Cleber Eduardo Karls
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Uma das marcas históricas da formação do Rio Grande do Sul, e por sua vez, da sua capital, Porto Alegre, é a relação estreita entre os homens e os animais. Esta intimidade, que foi construída a partir de um cotidiano muito ligado as coisas do campo, onde o sul rio-grandense esteve muito próximo aos animais, tanto no seu trabalho, na criação, no transporte, ou ainda nas constantes guerras que tiveram o sul do Brasil como palco, consolidaram esta união na própria personalidade deste povo.
Independentemente das inúmeras influências culturais que aportaram pela cidade de Porto Alegre no decorrer dos séculos XIX e XX, esta relação próxima aos animais foi uma característica marcante dos brasileiros de grande parte do Rio Grande do Sul. Dado esta peculiaridade, os esportes em que os animais foram parte integrante nas disputas obtiveram uma apreciação muito grande entre os gaúchos. Também é possível afirmar que características particulares no exercício destas modalidades em Porto Alegre se firmaram em relação ao resto do País. Enfim, os esportes se adaptaram às realidades locais e se moldaram “à gaúcha”.
No caso de Porto Alegre, os ajustes entre o rural e o urbano, entre o tradicional e o moderno, ajudam a entender algumas práticas populares na capital sulina. Articuladas com importantes temas do momento, indícios da gestação de uma sociedade do consumo e espetáculo, atividades como as emocionantes touradas gaúchas ou o “civilizado” turfe, nos permitem perceber como os diálogos com as ideias de modernidade foram originais, eivados de peculiaridades, solicitando-nos um olhar atento e disposto a captar a sua complexidade.
No entanto, nem todas as diversões que se apoiavam nos animais como protagonistas assumiam esse status glamoroso. Essa questão, no entanto, não significa que não gozavam de grande predileção entre os porto-alegrenses ou que não estivessem embebidos de sofisticação. É o caso das rinhas de galo e frango, que tiveram uma grande difusão na Porto Alegre do século XIX e início do XX. É latente a indicação de que não existe uma relação direta do tamanho dos animais com a sua apreciação. Bem menores que os touros ou os cavalos, as pelejas promovidas na cidade entre as aves, também atraiam um grande público. Os locais eram diversos e aptos a esta prática, os rinhadeiros.
Acontece que o caráter popular e de certa forma mais acessível aos desportistas que quisessem apostar ou participar enquanto criadores não pode ser subestimado. Esta prática também não pode ser entendida apenas como uma ação amadora ou doméstica. Assim como os cavalos do turfe que tinham a sua refinação racial celebrada pelos criadores, com matrizes importadas da Europa que objetivavam um maior desempenho nos hipódromos, também se buscava o requinte biológico das aves através da importação de reprodutores. A criação era feita em “coudelarias” especializadas nestes animais. O que, aparentemente, pode ser considerado uma prática rural e amadora era tratada com muita seriedade pelos desportistas porto-alegrenses.
Desde a segunda metade do século XIX temos notícias de rinhadeiros funcionando no centro de Porto Alegre com uma proposta já empresarial. É o caso das rinhas de galo promovidas em 1877 por Fulvio Piacenza & Comp. em plena Rua dos Andradas, principal via da cidade. Para fazer parte da diversão era necessário se associar antecipadamente, para então, ter a entrada autorizada no estabelecimento. Dentre as várias “arenas” porto-alegrenses, foram alvo de repetidas crônicas pela imprensa da época o rinhadeiro São João, localizado no Areal da Baroneza, o São Manoel, no bairro Moinhos de Vento, mas, principalmente, um estabelecimento público denominado Sport-Club que estava instalado na Rua General Lima e Silva, atual bairro Cidade Baixa. Era o que recebia os maiores públicos.
As disputas nestes locais eram diversas, com torneiros de galos, frangos, modalidade “a pau”, “à espora”, que faziam a alegria do público que costumava lotar os ringues, principalmente aos domingos. Por vezes, “gordos churrascos” acompanhavam as disputas.
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O sucesso desta modalidade esportiva atraía representantes das mais variadas classes sociais, o que, para muitos, era um desconforto esta convivência. Para os incomodados, a expectativa era que os locais se preparassem cada vez mais para receber os sportman que se constrangiam em acotovelar-se com indivíduos de classes “inferiores”. Isso seria possível com os clubes privativos, uma solicitação de parte do público amante das brigas de galo que requeria a estratificação dos aficionados.
Seguindo a mesma tendência dos outros esportes, a estrutura dos rinhadeiros foi se desenvolvendo, proporcionando mais conforto e se tornando mais atrativa àqueles que ali gostariam de se divertir e fazer suas apostas. Exemplos são o novo chalé construído em 1905 na Praça São João, com amplos salões destinados a rinha, assim como em 1909, quando se inaugurou um inédito rinhadeiro cujos sócios eram os amadores e veteranos do antigo Sport-Club. Este se denominou Rinhadeiro Popular, a Rua Três de Novembro, atual Desembargador André da Rocha, no centro da cidade. A nova estrutura, realmente, trouxe um inédito suporte ao entretenimento, com buffet, bancadas, novos tambores, gaiolas para a guarda dos animais enquanto esperam o momento da sua luta e um novo sistema de iluminação elétrica. Um inédito aparato que objetivava atrair cada vez mais os amantes do esporte em um processo de inserção das rinhas em uma crescente indústria do entretenimento.
Acontece que os esportes que envolvem animais e, principalmente, lutas entre eles, estavam seguidamente sofrendo ofensivas contrárias a sua prática, assim como as touradas e as apostas nos cavalos. As justificativas se baseavam em ideias moralizadoras que contrariavam estas ações. Com os rinhadeiros não foi diferente. No entanto, os defensores das rinhas intervinham, argumentando que todas as práticas esportivas tinham um fundo de “ignorância” e “ridículo”. A comparação se dava diretamente aos outros esportes com animais, tão ou mais populares que as rinhas, como as corridas de cavalo e as touradas. As chibatas e pontas de ferro nos cavalos, a morte de um touro com o coração transposto por uma lâmina de espada seriam exemplos de como as rinhas não eram em nada superiores a barbárie e ao que já estava sendo praticado e tido como virtuoso. Por outro lado, diziam seus defensores: nas rinhas estava a melhor sociedade!
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