“A pau e à espora”: rinhas de galo em Porto Alegre na virada dos oitocentos

02/06/2020

Cleber Eduardo Karls
cleber_hist@yahoo.com.br

Uma das marcas históricas da formação do Rio Grande do Sul, e por sua vez, da sua capital, Porto Alegre, é a relação estreita entre os homens e os animais. Esta intimidade, que foi construída a partir de um cotidiano muito ligado as coisas do campo, onde o sul rio-grandense esteve muito próximo aos animais, tanto no seu trabalho, na criação, no transporte, ou ainda nas constantes guerras que tiveram o sul do Brasil como palco, consolidaram esta união na própria personalidade deste povo.

Independentemente das inúmeras influências culturais que aportaram pela cidade de Porto Alegre no decorrer dos séculos XIX e XX, esta relação próxima aos animais foi uma característica marcante dos brasileiros de grande parte do Rio Grande do Sul. Dado esta peculiaridade, os esportes em que os animais foram parte integrante nas disputas obtiveram uma apreciação muito grande entre os gaúchos. Também é possível afirmar que características particulares no exercício destas modalidades em Porto Alegre se firmaram em relação ao resto do País. Enfim, os esportes se adaptaram às realidades locais e se moldaram “à gaúcha”.

No caso de Porto Alegre, os ajustes entre o rural e o urbano, entre o tradicional e o moderno, ajudam a entender algumas práticas populares na capital sulina. Articuladas com importantes temas do momento, indícios da gestação de uma sociedade do consumo e espetáculo, atividades como as emocionantes touradas gaúchas ou o “civilizado” turfe, nos permitem perceber como os diálogos com as ideias de modernidade foram originais, eivados de peculiaridades, solicitando-nos um olhar atento e disposto a captar a sua complexidade.

No entanto, nem todas as diversões que se apoiavam nos animais como protagonistas assumiam esse status glamoroso. Essa questão, no entanto, não significa que não gozavam de grande predileção entre os porto-alegrenses ou que não estivessem embebidos de sofisticação. É o caso das rinhas de galo e frango, que tiveram uma grande difusão na Porto Alegre do século XIX e início do XX. É latente a indicação de que não existe uma relação direta do tamanho dos animais com a sua apreciação. Bem menores que os touros ou os cavalos, as pelejas promovidas na cidade entre as aves, também atraiam um grande público. Os locais eram diversos e aptos a esta prática, os rinhadeiros.

Acontece que o caráter popular e de certa forma mais acessível aos desportistas que quisessem apostar ou participar enquanto criadores não pode ser subestimado. Esta prática também não pode ser entendida apenas como uma ação amadora ou doméstica. Assim como os cavalos do turfe que tinham a sua refinação racial celebrada pelos criadores, com matrizes importadas da Europa que objetivavam um maior desempenho nos hipódromos, também se buscava o requinte biológico das aves através da importação de reprodutores. A criação era feita em “coudelarias” especializadas nestes animais. O que, aparentemente, pode ser considerado uma prática rural e amadora era tratada com muita seriedade pelos desportistas porto-alegrenses.

Desde a segunda metade do século XIX temos notícias de rinhadeiros funcionando no centro de Porto Alegre com uma proposta já empresarial. É o caso das rinhas de galo promovidas em 1877 por Fulvio Piacenza & Comp. em plena Rua dos Andradas, principal via da cidade. Para fazer parte da diversão era necessário se associar antecipadamente, para então, ter a entrada autorizada no estabelecimento. Dentre as várias “arenas” porto-alegrenses, foram alvo de repetidas crônicas pela imprensa da época o rinhadeiro São João, localizado no Areal da Baroneza, o São Manoel, no bairro Moinhos de Vento, mas, principalmente, um estabelecimento público denominado Sport-Club que estava instalado na Rua General Lima e Silva, atual bairro Cidade Baixa. Era o que recebia os maiores públicos.

As disputas nestes locais eram diversas, com torneiros de galos, frangos, modalidade “a pau”, “à espora”, que faziam a alegria do público que costumava lotar os ringues, principalmente aos domingos. Por vezes, “gordos churrascos” acompanhavam as disputas.

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Jornal do Commércio, 07/12/1907.

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O sucesso desta modalidade esportiva atraía representantes das mais variadas classes sociais, o que, para muitos, era um desconforto esta convivência. Para os incomodados, a expectativa era que os locais se preparassem cada vez mais para receber os sportman que se constrangiam em acotovelar-se com indivíduos de classes “inferiores”. Isso seria possível com os clubes privativos, uma solicitação de parte do público amante das brigas de galo que requeria a estratificação dos aficionados.

Seguindo a mesma tendência dos outros esportes, a estrutura dos rinhadeiros foi se desenvolvendo, proporcionando mais conforto e se tornando mais atrativa àqueles que ali gostariam de se divertir e fazer suas apostas. Exemplos são o novo chalé construído em 1905 na Praça São João, com amplos salões destinados a rinha, assim como em 1909, quando se inaugurou um inédito rinhadeiro cujos sócios eram os amadores e veteranos do antigo Sport-Club. Este se denominou Rinhadeiro Popular, a Rua Três de Novembro, atual Desembargador André da Rocha, no centro da cidade. A nova estrutura, realmente, trouxe um inédito suporte ao entretenimento, com buffet, bancadas, novos tambores, gaiolas para a guarda dos animais enquanto esperam o momento da sua luta e um novo sistema de iluminação elétrica. Um inédito aparato que objetivava atrair cada vez mais os amantes do esporte em um processo de inserção das rinhas em uma crescente indústria do entretenimento.

Acontece que os esportes que envolvem animais e, principalmente, lutas entre eles, estavam seguidamente sofrendo ofensivas contrárias a sua prática, assim como as touradas e as apostas nos cavalos. As justificativas se baseavam em ideias moralizadoras que contrariavam estas ações. Com os rinhadeiros não foi diferente. No entanto, os defensores das rinhas intervinham, argumentando que todas as práticas esportivas tinham um fundo de “ignorância” e “ridículo”. A comparação se dava diretamente aos outros esportes com animais, tão ou mais populares que as rinhas, como as corridas de cavalo e as touradas. As chibatas e pontas de ferro nos cavalos, a morte de um touro com o coração transposto por uma lâmina de espada seriam exemplos de como as rinhas não eram em nada superiores a barbárie e ao que já estava sendo praticado e tido como virtuoso. Por outro lado, diziam seus defensores: nas rinhas estava a melhor sociedade!

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Em defesa de arquibancadas mais plurais: rememorando a Coligay

17/02/2020

Luiza Aguiar dos Anjos (IFMG – Campus Formiga)

No dia 27 de março de 1977, o Grêmio fez sua estreia na 57ª edição do Campeonato Gaúcho de Futebol. O clube iniciava sua caminhada no torneio com a esperança de acabar com um longo período sem títulos, assim como interromper a série de conquistas estaduais do rival Internacional, que vinha de uma sequência de oito taças consecutivas, sagrando-se campeão anualmente desde 1969. Para agravar o incômodo gremista com o sucesso do principal adversário, a equipe colorada não se impunha apenas em seara local, tendo sido bicampeã nacional ao conquistar a Copa Brasil de 1975 e de 1976.

Ao longo da competição, os dois maiores times do estado fizeram o que se esperava deles: superaram os demais e decidiriam entre si quem seria o campeão estadual daquele ano.

O jogo derradeiro foi disputado no Estádio Olímpico. Em casa, em frente à sua torcida, era que o Grêmio buscaria encerrar aquele infeliz jejum de títulos.

O teor dramático da partida começou quando, aos 22 minutos de jogo, foi marcado um pênalti a favor do Grêmio. O atacante Tarciso, batedor oficial do time e com boa média de acertos, mandou uma bomba à esquerda do goleiro colorado, mantendo o empate sem gols. Mas não tardou para o placar ser inaugurado. Em um embate de ânimos cada vez mais exaltados, aos 42 minutos, ainda no primeiro tempo de jogo, o atacante André Catimba fez a festa dxs[1] gremistas. O momento tornou-se ainda mais memorável com a comemoração. O jogador tentou um salto mortal, mas interrompeu o movimento no meio do caminho, ao sentir uma distensão muscular, caindo de forma completamente desajeitada. Com a aproximação do fim da partida, a torcida tricolor não conteve a comemoração, pulando das arquibancadas e ocupando o campo. Trinta minutos passados da invasão, sem condições de retomar o jogo, o árbitro declarou seu encerramento. Após oito anos, o Grêmio voltava a levantar a taça de campeão estadual.

Em meio ao furor dessa conquista, na edição do dia seguinte à partida, o jornal Zero Hora – periódico mais popular do Rio Grande do Sul – reservou uma página inteira para tratar da história da constituição de uma nova torcida gremista que, desde o início do Campeonato Gaúcho, chamava a atenção dxs frequentadorxs do Estádio Olímpico: a Coligay.

Recorte da reportagem da Zero Hora sobre a Coligay (26/09/1977)

Como o nome indica, essa torcida era formada predominantemente por homens homossexuais, o que já parece ser motivo de surpresa e curiosidade no contexto futebolístico brasileiro, no qual a heterossexualidade, mais do que tomada como norma, é enfatizada como valor. Contudo, tal agrupamento fez-se notório não (apenas) porque explicitava a homossexualidade de seus integrantes em sua retórica, mas, sobretudo, porque fazia de tal identidade sexual o norteador de sua performance estética nas arquibancadas: trajavam longas batas com as cores do Grêmio, cada uma delas com uma letra na frente que formava o nome do clube, complementadas por “rebolados frenéticos e gritinhos um tanto histéricos” (TORCIDA…, 1977, p.42).

Coligay fazendo sua festa no estádio Olímpico

A Coligay surgiu da iniciativa do empresário gremista Volmar Santos. Ele teve a ideia, liderou a mobilização e realizou as articulações financeiras e logísticas necessárias para efetivar sua formação. Volmar era proprietário da boate gay Coliseu e foram seus frequentadores quem ele convidou para fundar a torcida. A boate acabou servindo como sede. Xs componentes iam ao Coliseu no sábado, viravam a madrugada, e, na manhã seguinte, ali mesmo, pegavam seus apetrechos ali armazenados, se organizavam e seguiam para o estádio em que o Grêmio fosse jogar.

Num primeiro momento, o gremismo da torcida foi questionado, mas sua animação e assiduidade fizeram com que conquistassem o reconhecimento dx torcedorxs, jogadores e dirigentes. Prova disso é que a Coligay se manteve em atividade nos estádios até os primeiros anos da década de 1980.

Existindo durante os violentos tempos de ditadura militar, se esquivaram da repressão governamental ao não se envolver com a militância política e por possuir entre seus integrantes ou apoiadores “gente importante”, segundo o líder Volmar (FONSECA, 1977). Também não buscaram compor uma militância homossexual mais ampla ou organizada – o que também poderia fazer deles alvos do policiamento. Baseavam sua atuação na festa. O que não é pouco.

É inegável que o estádio de futebol privilegia um tipo bastante específico de masculinidade, associada, sobretudo, à virilidade e à agressividade, traços também enfatizados na cultura gaúcha. A reafirmação desses valores perpassa com frequência pela definição e representação dos homossexuais como a antítese desse modelo de masculinidade, o que os legitimou como alvos históricos da violência verbal e, por vezes, física de torcedorxs de futebol. A Coligay acaba por desarticular a expectativa de desencaixe e inadequação de homens homossexuais ao espaço futebolístico, sem que ela tenha se mostrado uma torcida “igual às outras”. Ela compactuou com códigos do futebol, se dispondo ao confronto físico e verbal, empunhando bandeiras e apoiando intensamente a sua equipe. Por outro lado, impôs seus requebros, suas vestimentas espalhafatosas, seu linguajar debochado e provocativo.

Nos últimos anos, a participação de sujeitos LGBT+s nos esportes, e mais especificamente no futebol, tem se tornado um tópico de análise e discussão. Torcidas, jogadorxs, clubes e federações, que durante décadas ignoraram a existência de tais sujeitos – e mesmo contribuíram com sua invisibilidade – têm sido convocados a responder e agir sobre alguns dos processos que xs mantém à margem, com destaque para as manifestações homofóbicas, mas não apenas. A mídia tem contribuído com isso ao tratar esses temas de forma mais frequente e crítica.

Nesse processo, a Coligay tem sido relembrada, após algumas décadas de esquecimento (ou ocultação). Sem supor uma idealização dessa torcida, acredito que ela nos ajuda a perceber que outras experiências de torcer, mais plurais, são possíveis.

 

Referências

FONSECA, Divino. Para o que der e vier. Placar, n.370, p.48-50, 27 mai. 1977.

TORCIDA: Coligay: história e pedágio da vitória. Zero Hora, Porto Alegre, p.42, 26 set. 1977.

 

Para saber mais:

Esse texto foi elaborado a partir da minha Tese de Doutorado, abaixo identificada. Nesse ano, publicarei um livro baseado nessa pesquisa, com acréscimos e adaptações. A obra, lançada pela Editora Dolores, será intitulada “Plumas, arquibancadas e paetês: uma história da Coligay”.

ANJOS, Luiza Aguiar dos. De “São bichas, mas são nossas” à “Diversidade da alegria”: uma história da torcida Coligay. 2018. 388f. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) – Faculdade de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.

[1] Utilizo o “x” com o intuito de adotar uma linguagem não-binária. A escolha visa descaracterizar a ideia de que as palavras são masculinas ou femininas, assim como a utilização do masculino como referência. Ao usar o “x” busco contemplar igualmente homens, mulheres e aqueles e aquelas que fogem da norma binária. Especificamente nos momentos em que for tratar de agrupamentos que possuem exclusivamente pessoas identificadas como homens mantenho o uso do masculino.


Francisco Pontes, o “Manolete” do Brasil

28/07/2019

por Cleber Eduardo Karls
cleber_hist@yahoo.com.br

Em recente visita a um importante centro de prática e estudos sobre as touradas no mundo, a cidade de Córdoba, região da Andaluzia, na Espanha, pude sentir de perto toda a fascinação que os espanhóis possuem pela prática, assim como toda a sua significação histórica e identitária. Os toureiros, assim como os touros, são admirados e elevados a celebridades carregadas de virtudes. Nesse contexto, se destaca um personagem no cenário local, Manuel Laureano Rodríguez Sánchez, mais conhecido como Manolete, nascido em Córdoba em 1917 e falecido em Linares, também na Espanha, em 1947, com apenas 30 anos de idade após um golpe fatal de um touro Miura.

Sua morte comoveu país inteiro, sendo que, na época, o próprio ditador Franco ordenou três dias de “luto nacional”, durante os quais hinos fúnebres eram ouvidos no rádio. Em 2007 foi realizado um filme sobre a sua vida, “Manolete – Sangue e Paixão”. Tanto no Museu Taurino de Córdoba, quanto pelas ruas estreitas da cidade histórica, são inúmeras as referências a este, que pode ser considerado o mais celebrado toureiro de todos os tempos.

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Busto de Manolete – Museu Taurino de Córdoba

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No entanto, não foi somente no velho continente que esta admiração pelos astros da tauromaquia pôde ser notada. Guardadas as devidas proporções e o cuidado com as anacronias, o Brasil também teve o seu astro dos redondéis, o português Francisco Pontes, um dos mais notáveis toureiros a atuar no Brasil. Seu destaque se deu em grande parte do território brasileiro onde comandava um circo de touros itinerante. No Rio de Janeiro, se tornara um dos grandes responsáveis pela popularização da tauromaquia no século XIX, por sua notável performance nas arenas, por sua capacidade de organizar espetáculos de qualidade e por seu constante envolvimento com a filantropia. Pontes era considerado o maior artista tauromáquico a visitar o Brasil.

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Francisco Pontes
O Toureiro, 1877

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Em Porto Alegre, Pontes tornou-se, também, renomado. Na temporada de 1881, chegou a receber de presente uma valsa, “Primavera”, composta por João Fernandes de Souza Lima, a ele oferecida como prova de simpatia e admiração pelos seus méritos artísticos.

O toureiro sempre procurava retribuir o carinho do público. Por exemplo, nas corridas de 11 de agosto de 1889, tanto os bilhetes de sol como os de sombra foram acompanhados de seu retrato, que poderia ser retirado pela pessoa que os comprar antes de entrar para a corrida. Explicitamente desejava agradecer o público e a imprensa da capital sulina, pela maneira generosa que o acolhera, revelada nos abundantes aplausos prodigalizados à sua companhia e na valiosa proteção que lhe foi dispensada.

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Arena de touradas, Porto Alegre, 1909 (ver fundo da imagem)
Disponível em: https://lealevalerosa.blogspot.com/2010/05/circo-de-touros-em-porto-alegre.html

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Ainda que em algumas ocasiões houvesse ressalvas à atuação da companhia de touros, em geral os toureiros, além de Pontes, receberam grande destaque, ressaltando-se sua destreza e coragem. Lourenço Delgado, por exemplo, tornou-se um ídolo por sua capacidade de realizar técnicas muito distintas e arrojadas. Geminiano de Carvalho ganhou fama por ser um “artista ginástico”. Isso tinha relação com o fato de que tinha força para suspender um touro, bem como porque aceitava desafios de luta romana, realizados em plena arena.

Nas corridas de Porto Alegre houve mulheres lidando com os touros. Em 1889, atuaram Petrona Nogueira, Maria Soares e, com muito destaque, a espanhola Maria Dolores, considerada “valente e corajosa heroína”. Ela chegou a enfrentar um touro com “aspas nuas”, além de encarar o quase onipresente Tigre Rochedo, afamado touro.

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Arena de touradas, Porto Alegre, 1901 (ver fundo da imagem)
Disponível em: https://lealevalerosa.blogspot.com/2010/05/circo-de-touros-em-porto-alegre.html

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Já na temporada de 1875, se apresentara Julia Rachel, casada com o afamado toureiro Miguel Tranzado, anunciada como a única neste difícil trabalho em toda a América do Sul. Suas proezas eram anunciadas com grande alarde, o mesmo que ocorreu com outra pioneira, que atuara nas corridas de 1881: Zulmira da Conceição.

Como era usual em outras cidades, também em Porto Alegre foram organizadas touradas com fins beneficentes, uma iniciativa que ajudava a aumentar o reconhecimento social para com a prática. No caso das corridas que promoveu Pontes, era também uma forma de expressar sua vinculação a certas causas políticas, como as abolicionistas, por exemplo.

No Rio de Janeiro, o toureiro se envolveu profundamente com a luta contra a escravidão. Na capital gaúcha, uma das ocasiões em que isso se manifestou foi em uma sessão dedicada à Sociedade Floresta Aurora, uma ativa agremiação de negros.

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Em tudo o que pudemos verificar nas touradas do século XIX no Brasil, nenhum outro “artista” tauromaquico logrou tanto sucesso quanto Francisco Pontes. Manolete na Espanha ou Pontes no hemisfério sul, o fato é que este desafio entre o homem e o animal, entre a força e a habilidade, aflorava sentimentos extremos por onde fora praticado. Na capital do império ou na Província de São Pedro, o toureiro conquistou o seu público, sua fama e está marcado na História. Afinal, o Brasil também tem o seu Manolete.

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Para mais informações:

* Tradição e modernidade: as touradas na Porto Alegre do século XIX
Cleber Eduardo Karls, Victor Andrade Melo
História Unisinos, v. 18, n. 2 (2014)
http://revistas.unisinos.br/index.php/historia/article/view/htu.2014.182.11


A história do esporte gaúcho: um caso único

23/09/2017

por Cleber Eduardo Karls
cleber_hist@yahoo.com.br

A história do esporte do Rio Grande do Sul apresenta uma série de peculiaridades que o tornam caso singular no Brasil. O estado mais austral do país, devido a fatores diferenciados como as suas características geográficas, sua relação e integração com a fronteira nacional, além de uma formação étnica singular, o tornam distinto. É fácil visualizar diferentes percepções e uma relação única entre a tradição e a inovação. No extremo sul do Brasil o novo e o tradicional se fundem, se acomodam e se integram de maneira diferenciada em relação ao resto do país. Foi esta mescla que formou o esporte gaúcho, sempre aliando o moderno ao conservador e o caracterizando de maneira original.

Para exemplificarmos estas questões basta fazermos uma simples análise e uma comparação que pode parecer, inicialmente, um tanto desconexa: e relação entre as touradas e o turfe praticado em Porto Alegre no século XIX com a construção da Arena do Grêmio, inaugurada no final de 2012.

No caso das touradas, a relação dos circos de touros com os gaúchos era especial. Basta dizer que as mesmas companhias tauromachicas que se apresentavam por todo o Brasil e pelos países do Rio da Prata, também excursionavam por Porto Alegre e pelas principais cidades do estado. No entanto, para atrair o público sulista, atrações diferenciadas eram oferecidas. “Touritos” eram ofertados para as crianças brincarem, assim como autênticos “campeiros” disputavam a bravura com os artistas portugueses e espanhóis frente aos touros. Uma postura totalmente diferente do que acontecia, por exemplo, no Rio de Janeiro, capital imperial até 1889, onde as touradas eram vistas como praticas que beiravam a barbárie. No Rio Grande do Sul, nada mais era que um divertimento que trazia o cotidiano campeiro para a cidade e entretinha o povo urbano.

Da mesma forma, o turfe dividia opiniões. Se, por um lado, a prática do esporte inglês em substituição às consideradas “selvagens” carreiras de cancha reta exigia novos modos, técnicas, regras e ambientes que o tornasse cada vez mais próximo ao que era desenvolvido no velho continente, havia, também, muitos representantes que eram partidários, pelo menos em parte, às velhas disputas, obsoletas aos mais progressistas. Os cavalos puro sangue ingleses, representantes da mais refinada raça de acordo com os europeus, ficariam ainda melhores se cruzados com os equinos crioulos, diziam os periódicos porto alegrenses de grande circulação da época. Os jockeys britânicos possuíam eficientes técnicas, mas não se comparavam aos “centauros dos pampas”, como eram chamados os cavaleiros gaúchos. Cavalos mestiços, jockeys de bombacha e categorias diferenciadas fizeram do turfe gaúcho oitocentista outro caso especial. Enquanto em São Paulo e Rio de Janeiro, centros econômicos e políticos do Brasil, o discurso era favorável a cópia da prática britânica, nos hipódromos do Rio Grande do Sul os cavalos crioulos e seus ginetes eram celebrados.

Chegando ao século XXI, temos outro exemplo desta peculiar relação do Rio Grande do Sul com a tradição e a inovação nos esportes. Foi inaugurado no dia 8 de dezembro de 2012 um moderno estádio multiuso chamado de Arena do Grêmio em substituição ao defasado Estádio Olímpico Monumental que servia de casa ao time do Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense desde 1954. Mesmo sendo um dos mais avançados e modernos palcos para o futebol do Brasil e seguindo as mais exigentes tendências mundiais, o clube decidiu não instalar cadeiras na parte inferior do setor norte, devido a uma reivindicação de parte da torcida. Esta gostaria de se manter fiel a antiga tradição de torcer em arquibancadas e não em cadeiras. Desta forma, a Arena do Grêmio se mostra como mais um exemplo onde o inovador se mescla com o tradicional no esporte do Rio Grande do Sul. Enquanto que vários modernos estádios são construídos pelo mundo, Porto Alegre o faz de maneira excêntrica, aliando tendências contemporâneas com as rústicas arquibancadas.

De fato, a história do esporte no Rio Grande do Sul é peculiar. Sendo nos circos de touros, nos hipódromos ou nos estádios de futebol, os gaúchos tem uma maneira diferenciada de tratar com as renovações. A modernidade gaúcha tem essas especificidades. Adaptações, negociações, acomodações fazem do esporte do Rio Grande do Sul um caso à parte. Se no Brasil e no mundo os esportes se popularizaram, ganharam no extremo sul do país a marca gaúcha.

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Uma festa de atiradores em Santa Cruz do Sul/RS

29/04/2017

por Cleber Eduardo Karls
cleber_hist@yahoo.com.br

A colônia de Santa Cruz, distante 150 km de Porto Alegre, foi fundada em 1849 e elevada a município em 1877. Ela foi um dos principais destinos de milhares de imigrantes de origem germânica que tinham o Brasil como objetivo. Esta especificidade marcou fortemente a cidade que rapidamente se desenvolveu e se tornou um dos principais municípios do Rio Grande do Sul. Em Santa Cruz do Sul as características culturais alemãs se mantiveram vivas, se fundindo e se miscigenando às demais etnias que formaram o povo gaúcho. Nesta região de forte influência germânica os sul-rio-grandenses adquiriram hábitos peculiares que traduzem este marcado hibridismo.

Uma das peculiaridades dos imigrantes germânicos que desembarcavam no Rio Grande do Sul nos séculos XIX e XX era a sua organização em associações culturais e esportivas nos locais onde se reuniam. Em Santa Cruz do Sul não foi diferente. Aliás, foi o município precursor com a primeira associação esportiva destinada ao tiro ao alvo do Rio Grande do Sul, fundada em 1863 e denominada Schützengilde, que significa “corporação de atiradores”.

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Praticamente em todos os centros de imigração alemã existiam clubes de tiro. No entanto, o município se tornou uma referência desta prática. Em 1924, havia pelo menos 81 sociedades de atiradores nas áreas de colonização germânica no Rio Grande do Sul, dentre as quais 30 sediadas no município de Santa Cruz do Sul. Estas associações tinham como objetivo a diversão e a educação. Os clubes de tiro (Schiessklub) ou sociedade de atiradores (Schützverein) eram locais privilegiados e palcos de integração entre os moradores dos municípios.

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Atiradores da Deutscher Schützenverein (Sociedade Alemã de Atiradores) Sinimbu, 1887,
(antigo distrito de Santa Cruz do Sul).

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Nas associações de tiro (Schützenverein) se praticava, assim como nos clubes de caça europeus, o tiro ao alvo, que buscava identificar o melhor atirador entre todos os participantes. As competições de tiro são, portanto, derivadas da prática da caça, necessária a sobrevivência em remotas épocas, assim como são derivadas dos treinamentos militares, responsáveis por preparar os homens para o combate. Com o fim das guerras e da necessidade das caçadas, o tiro ao alvo se transformou em esporte e diversão.

Estas associações cultivavam uma data em especial. Esta festividade era a comemoração mais esperada do ano e se denominava a “festa do tiro” ou Schützenfest. Realizada, normalmente, em um domingo, era marcada pelas provas de tiro, escolha do melhor atirador, através de disputas e grandes festejos com dança, música e cerveja. Tiro ao Rei (Konigschiess) era como se denominava o torneio onde quem tivesse o maior número de pontos era considerado Rei e os seguintes colocados, os cavalheiros. Este grande evento social e cultural era muito comum na região de Santa Cruz do Sul e nas áreas onde esses clubes atuavam.

Ao Rei do Tiro se impunha uma faixa, geralmente de couro com placa de prata e a data da competição. A colocação da fita simbólica no campeão era comemorada com um baile no dia da conquista ou no seguinte, muitas vezes na data de aniversário da sociedade. Na festa a primeira valsa era do Rei com sua acompanhante. Um segundo bailado era dançada pelos Reis e seus pares de outras sociedades de atiradores presentes.

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Festa na Schutzenverein Rio Pardinho

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Diversão, disciplina, esporte, bebida, dança e festa, faziam parte dos clubes de tiro do interior do Rio Grande do Sul. Em Santa Cruz do Sul esta era uma das mais tradicionais festividades. Para além dos grandes centros do país ou até mesmo do Rio Grande do Sul, o desenvolvimento esportivo é o resultado de um conjunto imenso de variáveis que faz dessas pequenas regiões interioranas significativos casos de análise que valem o olhar atento do pesquisador. É, justamente, a diversidade cultural e histórica brasileira e todas as suas peculiaridades que legitimam a sua riqueza.

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“Os espetos se embandeiraram com costelas e matambres que plugavam lágrimas de sangue e gordura sobre as brasas do fogão”: um clube à gaúcha

05/12/2016

Cleber Eduardo Karls
cleber_hist@yahoo.com.br

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Porto Alegre, final do século XIX. Tempos de evolução tecnológica, intensa imigração europeia, desenvolvimento de práticas esportivas e de entretenimento. A principal urbe do Rio Grande do Sul estava perfeitamente inserida em um contexto de modernização e adoção de hábitos ditos civilizados, provenientes, em sua maioria, dos países do Velho Continente. Da mesma forma como as demais importantes cidades do Brasil o antigo Porto dos Casais almejava civilizar-se.

No entanto, antagonicamente a toda esta tendência surgiu no meio urbano da capital sulina uma sociedade voltada ao culto dos antepassados sul-rio-grandenses. Como os próprios identificavam, tratava de “reviver os costumes simples, francos e sãos”. Esta foi denominada Grêmio Gaúcho e foi fundada em 22 de maio de 1898. Entre suas ações corriqueiras estavam atividades culturais e de divertimento, sempre inspiradas no passado do Rio Grande do Sul.

Esta sociedade, no entanto, não era constituída por migrantes ou retirantes rurais na sua maioria, mas, principalmente, por militares e intelectuais. Além destes, “muitos bons doutores e moços da primeira sociedade que passeiam na Rua da Praia”, como pudemos ler no periódico A República de 25 de junho de 1898. O mesmo descreveu uma das festividades promovidas pela entidade, da qual trataremos a seguir.

Os seus festejos pareciam reinterpretar um ambiente rural e pecuarista, característico da região fronteiriça e pampeana do estado, exótica e, de certa forma,  anacrônica aqueles impetuosos nativistas sócios do Grêmio. Inclusive os trajes “do antigo gaúcho”, que já não eram mais os seus do cotidiano passaram a ser evocados e exaltados como a essência da sua existência.

Nesta comemoração realizada em junho de 1898, canções e danças do folclore sulista passaram a ser interpretadas na empolgação do encontro que acontecia na região do bairro Glória: “chegaram mais gaúchos e muitas famílias e desde então começou o baile, ora com danças de categoria polka, ora bailados gaúchos como o anú e a chimarrita”.

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A dança do “anu” interpretada pelo Centro de Tradições Gaúchas Lanceiros de Santa Cruz

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Além do interesse na valorização dos costumes do passado, o Grêmio Gaúcho também procurava exaltar aqueles que considerava grandes personagens do tempo remoto sulino. Expunham paredes ornadas com as armas e os feitos dos farrapos rodeadas pelos retratos de Bento Gonçalves, Netto e Canabarro, líderes da Revolução Farroupilha, além de armas antigas, objetos de uso campeiro, quadros de costumes e poesias populares manuscritas.

Em meio a churrasco, chimarrão e danças, havia uma área específica onde os participantes montados a cavalo pousavam para fotografias, comprovando, definitivamente, que aquele ambiente artificial não era o deles. Conforme o próprio periódico alertou: “não se pensem que eram gaúchos de fora”. Esta estranheza foi ratificada pelo próprio jornalista que depôs e aspirava, de fato, visualizar um gaúcho típico do campo e não aqueles seres urbanos fantasiosos que ali se apresentavam como arquétipo de um tipo ideal que almejavam:

– Acho que aqui falta uma pessoa.

– Quem é? Me perguntaram, a autoridade?

– Não, é aquele gauchito que há pouco tempo desbancou os touros lá no circo; porque esse mocito ao meu ver é a mais viva representação do gaúcho cavalariano, aqui nos redores da capital. Por que não lembram que ele foi fazer de improviso aquilo que os toureiros diziam que era uma grande arte?

– Eu não havia fechado a boca, que me disseram: lá vem ele.

E de fato, chegou o mocito, entrou, pediu para inscrever-se sócio e assinou: Ernesto Weirauch.

De fato, Porto Alegre que estava inserida em um contexto de franco desenvolvimento da indústria do entretenimento apresentava especificidades que a colocavam como caso singular no Brasil. Era uma importante cidade que tinha uma destacada ligação com europeus, principalmente alemães, que foram os propulsores da fundação de uma série de clubes e associações esportivas e de divertimento. Além disso, era um local estratégico de trânsito de companhias itinerantes como as circenses e tauromaquicas que circulavam por todo o Brasil e América, especialmente pelos países platinos dos quais é fronteiriço.

Ao mesmo tempo era uma cidade provinciana, muito ligada ao interior e aos costumes do campo. Estes estavam presentes na lembrança mas já não eram mais os praticados no cotidiano, pelo menos por uma parcela significativa da população. Definitivamente, a capital do Rio Grande do Sul era tudo isso, um local entre o rural e o urbano onde confluíam valores modernos, progressistas e se hibridizavam aos tradicionais. A diversão se fazia tanto através de artistas europeus, clubes alemães, companhias circenses estrangeiras, mas, também, através da exaltação de um passado que se transformou em glorioso pelo olhar dos seus provedores. Estas questões estão latentes tanto na formação social dos gaúchos quanto nos divertimentos e nos esportes.

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Preiskegeln in Porto Alegre: o “bolão” no Rio Grande do Sul

10/07/2016

por Cleber Eduardo Karls
cleber_hist@yahoo.com.br

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O Rio Grande do Sul possui uma série de singularidades em muitos aspectos em relação ao restante do Brasil. No campo esportivo esta é uma constatação bem visível, resultado de um conjunto de variáveis que o fazem um estado peculiar em relação ao restante do país. O bolão, neste contexto, é um exemplo. Este esporte encontrou em Porto Alegre no final do século XIX e início do XX condições favoráveis ao seu desenvolvimento, principalmente, pela grande quantidade de imigrantes europeus, notadamente alemães que são os precursores desta prática e o trouxeram para o sul brasileiro.

Este jogo conhecido popularmente como bolão, também chamado de kegeln, preiskegeln, ou ainda jogo da bola, é uma prática com grande popularidade entre os germânicos e seus descendentes. É uma versão anterior, um pouco diferenciada e mais rústica que o boliche. É o seu antepassado. Existem algumas variações, especialmente em relação ao século XIX e hoje, mas, essencialmente, o objetivo é arremessar bolas de 23 kg sob uma prancha de madeira para tentar derrubar os nove pinos.

Uma possibilidade bem plausível, é que a prática do bolão tenha sido inserida em Porto Alegre através dos imigrantes teutos que ali se encontravam. Visto que este esporte vem de uma tradição nitidamente germânica e que estes adventícios e seus descendentes fundaram uma série de associações esportivas no Rio Grande do Sul, consideramos como relevante esta hipótese. Acontece que temos informações acerca desta prática somente a partir da década final do século XIX, mais de 60 anos após a chegada dos pioneiros germânicos.

Uma primeira informação no Rio Grande do Sul nos remete a cidade de Pelotas, município muito próspero a época e um dos principais destaques econômicos, principalmente pela atividade das charqueadas. É pela ocasião de uma divulgação do Parque Pelotense em Porto Alegre no ano de 1891 que vemos pela primeira vez o jogo da bola ser citado. Associado às grandes atrações que o local possuía, uma espaçosa praça destinada ao recreio onde se encontrava rink, carroussel, balanços, diversos aparelhos de ginástica, equilíbrio e jogos de bola!

Na cidade de Porto Alegre verificamos a existência dos jogos de bola no ano de 1894, visto o aviso de cobrança da intendência municipal para o recolhimento dos impostos que incidiam sobre uma série de atividades, entre elas as agências de loterias, os bilhares públicos e os jogos de bola. Desta forma, é possível inferir que esta já era uma atividade consolidada na cidade, já que possuía até mesmo tributação sobre a sua prática. No entanto, não nos parece, ainda, uma diversão/esporte que se organizava em clubes e associações, o que verificamos posteriormente. E, também, não podemos identificar de forma mais precisa o início desta atividade no município, que somente com o início do século XX se organizaria em agremiações.

No ano de 1901 é que notamos uma maior convergência para a prática do jogo de bola em clubes. É o que aconteceu com o Clube Júlio de Castilhos, pela ocasião da reforma de um prédio situado a rua Sete de Setembro, onde esteve a intendência municipal, e que seria a sua sede. Estas remodelações, realmente, fariam com que o clube possuísse um suporte muito bem estruturado, com salas de leitura, sala de diversões diversas e biblioteca no andar inferior, um restaurante no andar superior, e no extenso pátio, jogos de bola e tiro ao alvo.

Temos notícia, que em março do ano seguinte, 1902, houve um campeonato de bolão no clube Júlio de Castilhos. A partir do ano 1903 estes torneios aconteceram com uma frequência muito grande, tendo uma periodicidade praticamente mensal e, segundo relatos, a sua prática, seu treino, era quase diário entre os amadores. Parece que a partir deste momento os clubes e associações porto-alegrenses passaram a se dedicar, também, a esta atividade. Agremiações que tinham os mais variados objetivos principais passaram a engrossar a quantidade dos amantes do jogo da bola, como a Turnerbund, Radfahrer Verein Blitz, Germânia, Leopoldina, Lemeintziger Verein e Clube 15 de Novembro. Também era constante a visita de competidores de cidades próximas para “desafios”, principalmente aquelas de colonização alemã, como Novo Hamburgo ou São Leopoldo onde a prática do bolão era ampla.

A estrutura dos bolonistas porto-alegrense parece ter se desenvolvido de forma substancial com o desenrolar da primeira década do século XX. Não raras eram as exaltações, a animação existente nas várias canchas da cidade. Segundo a imprensa, era tanto aos domingos quanto nos dias úteis que elevado número de jogadores afluíam nos clubes disputando este esporte.

No ano de 1918 temos notícia da formação de uma “Liga de Grupos de Bola”, que aparentemente se constituiu pelo sucesso do esporte em Porto Alegre. Também, organizado pela Liga, se realizou um primeiro campeonato que recebeu a inscrição de nada menos que treze clubes bolonistas da capital do Rio Grande do Sul. A competição deveria ter sempre um fiscal da liga presente às disputas que se realizavam concomitantemente em canchas de três clubes distintos, cada dia, passando por todas as sociedades em turno e returno. Cada instituição deveria apresentar oito jogadores, devendo cada um deles atirar dez bolas. O “match” ganho contava como dois pontos e o empatado um. O jogador que fizesse o maior número de pontos ao longo de todo o torneio receberia uma medalha de ouro. Para a imprensa da época, os jogos da “Liga da Bola” continuavam despertando franco entusiasmo entre os amantes deste esporte.

É interessante perceber que a prática do bolão se manteve mesmo com a popularização de outros esportes, no mesmo método. Ou seja, eram departamentos autônomos em clubes com finalidades distintas. O bolão permanece sendo praticado atualmente, principalmente no sul do Brasil em cidades com notada influência germânica.

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“Os nobres cruzados porto-alegrenses”: religião, guerra e divertimento na cavalhada de maio de 1870

11/02/2016

Cleber Eduardo Karls
cleber_hist@yahoo.com.br

As cavalhadas eram folguedos comuns na capital do Rio Grande do Sul no século XIX. O cronista Achylles Porto Alegre chegou a registrar que “raramente havia uma festa religiosa ou cívica sem ‘cavalhada”. O escritor ainda sublinhou que estes festejos se inseriram nas tradições locais, tornando-se “uma festa ‘essencialmente gaúcha’, que revelaria a doçura poética romântica e ao mesmo tempo guerreira e cavalheiresca da índole dos sul-riograndenses”.
Consistiam em atividades lúdicas e recreativas, herdeiras de torneios e justas, onde as disputas aconteciam sempre entre dois grupos, divididos entre os azuis que representavam os cristãos e os vermelhos, os mouros. O fundamento da diversão era a dominação e a conversão dos muçulmanos que, invariavelmente, eram derrotados. Acontece que as cavalhadas envolviam uma série de outras características que extrapolavam o seu significado inicial e davam ar de competição a tradição, carregada de especificidades locais.
De que forma poderiam se relacionar de maneira tão intensa um folguedo de essência religiosa, a Guerra do Paraguai e disputadas de habilidade? Um exemplo deste sincretismo ocorreu em Porto Alegre, capital da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul em maio de 1870. A imprensa destacou que entre os dias 15, 16 e 17 daquele mês seria promovida uma grande cavalhada em homenagem ao fim da Guerra do Paraguai. Com a participação dos Voluntários da Pátria, a presença do Presidente da Província, e assado com couro como demonstração da tradição regional, os festejos aconteceriam no conhecido palco do entretenimento da cidade, o Campo da Redenção.
A vitória dos cristãos sobre os muçulmanos ganharia nova interpretação naquele momento, onde a imprensa bem descreveria esta nova representação com a chegada do 39º Batalhão de Voluntários da Pátria a Porto Alegre. Na véspera do dia designado para a primeira corrida, regressaram aqueles que seriam os próprios “atores” da festa. Estes foram exaltados em A Reforma de 08 de junho de 1870: “eram os nobres cruzados porto-alegrenses que tinham ido pelejar pela honra da pátria, e na pugna horrível se haviam coberto de louros e de glórias”.
Desta forma, com um grande público presente ao circo montado na Redenção, onde os locais destinados a plateia e camarote estavam lotados e o povo se fazia presente de forma efusiva, nada menos que 6 mil pessoas estavam presentes, relatava a imprensa. Nesta diversão medieval, reconfigurada com o contexto da Guerra do Paraguai, o tradicional enredo se desenvolveu e diversas disputas se deram onde a habilidade, destreza e coragem dos Voluntários da Pátria foram postos a prova. Entre as lutas de espadas entre cristãos e mouros e a vitória final e conversão dos muçulmanos, aconteceram uma série de competições, como o divertimento das cabeças que consistia em derrubar umas a lança, outras a tiro de pistola e a levantar outras do chão à espada. O jogo das argolinhas também foi um importante ponto das disputas da cavalhada. A habilidade ao cavalgar era posta a prova nas competições.
Independentemente se o que estava sendo festejado era a vitória dos cristãos sobre os mouros ou a glória do Brasil sobre o Paraguai, era desta forma que Porto Alegre em maio de 1870 conseguia associar diversas representações a jogos e disputas de habilidade. A conquista da “Terra Santa” se resignificava nas patas dos cavalos dos Voluntários da Pátria que retornavam do campo de batalha no Paraguai e garantiram para o Brasil, Uruguai e Argentina a vitória. Se o triunfo da tríplice aliança sobre seu vizinho era tão certo quanto a glória dos cristãos sobre os mouros no folguedo, também havia competições onde soldados e seus cavalos que há pouco pelejavam no front de guerra agora se divertiam, simulando batalhas ou, simplesmente, disputando, jogando e celebrando.

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Caçadas, caçadores e clubes: os devotos de Santo Humberto em Porto Alegre nos séculos XIX e XX

04/10/2015

por Cleber Eduardo Karls

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Também era com cachorros e armas de fogo que se praticava esporte na cidade de Porto Alegre. Entre os séculos XIX e XX as caçadas foram atividades apreciadas, organizadas, divulgadas e até mesmo estruturadas em clubes com esta função específica. A fundamentação esportiva desta prática pode até ser questionada. No entanto, ficou claro que além da grande quantidade de praticantes que a ela aderia, existia uma significativa valorização do seu exercício, visto o expressivo espaço dedicado às caçadas na imprensa neste período. Da mesma forma, era rotulada como um esporte pelos periódicos. Seus praticantes eram considerados sportsman, apreciadores do “esporte cynegético” ou, ainda, rotulados como devotos de Santo Humberto, o padroeiro dos caçadores.

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Caçada de marrecões, 1909.

Caçada de marrecões, 1909.

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Na década de 1870 temos as primeiras notícias sobre um Club de Caçadores em Porto Alegre. Não possuímos o registro exato da sua fundação, mas verificamos relatos de algumas atividades promovidas pelo mesmo entre os anos de 1876 e 1878, quando se deu a sua extinção. Mesmo com uma existência breve, esta associação pode ter sido fundamental para a prosperidade da atividade no Rio Grande do Sul. Ela tratou, por exemplo, da importação de cães de caça da Europa. O clube tinha um canil próprio. Em outubro de 1876, efetuou uma solicitação aos importadores da casa comercial Huch & Cia. O pedido consistia na encomenda de oito cachorros: dois courent basset, aptos para a caça de lebres; três cães da mesma função denominados na Alemanha parforce, oriundos dos canis do Imperador Guilherme. Viriam ainda mais três perdigueiros, sendo dois da raça epagneul e um da raça braque. Alguns desses cães seriam adestrados nas suas especialidades. A intenção era adquirir os melhores exemplares para esta prática tão desenvolvida na província. Não sabemos se a encomenda que estava prometida para aportar no mês de março realmente se efetivou ou se uma nova remessa de cães de caça teria desembarcado em Porto Alegre em junho de 1877, conforme tivemos acesso. Os jornais noticiaram que neste mês chegaram pelo navio alemão Hevelins, procedente de Hamburgo na Alemanha, 9 cães perdigueiros para o Club de Caçadores.

De fato, não possuímos maiores registros das atividades desta associação. Mas verificamos que ela se dissolveu no dia 30 de julho de 1878. Ficou decidido entre seus sócios que o saldo de caixa seria doado a Beneficência Brasileira e os cães rifados entre os membros efetivos. Mesmo sem uma continuidade do Club de Caçadores, esta experiência parece ter sido importante para o incentivo a prática em Porto Alegre. Até mesmo a importação de cães de caça pode ser compreendida como um estímulo ao seu desenvolvimento, equipando os amantes das caçadas.

Parece que o “esporte cynegético” continuou existindo e se expandindo, mas em um formato de organização diferente. Excursões de caça eram promovidas não necessariamente por uma associação. Era muito comum relatos de vapores que zarpavam de Porto Alegre e levavam caçadores a vários pontos do delta do Guaíba em busca dos animais. Vários barcos podiam agir concomitantemente. Uma espécie de comércio em torno das caçadas. Eram empresários que vendiam estes roteiros de caça. De acordo com os relatos publicados, geralmente as excursões eram bem sucedidas.

É o que percebemos em julho de 1902 quando o vapor Helvetia retornou de uma caçada com “duzentas e tantas codornas e vinte e tantos perdigões”. Ainda havia os relatos individuais, como em agosto de 1902 quando se publicou que dois indivíduos abateram em uma tarde 115 marrecões no Banhado Grande. Por vezes os jornais divulgavam os resultados anuais dos “devotos de Santo Humberto”, destacando a grande quantidade de animais caçados, como foi o caso de J. Leal, que anunciou as somas totais das suas caçadas em 1903: 45 patos, 260 marrecas divididas em cinco espécies, 50 narcejas, 29 marrecões, 14 perdizes e 1 pomba, totalizando 399 aves abatidas. Até o Presidente do Estado, Borges de Medeiros, tinha o seu desempenho divulgado. Em uma única caçada feita em Gravataí, Borges teria abatido 45 marrecões. Além destas aves, não tão comum era o registros de animais de maior porte como veados.

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Caçadores de Perdizes – 1909

Caçadores de Perdizes – 1909

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Assim como as demais modalidades esportivas, os defensores da caça militavam com justificativas que eram comuns a outras práticas, como os benefícios congênitos, favoráveis a saúde. Os defensores indicavam que para o caçador não haveria passatempo que se assemelhasse a este, tanto aos momentos agradáveis que proporcionava, quanto a conservação da vitalidade. As correspondências tratavam de várias dúvidas dos leitores. Destacavam inúmeros requisitos necessários a uma boa caçada. As orientações eram diversas. Indicavam que qualquer arma serviria a caça e que o importante era um bom atirador, assim como orientavam que o sportman deveria estar escoltado por bons cachorros, obedientes e de bom faro. O esportista, por sua vez, deveria ter bom pulmão e pernas para acompanhá-los e chamá-los.

Mesmo sendo uma prática um tanto disseminada em Porto Alegre, as caçadas não tiveram como prioritária a sua organização em clubes especializados. São escassas as notícias sobre agremiações dedicadas exclusivamente a este esporte. Tivemos somente mais uma indicação de uma associação dedicada essencialmente a esta atividade, o Club Cotubas Caçadores, que publicou em maio de 1905 uma chamada convocando seus sócios para uma reunião onde se trataria sobre as próximas caçadas. De toda a forma, percebemos que as “tournées cynegéticas” eram promovidas na sua maioria de forma coletiva, organizadas por grupos de pessoas aficionadas, mas não predominantemente em clubes, como a maioria dos outros esportes. Entre diversas iniciativas de clubes e empresários se desenvolvia a caça em Porto Alegre.

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Só podia ter parte com o diabo! Um “cavalo de ferro” no Rio Grande do Sul do século XIX

24/05/2015

Cleber Eduardo Karls

cleber_hist@yahoo.com.br

A bicicleta foi uma das marcas da prosperidade tecnológica do século XIX. Esta novidade que foi apresentada ao mundo pela primeira vez em Paris no ano de 1861, tanto causava admiração quanto espanto nas suas primeiras aparições. Ferramenta do homem para superar os seus limites, máquina que substituíra o animal nos desafios do seu extremo. O desempenho que o velocípede proporcionava estava baseado tanto na capacidade de engenhar, quanto na técnica e na força física do ser humano. O tempo agora era o mais ferrenho adversário, o homem deveria enfrentá-lo cada vez com mais pujança e superar os seus próprios limites. A ciência, a disciplina, as ideias modernas, faziam das bicicletas e suas competições a própria tradução de um tempo. Novos materiais, medidas, conceitos, conhecimentos, nomeavam as máquinas de duas rodas como um símbolo do progresso em um palco privilegiado, a cidade.

Acontece que o contato inicial com estas “engenhocas” no Rio Grande do Sul parece não ter sido assim tão tranquilo. A primeira bicicleta de que temos notícia foi descrita pelo mecânico Adolfho Pompílio Mabilde. Este estava estabelecido com sua oficina na então Colônia de Santa Cruz, e ao final do ano de 1869 teve de ir a São Leopoldo a negócios. Chegando àquela cidade de colonização alemã, próxima a Porto Alegre, se deparou com o Sr. Alfredo Dillon, filho de comerciante porto-alegrense que lá estava divulgando uma nova máquina importada, americana: um velocípede que foi chamado de “cavalo de ferro”.

A demonstração do comerciante causava furor, espanto, indignação! Havia os que diziam que o ciclista tinha parte com o diabo, pois corria numa máquina em que não se via ninguém puxar a frente ou empurrar atrás. Corria ligeiro feito um raio, e o pior de tudo era ter somente duas rodas, uma atrás da outra!

O mecânico Mabilde, vendo que o Sr. Dillon embarcara no vapor rumo a Porto Alegre, origem do velocípede, fez o mesmo para que pudesse, curiosamente, especular sobre todos os detalhes daquela curiosa máquina. Logo, o hábil braçal percebeu que não era necessário nenhum pacto com o diabo para que se “domasse” aquela engenhoca. Era uma verdadeira máquina infernal! Todas as notas foram tomadas para que em sua oficina em Santa Cruz um equipamento daqueles fosse montado.

O velocípede consistia em uma estrutura com uma roda dianteira de 90 cm e uma traseira de 80 cm de diâmetro. Eram feitas em madeira com arco de ferro, para aperto das cambotas, bem feitas e leves em relação à resistência. A viga curva, em que havia a sela comprida, era uma mola de aço chato maciça, de ferro forjado. Assim era o resto da ferragem, excetuando a bucha que girava a guia, que era de ferro maleável.

Nas manivelas, que eram fixadas diretamente sobre os extremos do eixo da roda grande, tinha os pedais de madeira torneados em forma de carretéis como os de linha, girando sob espigas de ferro. A pintura era toda de vermelhão, com listras brancas e envernizadas. O senhor Adolfho Mabilde se gabava de ter em Santa Cruz produzido a segunda e a terceira bicicleta do Rio Grande do Sul, juntamente com seu irmão e sócio. Com as devidas adaptações na construção, a máquina circulou pelas ruas da pequena colônia causando tanta admiração quanto o fez em São Leopoldo.

Mesmo sendo um equipamento um tanto tosco para os dias atuais, com um funcionamento grosseiro e simples, o mecanismo causou espanto e deslumbramento dos gaúchos à época. A tecnologia, a engenharia, a possibilidade de locomoção rápida sem a ajuda de animais era uma novidade bem-vinda. Podemos perceber que esta motivação foi ampliada constantemente com o desenrolar do século XIX e a chegada do XX. O “cavalo de ferro” passou a fazer parte do cotidiano dos gaúchos, tanto para o seu lazer, funcionalidade, trabalho, quanto para as disputadas esportivas.

O Sr. Adolfho passou a morar em Porto Alegre no ano de 1873 onde adquiriu o velocípede da loja do Sr. Dillon, do qual havia assistido a demonstração em 1869. Este o serviu por muito tempo, assim como outras bicicletas (melhoradas) construídas pelo próprio, até o ano de 1886. Novos modelos vindos da Europa, mais leves e resistentes tornaram aquelas antigas máquinas obsoletas.

Em janeiro de 1886, a imprensa porto-alegrense declarou uma novidade para a cidade, as corridas a velocípedes, que deveriam se realizar no Jockey-Club Porto-Alegrense. Esta nova modalidade que estava estreando na capital do Rio Grande do Sul, e que conquistaria apaixonados desportistas, trazia consigo uma série de significados. Era uma representante de reconhecidos valores modernos, como a tecnologia e a velocidade, que tão fortemente estariam presentes no cotidiano das cidades nos séculos XIX e XX. O “cavalo de ferro” já não espantava, pelo contrário, cada vez mais atraía a atenção dos porto-alegrenses para as suas disputas.