100 anos do futebol feminino no Rio Grande do Norte: histórias de pioneirismo e protagonismo esportivo

27/07/2020

Por Aira Bonfim (airafbonfim@gmail.com)

Enquanto alguns jornais e revistas do início do século passado buscavam associar a imagem de mulheres esportistas à atributos de delicadeza, beleza e frivolidades, acervos fotográficos da coleção do Instituto Tavares de Lyra (RN) e registros da revista carioca Vida Sportiva revelam imagens de garotas atléticas reais – e nem tão graciosas assim.

O olhar marrento, os corpos fardados e os braços cruzados são pistas visuais oferecidas por esses acervos que nos ajudam a pensar as formas de apropriação prática do futebol pelas brasileiras das primeiras décadas do século XX.

O exemplo aqui escolhido refere-se às fontes disponíveis sobre as equipes femininas de futebol do estado do Rio Grande do Norte e que circularam pela imprensa brasileira entre os anos de 1918 a 1920.

Em março de 1920 o semanário Vida Sportiva, responsável pela divulgação de notícias esportivas dos mais longínquos estados do Brasil, revelaria na sua capa a foto do ABC Football Club, time de futebol feminino da cidade de Natal, e, curiosamente associado a Liga de Desportos Terrestres na mesma época.

Futebol feminino de RN na capa da revista Vida Sportiva de março de 1920

Futebol feminino de RN na capa da revista Vida Sportiva de março de 1920

A foto da capa refere-se a um campeonato de futebol feminino realizado no sítio Senegal, residência do Coronel Joaquim Manoel Teixeira de Moura, o Quincas Moura. Tratava-se, de acordo com a mesma revista, de um prélio perdido de 12×0 pelo ABC F.C. (capa) contra o scratch feminino do Centro Sportivo Natalense, outra equipe pertencente à liga potiguar.

Tanto a raridade visual como a evidência histórica da partida de futebol são confirmações importantes que mulheres jogaram bola no Brasil, principalmente quando levamos em conta que na mesma época tal modalidade só crescia e se popularizava em todos os estados.

Jogadoras do ACB Football Club e Centro Sportivo Natalense em 1920

Nos últimos anos, tanto a mídia esportiva, como pesquisadores e instituições tem reiterado o episódio paulistano de 1921 entre as “senhoritas” dos bairros do Tremembé́ e da Cantareira, como um marco inaugural de moças jogando bola no Brasil. No entanto, apesar de existirem novas confirmações de episódios isolados entre meninas, antes e depois de 1921, o futebol feminino, como modalidade esportiva e competitiva, não se desenvolveu oficialmente como modalidade naquela época.

Diferente das experiências iniciadoras do futebol masculino no país, a exemplo de Charles Miller em São Paulo, e outros entusiastas do esporte bretão inglês como Thomas Donohue (Bangu Athletic Club) e Oscar Cox (Fluminense Football Club), às iniciações femininas nesse esporte aproximam-se mais das experiências atléticas vividas entre as crianças, presenciadas principalmente nas ruas, escolas, igrejas, clubes e nas periferias das festividades esportivas.

Meses antes da divulgação da capa feminina na Vida Sportiva, a revista afirmou que a cidade do Natal podia gabar-se de ter sido a primeira do Brasil a criar agremiações esportivas “de elementos exclusivamente femininos”[1]. O texto referia-se ao Centro Náutico Feminino de Natal e o Clube Náutico Jundiahy, da cidade de Macaíba, fundados sob a orientação do Centro Náutico Natalense. Todos, desde 1918, já ostentavam publicamente garotas disputando provas de remo.

Competidores da Yole Anta, do Centro Náutico Potengy, em 1918. Fonte: Vida Sportiva.

De acordo as notícias sobre a vida esportiva norte-rio-grandense, o ano de 1915 havia marcado o grande boom das práticas esportivas entre aquela comunidade do Nordeste. Os cronistas de Vida Sportiva narram que graças ao football e os esportes náuticos em pouco tempo se proliferaram os encontros atléticos entre a juventude de Natal.[2]

Com exceção do turfe, as elites de Natal e redondezas já se consideravam pessoas com acesso a uma variada gama de esportes em 1915. Houve inclusive investimento público do governo local, que apesar de modesto, foi citado na época como uma contribuição significativa para o desenvolvimento esportivo da região.

Imagem da equipe feminina de futebol de Natal publicada em maio de 1920.

Enquanto uma parte da juventude feminina experimentava as competições de regatas (os rowings), os textos da revista também revelam a experimentação feminina em outras variedades esportivas que, na “impossibilidade absoluta de praticarem o football, elas haviam inventado o hand-ball e praticavam o basketball”:

“O bello sexo natalense não quis ficar indifferente a esse louvável movimento patriótico da juventude masculina.

Adheriu à nobre causa, certo de que a educação physica é uma necessidade.

Empreendedora, intelligente, a mocidade feminina natalense, resolveu também entregar-se à prática de desportos (…)” [3]

A novidade o futebol feminino revelado pelo semanário Vida Sportiva, órgão oficial dos cronistas esportivos do Rio de Janeiro, já havia antecipado o tema na sua capa de um mês antes, em 21 de fevereiro de 1920, quando escolheu a ilustração de uma jogadora de futebol vestida com o uniforme do Botafogo Futebol Clube, do Rio de Janeiro.[4]

Se desconhece qualquer performance pública de mulheres jogando bola no clube do Botafogo nessa época, no entanto, o mesmo não se pode dizer de outros clubes cariocas como o Villa Isabel F.C.(1915), o Progresso F.C.(1919), o C.R. Flamengo (1919) e o River S.C.(1919), que já indicavam a exibição de equipes mistas ou de meninas contra meninos nas suas festividades esportivas e domingueiras.[5]

Após alguns meses da publicação das capas da revista Vida Sportiva com jogadoras de futebol, em meados de 1920, encontra-se também no Rio de Janeiro, evidências de mulheres jogando futebol no Helios (1920), C.R. Vasco da Gama (1923), S.C. Celeste (1923) e São Cristóvão A.C. (1929).

A investida das capas com mulheres esportistas, além de outra publicação sobre o team feminino potiguar divulgada em maio de 1920 [6] inserem-se num contexto de divulgação de crônicas que incentivaram a prática dos esportes entre as brasileiras pela revista Vida Sportiva.

Textos com títulos sugestivos como: ‘Porque não se incita o sexo frágil a praticar os sports?’(1918), “a mulher nos sports”, a “a saúde e a belleza da mulher pelo cultura physica”, “o dever physico da mulher moderna”, todas de 1920, exemplificam o tom da campanha empreendida por esse veículo de imprensa da época.

Vale destacar que o ano de 1920 também marcou a profusão de equipes de futebol feminino na Europa. Só na França, no mesmo ano, estima-se que em torno de 150 grupos jogaram bola.[7] Anos antes, também foi fundada La Fédération des Sociétés Feminines et Sportives de France, que entre tantas ações, destaca-se a parceria com as pioneiras do futebol, as desportistas inglesas.

A parceria europeia resultou no primeiro jogo internacional feminino entre Inglaterra e França, em Preston, com 25 mil espectadores em 1920. A partida feminina entre França e Inglaterra, em julho de 1920, ganhou uma página inteira da Vida Sportiva[1]. Esse episódio aconteceu no campo do Chelsea F.C. e a publicação trouxe imagens das capitãs Macgnemond e Kell, assim como uma defesa da goleira da equipe francesa (Fémina Sport) e uma cena da partida de futebol (com um árbitro homem!)

Jogadoras inglesas e francesas ocupam uma página inteira de Vida Sportiva em julho de 1920

De volta ao cenário brasileiro e ao estado do Rio Grande do Norte, endereço das primeiras imagens publicadas do futebol feminino no país, vale destacar algumas pequenas curiosidades sobre as agremiações esportivas potiguares. O Centro Sportivo Natalense foi fundado da associação entre o Flamengo Foot-ball Club com o Alecrim Foot-ball Club[9], ambos de Natal.

O sportman João Café Filho (1899-1970), nessa época, era o diretor de esportes do Alecrim F.C. O jovem potiguar era o goleiro da agremiação e anos mais tarde, o único potiguar a ocupar o cargo de presidente do Brasil, desde que assumiu a presidência entre 24 de agosto de 1954 e 8 de novembro de 1955, depois do suicídio de Getúlio Vargas.

Se já não fosse um episódio revelador, o historiador Dr. Anderson Tavares de Lyra, fundador do Instituto Norte-Rio-Grandense de Genealogia e do Instituto Tavares de Lyra (Macaíba- RN), apresenta na sua catalogação fotográfica informações que identificam a volante da equipe do Centro Sportivo Natalense como sendo Jandira Carvalho de Oliveira Café (1904-1989), futura esposa de João Fernandes Campos Café Filho e primeira dama do Brasil.

Além da constatação que uma primeira dama nordestina atuou nos primórdios do futebol de mulheres no Brasil, ainda há mais novidades entre o seleto grupo. A equipe feminina rival do ABC Football Club também conta com outra personagem de prestígio nacional: Celina Guimarães Viana (1890-1972). A jogadora do ABC F.C. (time da capa da Vida Sportiva), além de dona do acervo de fotos disponíveis hoje no Instituto Tavares de Lyra, se tornou professora e reconhecida como a primeira mulher a conquistar o direito ao voto no Brasil em 1927.[10]

Segundo o memorialista Anderson Tavares de Lyra, as fotografias da época apresentam dois espaços: o estádio Juvenal Lamartine e o sítio Senegal, ambos no bairro do Tirol e pertencentes ao Coronel da Guarda Nacional e Presidente da Intendência de Natal, Joaquim Manoel Teixeira de Moura, Quincas Moura.

O coronel, adepto das animações proporcionadas pelos encontros festivos e esportivos naquela região, tinha entre suas convidadas, sobrinhas, primas e filhas. O episódio das jogadoras de futebol do Rio Grande do Norte é excepcional e curioso em sua época, e ao mesmo tempo, na luz da contemporaneidade, 100 anos mais tarde, são histórias e protagonismos pouco conhecidos de mulheres, jogadoras, historiadores e instituições do esporte.

Em 2020, continuamos demandando esforços coletivos para constituir histórias mais plurais de um esporte que despertou paixões em todos os tipos de pessoas – e essa totalidade também inclui as mulheres.

O recado já estava dado pelo cronista da revista Vida Sportiva de 1918:

“quem está affeito a assistir as lutas de football, quantas vezes não terá adimirado do enthusiasmo com que varias torcedoras assistem o transcorrer da pugna?

Essas torcedoras, adeptas da cultura physica, não sentirão por vezes, ancias de se entremearem nas lutas?

Certamente que sim!

Animome-las! Incitemo-las, para que em breve possamos ver em cada recanto da nossa capital, um club em que a mulher possa cultivar os sports”.[11]

Notas

[1] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 11, 13 dez. 1919.

[2] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 3, 29 nov. 1919.

[3] Idem.

[4] O escudo da imagem sugere a composição de letras que o clube carioca usava antes da fusão com o Clube de Regatas Botafogo.

[5] BONFIM, Aira Fernandes. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). 2019. 213 f. Dissertação (Mestrado em História) – CPDOC – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.

[6] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 18, 15 mai. 1920.

[7] Williams, 2003; Doble, 2017; William e Ress, 2015.

[8] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 19, 24 jul. 1920.

[9] Diário de Pernambuco, Recife, p. 2, 6 jul. 1918.

[10]http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/celina-guimara-es-de-primeira-eleitora-a-a-rbitra-de-futebol/451775. Acesso em junho de 2020.

[11] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 7, 8 jun. 1918.

Referências

BONFIM, Aira Fernandes. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915–1941). 2019, Dissertação — Mestrado em História, Política e Bens Culturais, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Rio de janeiro, 2019.

DOBLE, Anna. The Secrety History of woman’s football. In: Newsbeat. 19/07/2017. http://www.bbc.co.uk/newsbeat/article/40654436/the-secret-history-of-womens-football. Acesso em 23/01/2019.

WILLIAMS, Jean; HESS, Rob. “Women, Football and History: International Perspectives.” The International Journal of the History of Sport. Vol. 32, Iss. 18, 2015.


Histórias do esporte em Rubem Fonseca (parte 1)

17/04/2017

por Fabio Peres

Cruel, realista, desconcertante, brutal, mórbido. Entre tantos termos utilizados para descrever a literatura de Rubem Fonseca, talvez possamos também adicionar o adjetivo esportivo. Afinal, basta uma breve leitura de sua obra para perceber que não são poucos os contos e romances em que o esporte e as atividades físicas, em geral, ocupam lugar – ora mais, ora menos – privilegiado.

Desde a publicação de Os Prisioneiros (1963), primeira coletânea de contos do autor, o objeto está lá, por assim dizer, em suas variadas formas; às vezes de maneira mais clara ou quase desapercebido de modo sútil. Como aponta a escritora Maria Alice Barroso, Rubem já se destacava no conto Fevereiro ou março (1963)  pela incorporação de “um excelente tipo à galeria de personagens da literatura brasileira: o atleta vagabundo, frequentador das academias de boxe, portador de uma ética toda sua” (apud AUGUSTO, 2009, posfácio)[i].

Capa da edição de 1963 de Os Prisioneiros

O personagem-narrador inicia a história descrevendo como a condessa Bernstroa, mulher casada com a qual teve um caso, explicava a manutenção de suas formas corporais:

Era uma velha, mas podia dizer que era uma mulher nova e dizia. Dizia: põe a mão aqui no meu peito e vê como é duro. E o peito era duro, mais duro que os das meninas que eu conhecia. Vê minha perna, dizia ela, como é dura. Era uma perna redonda e forte, com dois costureiros salientes e sólidos. Um verdadeiro mistério. Me explica esse mistério, perguntava eu, bêbado e agressivo. Esgrima, explicava a condessa, fiz parte da equipe olímpica austríaca de esgrima — mas eu sabia que ela mentia.

O personagem continua desfiando a história explicando como foi seu dia, um sábado de carnaval, marcado por certa imprevisibilidade e também, não por acaso, por certa angústia:

Era de manhã, no primeiro dia de carnaval. Ouvi dizer que certas pessoas vivem de acordo com um plano, sabem tudo o que vai acontecer com elas durante os dias, os meses, os anos. […] Eu — eu vaguei pela rua, olhando as mulheres. De manhã não tem muita coisa para ver. Parei numa esquina, comprei uma pera, comi e comecei a ficar inquieto. Fui para a academia.

A descrição dos exercícios na academia é acompanhada por uma série de sentidos, pensamentos, práticas e gestos:

[…] comecei com um supino de noventa quilos, três vezes oito. O olho vai saltar, disse Fausto, parando de se olhar no espelho grande da parede e me espiando enquanto somava os pesos da barra. Vou fazer quatro séries pro peito, de cavalo, e cinco para o braço, disse eu, série de massa, menino, pra homem, vou inchar. E comecei a castigar o corpo, com dois minutos de intervalo entre uma série e outra para o coração deixar de bater forte; e eu poder me olhar no espelho e ver o progresso. E inchei: quarenta e dois de braço, medidos na fita métrica.

A academia, por sua vez, é lugar de encontros, de construção (e também de desconstrução) de vínculos e laços sociais. Os amigos, frequentadores de academia -ao que tudo indica de um bairro da Zona Sul carioca –, organizam a “diversão” para aquele carnaval:  “porrada pra todo lado”. A ideia era simples. Se fantasiar de mulher e então:

O povo cerca a gente pensando que somos bichas, nós estrilamos com voz fina, quando eles quiserem tascar, a gente, e mais vocês, se for preciso, põe a maldade pra jambrar e fazemos um carnaval de porrada pra todo lado. Vamos acabar com tudo que é bloco de crioulo, no pau, mesmo, pra valer. Você topa?

Após alguns desdobramentos (e outras referências aos sentidos e usos do corpo), o narrador se auto descreve para o marido da condessa, adquirindo assim características de um novo “tipo” inserido em um meio social com senso moral e ético próprios, como chamou atenção Maria Alice Barroso:

na academia eu faço ginástica de graça e ajudo o João, que é o dono, que ainda me dá um dinheirinho por conta; vendo sangue pro banco de sangue, não muito para não atrapalhar a ginástica, mas sangue é bem-pago e o dia em que deixar de fazer ginástica vou vender mais e talvez viver só disso, ou principalmente disso. Nessa hora o conde ficou muito interessado e quis saber quantos gramas eu tirava, se eu não ficava tonto, qual era o meu tipo de sangue e outras coisas. Depois o conde disse que tinha uma proposta muito interessante para me fazer e que se eu aceitasse eu nunca mais precisaria vender sangue, a não ser que eu já estivesse viciado nisso, o que ele compreendia, pois respeitava todos os vícios. Não quis ouvir a proposta do conde, não deixei que ele a fizesse; afinal eu tinha dormido com a condessa, ficava feio me passar para o outro lado. Disse para ele, nada que o senhor tenha para me dar me interessa. Tenho a impressão que ele ficou magoado com o que eu disse […] Por isso, continuei, não vou ajudar o senhor a fazer nenhum mal à condessa, não conte comigo para isso. Mas como?, exclamou ele, […], mas eu só quero o bem dela, eu quero ajudá-la, ela precisa de mim, e também do senhor, deixe-me explicar tudo, parece que uma grande confusão está ocorrendo, deixe-me explicar, por favor. Não deixei. Fui-me embora. Não quis explicações. Afinal, elas de nada serviriam.

No mesmo livro (Os prisioneiros de 1963) novamente a ginástica, a “malhação”, bem como as competições de “físico”, típicas de academia, seriam mencionadas no conto Os inimigos; para alguns críticos da época o melhor da coletânea. Além disso, o conto que dá nome ao livro curiosamente se inicia por uma conversa entre uma psicanalista e um cliente sobre a inconveniência e mesmo inadequação de usar roupa “esportiva” no Centro da cidade, lugar por excelência de trabalho.

O panorama, por assim dizer, esportivo da literatura de Rubem Fonseca, de fato, é vasto e instigante. Por exemplo, o ambiente e os frequentadores de academia voltariam a fazer parte da obra do autor em 1965 no conto A Força Humana (do livro A Coleira do cão). Na realidade, trata-se em certo sentido de uma continuação de Fevereiro ou março. Já em 1969, o antigo Vale-Tudo seria objeto central do conto O Desempenho no famoso livro Lúcia McCartney.

Em 1979, breves referências ao futebol e ao balé apareceriam em O cobrador (no livro homônimo). Na mesma obra menções à ginástica retornariam em Mandrake (além do xadrez) e, em 1992, em o Romance Negro. Por outro lado, uma competição inusitada no Pantanal está em AA (abreviação do “esporte” de mesmo nome) em 1998 no livro a Confraria dos Espadas. Também em 1992, há uma menção à rua do Jogo da Bola – uma prática de diversão que esteve presente na cidade do Rio de Janeiro no século XVIII e XIX[ii] – em A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro.

Em 2001, exercícios aeróbicos, de alongamento e de musculação são citados em Copromancia, na obra Secreções, excreções e desatinos. Corrida na praia aparece em Caderninhos de nomes no ano seguinte em Pequenas criaturas. Em Laurinha surge mais uma vez uma referência ao futebol no livro Ela e outras mulheres de 2006. E a relação de Lima Barreto com o futebol é citada no romance O seminarista de 2009.

Mas essas e outras histórias ficarão para os próximos posts. Em todo caso, mais do que uma mera provocação, denominar a literatura de Rubem Fonseca de esportiva pode ser uma forma de perturbar os limites e as fronteiras do campo da História do Esporte; uma maneira talvez que nos ajude a entrecruzar várias histórias: do corpo, de gênero, da cidade, de classe, da discriminação racial, da homofobia, das diferentes modalidades e práticas esportivas, das emoções, da estética, da literatura, entre muitas outras histórias.

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[i] AUGUSTO, Sergio. Estreia consagradora. In: FONSECA, Rubem. Os prisioneiros. Rio de Janeiro: Agir, 2009.

[ii] Maiores informações ver MELO, Victor Andrade de. MUDANÇAS NOS PADRÕES DE SOCIABILIDADE E DIVERSÃO: O jogo da bola no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). História,  Franca ,  v. 35,  e105,    2016 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742016000100514&lng=en&nrm=iso>. access on  17  Apr.  2017.  Epub Dec 19, 2016.  http://dx.doi.org/10.1590/1980-436920160000000105.


A primeira árbitra de futebol credenciada pela FIFA é brasileira

14/12/2014

por Silvana Vilodre Goellner
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Léa Campos (Asaléa de Campos Micheli), nascida em Belo Horizonte no ano de 1945, é uma mulher avante do seu tempo. Em plena Ditadura Militar formou-se árbitra pela Federação Mineira de Futebol, a despeito dos papéis de gênero estabelecidos como adequados para aquele contexto cultural. Diplomada em Educação Física e Jornalismo, teve muito trabalho para fazer valer sua vontade e o reconhecimento de seu diploma pela FIFA se deu apenas no ano de 1971. Para tanto, enfrentou pessoas e instituições como  a CBF e seu presidente João Havelange que não reconhecia nem permitia que desempenhasse sua função. Léa buscou apoio de diferentes modos recorrendo, inclusive, ao então presidente Emílio Garrastazu Médici, que ao recebê-la assinou uma carta autorizando-a a atuar.

Uma vez reconhecido o seu título pelo governo brasileiro, Léa arbitrou em vários estados e em países da Europa e das Américas sendo elogiada pela sua competência e dedicação.

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Praia de Atlântida, Rio Grande do Sul – década de 1970

Praia de Atlântida, Rio Grande do Sul – década de 1970

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Em 1971 representou o Brasil em um Campeonato Mundial de Futebol Feminino realizado no México, competição que possibilitou o reconhecimento de  seu diploma pela FIFA. Vale lembrar que neste período estava em vigência a Deliberação n. 7 de 2 de agosto de 1965 do Conselho Nacional de Desportos (CND) que nomeava as modalidades proibidas às mulheres complementando, assim a determinação do Decreto Lei n. 3199, de 14 de abril de 1941 que considerava a prática de alguns esportes incompatíveis  com a  “natureza feminina”. O Decreto, assinado pelo então Presidente do CND, General Eloy Massey Oliveira de Menezes, asseverava  que não era permitida às mulheres a  prática de lutas , futebol, futebol de salão, futebol de praia, pólo-aquático, pólo, rugby, halterofilismo e baseball. Ou seja, as mulheres não podiam praticar jogando mas nenhuma  referência era feita à prática da  arbitragem. O que conferiu à Lèa o direito de atuar.

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Praia de Atlântida, Rio Grande do Sul – década de 1970

Praia de Atlântida, Rio Grande do Sul – década de 1970

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Em 1974 Léa sofreu um acidente que prejudicou sobremaneira sua carreira. Com dificuldades de locomoção por dois anos usou cadeiras de rodas. Recuperada do acidente aproximou-se do universo das lutas dedicando-se à luta livre e o boxe, modalidades que como sabemos não eram (e não são) recomendadas para as mulheres.

Exitosa em sua trajetória, o protagonismo de Léa Campos evidencia que a presença das mulheres na arbitragem é um direito de quem deseja seguir a profissão. Sua presença nos campos abriu caminhos para que muitas mulheres possam concretizar este desejo, pois faz ver que não existem justificativas plausíveis que limitem ou impeçam  essa atuação senão o preconceito e a ignorância.  Por essas é outras  que se torna fundamental narrar a sua história e reconhecer a importância que esta mulher tem para a história do esporte brasileiro. Quiçá possamos ver publicada no Brasil a biografia Lea Campos: rules can be broken, escrita por Luis Eduardo Medina em 2001. Quiçá possamos conhecer mais além dessas parcas informações que aqui registro. Este é um de meus objetivos para 2015. Aguardem!!!!

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Mulheres nas águas (Rio de Janeiro, século XIX)

28/09/2014

Por Victor Andrade de Melo

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Não sendo exatamente um especialista nas questões de gênero (como o é minha querida amiga e irmã Silvana Goellner, com a qual temos a honra e o prazer de contar na equipe desse blog), sempre procurei, no âmbito de minhas investigações sobre o esporte no Rio de Janeiro do século XIX, registrar a participação feminina. Tratava-se de uma constatação explícita: a presença de mulheres nas iniciativas esportivas era anterior do que a princípio pensávamos, claro indício de uma posição protagonista, dentro dos limites do tempo (tratei um pouco do tema aqui, num artigo publicado na Revista Brasileira de História).

Os novos estudos que tenho procedido sobre as práticas corporais no Rio de Janeiro do século XIX, alguns deles em conjunto com o amigo e irmão Fábio Peres (que também integra a equipe desse blog), têm mostrado que o envolvimento das mulheres brasileiras com o esporte é ainda mais anterior. No post de hoje, tratarei brevemente da participação feminina nas iniciativas ligadas à natação. Será mesmo uma abordagem bem breve, dado que há muitos outros indícios que aqui não serão abordados por uma questão de espaço.

Para o memorialista Luiz Edmundo (1957), assim se trajavam as mulheres para os banhos de mar em determinado momento:

“calças muito largas de baeta tão áspera que mesmo molhada não lhe pode cingir o corpo. Do mesmo tecido, um blusão com gola larguíssima, à marinheira, obrigada a laço, um laço amplo que serve de enfeite e, ao mesmo tempo, de tapume a uma possível manifestação de qualquer linha capaz de sugerir o feitio vago de um seio. As calças vão até tocar o tornozelo quando não caem num babado largo, cobrindo o peito do pé. Toda a roupa é sempre azul-marinho e encadarçada de branco. Sapatos de lona e corda, amarrados no pé e na perna, à romana. Na cabeça, vastas toucas de oleado, com franzido à Maria Antonieta, ou exagerados chapelões de aba larga, tornando disformes as cabeças, por uma época em que os cabelos são uma longa, escura e pesada massa”.

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Nas duas últimas décadas do século, contudo, os jornais já veiculam algumas mudanças. Pelos números de A Estação, periódico que tinha a moda como assunto principal, podemos acompanhar as sugestões para as mulheres que procuravam os banhos de mar e a natação. Em 1879, apresentou-se o seguinte modelo: “A blusa e a calça são abotoadas, uma à outra, no cinto sofrivelmente largo, pregado de modo a correr com facilidade. Este modelo, de baetilha branca, é apertado por uma faixa, e enfeitado de bordado à ponto de marca”.

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Quase um ano depois, na coluna Crônica da Moda, Antonina Aubé observa a possibilidade de uso de uma vestimenta menos rigorosa para as que praticavam a modalidade: “As senhoras que aprenderem a nadar ou conhecerem a natação, a farão mais curta e com mais roda, para que não pareça repuxada, o que é extremamente feio e incômodo”.

A longa matéria descreve todos os detalhes da vestimenta, ainda bastante rigorosa se compararmos aos parâmetros atuais. Todavia, há que se destacar que a abordagem enfatiza mais a elegância e o conforto do que o pudor, embora essa seja uma dimensão que não deve ser negligenciada.

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No decorrer do século, sempre às vésperas do verão, o tema voltava à baila, com abordagem semelhante a essa já comentada. Além das vestimentas, comentavam-se comportamentos adequados e cuidados com a saúde e beleza a serem observados. Sempre se faziam ressalvas às distensões aceitáveis para as “nadadoras”.

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Já mais para o fim do século, a colunista Paula Cândida, é ainda mais enfática no que tange à participação feminina. Ao observar que as mulheres já tomam parte ativa em jogos e diversões públicas (“As senhoras idosas ficam admiradas diante dos jogos aos quais tomam parte as suas descendentes”), entre os quais duas novidades, o tênis e o ciclismo (rechaçado pela cronista por ser deselegante e sem função), Cândida sugere que a natação se encontraria entre os mais graciosos gêneros de diversão. Para ela, “a natação é indispensável para todas as senhoras e devia fazer parte da educação”.

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A ideia de que mulheres podiam praticar a natação não foi rapidamente aceita pela sociedade fluminense. Contribuíram para uma maior aceitabilidade não somente as ações de médicos e pedagogos, mas também a própria conformação de um mercado de entretenimentos e a circulação de notícias de nadadoras que se destacavam por proezas no exterior realizadas, especialmente recordes batidos por Miss Agnes Beckwith, chamada de “a primeira nadadora do mundo”. Logo também surgem notícias de mulheres nadando na cidade, especialmente na Praia do Boqueirão do Passeio.

Entre tantas, vale registrar o nome de duas pioneiras: Adélia Cardoso Silva, “uma elegante moça de 20 anos” que, em 1882, realizou com “admirável coragem a travessia da praia do Boqueirão à Ilha de Villegagnon”; e Ignez Victoria de S. e Souza, vencedora do páreo feminino de uma competição de natação organizada pelo Grêmio Filhos de Thetis, em 1886.

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Antes das sportswomen: as toureiras nas arenas brasileiras

24/05/2014

por Victor Andrade de Melo

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As atividades esportivas foram das mais importantes ocasiões a sinalizar a nova presença pública das mulheres na sociedade brasileira. Antes delas, contudo, outro espetáculo apresentou performances femininas ousadas, por alguns consideradas mesmo inusitadas: as touradas.

No Diário do Rio de Janeiro, de 22 de maio de 1847, vemos essa incrível notícia, considerando que no momento era até mesmo rara a presença feminina em muitos fóruns sociais: “O empresário sente não poder apresentar uma jovem de 23 anos, toureando com braço varonil, e impavidez de cavalheiro, mas pretende apresentar em compensação a srta. JOANNA PAULINA”. A praça estava instalada na esquina de rua Nova do Conde (atual Frei Caneca) com Matacavalos (atual Riachuelo).

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Diário do Rio de Janeiro, 22 de maio de 1847

Diário do Rio de Janeiro, 22 de maio de 1847

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Em 2 de junho de 1878, uma vez mais é anunciada, com grande estardalhaço, a performance de uma francesa, dessa vez na praça da Marquês de Abrantes (Rio de Janeiro): a “Heroína Mme. Julia Rachel”. A Gazeta de Notícias brinca com a novidade: “A tourada de hoje deve ser magnífica. Imaginem que o cavaleiro é uma cavaleira e por aí ajuízem que peripécias poderão haver, se os touros não forem assaz cavalheiros para respeitar a destemida cavaleira”.

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Gazeta de Notícias, 2 de junho de 1878

Gazeta de Notícias, 2 de junho de 1878

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A performance da “heroína”, todavia, parece não ter agradado muito, pelo menos aos jornalistas. Para a Gazeta de Notícias, “esta Rachel, que por certo não é na arte tauromáquica o que sua homônima foi na arte dramática, fez a figura mais ridícula que imaginar se pode”. É possível, pelo tom da matéria, que se tratasse mais de preconceito do que efetivamente de uma análise técnica. Ainda tardaria alguns anos para que mulheres fossem mais bem aceitas em funções públicas como essas.

Essa toureira atuara antes em São Paulo, onde parece ter conseguido mais sucesso, mesmo causando perplexidade. Chamava a atenção uma mulher desempenhar funções públicas tão ousadas, consideradas tipicamente masculinas. Antes mesmo de oficializar-se sua apresentação, sugeria-se em A Província de São Paulo: “Andam por aí a dizer tanta coisa da próxima corrida! Uns, que os pegadores propõem-se a fazer maravilhas; outros, que aparecerá uma amazona que há de mostrar para o que serve uma saia. Queremos ver isso”.

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Correio Paulistano, 1 de dezembro de 1877

Correio Paulistano, 1 de dezembro de 1877

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O Correio Paulistano ironizou: “Como é lá isso? Uma mulher toureando! Se a moda pega… É verdade que os touros de casa costumam ser mansos. Contudo, a coisa dá que pensar”. No Diário de São Paulo, uma breve nota dá uma noção da expectativa: “Rapaziada, vamos ver Mme. Rachel meter farpas de fogo em um bravio touro. É hoje o dia em que pela primeira vez aparecerá em público esta heroína”. A Província de São Paulo exalta: “Estreia hoje na Praça de touros (…) uma valorosa dama. (…). Decididamente a empresa quer abarrotar-nos de novidades”.

Ainda que, segundo os jornais, o evento não tenha sido dos melhores, Rachel foi elogiada por sua atuação. Um leitor, que assina como Palafox, chega a ironizar que foi melhor do que o cavaleiro: “Mira, pícaro caballero. Si vuelves a caer, rompo-te l’alma – Caramba! Que hombre! No ves que hasta una dama te vá dar leciones de cabaleria?”. Posteriormente, a toureira surpreenderia por sua coragem, mesmo nos acidentes nos quais se envolveu.

Esses são apenas alguns exemplos. Apresentaram-se nas arenas brasileiras outras mulheres, nas citadas e em outras cidades (também em Porto Alegre e Salvador, por exemplo). Mais ainda, deve-se destacar sua importância presença nas arquibancadas e mesmo organizando eventos tauromáquicos. Retomaremos o tema em outra ocasião.

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Jogos Abertos Femininos (1954-1963): espaço de visibilidade para as mulheres gaúchas

06/04/2014

por Silvana Vilodre Goellner

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Os Jogos Abertos Femininos foram realizados em Porto Alegre entre os anos de 1954 a 1963 com o objetivo de incentivar as mulheres à prática de esportes assim como dar visibilidade aos clubes e agremiações do Estado.   Idealizados pelo jornalista Túlio de Rose e pelo Jornal Folha da Tarde mantinham um caráter festivo  que envolvia  clubes de Porto Alegre e  de diversas cidades do Rio Grande do Sul.

As competições geralmente aconteciam durante o período de uma semana em diferentes locais de Porto Alegre, sobretudo, no clubes e em alguns espaços públicos. A cerimônia de abertura era realizada no estádio da Sociedade de Ginástica Porto Alegre (SOGIPA) que comportava mais de 30 mil espectadores, o que foi  insuficiente para  alojar o público presente na abertura dos Jogos no ano de 1959. Essa cerimônia acontecia seguindo o mesmo roteiro em todas as adições e contava com o tradicional Desfile de Abertura no qual todos os clubes participantes apresentavam suas atletas. Após o desfile  dos clubes e das atletas participantes acontecia o hasteamento das bandeiras  ao som o  Hino Nacional, a proclamação  do  juramento  feita por uma  atleta escolhida pela organização do evento e, por fim,  o desfile em carro aberto da Rainha e das Princesas  dos Jogos.

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Abertura dos Jogos Abertos Femininos de 1957 Fonte: Jornal Folha da Tarde

Abertura dos Jogos Abertos Femininos de 1957
Fonte: Jornal Folha da Tarde

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 A programação apresentava competições em várias modalidades tais como atletismo, arco e flecha, ginástica, ciclismo, esgrima, hipismo, natação, basquete, saltos ornamentais, tênis, lance livre, voleibol, bolão, golfe, remo, regata à vela, pesca, tênis de mesa, bridge, tiro ao alvo, entre outras. Algumas dessas modalidades tais como o tênis, a natação, o atletismo e o voleibol   tinham certo destaque em função de já existirem equipes e competições consolidadas no estado do Rio Grande do Sul.

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Pesca. Jogos Abertos Femininos de 1960 Fonte: Folha da Tarde

Pesca. Jogos Abertos Femininos de 1960
Fonte: Folha da Tarde

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A competição previa a premiação da Atleta Destaque cujo critério principal para a escolha era a participação no maior número de modalidades. Diná Pettenuzzo Santiago, uma participante dos Jogos assim se refere ao evento: “tínhamos a oportunidade de fazer coisas que a gente não fazia, como por exemplo, pescar, jogar pingue-pongue, bocha, atletismo, a gente se metia em tudo, às vezes nem sabíamos muita coisa, mas íamos pelo clube,  primeiro para auxiliar e para clube ter representação e segundo pra tentar ganhar, e quem sabe ser escolhida a atleta dos jogos” (2002, p. 6).

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Diná Pettenuzzo Santiago em entrevista ao Centro de Memória do Esporte (2006) Fonte: Centro de Memória do Esporte

Diná Pettenuzzo Santiago em entrevista ao Centro de Memória do Esporte (2006)
Fonte: Centro de Memória do Esporte

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Em um tempo no qual o esporte não era observado como possibilidade de carreira profissional para as mulheres, os Jogos Abertos Femininos deram visibilidade às praticas corporais e esportivas como um espaço de  sociabilidade das mulheres das elites.  Vale lembrar que para participar da competição  havia a necessidade de pertencer a algum clube e assim representá-lo. Essa participação foi importante para muitas atletas que, em função de seu desempenho e pertencimento clubístico, foram convocadas para participarem de competições nacionais e internacionais representando o Rio Grande do Sul e o Brasil, fundamentalmente, nas modalidades de natação, tênis, voleibol e basquetebol. Ou seja, ainda que para uma pequena elite, promoveram a divulgação do esporte de forma a fazer ver que o esporte também poderia ser uma prática delas.

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Margot Ritter recebendo de Túlio de Rose o troféu  Atleta de Destaque nos Jogos Abertos Femininos  de 1956 Fonte: Centro de Memória do Esporte

Margot Ritter recebendo de Túlio de Rose o troféu
Atleta de Destaque nos Jogos Abertos Femininos de 1956
Fonte: Centro de Memória do Esporte


Os Jogos Intermunicipais do Rio Grande do Sul e as “Rainhas da Beleza” (1967-1971)

01/12/2013

por Silvana Vilodre Goellner e Natália Bender
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Os Jogos Intermunicipais do Rio Grande do Sul (JIRGS) foram realizados pela primeira vez no ano de 1967 na cidade de Caxias do Sul chegando em 2013 a sua 41ª edição.  Como de praxe em outros eventos esportivos, nas suas edições inaugurais as atletas disputaram uma prova específica a qual não tinha disputa correlata entre os atletas homens: a prova da beleza.

Dotadas de capital simbólico as representações que circunscreviam este título estavam direcionadas para a consagração de um ideal de feminilidade no qual a participação em competições esportivas reafirmava um modo de ser e de se comportar considerado adequado ao que se esperava de uma jovem mulher: beleza, elegância, simpatia e graciosidade.

Concursos desta natureza buscaram inspiração em eventos já reconhecidos fora das arenas esportivas tais como o Miss Universo e Miss Brasil. O primeiro surgiu na Califórnia (Estados Unidos) no ano de 1952 e foi determinante para a realização, em 1954, da primeira edição do Miss Brasil que aconteceu na boate do Hotel Quitandinha, na cidade de Petrópolis (RJ) e teve como vencedora a baiana Martha Rocha. No contexto gaúcho foi também em 1954 que despontou o Miss Rio Grande do Sul, concurso realizado na cidade de Porto Alegre tendo como primeira vencedora Ligia Carotenuto, representante da cidade de Caxias do Sul e eleita, no mesmo ano, como segunda colocada no Miss Brasil.

Nos eventos que envolviam competições esportivas alguns critérios foram adicionados à escolha da atleta que seria consagrada como “Rainha”. Nos Jogos da Primavera, realizados na cidade do Rio de Janeiro entre o final dos anos 1940 e meados de 1970, o julgamentos relacionava a plástica feminina, os traços fisionômicos, a eficiência esportiva e a disciplina da atleta na participação nos jogos, ainda que a estética fosse  exaltada com o maior peso entre os critérios de seleção, segundo afirma Ludmila Mourão em estudos sobre essa competição esportiva.

Os Jogos da Primavera foram referência para a organização, no Rio Grande do Sul, dos Jogos Abertos Femininos que aconteceram entre os anos de 1954 e 1963 com o objetivo de contribuir para a popularização da prática esportiva entre as mulheres gaúchas. Idealizados pelo jornalista Túlio de Rose, tiveram grande adesão na época  e contavam com  a disputa de modalidades pouco convencionais como a pesca e a bocha.

Os Jogos Intermunicipais do Rio Grande do Sul foram criados depois destes eventos esportivos e mantiveram algumas práticas em comuns como, por exemplo, a   realização do concurso de beleza feminina. Nesse texto destacaremos as suas três primeiras edições tendo como fonte de pesquisa a cobertura que o evento teve nos jornais da época.

Na primeira edição dos JIRGS, realizada entre os dias 26 a 28 de outubro de 1967 na cidade de Caxias do Sul, foi organizado um júri que, além de presenciar o desfile das candidatas, teve a oportunidade de entrevistá-las sobre temas que envolviam o esporte amador. Reunidos os critérios e avaliadas as candidatas, fez-se vencedora a atleta Magdalene Krolow, representante da cidade de Ijuí. Na sua segunda edição, realizada entre 27 de abril e 1º de maio de 1968 em Santa Maria, a escolha da Rainha foi bastante noticiada pela imprensa da época que foi unânime em destacar os atributos estéticos da jovem vencedora, Maria Dani, representante de Novo Hamburgo. Vejamos uma dessas matérias, publicadas no jornal Folha Esportiva do dia 03 de maio de 1968.
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Santa Cruz do Sul sediou nos dias 17 a 21 de abril a  terceira edição do JIRGS e, consequentemente, do concurso de Rainha tornando-se vencedora Beatriz Regina Neves representante da cidade de Taquara. A conquista do título foi registrada na imprensa que não deixou de mencionar os atributos estéticos da vencedora.
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A simpatia de Taquara

A turma de Taquara – muitas moças e poucos rapazes – é uma turma diferente. Não só porque entre elas está a Rainha dos III Jogos Intermunicipais, mas também porque é uma turma alegre e muito comunicativa. É a segunda vez que Taquara vence o concurso de beleza em certames atléticos: no ano passado, nos Jogos Intercolegiais, em Ijuí, também teve sua representante escolhida como rainha.

A rainha dos III Jogos – Beatriz Regina Costa Neves – tem cabelos longos aloirados e é muito bonita e desembaraçada. Suas colegas, Verona Lacerda e Lison Brodbeck dizem que o apelido dela é Gina e que está fazendo um “sucesso bárbaro” em Santa Cruz:

– Você precisava ouvir o que os rapazes diziam para ela ontem, no desfile.

– O que é que eles diziam?

– Ah, não dá para contar. Mas basta olhar para ela que a gente logo adivinha

Beatriz Regina tem apenas 15 anos, mas pode-se dar até 18 ou 19. Tem 1,68 m de altura e está cursando a 3ª série do ginasial no Colégio Santa Teresinha, em Taquara. Quer fazer o Científico depois, e, futuramente, Educação Física ou Psicologia. Sua matéria preferida, apesar de tudo, é Matemática. Seus passatempos são leitura e treinos de Vôli. Pratica também natação, mas nos Jogos está competindo apenas em vôli. Gosta de cinema e diz que basta saber que Frank Sinatra trabalha num filme, que ela vai ver sem se preocupar com mais nada. Está aprendendo piano e torce para o Internacional.

Ao meio-dia a Rainha e suas colegas, almoçam na Lancheria Xodó, que se torna, evidentemente, centro das atenções de muitas outras delegações.

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Na quarta edição, realizada nos dias 22 a 25 de outubro de 1970 na cidade de Pelotas, foi a representante da delegação de Cachoeira do Sul, Maria Helena Luchsinger que levou o título de IV Rainha do JIRGS. Já em 1971, foi uma atleta da delegação de Santa Cruz do Sul, a escolhida para o título de Rainha dos V Jogos Intermunicipais, realizados no período de 21 a 24 de outubro na cidade de Novo Hamburgo. Essa conquista foi noticiada pelo jornal Folha da Tarde no dia 22 de outubro conforme reportagem abaixo.

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vana.3.

Ainda que a beleza das atletas tivesse destaque no concurso que alçava uma delas à condição de “Rainha” e outras duas à de “Princesas”, os atributos estéticos das mulheres participantes do JIRGS foram exibidos de outros modos. Nos jornais que fizeram a cobertura das suas cinco primeiras edições foi possível identificar outros  textos e imagens nas quais podemos visualizar as mulheres em ação. Ma isso já é outra história…

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Candidatas à Glória: a mulher esportiva da década de 1940

16/10/2013

Por André Schetino

Olá amigos do História(s) do Sport. Há alguns meses atrás fiz um post falando sobre esporte e eugenia em Minas Gerais, e mostrei essa relação a partir de um evento esportivo chamado “Ginástica Feminina da Primavera”.

No post de hoje vou mostrar, a partir de alguns exemplos, diferentes relações entre as mulheres e o esporte na década de 40. Trouxe duas imagens que tratam a mulher de forma distinta, mas ambas colocam os esportes como elemento importante oui mesmo predominante.

A primeira delas foi o anúncio e o texto transcrito abaixo, que encontrei nas páginas da Revista Alterosa e divido com vocês:

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 Prestigiae a grande obra de educação e cultura que o Governo de Minas vem realisando com absoluta firmeza, adquirindo os bilhetes da Loteria Mineira. Amparareis, assim, o futuro da nossa terra, porque esse futuro depende dos homens de amanhã, isto é, da mocidade que está aprimorando o espírito e o corpo nas escolas e nos nossos campos de esporte.[ii]

Trata-se de um anúncio da Loteria Esportiva Mineira, promovida pelo governo do Estado, de 1939. Apesar de enfatizar que o futuro de nossa terra depende dos homens de amanhã, o anúncio era ilustrado com o desenho de uma mulher (principal público da Revista Alterosa) realizando o movimento de arremesso de peso. Além disso, o texto destacado permite diferentes interpretações: na primeira, o esporte estaria colocado em pé de igualdade com a educação, servindo como forma de aprimoramento corporal e espiritual. Mas o texto permite também pensarmos sobre uma importância relativa do esporte, mostrando o entendimento de que havia espaços e momentos distintos para a educação do espírito e do corpo.

Se no primeiro exemplo a mulher já aparecia praticando esporte (mesmo com uma referência no texto aos homens), nosso segundo exemplo ela se torna a protagonista. Trata-se de uma reportagem de 1945, na qual a revista Alterosa apresentava “conselhos às jovens que desejam vencer na vida”. Entre dicas como alimentação moderada, estudos e polidez, estava também a prática esportiva regular.

pag 086 candidatas a gloria pag 087 candidatas a gloria

Clicando nas imagens você consegue ver a reportagem ampliada. Destaco o trecho abaixo:

A proeficiência em esporte ao ar livre é sempre um ativo na conta da jovem que deseja progredir em sua carreira. O esporte, além de desenvolver harmoniosamente o físico, quando praticado com método, ainda auxilia a relaxar a torsão nervosa tão frequente nas pessoas de grandes aspirações.[iii]

A reportagem mostra agora uma mulher que ganhara o mercado de trabalho com a II Guerra Mundial e nele deveria permanecer e buscar sucesso, desde que seguindo alguns conselhos. O esporte estava no rol das práticas imprescindíveis para aquelas que queriam alcançar não só a saúde e o bem estar, mas também o sucesso no mundo do trabalho.
O que acho mais interessante nesses exemplos é que, mesmo com uma mensagem clara, eles fazem parte de um conjunto de fatos que marcaram um aumento na participação feminina na sociedade, seja no mundo do trabalho ou nos esportes. Falando de participação em alto nível, como nas Olimpíadas, temos 11 mulheres na delegação brasileira no jogos de Londres em 1948, contra 6 em Berlim (1936) e apenas uma em Los Angeles (1932), que marcou o início da participação de brasileiras nos jogos.
E já que estamos falando de mulheres e esportes, aproveito para indicar o excelente documentário Mulheres Olímpicas, de Lais Bodansky, exibido no último domingo no canal ESPN Brasil. Deixo pra vocês o trailer.
Abraços e até o próximo post!

[ii] REVISTA ALTEROSA nº 01, agosto de 1939, p. 22. Grifos meus.

[iii] Candidatas à Glória – conselhos às jovens que desejam vencer na vida. REVISTA ALTEROSA, nº 67, novembro de 1945, p.86 e 94(continuação). Matéria não assinada


Mulheres forçudas: o circo, o ringue, o octógono…

21/04/2013

por Silvana Vilodre Goellner

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A controvérsia em torno da participação das mulheres em atividades que exigem demasiada força física tem perpassado diferentes contextos e temporalidades. O desconcerto mediante sua inserção em um universo aparentemente identificado como violento, viril e, portanto, masculino tem desestabilizado  representações normalizadas de corpos, gêneros e sexualidades, sobretudo, quando relacionadas à feminilidades.

 2013 tem se tornado produtivo para refletirmos sobre essa temática dada a visibilidade que as lutas entre mulheres adquiriu em função da disputa travada em fevereiro  entre Randa Rousey e Liz Carmouche pelo cinturão dos pesos galos do UFC 157  na Califórnia  (EUA).  Ainda que não fosse a primeira vez que lutadoras participassem desta modalidade específica, o reconhecimento dessa luta como integrante oficial da competição, fez com que a mídia se debruçasse sobre o tema colocando em  circulação uma série de imagens, vídeos e reportagens sobre essas e outras  atletas conferindo certo destaque a essa participação.

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Randa Rousey e Liz Carmouche

Randa Rousey e Liz Carmouche

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Tenho recorrentemente afirmado que silêncio não significa ausência! A adesão das mulheres à atividades que envolvem força física sejam de competição ou de demonstração não é recente e acompanha os primórdios do esporte moderno. Em estudo anterior, analisei as mulheres forçudas, termo que conferi àquelas que no final do século XIX e início do século XX, desafiavam convenções sociais e representações de gênero ao exibirem seus corpos e performances em situações nas quais a força era imperante e destruidora do mito da fragilidade feminina.  Athelda, Minerva, Athleta, Gertrudes Leandros, Madame Montagna, Vulcana, Lilian Leitzel, Louise Armando, Mademoiselle Aini, Miss Herta, Madame Stark, Elvira Sansoni, entre outras, tornaram-se figuras populares a aparecer, também, nos jornais e revistas que circulavam nesta época.  Seus espetáculos percorriam a Europa e os Estados Unidos  e neles cada uma, a seu jeito, inventava diferentes formas de exibir sua arte e, assim, adquirir prestígio e respeito em um tempo no qual a maternidade, o recato e a feminilidade grácil eram atributos que designavam ser uma “boa mulher”.

Revisitar os feitos de algumas dessas mulheres significa aqui afirmar que, em que pese muitas das conquistas que tiveram no campo esportivo, ainda são recorrentes algumas representações que não identificam o ringue, o tatame e o octógono como um lugar próprio também para a mulheres. Vejamos algumas  delas:

Minerva (Josephine Blatt, 1869-1923)

Americana de Nova Jersey atuou em diversos espetáculos de levantamento de peso fazendo apresentações que incluíam arrebentar ferraduras de ferro, erguer pessoas  (homens adultos em especial ) com um só braço ou balas de canhão e outros objetos pesados.  No dia 15 de Abril de 1895, protagonizou um espetáculo que lhe capacitou a entrar para o Guinness Book of Records: levantou do solo uma plataforma de madeira onde  subiram 23 homens,  totalizando 1.650 quilos.

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Minerva, final do século XX

Minerva, final do século XX

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Vulcana (Kate Roberts, 1883-)

Nascida na Inglaterra,  Vulcana fazia várias apresentações em circo e music halls cujo espetáculo mais conhecido era o de levantar homens acima da cabeça apenas com um dos braços. Conhecida, ainda por realizar uma performance que consistia em apoiar as mãos e pernas no solo de modo que sobre seu abdômen fosse colocado uma plataforma na qual subiam dois cavalos e o adestrador. Uma vez posicionados os animais, Vulcana erguia e abaixava essa plataforma utilizando-se apenas dos  quatro apoios. Além dessas exibições manifestava-se publicamente  contra o uso do espartilho pois identificava que esse acessório restringia as mulheres do ponto de vista físico e psicológico.

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Vulcano, 1896

Vulcano, 1896

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Madame Ali-Bracco

Era conhecida em 1875 como “A mulher canhão” porque suas performances incluíam além de diferentes acrobacias dois números específicos: carregava sobre um dos ombros um canhão  e, pendurada de cabeça para baixo em um trapézio o levantava do solo apenas com os dentes sem o auxílio das mãos.

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Ali Bracco, 1875

Ali Bracco, 1875

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Sandwina (Catherine Brumbach, 1884-1952)

  Uma das mais conhecidas de sua época Kate Brumbach  nasceu em Viena e era filha de artistas de circo sendo, por muitos anos, a protagonista de um espetáculo no qual desafiava homens e mulheres em um ringue montado no picadeiro. Sua anatomia lhe permitia muitas vitórias: em 1910 media 1,82cm, pesava quase 100 quilos e exibia bíceps de mais de 40 cm de diâmetro. Apresentava-se como a mulher mais forte do mundo e fez exibições em vários países europeus e na América, local para onde se transferiu juntamente como marido na década de 1920. Foi nos Estados Unidos que vivenciou uma  experiência que lhe conferiu notoridade: em um pequeno clube atlético de Nova York  participou de um desafio de força com Eugene Sandow  no qual sagrou-se vencedora ao levantar 136 quilos acima de sua cabeça enquanto o conhecido fisiculturista não conseguir erguê-la além da altura do peito. O nome Sandwina, o duplo feminino de Sandow, é inventado neste dia.

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Sandwina, 1910

Sandwina, 1910

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Eugene Sandow era uma figura popular desde o final do século XIX, não só na Europa como também nos Estados Unidos. Além de participar de inúmeras exibições públicas de força física criou um sistema de treinamento físico voltado para o desenvolvimento muscular, arregimentando vários alunos e seguidores.

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Sandow, final século XIX

Sandow, final século XIX

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A vitória de Sandwina é aqui rememorada com um único objetivo: evidenciar que a força física não é atributo localizado apenas no corpo masculino e, por conseguinte, um demarcador do gênero masculino. Uma vez treinados, homens e mulheres podem adquirir tal capacidade e essa aquisição não as/os faz mais ou menos masculinos/femininos.

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Sandwina, início século XX

Sandwina, início século XX

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Enfim, essas mulheres e outras tantas invisibilizadas pela oficialidade dos discursos normalizadores da medicina, da pedagogia e da religião contrariavam os  ideais de graça e delicadeza identificados como femininos. A robustez de suas  anatomias subvertiam essa representação colocando à olhos vistos a inconsistência das identidades fixas que tentavam (e tentam) estabelecer as fronteiras da feminilidade normal e desviante.

Suas aparições também geravam controvérsias colocando em xeque sua autenticidade como mulheres. Afinal, se não eram homens, o que eram então: meio-homem, ou ainda, uma espécie de mulher pela metade?

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Passado mais de um século tal polêmica se mantém e  revigora não apenas com a presença das mulheres em atividades como, por exemplo, as lutas  de MMA (Artes Marciais Mistas) mas ainda e especialmente com a  participação de atletas transexuais em diferentes modalidades esportivas.  Os corpos que borram fronteiras e ultrapassam os binarismos instituídos pela biologia continuam a inquietar e, por vezes, ainda são  considerados como “sem lugar”.  A polêmica em torno da participação ou não da lutadora transexual Fallon Fox é exemplar dessa afirmação na medida em que argumentos de cunho biologicistas e psicológicos são chamados para  dizer que ela não pode ali estar. Será?

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Fallon Fox, 2013

Fallon Fox, 2013

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Bibliografia:

FRAGA, Alex e GOELLNER, Silvana. Antinos e Sandwina: encontros e desencontros na educação dos corpos brasileiros. Revista Movimento, vol 9. n.3, p. 58-82, dez. 2003

TODD, Jan e TODD, Terry. A legacy of strength: the cultural phenomenon of the professional strongwoman.. North American Society for Sport History. Proceedings & Newsletter, 1987, p. 13-14.

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Por trás das medalhas: as mulheres e o esporte no Brasil

31/12/2012

por Silvana Goellner

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Coube a mim a última mensagem do ano de 2012. Dentre as inúmeras temáticas possíveis de serem aqui abordadas ressalto, outra vez, questões relacionadas ao binômio mulheres e esporte. Tal repetição busca registrar a situação iniquidade de gênero presente esporte brasileiro assim como despertar o interesse de pesquisadores/as, acadêmicos/as, professores/as, jornalistas, etc., para o incremento de estratégias de visibilidade nas quais as mulheres sejam as protagonistas de vivências no  esporte em suas diferentes manifestações.

Para movimentar essa ideia, reproduzo o texto que escrevi para compor a Revista Anual do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero, produzida pela Secretaria de Políticas para as Mulheres lançada em dezembro durante a realização da Reunião das Ministras e Altas Autoridades do Mercosul, em Brasília. Ao fazê-lo, quero também divulgar o trabalho empreendido pelas equipes do Observatório e da Secretaria fundamentalmente porque é possível identificar a atenção que têm dedicado ao esporte como um espaço generificado e generificador e que, portanto, carece de estratégias de empoderamento das e para as mulheres.

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silvana.31.1.2012

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“Mulheres e esporte: sobre conquistas e desafios”[i]

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A realização dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de Londres foi tema recorrente em diferentes espaços políticos, pedagógicos e midiáticos motivados inclusive pela eminência de sediarmos, em 2016, a próxima edição desses eventos. A presença das mulheres nessas competições foi frequentemente referida como positiva, e os argumentos que justificaram tal ênfase basearam-se em dois aspectos: o número de participantes e as medalhas conquistadas.

Em Londres as mulheres representaram 44% do total de atletas participantes dos Jogos Olímpicos e 35,4% dos Jogos Paraolímpicos, caracterizando-se como os maiores percentuais registrados até então. Agrega-se a esse dado as constatações de que todos os 204 países participantes dos Jogos Olímpicos tinham atletas de ambos os sexos em suas delegações e de que o número de medalhas conquistadas pelas mulheres em ambas as competições alavancou a posição de alguns países no quadro final de classificação.

A participação do Brasil também foi bem avaliada, considerando os mesmos argumentos. Sua delegação esteve representada por 47,47% de mulheres nos Jogos Olímpicos e por 37,57% nos Jogos Paraolímpicos, percentual inédito na história do esporte nacional  superando, inclusive, o índice  geral conforme indicado acima.  Com relação à classificação geral, ocupou o 22º lugar nos Jogos Olímpicos conquistando 17 medalhas. As mulheres venceram no boxe, judô, pentatlo, vôlei e vôlei de praia  (2 ouros e 4 bronzes, totalizando 6 medalhas)  e os homens no  boxe,  futebol,  ginástica artística, judô, natação, vela, vôlei e vôlei de praia  (2 ouros, 5 pratas e 5 bronzes, totalizando 11 medalhas). Nos Jogos Paraolímpicos ficou na 7º posição na classificação geral com 43 medalhas. As mulheres venceram no atletismo, judô e natação (3 ouros, 4 pratas e 4 bronzes, totalizando 11 medalhas) e os homens no atletismo, bocha, esgrima, futebol de 5, goalball, judô, natação (19 ouros, 9 pratas  e 4 bronzes, somando 32 medalhas).  Enfim, de um total de 60 medalhas ganhas nas duas competições, as mulheres foram responsáveis por 17, com destaque para algumas modalidades pouco associadas à sua performance, tais como o boxe, o pentatlo, o judô olímpico e paraolímpico.  

Não há dúvidas de que esses desempenhos podem e devem ser comemorados, principalmente se recordarmos o longo percurso construído pelas mulheres para ascenderem ao esporte de competição e nele permanecer. A primeira edição dos Jogos Olímpicos (Atenas, 1896) não contemplou as atletas sob a justificação de que tal prática não era própria para a sua frágil natureza. Discursos voltados para a preservação da maternidade e da feminilidade  promoveram várias interdições e, por muito tempo, foram recorrentes para minimizar a presença das mulheres no universo cultural do esporte, em especial na sua dimensão de alto rendimento que  exige  intenso trabalho físico,  dedicação aos treinos e espírito competitivo.

No Brasil, essa restrição não se deu de modo diverso e, apesar das mulheres vivenciarem o esporte desde os seus primórdios, nem sempre foram incentivadas a nele se inserir. Os ecos advindos dos movimentos feministas do início do século XX mostraram-se importantes nessa direção, pois sua propagação projetou novas perspectivas para as brasileiras, reverberando na disputa por maior presença em espaços tidos como de domínio dos homens, como a política, a ciência e o esporte.

É possível identificar a existência de mulheres competindo em várias modalidades já na transição do século XIX para o XX, principalmente na elite, uma vez que o esporte era reconhecido como um símbolo de modernidade e status social. Ainda assim, a primeira aparição de uma brasileira nos Jogos Olímpicos aconteceu apenas em 1932 e as primeiras medalhas foram conquistadas muito posteriormente, no ano de 1996.  Ou seja, houve uma lacuna de 64 anos para que surgissem os primeiros resultados olímpicos o que parece indicar que as mulheres se depararam com situações por vezes adversas a uma boa preparação para enfrentar competições dessa natureza.  Este resultado tardio é revelador de algumas restrições vividas pelas mulheres, inclusive, aquelas decorrentes da criação do Decreto-Lei  nº 3199 que as proibiu de participarem de algumas modalidades esportivas entre as décadas de 1940 e 1970 tais como o futebol, o polo, polo aquático, halterofilismo, beisebol,  entre outras.

Assim, se por um lado é necessário valorizar a importância do desempenho das brasileiras no esporte olímpico e paraolímpico, por outro é premente identificar que ainda há muitas assimetrias entre mulheres e homens em relação a essa prática cultural. Tal exercício é fundamental para que evitemos a propagação de um discurso entusiasta que desloca para as sombras uma realidade que não é tão positiva quanto referenciada.

Um primeiro movimento nessa direção requer ampliar a concepção de esporte. Ou seja, o esporte olímpico é apenas uma das suas dimensões, portanto, não pode ser a principal referência para analisarmos a situação das mulheres no esporte nacional.  Mesmo na perspectiva do alto rendimento, há várias modalidades que não integram as provas olímpicas. Além disso, o esporte traduz-se também como uma prática de lazer e de sociabilidade e como um conteúdo que é pedagogizado na escola fundamentalmente nas aulas de Educação Física.

Observar questões relacionadas à equidade de gênero no esporte em suas diferentes manifestações implica enfatizar que, para as mulheres, ainda são desiguais várias situações quando comparadas aos homens. No esporte de rendimento, são bem menores os recursos destinados para patrocínios, incentivos, premiações e salários; em algumas modalidades, a realização de campeonatos é bastante restrita e, por vezes, inexistente; há pouca visibilidade nos diferentes meios midiáticos;  a participação de mulheres em órgãos dirigentes e de gestão do esporte é ínfima; a inserção em funções técnicas, como treinadoras e árbitras, ainda é diminuta; federações, confederações, clubes e associações esportivas mantêm registros precários sobre a participação das mulheres em seus dados oficiais, especialmente no que se refere a aspectos históricos.

Em relação ao esporte como uma vivência de lazer, também há muito a ser conquistado em termos de tempo e disponibilidade, colaborando para essa situação aspectos como a responsabilização das mulheres e suas filhas pelo trabalho doméstico e a consequente restrição para o tempo de lazer, além da naturalização de que a apropriação dos espaços e equipamentos públicos é privilégio dos homens. O direcionamento de grande parte dos projetos sociais de esporte e lazer para o sexo masculino é ainda um obstáculo, assim como o temor de que a participação das mulheres em alguns desses espaços as deixem em situação de vulnerabilidade em função da violência urbana e do consumo de drogas, como se isso também não acontecesse aos homens. Ainda quanto ao esporte como uma possibilidade de lazer, é pertinente ressaltar que estão descobertas iniciativas dirigidas para alguns grupos sociais, como as mulheres indígenas e rurais, para quem esse direito social figura quase como uma improbabilidade, inclusive do ponto de vista da proposição de políticas públicas.

Na educação escolar, o cenário também se mostra pouco favorável, visto serem frequentes situações como a não oferta para meninas/jovens de algumas modalidades esportivas; o maior uso pelos meninos/jovens dos espaços destinados à prática do esporte, restando a elas espaços e equipamentos improvisados; a ausência de equipes e competições; e o incentivo à adesão às praticas corporais e esportivas em função da aquisição de representações estéticas que conformam uma feminilidade hegemônica, e não a pluralidade dessas representações.

Além dessas assimetrias, originárias de representações historicamente construídas, existem outros temas ainda pouco abordados em análises relacionadas à presença das mulheres no esporte e que merecem maior atenção e cuidado. São elas: a crença de que algumas modalidades as masculinizam e por essa razão devem ser evitadas; os assédios sexual e moral e a violência sexual presentes em clubes, federações e outras instituições esportivas; o pouco reconhecimento à diversidade sexual; a erotização no modo de se referir às atletas, destacando seus atributos físicos e estéticos (ou a ausência deles) e não seus méritos esportivos; a subvalorização do esporte como sua principal ocupação profissional; e a não compreensão de que se pode  constituir como um espaço capaz de empoderá-las.

Enfim, temos avanços a comemorar se avaliarmos a trajetória percorrida pelas mulheres nas mais diferentes dimensões do esporte. No entanto, em que pese essas conquistas, há muitos desafios a enfrentar para que elas possam desfrutar dessa prática cultural com mais igualdade, autonomia e liberdade. Não nos furtemos de fazê-lo.


[i] O texto também está disponível em espanhol. Pode ser acessado em  http://www.observatoriodegenero.gov.br/menu/publicacoes

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