sede das Olimpíadas para acolher os viajantes sul-americanos que chegarem em seus veículos particulares, acomodando-os em campings em áreas públicas. Uma posição sensata que vem tardiamente com o aprendizado da experiência da Copa.

Fato é que as Olimpíadas estão quase aí e o Rio de Janeiro precisa melhor se preparar para receber os turistas sul-americanos que praticam viagens em moto-homes, carros particulares, motocicletas e até bicicletas, de forma digna. Conforme foi possível constatar nos estudos desenvolvidos para o doutorado no SPORT, sob a orientação de Victor Melo, a cultura do turismo argentino é o rodoviarismo, desde os tempos em que o país era um dos mais ricos do mundo e construiu uma belíssima malha rodoviária, das mais modernas do planeta. Foi um dos pioneiros nesse tipo de turismo, que está entranhado na alma do viajante platino. Do mesmo modo, o esporte está intrinsecamente ligado à cultura do argentino moderno, fato que se vê historicamente com as intensas influências, adaptações e inovações feitas a partir das correntes imigratórias européias para a Argentina na virada do século XIX e primeiras décadas do século XX.

Para encurtar a história: amei a farofa argentina porque foi possível ensinar a uma cidade caríssima que pretendeu ser vendida unicamente aos viajantes mais abastados que um megaevento esportivo que mobiliza a paixão de pessoas de todas as classes pode e deve ser acessível e que a mesma precisa se planejar para acolher de forma hospitaleira todos que a visitam.

A lição que fica é que o turismo brasileiro poderia ter saído ganhando muito mais se o público-alvo idealizado como o turista desejável na Copa do Mundo não fosse unicamente aquele que utiliza os serviços mais requintados e gasta muito em pouco tempo de permanência no destino. E quanto às queixas de desordens provocadas pelos visitantes “durangos” argentinos e de outras nacionalidades sul-americanas, que estes que criarem algum tipo de constrangimento em nossa casa sejam punidos na forma da nossa lei, mas que não generalizemos nem sejamos xenófobos com o nosso principal visitante o ano inteiro ou com qualquer outro que queira ter o prazer e o direito de participar dos maiores espetáculos esportivos do mundo, num congraçamento dos povos dentro e fora das caríssimas arenas.

2016 vem aí.


A santificação de um surfista carioca

24/03/2014

Por Valeria Guimarães

Sabe quando a gente tem planos de escrever um post sobre aquele tema de nossa pesquisa, que nos dá segurança de escrever com algumconhecimento de causa e de repente é surpreendido por algo que faz mudar o rumo da prosa e nos leva a pisar num terreno novo e movediço? Pois é. Aconteceu com este post.

A edição do jornal carioca O Dia do último domingo, 23 de março de 2014, trazia uma matéria com o curioso título “Túmulo de surfista que pode virar santo atrai romeiros”. O texto ressalta a intenção de abertura de um processo por autoridades eclesiásticas brasileiras no Vaticano, no próximo mês de maio, para a beatificação de Guido Vidal França Shäffer.

A beatificação, se reconhecida, será a primeira conquista rumo ao processo de santificação de Guido, uma aspiração de sua família, da Igreja Católica do Rio de Janeiro e de um crescente número de pessoas do país e do exterior que vem recorrendo à intervenção de Guido no alcance de alguma graça, havendo, inclusive peregrinações organizadas ao seu túmulo, no Cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. De acordo com o jornal O Dia, já existem relatos de milagres alcançados por devotos de Guido. Esses milagres estão sendo documentados para comporem o processo junto ao Vaticano.

Um santo surfista carioca. Assim é que tem sido trabalhada pela mídia a imagem de Guido, um médico e seminarista, também filho de médico, que morava em Copacabana e era praticante de surf no mar do Arpoador, onde ensinava jovens e adultos a praticar o esporte. Foi num acidente justamente quando surfava que Guido perdeu a vida precocemente, aos 34 anos de idade, em 2009.

A trajetória de vida de Guido, que se tornaria padre no ano em que ocorreu a sua morte, está ligada à dedicação aos mais necessitados tanto pelo trabalho pastoral quanto pelo ofício de médico. Residia na Santa Casa de Misericórdia e organizava grupos de oração na Igreja Nossa Senhora da Paz, em Ipanema, sendo amigo do Padre Jorjão, um dos principais elos de ligação da Igreja Católica com o público jovem.Para Dom Roberto Lopes, delegado episcopal para a Causa dos Santos da Arquidiocese do Rio, Guido era “um São Francisco Carioca”.

O que me chama a atenção nessa interessante história e me motiva a trazer o tema para este blog de história do esporte é o forte destaque dado ao surf, marcando uma identidade jovem e um ideal de saúde e plenitude do esporte ao lado da vida vocacional e de uma possível santificação.Além do título da matéria do jornal e de outras já publicadas, um livro lançado no ano passado e um documentário com data de lançamento para este mês ressaltam em seus títulos a condição de surfista de Guido.

o diaMatéria de O Dia sobre o lançamento do livro O anjo surfista, com imagens de Guido em ação no mar e na Igreja (20 de junho de 2013)

 

 

Como já escreveram Rafael Fortes (2011) e Ana Carolina Cruz (2012), pesquisadores do Sport e autores de trabalhos sobre o surfe carioca, historicamente o esporte, que chega a configurar uma subcultura, esteve relacionado a movimentos de contracultura, com um forte corte de classe (as classes média e alta), concentrado na Zona Sul carioca e muito estigmatizado como uma cultura marginal (ou pelo menos como uma adaptação à cultura de consumo), tendo muitos de seus praticantes sofrido, inclusive, repressão policial.

Essas imagens foram sendo ressignificadas ao longo das 3 últimas décadas com o interesse das grandes marcas de roupas, equipamentos e acessórios que compunham a linha surfwear e se tornaram febre mesmo entre os jovens que viviam distantes do litoral carioca. Somado a isso, uma mídia especializada (que Rafael Fortes chama de mídia de nicho) e os movimentados campeonatos de surfe integrados a circuitos internacionais, entre outros fatores, foram dando uma nova cara ao esporte.

Os estigmas foram sendo desfeitos e a subcultura do surfe passou a incorporar novos valores, inclusive os da geração saúde e de inclusão social, possibilitando a construção de um imaginário contemporâneo de juventude suficientemente forte e compatível com a imagem de um santo, que no auge da sua vida e em plena prática esportiva no mar (“lugar onde realizava seus melhores encontros com Deus”, segundo seu biógrafo) perdeu a sua vida trágica e precocemente.

A biografia de Guido, lançada em junho de 2013  no contexto da Jornada Mundial da Juventude, sediada no Rio de Janeiro, tem como título “O anjo surfista”. Como subtítulo, a condição de surfista também aparece em primeiro lugar: “a verdadeira história de um surfista e médico que, prestes a se tornar padre, transformou-se em anjo”, com 176 páginas, publicada pela editora Leya, uma casa editorial com grande penetração em Portugal, Angola e Moçambique. Manuel Arouca, o autor da obra, aliás, é moçambicano radicado em Portugal. Certamente a obra alcançará esses países católicos de língua portuguesa.

 

livro anjo

Capa da biografia deGuido Schäffer

 

Guido era uma forte liderança na ala jovem da Igreja e, sem dúvida, a intensa associação entre a sua imagem, a ser santificada, e a prática do surfe reforçam a comunicação com um público-alvo tão valioso para a renovação e fortalecimento da Igreja Católica, o jovem, ao mesmo tempo em que vê algo de sagrado na antes reprimida prática do surfe.

Salve São Guido!

Referências

AROUCA, Manuel. O anjo surfista. Rio de Janeiro: Leya, 2013.

BARROS, Maria Luiza. Túmulo de surfista que pode virar santo atrai romeiros. O Dia, 23 de março de 2014. Disponível em: < http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-03-22/tumulo-de-surfista-que-pode-virar-santo-atrai-romeiros.html>. Data de acesso: 23 de março de 2014.

CRUZ, Ana Carolina Costa. Mulheres nas pranchas: trajetórias das primeiras competidoras do surfe carioca (década de 1960). Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012 (dissertação de mestrado em Educação Física).

FORTES, Rafael. O surfe nas ondas da mídia: esporte, juventude e cultura. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011.

SCHOTT, Ricardo. Mergulho divino. O Dia, 20 de junho de 2013, p.3.