Um encontro entre futebol e surfe na Copa do Mundo de 2010 (África do Sul)

23/11/2020

Por Rafael Fortes

Este texto sintetiza uma parte das discussões presentes em trabalho apresentado no grupo de pesquisa Comunicação e Esporte e publicado nos anais do 42o. Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, organizado pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) em Belém (PA).

Afrika (2011) é um filme dirigido por Thomas Mulcaire e Ricardo de Oliveira e está disponível na íntegra no link abaixo:

O filme contou com patrocínio de empresas e fundos voltados para o fomento às artes.

Rodado ao longo de 2010 em Moçambique e na África do Sul, narra uma viagem de quatro surfistas brasileiros pelos dois países. O primeiro aparece rapidamente, sendo a maior parte do tempo dedicado ao último. Identifiquei onze cenas ou sequências com alguma referência ao futebol. A maioria delas é bastante fugaz: uma bola de futebol ao lado de uma prancha sobre a areia da praia ou um take mostrando uma roda de homens brincando  de altinha. Esta atividade, que consiste em duas ou mais pessoas trocarem passes com uma bola de futebol sem deixá-la tocar o chão, é bastante comum em praias do litoral brasileiro – no Rio de Janeiro e noutros estados -, inclusive naquelas muito frequentadas por surfistas. Cenas semelhantes – e de partidas de golzinho – aparecem esporadicamente em filmes brasileiros dedicados ao surfe, tendo, como participantes, os próprios surfistas do país.

Isto sugere algo que pode parecer óbvio, mas que considero válido mencionar: durante o processo de crescimento, enquanto ainda são crianças e adolescentes, a maioria daqueles que serão atletas futuros de uma modalidade (específica) se dedicam a várias delas, seja do ponto de vista do treinamento e competição, seja do ponto de vista da diversão. Tendo em vista a forte presença do futebol no Brasil, não é de surpreender que muitos surfistas tenham crescido batendo uma bolinha e sigam gostando de fazê-lo.

A principal distinção de Afrika em relação à filmografia de surfe, no que diz respeito à presença futebolística, encontra-se na sequência de aproximadamente três minutos em que os surfistas comparecem ao estádio Soccer City, em Joanesburgo, para assistir à partida entre Brasil e Costa do Marfim pela Copa do Mundo de futebol de homens realizada em 2010. O trecho evidencia a pouca familiaridade dos surfistas com o ambiente do estádio de futebol – no caso, particularmente impressionante por se tratar de uma partida de Copa do Mundo envolvendo a seleção brasileira. O barulho das torcidas – evidentes pelo volume do áudio do próprio filme – é um dos elementos que impressionam os protagonistas do filme.

A vitória da seleção brasileira pelo placar de três a um permitiu-lhes experimentar tanto a comemoração de gols, assistir em uma ocasião à celebração entre aqueles que torciam para a seleção marfinesa. Na mesma sequência, aparecem ainda comemorações, batucadas, gritos e cânticos em português, que prosseguem no pós-jogo pela parte externa do estádio e no interior de um ônibus.

Conforme afirmei no artigo:

As sequências no estádio e as comemorações pós-jogo reproduzem elementos do senso comum a respeito de megaeventos esportivos como a Copa do Mundo – por exemplo, a ideia de que são (exclusivamente) ocasião para congraçamento dos povos.[1] Tal visão se expressa também em um item dos “agradecimentos especiais” nos créditos finais: à “Fifa pela Copa do Mundo de 2010”.

Esporte e cinema vêm sendo estimulados por sucessivos governos da África do Sul pós-apartheid como instrumentos para divulgar uma imagem positiva do país no exterior e para incrementar o afluxo de turistas (Fortes, 2014). A realização das Copas do Mundo de rugby em 1995 e de futebol em 2010, bem como a candidatura da Cidade do Cabo para sediar os Jogos Olímpicos de verão de 2004, integram este conjunto de políticas – também observáveis noutros países dos BRICS (grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Este contexto é importante para se compreender a realização de um filme como Afrika e, também, a inserção particular dele na filmografia brasileira de surfe.

Referências bibliográficas

FORTES, Rafael. Entre o surfe feminino, a indústria de surfwear e a promoção da África do Sul: uma análise de A Onda dos Sonhos 2. In: FORTES, Rafael; MELO, Victor Andrade de (org.). Comunicação e esporte: reflexões a partir do cinema. Rio de Janeiro: 7 Letras/Faperj, 2014. p. 49-70.

FORTES, Rafael. O futebol num filme de surfe: Afrika, Copa do Mundo e a filmografia sobre esporte. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO, 42, 2019, Belém. Disponível em: https://portalintercom.org.br/anais/nacional2019/resumos/R14-0019-1.pdf . Acesso em 23 nov. 2020.

Notas

[1] Ignorando-se, por exemplo, os impactos sociais e coletivos sobre setores mais vulneráveis da população devido às políticas públicas de remoções forçadas, conforme discutido e denunciado no documentário Tin Town.


Kapuscinski e “A Guerra do Futebol”

27/10/2016

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

soccer-warConheci o trabalho do jornalista polonês Ryszard Kapuscinski uns anos atrás lendo O imperador, livro que me foi indicado por um amigo de faculdade de jornalismo (obrigado, Baiano!). A narrativa trata das vivências do repórter em meio à corte do imperador Selassiê, da Etiópia. O conteúdo parece de ficção, mas não é. Contudo, não acreditei, como não o fiz ao ler a obra objeto deste texto, que tudo que ele narrava era verdade absoluta – na verdade, isto pouco importa, ao menos para mim, quando se trata de fruir a narrativa deste autor.

Anos depois, esbarrei com The Soccer War (existe tradução publicada no Brasil: A Guerra do Futebol) na estante de livros usados à venda na biblioteca pública do bairro em que morava em San Diego. Custou o inacreditável preço de um dólar e furou a fila: comecei a ler. Não sabia do que se tratava, apenas de três coisas: que era um livro de Kapuscinski; que provavelmente seria bom; e que, com esse  título, abordaria o futebol.

The Soccer War é uma coletânea de histórias relativas a viagens do jornalista a trabalho, como correspondente da Agência de Imprensa Polonesa, entre as décadas de 1950 e 1970, na África, na Ásia e na América Latina. São relatos encharcados de suor, tiros, humanidade e desumanidade. Tem guerra entre palestinos e israelenses no Monte Hérmon e  atrocidades de parte a parte entre gregos e turcos no Chipre; há uma bela descrição dos povos nômades somalianos e etíopes, entre muitos outros relatos sobre áreas do globo em geral ignoradas pelo mercado mundial de notícias.

A guerra do futebol (capítulo)

O título da obra é retirado de um dos textos, que aborda um confronto armado entre El Salvador e Honduras que “durou cem horas. Suas vítimas: 6.000 mortos, mais de 12.000 feridos. Cinquenta mil pessoas perderam suas casas e terras. Muitas vilas foram destruídas” (p. 182; este e os demais trechos foram traduzidos por mim). Segundo o autor, o confronto teve como estopim as partidas entre as seleções dos países pelas Eliminatórias da Copa do Mundo de 1970 (tema já brevemente comentado neste blogue).

“A primeira partida foi realizada no domingo, 8 de junho de 1969, na capital hondurenha, Tegucigalpa.

Ninguém ao redor do mundo prestou qualquer atenção.

A equipe salvadorenha chegou em Tegucigalpa no sábado e passou a noite sem dormir (…). O time não podia dormir porque foi alvo de guerra psicológica travada pelos torcedores hondurenhos. Uma multidão cercou o hotel. A turba atirava pedras nas janelas e batucava em placas de latão e latas de lixo. Eles soltavam seguidos fogos de artifício. Eles buzinavam nos carros estacionados na frente do hotel. Os torcedores apitavam, gritavam e cantavam músicas hostis. Isso durou toda a noite. A ideia era que um time tenso, sonolento e exausto estaria inclinado à derrota. Na América Latina, estas são práticas comuns” (p. 157).

Adiante, após dar exemplos hilários de denúncias pintadas em muros, prossegue ele:

“Os latinos são obcecados com espiões, conspirações de inteligência e complôs. Na guerra, todo mundo é um quinta-coluna. Eu não estava numa situação confortável: a propaganda oficial de ambos os lados culpava os comunistas por cada desgraça, e eu era o único correspondente na região oriundo de um país socialista. (…)

Fui até o correio e convidei o operador de telex para tomar uma cerveja. Ele estava aterrorizado porque, embora tivesse pai hondurenho, sua mãe era cidadã de El Salvador. Ele tinha nacionalidade mista e, portanto, figurava entre os suspeitos. (…) Durante toda a manhã, a polícia estivera tangendo salvadorenhos para acampamentos provisórios, a maioria deles montados em estádios. Por toda a América Latina, os estádios têm um duplo papel: em tempo de paz, são arenas esportivas; na guerra, viram campos de concentração” (p. 166).

Por fim,

“a guerra terminou num impasse. (…) Ambos os governos estão satisfeitos: por vários dias Honduras e El Salvador ocuparam as primeiras páginas da imprensa mundial e foram objeto de interesse e preocupação. A única chance que pequenos países do Terceiro Mundo têm de despertar vivo interesse internacional é quando decidem derramar sangue. Isto é uma triste verdade, mas é assim.

O jogo decisivo da melhor de três foi realizado em campo neutro, no México (El Salvador venceu, 3×2). Os torcedores hondurenhos foram colocados de um lado do estádio, os salvadorenhos do outro, e no meio sentaram-se 5.000 policiais mexicanos armados com grossos cacetetes” (p. 184).

O esporte e o lazer noutros capítulos

Os espaços de lazer e o esporte aparecem, em menor escala, em alguns outros textos. Logo no seguinte, “Victoriano Gomez na TV”, a chapa continua quente. O tema é a transmissão ao vivo, pela televisão, da execução de um guerrilheiro de 24 anos que lutava contra a concentração latifundiária:

“Victoriano Gomez morreu em 8 de fevereiro na pequena cidade de San Miguel, El Salvador. Ele foi morto a tiros sob o sol da tarde, no estádio de futebol. Havia gente sentada na arquibancada do estádio desde a manhã. Furgões de rádio e televisão chegaram. Os cinegrafistas armaram seus equipamentos. Alguns fotógrafos se posicionaram no campo de jogo verdejante, agrupados em volta de uma das balizas. Parecia que uma partida estava prestes a começar.

(…) as pessoas (…) compravam sorvetes e bebidas geladas. As crianças faziam a maior parte do barulho. Quem não achava lugar na arquibancada, subia numa árvore para ver.

Um caminhão do Exército adentrou o campo. Primeiro, saíram os soldados que estariam no pelotão de fuzilamento. (…) [Victoriano Gomez] olhou para as arquibancadas, e disse bem alto (…): ‘Sou inocente, meus amigos’.

O estádio ficou em silêncio de novo, embora assovios de reprimenda pudessem ser ouvidos desde os lugares de honra onde os dignitários locais estavam sentados.

As câmeras foram ligadas: a transmissão ia começar. Por todo El Salvador, o povo estava assistindo à execução (…) na televisão.

Victoriano estava de pé próximo à pista de atletismo, encarando a arquibancada. Mas os cinegrafistas gritaram para ele ir para o meio do estádio, de forma que eles tivessem mais luz e uma cena melhor. Ele compreendeu e caminhou de volta até o centro do campo (…). Agora apenas uma pequena figura podia ser vista da arquibancada, e isso era bom. A morte perde sua literalidade naquela distância: deixa de ser morte e torna-se o espetáculo da morte. Contudo, os cinegrafistas fizeram um close-up de Victoriano; o rosto dele preenchia a tela; as pessoas assistindo pela televisão viam mais do que o público reunido no estádio.

Após a salva de tiros do pelotão, Victoriano caiu e as câmeras mostraram os soldados cercando seu corpo para contar as perfurações. (…)

Estava tudo terminado. A arquibancada começou a se esvaziar. A transmissão terminou. (…) Sua [de Victoriano] mãe ficou um pouco mais, sem se mexer, cercada por um grupo de pessoas que olhavam para ela em silêncio” (p. 185-6).

Lendo tal narrativa, penso nos pesquisadores e professores da área de Comunicação (existem também em outras áreas das Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas) que continuam tratando espetáculo e entretenimento como elementos estranhos ao esporte (ou, pior ainda, à “essência” do esporte) e que apenas recentemente adentraram o campo esportivo. Um pouco de leitura de história do esporte talvez caísse bem…

Em “Lumumba”, sobre o líder congolês, descreve o ambiente do Alex, “meu bar preferido na África”. Um trecho:

“Isto é uma segunda casa. (…) Casa é restrição e o bar é liberdade. Um informante branco não irá a um bar, porque uma pessoa branca iria se sobressair. Portanto, você pode falar de tudo. O bar está sempre repleto de palavras. O bar delibera, argumenta e pontifica. O bar topa qualquer assunto (…). Reputações (…) nascem aqui. (…) Se você encanta o bar, terá uma carreira de sucesso; se o bar escarnece de você, você pode voltar direto para a selva. (…) Alguém gesticula, uma mulher nina um bebê, risadas explodem em outra mesa. Fofoca, febre e muita gente. Aqui eles estão negociando o preço para passarem uma noite juntos, ali eles estão delineando um programa revolucionário, na mesa ao lado alguém está recomendando um bom feiticeiro, e acolá alguém está dizendo que vai ter greve. Um bar como este é tudo que você pode desejar: um clube, uma casa de penhores, um calçadão, uma varanda lateral de igreja, um teatro e uma escola (…).

Você tem que levar em consideração os bares e Lumumba compreendia isto perfeitamente. Ele também aparece para uma cerveja.” (p. 52-3)

Em “Algeria Hides Its Face” (“A Argélia esconde seu rosto”), ao narrar as atividades de Ben Bella na véspera do golpe que sofreu na Argélia: “Na sexta-feira, 18 de junho, poucas horas antes do coup, Ben Bella discursou numa manifestação em Orã. (…) Depois, foi a uma partida de futebol – ele nunca perdia um jogo (…)” (p. 113).

Segundo Kapuscinski, “Ben Bella tinha (…) uma personalidade fascinante. O futebol era sua paixão. Ele adorava assistir e também jogar. Com frequência, entre uma reunião e outra, ele dirigia até um campo de futebol e ficava chutando uma bola. Nesses jogos improvisados, a companhia mais próxima de Ben Bella era outro entusiasmado jogador de futebol, o ministro do exterior e um dos organizadores do complô contra o próprio Ben Bella: Abdel Azis Buteflika” (p. 96).

Fiquei pensando no argumento que vem sendo desenvolvido por pesquisadores de história da África como Victor Andrade de Melo e Marcelo Bittencourt (2012, 2013) de que diversos líderes revolucionários das lutas de independência contra Portugal tinham intenso envolvimento com o esporte, particularmente com o futebol.

O texto também faz uma extensa análise de problemas que cercam os governos de países recém-independentes, as realizações de Bella, o lugar de destaque ao qual a Argélia foi alçada no cenário internacional, particularmente no que diz respeito às lutas de esquerda e anti-imperialistas. A análise política é entremeada com episódios cotidianos e histórias saborosas, algumas delas envolvendo o esporte.

A narrativa e a trajetória do autor

A prosa de Kapuscinski tem características interessantes, misturando o formato de reportagem com o de diário, relato de viajante, obra de ficção. O jornalista era daqueles que gostavam de se jogar no olho do furacão: guerras, revoluções, guerras civis: falou em confusão, em dramas humanos e em lugares e situações de que a maioria dos repórteres quer distância, lá ia ele.

Outro aspecto interessante são suas convicções políticas, assim como o fato de ser polonês e trabalhar para uma agência de notícias de um país do bloco comunista. Por um lado, a narrativa tem momentos de um certo preconceito de europeu viajando ao Terceiro Mundo, além de momentos de incompreensão face ao que vê. Em “A Dispute over a Judge Ends in the Fall of a Government” (algo como “Uma contenda sobre um juiz vai dar na queda de um governo”):

“Há vários meses o Estado parara de funcionar. O gabinete não se reunira; o país estava paralisado.

Aqui podemos ver perfeitamente os mecanismos da política na África: o Daomé é um país pobre e subdesenvolvido. Tirar o Daomé da pobreza exigirá um esforço enorme, união de forças e educação. Mas ninguém sequer está trabalhando” (p. 123).

A isto se somam situações difíceis que se criam devido à aparência física de branco europeu, semelhante às dos opressores/colonizadores. Em “The Offensive” (“A Ofensiva”):

“Pensei em ir lá e explicar: sou da Polônia. Aos dezesseis anos de idade, entrei para uma organização de jovens. Nas faixas daquela organização estavam escritos slogans sobre a fraternidade das raças e o esforço comum contra o colonialismo. Organizei manifestações de solidariedade aos povos da Coreia, do Vietnã e da Argélia, com gente de todo o mundo. (…) Sempre considerei os colonialistas os piores vermes que existem” (p. 63).

Há vários episódios de risco, como tentativas de desenrolo ao levar dura de policiais, militares, guerrilheiros e/ou bandos armados de difícil classificação; há também uma impressionante narração do que se sente ao levar uma picada de escorpião no meio da noite.

Por outro, trata-se de alguém simpático às reivindicações populares e às causas da esquerda; e oriundo de um país periférico no próprio cenário europeu, e que não colonizou territórios nos demais continentes. O assunto vem à tona, por exemplo, num papo com alguns membros do conselho de anciãos de uma vila em Gana, em que a ajuda de Kofi, um amigo e intérprete, foi fundamental para explicar a eles que a Polônia, da qual nunca haviam ouvido falar, não tinha colônias e que “nem todos os brancos são colonialistas”. O papo desemboca numa discussão sobre colonialismo e pós-colonialismo. Prossegue Kofi, a respeito de sua terra natal: “Por cem anos eles nos ensinaram de que o branco é alguém maior, super, extra. Eles tinham seus clubes, suas piscinas, seus bairros, suas putas, seus carros e sua língua balbuciante. Nós sabíamos que a Inglaterra era o único país do mundo, que Deus era inglês, que apenas os ingleses viajavam pelo mundo. Sabíamos justamente o quanto eles desejavam que soubéssemos. Agora é difícil mudar” (p. 231).

Há muitas reflexões sobre a guerra, abordando temas como as perdas humanas; ou as transformações introduzidas por novas máquinas de matar:

“Agora os tempos mudaram, e a face da guerra mudou. Os homens foram retirados do campo de visão no terreno de batalha. Vemos equipamentos. Vemos tanques, artilharia automática, foguetes e aeronaves. Oficiais apertam botões num bunker, observam os saltos de uma linha verde numa tela, manipulam um joystick e apertam outro botão. Um bum, um silvo, e em algum lugar, à distância, um tanque se desintegra, nalgum trecho do céu um avião se despedaça” (p. 203-4).

Livro com bônus

inside-travelerComo às vezes acontece com livros usados, este veio com três itens:

1) Um cartão postal de uma companhia aérea dos EUA, estampando um modelo 767.

2) Uma resenha recortada (e cortada; ver imagem à esquerda), ao que parece, de uma revista chamada Inside Traveler, repleta de elogios ao que define como “uma coletânea de artigos das viagens de Kapuscinski como correspondente da Agência de Imprensa Polonesa (…), parte relato de viagem, parte reflexão filosófica sombria, parte narrativa de aventura no fio da navalha”.

3) E um recorte de jornal (à direita), evidenciando que a morte do escritor, como diria Jorge Benjor, deu no New York Times. No obituário, fiquei sabendo que ele chegou a escrever para a revista do próprio jornal. Termina mais ou menos assim:obituario-nyt0003

“‘Existe, admito, um certo egoísmo no que escrevo’, disse ele certa vez, ‘sempre reclamando do calor ou da fome ou da dor que sinto. Mas é terrivelmente importante ter o que escrevo autenticado por ter sido vivido. Você pode chamar isso, suponho, de reportagem pessoal, porque o autor está sempre presente. Eu às vezes chamo de literatura a pé.”

Observando os itens, me parece que, antes de vir parar no Rio de Janeiro, o exemplar pertenceu a alguém interessado em literatura de viagens/viajantes.

Referências bibliográficas

KAPUSCINSKI, Ryszard. The Soccer War. New York: Alfred A. Knopf, 1991.

MELO, Victor Andrade de; BITTENCOURT, Marcelo. Sob suspeita: o controle dos clubes esportivos
no contexto colonial português. Revista Tempo, Niterói, v. 17, n. 33, p. 191-215, dez. 2012.

______. O esporte na política colonial portuguesa: o Boletim Geral do Ultramar. Revista Tempo,
Niterói, v. 17, n. 34, p. 69-80, jan.-jun. 2013.

Para quem tiver curiosidade, diversos livros de Kapuscinski estão traduzidos no Brasil.

[Adendo em 27/4/2017: recomendo também esta entrevista (em inglês) a respeito da documentação sobre a Guerra do Futebol nos arquivos da CIA, nos EUA.]


Uma aventura juvenil na África do Sul

06/10/2014

Por Rafael Fortes

Uma garota rica que vive na Califórnia parte para a África do Sul para conhecer a terra de sua finada mãe, viajando e surfando. Esta é a trama inicial de A Onda dos Sonhos 2, dirigido por Mike Elliott e lançado em 2011. Neste texto, chamo a atenção para dois aspectos desta obra: o protagonismo feminino e o papel da África do Sul (outros elementos foram explorados no artigo que deu origem a este texto).

Protagonismo 110719081405832853feminino

Onda 2 foi lançado nove anos após o original. Embora a trama não seja uma sequência do primeiro – as atrizes principais tampouco são as mesmas -, um dos pontos em comum é ser protagonizado por mulheres surfistas. Trata-se de algo raro na filmografia sobre a modalidade, amplamente dominada por homens nos papéis principais.

Dana torna-se amiga de Pushy, sul-africana cujo sonho é aprender a realizar uma manobra (aéreo 360) e vencer a seletiva para a equipe Roxy, da qual já faz parte Tara, a sul-africana que fecha o trio. Tara é a antagonista de Dana.

Por falar em Roxy, a ampla presença da marca na trama é uma das chaves explicativas para compreender a realização do filme. O nicho feminino vem apresentando taxas de crescimento significativas nos últimos anos, amplicando um mercado consumidor que, décadas atrás, atingia majoritariamente os homens.

No making of, surfistas profissionais (homens e mulheres) afirmam ter a expectativa de que, tal como ocorrera com A Onda dos Sonhos (de 2002), Onda 2 contribua para divulgar o surfe feminino e estimule muitas a garotas a começar a surfar. Segundo este ponto de vista, filmes como Onda 1 e Onda 2 estimulam o crescimento de uma prática social – surfar – profundamente articulada a uma indústria florescente. Neste contexto, cabe ressaltar que a Roxy é a marca criada pela Quiksilver (uma das principais multinacionais do surfe mundial) voltada para o público feminino. Os logotipos abaixo explicitam a relação entre ambas: Roxy, à esquerda; Quiksilver, à direita.

roxy_logo quiksilver

 

África do Sul

Onda 2 apresenta a África do Sul como um país de paisagens exuberantes, repleto de belos locais para o turismo, a prática do surfe e o contato com a natureza. Não é acaso o filme ter sido rodado em 2010: os governos sul-africanos vêm investindo no esporte como ferramenta para promover uma imagem positiva do país e incrementar o fluxo turístico. A Copa do Mundo de futebol realizada em 2010 é o principal exemplo desta política – e das consequências para setores da população local (como discuti em texto sobre o documentário Cidade de Lata).

A tarefa é árdua, tendo em vista o período de segregação racial como política de Estado, que recebeu ampla divulgação e condenação ao redor do mundo. Isto incluiu o próprio universo esportivo, com boicotes que vigoraram durante décadas.

Aos investimentos no esporte soma-se uma política de incentivos estatais para a indústria cinematográfica, sobretudo para coproduções que sejam rodadas em solo sul-africano. De acordo com documentos oficiais, os objetivos são o fortalecimento do cinema no país, bem como os benefícios econômicos relativos aos gastos durante o período de produção e à contratação de mão-de-obra local.

As gravações de Onda 2 foram realizadas no país e, como dito, é nele que se passa a trama. A aventura e o desejo da protagonista de conhecer os lugares mencionados no diário de sua mãe, bem como surfar as mesmas ondas, funciona como um pano de fundo que permite a circulação das personagens por diferentes regiões e paisagens.

O gran finale se passa em Jeffrey´s Bay, principal destino de surfe do continente africano e um dos locais mais famosos para a prática do esporte no mundo.

Para saber mais

FORTES, Rafael. Surfe feminino, indústria do surfwear e promoção da África do Sul: uma análise de A Onda dos Sonhos 2. Licere, Belo Horizonte, v. 17, n. 2, p. 283-311, jun. 2014.


Ginástica alemã na África colonial

14/04/2014

Sílvio Marcus de Souza Correa
Institut d’études avancées de Paris

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A ginástica fez parte dos fundamentos da cultura física na Alemanha desde o último quartel do século XIX. Em 1884, quando o imperialismo alemão entrou na “Partilha da África”, a ginástica se tornou uma prática esportiva recomendada aos corpos expostos aos rigores mesológicos do continente africano. As sociedades de ginástica (Turnvereine) tiveram um papel fundamental na organização da vida social e desportiva das comunidades alemãs, especialmente aquelas de Swakopmund, Windhoek, Lüderitzbucht e Keetmanshoop, na então colônia alemã do sudoeste africano (atual Namíbia).

Juntamente com as caçadas e as corridas de cavalo, a ginástica foi a base do incipiente campo esportivo na África colonial. A ginástica serviu ainda como forma de treinamento, pois o conflito armado fazia parte da ordem colonial. Para a prática da ginástica, havia treinos semanais e torneios anuais. Para a prática da ginástica, uma série de materiais era importada da Europa, especialmente da Alemanha. Autoridades locais, comerciantes, funcionários da administração colonial, oficiais da marinha ou da tropa militar, familiares e demais amadores do esporte formavam um público cativo em competições e torneios e, por conseguinte, eram também protagonistas do incipiente campo esportivo do sudoeste africano.

Apesar do apartidarismo político e religioso de seus estatutos, as sociedades de ginástica foram espaços sociais onde se propagaram algumas ideologias. Na colônia alemã do sudoeste africano, por exemplo, as sociedades de ginástica participaram não apenas para a formação do campo esportivo, mas também para a manutenção e propagação do germanismo e para a estruturação de um calendário esportivo nos quais os torneios eram também momentos de celebração do colonialismo.

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As sociedades de ginástica do sudoeste africano

As primeiras sociedades de ginástica do sudoeste africano foram fundadas em Swakopmund (1898) e Windhoek (1899). Segundo matéria do jornal Windhoeker Anzeiger, de 14 de fevereiro de 1900, entre os objetivos das sociedades de ginástica estava a prática de exercício para a força física e mental e a “preservação de um saudável sentimento patriótico”. Outras sociedades de ginástica foram fundadas durante a guerra colonial (1904-1908) como a sociedade de ginástica de Keetmanshoop e a de Lüderitzbucht, fundadas respectivamente em 20 de abril e 26 de novembro de 1907.

EmKaribib e Usakos também surgiram sociedades de ginástica. Até na Cidade do Cabo foifundada uma sociedade de ginástica em meados de 1911 com 30 membros ativos. Os treinos eram realizados na escola alemã (Deutsche Schule), na Queen Victoria Street.

As sociedades de ginástica tinham um estatuto próprio. Mas a orientação era comum e seguia, de modo geral, a matriz alemã. Segundo o estatuto da sociedade de ginástica de Keetmanshoop, o seu duplo objetivo era o aperfeiçoamento físico e espiritual e a preservação do germanismo. Para isso, fazia-se necessário o treinamento regular e os torneios em vida associativa.

Em contexto colonial, a prática da ginástica era uma forma de distinção entre os adventícios e os nativos. Mas ela também servia para marcar diferenças no interior da comunidade germânica na colônia alemã do sudoeste africano. Dito de outra forma, as sociedades de ginástica eram instituições de controle social.

Conforme o estatuto dasociedade de ginástica “Gut Heil” estava proibida a candidatura de qualquer cidadãocom menos de 17 anos, conscientemente contrário ao germanismo e/ou que fosse casadocom mulher de cor. Uma vez preenchidos os critérios para a candidatura, essa deveriaser formalizada por escrito. Em reunião mensal da sociedade, elegia-se em votaçãosecreta os novos membros. Para um nome ser aprovado era preciso a concordância damaioria dos associados presentes na reunião. Já um associado inadimplente ou queperdesse o seu direito de cidadania ou fosse condenado por algum crime poderia serexcluído da sociedade de ginástica.

Em suma, os valores implícitos ao germanismo e ao colonialismo alemão parecem incontornáveis à compreensão sociológica e histórica da emergência das sociedades de ginástica na então colônia do sudoeste africano.

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Referências

CORREA, S. M. S. As corridas de cavalos na colônia alemã do sudoeste africano (1884-1914). Cadernos de Estudos Africanos, p. 02-18, 2013.

CORREA, S. M. S. Caça e preservação da vida selvagem na África colonial. Esboços Revista do PPGH/UFSC, v. 18, p. 164-183, 2012.

CORREA, S. M. S. Colonialismo, germanismo e ginástica no sudoeste africano. Recorde: Revista de História do Esporte, v. 5, p. 134-156, 2012.

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O hóquei em patins entre Lisboa e Lourenço Marques

16/08/2013

por Sílvio Marcus de Souza Correa

Coordenador do Laboratório de Estudos em História da África (LEHAf) da Universidade Federal de Santa Catarina

(http://lehaf.paginas.ufsc.br/)

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Em seu livro Aventura e Rotina (1953), Gilberto Freyre apontou para algumas influências culturais britânicas – como a prática de certos esportes – na cidade de Lourenço Marques então capital da África Oriental Portuguesa. A vizinhança com a Rodésia e a África do Sul poderia ser um fator explicativo para isso. Mas algumas modalidades esportivas de origem inglesa já eram praticadas na metrópole portuguesa no final do século XIX. Assim, a emergência de uma ou outra modalidade esportiva em contexto colonial teve, geralmente, origem múltipla. Isso significa que, além de uma eventual influência mais ou menos direta da metrópole, o campo esportivo na “África portuguesa” recebeu influências indiretas de outros países. Havia também uma difusão de práticas esportivas entre diferentes colônias africanas.

No caso do hóquei, o primeiro ringue de patins do império português não foi construído na metrópole, mas nos confins do império: No teatro Varietá, em Lourenco Marques, no início do século XX. Aliás, foi neste ringue que o menino Magalhães começou a andar sobre rodas. Vinte anos depois, já em Lisboa, o jovem Magalhães faria parte do quinteto da equipe portuguesa. Desde então, a presença de jogadores do Ultramar foi uma constante na equipe de hóquei em patins que representava Portugal em competições internacionais.

Em seu livro O hóquei em patins em Portugal (1991), Silvestre Lacerda informa que, na Lisboa da Belle Époque, a patinagem em recintos públicos era realizada no Colégio Militar e na Escola Académica. Além desses locais, o jornal Os Sports, de 12 de fevereiro de 1908, informa que a garagem da Sociedade Portuguesa de Automóveis, na rua Alexandre Herculano, tinha se tornado ponto de encontro da “sociedade elegante” para o exercício da patinagem (Lacerda, 1991:14).

Vale lembrar que patinagem e patins de campo concorriam com o hóquei em patins nos primórdios dos esportes sobre rodas. Segundo o depoimento de Rogério Futsher, o hóquei em patins foi introduzido em Lisboa por amadores da patinagem em 1915.

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Os primeiros jogos, o campeonato nacional e a internacionalização dos jogadores da província de Moçambique

Em Lisboa, o primeiro jogo de hóquei em patins teria sido organizado pelos Desportos de Benfica, no seu ringue, na Avenida de Gomes Pereira. Duas equipes deste clube efetuaram o primeiro jogo com regras, balizas, campo marcado, jogadores equipados e sticks ingleses. (Futsher apud Silvrestre, 1991:20). Já em 1916, ocorrem os primeiros jogos entre clubes.

O primeiro campeonato organizado pelo Sport Lisboa Benfica foi em 1917.

Somente em 1921 foi fundado um clube dedicado unicamente ao hóquei: O Hockey Club de Portugal. Vale destacar que a prática do hóquei por mulheres já era uma realidade na década de vinte. Nos ringues de S. João do Estoril e Amadora mulheres praticavam o esporte (Lacerda, 1991:28). Mas os primeiros jogos e campeonatos foram exclusivamente masculinos.

Nos primeiros anos da década de 20, os campeonatos foram organizados pela Liga Portuguesa de Hockey (LPH). Em 1925, a LPH se transforma em Federação Portuguesa de Hockey, sob a presidência de Rogério Futsher.

Na década de 1930 houve a participação em nível europeu da seleção portuguesa de hóquei. No início da década de 30, havia ocorrido a separação das duas modalidades de hockey (patins e de campo) O futebol também conquistava mais adeptos e concorriam com a preferência da assistência e mesmo de alguns atletas.

Em termos de infraestrutura, surgem novos ringues em várias cidades portuguesas (Tomar, Aveiro, Coimbra, Sintra…) ao longo da década de 30. Isso favoreceu o calendário esportivo e os campeonatos em nível nacional.

Na década de 1940, a equipe portuguesa de hóquei em patins já tinha prestígio internacional. Tal fama esportiva foi ideologicamente instrumentalizada pelo colonialismo. Após a vitória do campeonato mundial em 1947, o regime de Salazar se valeu do hóquei para a sua propaganda colonial.

Conforme Lacerda (1991:66), “com o intuito de alargar a influência da modalidade e contribuir para mais uma jornada de propaganda do regime colonial, foi organizado um périplo por terras da África.” Em 1949, na revista O Patim, o Presidente da Federação Portuguesa de Patinagem, o senhor Santos Romão, relatou a estadia da comitiva portuguesa em terras moçambicanas nos seguintes termos: “Feliz iniciativa (por todos os títulos), aquela que o simpático e valoroso Grupo Desportivo de Lourenço Marques teve em promover a deslocação às terras portuguesíssimas do Ultramar, da equipa nacional de hóquei em patins – glória do Portugal desportivo” (Lacerda, 1991: 66-67).

No âmbito da difusão do hóquei em patins realizou-se em 1957 um torneio internacional na cidade de Lourenço Marques. Na foto abaixo, mostra-se a equipe “moçambicana” que venceu os Campeões do Mundo (a Espanha) por 5 a 1. O troféu foi entregue pela diva do fado Amália Rodrigues.

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Em 1955, a equipe de hóquei em patins do Sindicato Nacional dos Empregados do Comércio e da Indústria (SNECI), de Moçambique, visitou Portugal. O delegado desportivo do SNECI era Armando Ribeiro. A equipe do SNECI era constituída por Alberto Moreira, Carlos da Ponte, Salvador Calado, António Souto, José Souto, Amadeu Bouçós, Cabral de Almeida, Fernando Adrião e Francisco Velasco.

A equipe moçambicana jogou em várias cidades de Portugal como Braga, Viana de Castelo, Guimarães, Porto, Aveiro, Coimbra e Lisboa. A equipe do SNECI perdeu apenas para as seguintes equipes: Clube Atlético Campo de Ourique, Sport Lisboa Benfica e Hockey Club de Sintra.

Essa tournée renovou o hóquei em nível nacional e lançou os atletas moçambicanos ao nível internacional. Em 1958, eles seriam responsáveis pela vitória do torneio de Montreux, na Suíça.

Em Aspectos Geográficos do Futebol em Portugal (1977), Jorge Gaspar fez uma relação interessante entre aspectos sociológicos e de geografia urbana para o futebol. À sua acurada observação foi alvo a prática do hóquei em Lisboa, onde a localização dos clubes correspondia à zona de residência das classes mais abastadas. De 12 equipes que disputavam a qualificação para a primeira divisão em 1977, apenas uma se localizava numa área industrial, por conseguinte, num bairro operário. “ A introdução do hóquei em patins verificou-se na parte ocidental da aglomeração de Lisboa e a sua difusão processou-se primeiro e sobretudo através deste sector, onde predomina a população mais rica e que se emprega em atividades terciárias”. (Gaspar, 1977:14).

Conforme Lacerda (1991:70-71), o material (patins, sticks, etc.) representava um custo elevado para os amadores do hóquei. Entre os primeiros jogadores, 30% eram comerciantes, 26% empregados de escritório, 13% bancários e 17% outras profissões liberais. O custo elevado do material pode ser um dos fatores explicativos para a exclusão dos ringues em Moçambique de atletas de cor.

Em 1963, ocorreu a primeira edição da Taça Portugal. Em 1964, o vencedor foi o clube moçambicano C. D. Malhangalene. Em termos políticos, o campeonato nacional de hóquei se valia da estrutura colonial. Ao mesmo tempo, o colonialismo infringia à realização do campeonato uma série de barreiras como, por exemplo, o alto custo com o deslocamento das equipes vencedoras dos campeonatos realizados na Metrópole, Angola e Moçambique. Por isso, os responsáveis federativos apresentaram no Congresso, em 1967, um novo modelo para o campeonato nacional de hóquei.

A inovação constituía na realização duma fase final que englobava os campeões da Metrópole, Angola e Moçambique, a que se juntaria outro clube da região onde essa fase se disputasse. No projeto, previamente apresentado, o campeonato seria disputado, em sistema rotativo, nas cidades de Lourenco Marques, Lisboa, Luanda e Porto. Em 1967, Porto foi excluída do esquema o que desencadeou protestos dos amadores de hóquei naquela cidade. (Lacerda, 1991:56).

Novas normas para a disputa do campeonato nacional visavam ampliar a participação de clubes das províncias ultramarinas, o que permitiu a conquista do troféu por equipes de Moçambique, em 1962, 69, 71 e 73. Mas o hóquei em patins em Moçambique iria percorrer um novo curso com a independência. Na sociedade moçambicana pós-colonial, o campo esportivo viria a ter novas configurações. O hóquei em patins se tornaria um esporte insólito.

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Francisco Velasco: de amador do hóquei a ícone internacional

16/08/2013

por Eric Alves dos Santos (bolsista PRAE/UFSC)

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O Hóquei em Patins em Moçambique foi uma das principais modalidades desportivas em Lourenço Marques na primeira metade do século XX e uma das primeiras a ganhar popularidade. O idealizador do primeiro ringue de hóquei em patins naquela cidade foi Giuseppe Buffa Buccelatto, jovem siciliano do ramo de construção civil. Desportista, ele chegou a tornar-se o capitão da primeira equipe de Hóquei em Patins de Lourenço Marques.

Outros jogadores de Hóquei ainda hoje são lembrados com saudosismo. A fase heroica do Hóquei moçambicano compreendeu os anos de1957 a 1964. Nesse período alguns atletas moçambicanos fizeram parte da Seleção Portuguesa de Hóquei.

Periódicos metropolitanos exaltavam os feitos heroicos dos atletas moçambicanos. Também na imprensa colonial se fazia eco ao heroísmo esportivo dos amadores do hóquei em patins. Para ficar num exemplo, foi estampada a figura do jogador de Hóquei Francisco Velasco numa capa do periódico dominical “Diário Ilustrado” de Lourenço Marques no ano de 1958. Francisco Velasco foi considerado um dos melhores jogadores de todos os tempos.

Em entrevista concedida recentemente (Lisboa, 08/03/2013), o ex-jogador e ex-técnico da seleção moçambicana, Francisco Velasco, destacou o predomínio dos jogadores de Lourenço Marques no selecionado português:

 Fomos Campeões do Mundo, da Europa e vencemos todos os torneios internacionais que disputámos, durante cinco anos. Éramos efectivos numa equipa de cinco, com um único metropolitano inserido no time.

Nascido em Goa em 1934 e passado toda a sua infância e adolescência em Moçambique, Velasco esteve presente em cinco desses oito anos de conquistas para Seleção Nacional Portuguesa de hóquei em patins. Francisco Xavier Franco Bélico de Velasco, começou a praticar o hóquei em 1949. Naquele ano, a Seleção Nacional Portuguesa e atual Campeã do Mundo desembarcou em Lourenço Marques para inaugurar o então novo ringue do Grupo Desportivo daquela cidade.

Dividido entre os ringues de hóquei e sua profissão de Topógrafo-Hidrógrafo, Velasco foi literalmente um grande amador do hóquei.

 (…) não vivia do Hóquei, era apaixonado quando jogava, apaixonado quando pensava em termos de Hóquei, mas procurei sempre separar o desporto e a minha profissão, pois não ganhava dinheiro com o primeiro, jogava por prazer, tal como os meus colegas. Era um atleta amador, portanto amava.

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Campeonato do Mundo – Madrid 1960 – Portugal x Espanha.
Em destaque, Francisco Velasco, atleta moçambicano defendendo a seleção portuguesa.

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Alguns jogadores de hóquei de Moçambique circularam por vários cantos do império português. Alguns deles gozaram de fama e prestígio. Ao referir-se sobre a sua estadia em 1961 em Timor Leste (também colônia portuguesa à época), Velasco informou o seguinte:

 Nós, quando chegávamos ou quando andávamos na rua, na estrada, quando ia ao cinema, todos eles nos conheciam. Eu quando fui pra Timor, foi pra fugir do assédio, por que a vida já não era minha, compreende?

Para Velasco, a “época de ouro” do Hóquei em Patins moçambicano foi um período muito criativo, em que os jogadores tinham liberdade para fazer “fintas” com o stick e, talvez, essa forma de jogar conjugada a outros fatores sociológicos pode explicar a popularidade do Hóquei em Patins entre moçambicanos em meados do século XX.

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Desafiando o inimigo: o esporte e as lutas anticoloniais na Guiné

25/05/2013

Por Victor Andrade de Melo

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Da mesma forma que foi utilizado pelas autoridades governamentais tendo em vista os intuitos de manutenção do império português, o esporte também foi mobilizado pelas lideranças das lutas anticoloniais na Guiné Portuguesa (futura Guiné Bissau). Pode-se observar tal dimensão em algumas iniciativas de um dos principais personagens das lutas pela independência, um dos mais importantes intelectuais e líderes africanos do pós-Segunda Grande Guerra: Amílcar Cabral.

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Filho de cabo-verdianos, nascido na Guiné Portuguesa (em 1924), com oito anos Amílcar chegou a Cabo Verde, acompanhando seu pai, Juvenal Cabral, personagem de certa proeminência na história do arquipélago, que retornava à sua terra natal. Desde o tempo em que fora aluno de destaque no importante Liceu Gil Eanes (Mindelo, Ilha de São Vicente), Amílcar esteve envolvido com agremiações esportivas e associações juvenis, nas quais começou a tomar consciência da situação das colônias. Bom jogador de futebol, era apaixonado pelo esporte em geral.

Em 1945, Amílcar se deslocou para Lisboa, para estudar, como bolsista, no Instituto Superior de Agronomia. Por lá esteve envolvido com as atividades da Casa dos Estudantes do Império, do Clube Marítimo Africano, da Casa de África e do Centro de Estudos Africanos, instituições nas quais se formou uma parte importante das lideranças das lutas anticoloniais.

Cabral era presença constante nos eventos esportivos, se destacando nas diversas equipes de futebol que integrou. A sua paixão pelo esporte pode ser vista na caricatura realizada por um colega de turma, José Carlos Sousa Veloso, publicada no livro de final de curso (1945-1946) do Instituto Superior de Agronomia: é retratado de uniforme, meiões e chuteiras; nas mãos tem livros de Engels, Lênin e Dostoievski; seu amor por Cabo Verde é explicitado por suas lágrimas caindo sobre a representação do arquipélago em um globo.

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Desde que regressou à Guiné, em 1952, na condição de engenheiro agrônomo a serviço do Ministério do Ultramar, Amílcar se mobilizou para criar um clube esportivo para os naturais da província, vislumbrando que a agremiação deveria investir na elevação do nível cultural dos associados. Em 1954, funda o Clube Desportivo e Recreativo de Bissau. Nas suas palavras:

Antes de darmos início à luta armada, decidimos criar organizações africanas. Em 1954 começamos por criar organizações recreativas, já que era impossível nessa altura dar-lhes um caráter político. Isso foi importante não por causa da ideia de criar uma associação, mas porque o colonialismo não o permitiu, o que provou às grandes massas de jovens que se tinham entusiasmado por esta ideia, que sob o domínio português os africanos não tinham quaisquer direitos. Isso deu-nos mais coragem para outras ações, para difundir outras ideias e para fazer avançar a luta.

O clube fora concebido como uma estratégia para gestar um espaço para a realização de atividades políticas, em um momento em que estava restrita a possibilidade de reunião. Tinha também a intenção de garantir o que Cabral compreendia ser um direito básico de todos: o acesso a práticas esportivas, recreativas, artísticas. Amílcar, enfim, enxergava a iniciativa como uma alternativa para despertar a consciência da população para sua condição colonial, para conclamá-la a participar mais ativamente de ações de contestação.

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Essa foi, na verdade, uma estratégia política comum na trajetória de Amílcar Cabral: “formar pequenos grupos para discutir diversos assuntos culturais, relacionados com a literatura e poesia, por exemplo, e, ao mesmo tempo, ir destacando os elementos mais conscientes para, numa fase posterior, desenvolver um trabalho mais político e mais arriscado” (TOMÁS, 2008, p. 88).

Ao conclamar a juventude a participar dos movimentos anticoloniais, Cabral explicitava sua visão acerca da importância do esporte como estratégia de aglutinação, que precisa, contudo, depois ser superada com outro tipo de envolvimento:

Nessa grande batalha da justiça contra a injustiça, a juventude guineense e cabo-verdiana tem de desempenhar um papel importante. E é por isso que a nossa juventude se organiza cada vez mais, abandona o campo de futebol ou de basquetebol e todos os divertimentos fáceis, para se preparar  cuidadosamente para, no campo de batalha, empregar todas as suas forças, toda a sua inteligência, pela vitória da causa de nossos povos.

Essa postura era coerente com a sua ideia de que a cultura popular deveria formar a base para a luta anticolonial. Para ele, inclusive, não se tratava de negar, mas sim de reavaliar as bases culturais coloniais, as utilizando para fins de contraposição, de construção de uma nova ordem social.

No caso do futebol, antes mesmo da iniciativa de criação do Desportivo e Recreativo de Bissau, Cabral já se oferecera e atuara como técnico de equipes locais da Guiné. Na verdade, como o grupo inicial de engajados com suas propostas era formado majoritariamente por cabo-verdianos, tratava-se também de uma alternativa para buscar maior proximidade com os guineenses. Abílio Duarte lembra que:

O Cabral destinou-me ao Sporting, que era o clube mais anti-caboverdiano naquela altura. Entretanto, as coisas foram andando…Do meu lado, quebrei a vidraça da cachupa: acabei por estabelecer um relacionamento profundo com os guineenses, sem romper contudo os meus laços com os cabo-verdianos. Havia um casulo em que os cabo-verdianos viviam. Formavam um mundo à parte, só seu.

 Aristides Pereira, futuro primeiro presidente de Cabo Verde (1975-1991), também lembra que, até por não haver possibilidades de falar sobre política, se interessava muito: “pela camada jovem guineense, principalmente desportistas, e procurava incutir-lhes o gosto e a necessidade de aprender para além da instrução primária a que estavam confinados por lei”.

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Foto da seleção de futebol da Província Portuguesa da Guiné. Disponível em: http://blogueforanadaevaotres.blogspot.com.br/2011/10/guine-6374-p8947-notas-de-leitura-292.html

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O futebol foi, portanto, uma das estratégias perspectivadas para tentar romper as desconfianças históricas que existiam entre cabo-verdianos e guineenses, o que não era de se estranhar já que muitos originários do arquipélago ocuparam postos ligados à administração da Guiné.

Mesmo que supostamente disfarçado o aspecto político, a Polícia de Segurança Pública (PSP) não tardou a desconfiar da iniciativa de criação do Desportivo e Recreativo de Bissau:

o Engenheiro Amílcar Cabral e a sua mulher comportaram-se de maneira a levantar suspeitas de atividades contra a nossa presença nos territórios de África com exaltação de prioridade de direitos dos nativos e, como método de difundir as suas ideias por meios legalizados, o Engenheiro pretendeu e chegou a requerer juntamente com outros nativos, a fundação de uma agremiação desportiva e recreativa de Bissau, não tendo o Governo autorizado.

 Os agentes policiais não estavam equivocados. Hoje se sabe que a experiência do clube foi uma das significativas iniciativas que antecederam e contribuíram para a criação do PAIGC. Segundo o próprio Amílcar:

As tentativas de organizações coletivas situam-se a partir de 1953. Os elementos ditos “assimilados” ou “civilizados” organizam-se a principio nas zonas urbanas. Em 1954 um grupo de nacionalistas da Guiné e de Cabo Verde tinha em vista fundar uma associação desportiva e recreativa, cujo objetivo secreto era o desenvolvimento da luta anticolonial. As autoridades opuseram-se a sua formação com o pretexto de que os estatutos inseriam uma cláusula segundo o qual os “indígenas” podiam ser admitidos como membros. Perante este obstáculo, um grupo de assalariados e comerciantes, funcionários e estudantes criou o MING (Movimento para a Independência da Guiné). Finalmente em setembro de 1956, no meio de uma reunião realizada em Bissau, o MING cede lugar ao PAIGC.

 Mesmo que a ideia do Desportivo e Recreativo de Bissau não tenha avançado, é fato que muitos dos líderes guineenses das lutas anticoloniais na Guiné estiveram envolvidos com as iniciativas de Cabral e/ou com outras agremiações esportivas locais: Bobo Keita, Carlos Correia, Constantino Teixeira e Nino Vieira, entre outros.

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Estádio Sarmento Rodrigues, posteriormente rebatizado para Estádio Lino Correa.

Estádio Sarmento Rodrigues, posteriormente rebatizado para Estádio Lino Correa.

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Para mais informações:

MELO, Victor Andrade de. (Des)mobilização para a luta: o esporte como estratégia nos conflitos da Guiné Portuguesa (décadas de 50 e 60 do século XX). Métis: História e Cultura, v. 10, n. 19, pp. 215-236, jan.-jun. 2011.

Disponível em: http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/metis/article/viewArticle/1746

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Colonialismo, feminismo e vida esportiva

28/04/2013

por Sílvio Marcus de Souza Correa (UFSC)

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Durante o colonialismo houve a introdução de uma série de práticas esportivas na África. No caso dos territórios sob domínio colonial alemão, alguns esportes foram praticados também por mulheres. Vale lembrar que uma das particularidades do colonialismo alemão foi um projeto de emigração de mulheres brancas para a África com o firme propósito de fazer valer uma política racial em defesa da “germanidade” (WILDENTHAL, 2001; DIETRICH, 2007). Para e realização de tal projeto foi de supina importância a Liga Feminina (Frauenbund) da Sociedade Alemã de Colonização (Deutsche Kolonial Gesellschaft).

Das quatro colônias alemãs na África, a do sudoeste africano (atual Namíbia) foi aquela com maior presença de alemães e, por conseguinte, a colônia com maior número de modalidades esportivas. Em 1912, a população branca no sudoeste africano era em torno de 15.000 pessoas (WESSELING, 2005:364). A maioria era de origem alemã. Esse número representava, no entanto, quase 3 vezes mais o número de brancos na África Oriental Alemã (atual Tanzânia).

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Mulheres em exercício de tiro ao alvo. National Archive of Namibia (Windhoek) PhotoNr.02535

Mulheres em exercício de tiro ao alvo. National Archive of Namibia (Windhoek) PhotoNr.02535

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Na Alemanha do final do século XIX, mulheres praticavam também remo, ciclismo, ginástica e outras modalidades de atletismo. Mas o solo arenoso e pedregoso da Namíbia não favoreceu o ciclismo, assim como os seus rios – que não têm água corrente todo o ano – impediam a prática regular de esportes aquáticos. Outras modalidades careciam de equipamentos e algumas delas eram realizadas de forma esporádica, mas o calendário de torneios e apresentações das sociedades esportivas favoreceu o treinamento, a regularidade dos exercícios e, por conseguinte, a difusão de alguns esportes.

Sociedade de tiro, sociedade de ginástica, sociedade de corridas de cavalo, clube de tênis e ainda outras organizações esportivas foram sendo criadas nas colônias alemãs da África e, em todas elas, as mulheres alemãs fizeram parte da assistência dos eventos esportivos como também participaram ativamente de alguns deles.

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Tenistas em Windhoek (Namíbia) Koloniales Bildarchiv der Stadt- und Universitätsbibliothek Frankfurt a.M Photo Nr. 080-2996-115; ilustração de uma tenista do Clube de Tênis da Baía de Lüdertiz (fundado em 1910) In XI Gau-, Turn- und Sportfest, Lüderitzbucht, 1939 (National Library of Namibia, Windhoek).

Tenistas em Windhoek (Namíbia) Koloniales Bildarchiv der Stadt- und Universitätsbibliothek Frankfurt a.M Photo Nr. 080-2996-115; ilustração de uma tenista do Clube de Tênis da Baía de Lüdertiz (fundado em 1910) In XI Gau-, Turn- und Sportfest, Lüderitzbucht, 1939 (National Library of Namibia, Windhoek).

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A ginástica foi uma das principais práticas esportivas durante o colonialismo alemão no sudoeste africano (CORREA, 2012a). Várias sociedades de ginástica (Turnvereine) foram fundadas ainda no final do século XIX em localidades como Swakopmund, Baía de Lüderitz e Windhoek, na Namíbia. Inicialmente, as sociedades de ginástica eram masculinas. Mas as mulheres passaram a fazer parte delas a partir da década de 1910. Essas sociedades organizavam torneios (masculinos e femininos) com regularidade. Mesmo depois que a Namíbia deixou de ser uma colônia alemã, as sociedades de ginástica continuaram a promover suas gincanas e torneios.

Tanto a orientação esportiva feminina durante o II Reich, quanto aquela que vigorou à época do III Reich, teve uma política do corpo influenciada pela disciplina militar e pelo racismo. As mulheres alemãs que foram para a África praticavam alguns esportes não apenas como uma forma de entretenimento, mas sobretudo como um treinamento militar com finalidades físicas e morais ajustadas à ideologia do germanismo.

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Torneio de ginástica na Baía de Lüderitz (Namíbia), 1939

Torneio de ginástica na Baía de Lüderitz (Namíbia), 1939

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Se o número de mulheres brancas era reduzido na África do início do século XX, sem dúvida, foi na colônia alemã do sudoeste africano onde houve o maior envolvimento delas com o incipiente campo esportivo. A cultura esportiva e o feminismo na Alemanha do II Reich, a participação de mulheres alemãs no projeto de imigração e a fundação de sociedades esportivas nas colônias favoreceram uma incipiente vida esportiva feminina na Namíbia sob domínio colonial alemão, provavelmente, mais do que em qualquer outra parte da África antes de 1914. Cabe a ressalva que mulheres negras estavam excluídas de qualquer prática esportiva nas colônias alemãs da África.

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Liga feminina, escola colonial e esporte

28/04/2013

por Ana Carolina Schveitzer (bolsista PIBIC/CNPq)

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A Liga Feminina (Frauenbund) da Sociedade Alemã de Colonização (Deutsche Kolonial Gesellschaft) teve um papel importante na promoção da imigração de mulheres brancas para as colônias alemãs no continente africano (BECHHAUS-GERST e LEUTNER, 2009). Criada em 1908 e com sede em Berlim, a Liga Feminina arrecadava fundos através de eventos, palestras e doações. Os recursos angariados eram utilizados para preparar as mulheres e para financiar suas viagens para as colônias alemãs na África.

O número de suas associadas era pouco mais de 4.000 entre 1908 e 1910, mas houve um aumento para 18.500 em 1914 (TODZI, 2008). Muitas mulheres alemãs, ainda que nunca tivessem ido para a África, se envolviam com a “questão da mulher nas colônias”, e faziam doações, assistiam as palestras da Liga Feminina, contribuíram e apoiaram o projeto colonial alemão.

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Fontes iconográficas: SCHMEIDT, Wilhelm R.; WOLCKE-RENK, Irmtraud. Deutsch-Südwets-Afrika: Fotos aus der Kolonialzeit 1884-1918, pp.112-113 (Fotografia 1 e 3): Condessa Schenk von Staufenberg no salto sobre obstáculo de um hipódromo em Berlim, in: Revista Sport im Bild. nr. 16. 1913

Fontes iconográficas: SCHMEIDT, Wilhelm R.; WOLCKE-RENK, Irmtraud. Deutsch-Südwets-Afrika: Fotos aus der Kolonialzeit 1884-1918, pp.112-113 (Fotografia 1 e 3): Condessa Schenk von Staufenberg no salto sobre obstáculo de um hipódromo em Berlim, in: Revista Sport im Bild. nr. 16. 1913

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A vida esportiva feminina nas colônias não se reduzia somente a prática de algum esporte, mas também fazia parte dela a participação em eventos esportivos. Tanto na tribuna durante uma apresentação esportiva quanto no salão nobre dos hotéis – nos quais ocorriam premiações e bailes organizados por uma ou outra sociedade esportiva – a presença feminina era imprescindível para as sociabilidades em torno do campo esportivo na África sob domínio colonial alemão (CORREA 2012b).

Na Alemanha do II Reich, havia uma Escola Colonial em Wietzenhausen e outra em Weilbach, onde as candidatas recebiam uma formação para sua adaptação à vida na África. Para isso, além de técnicas agrícolas e domésticas, ensinava-se noções de higiene tropical e de outros cuidados com o corpo, inclusive por meio da ginástica e de outras práticas esportivas.

Na Alemanha, foi aberta ainda a Escola Colonial de Rendsburg durante a República de Weimar e cujas atividades se prolongaram no período do III Reich. As jovens e mulheres recebiam aulas de ginástica, além de outras práticas esportivas e de lazer. Elas aprendiam também a cavalgar e a atirar. Elas recebiam uma formação de “mulher-soldado”.

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Prática de atletismo, tiro e equitação na Escola colonial de Rendsburg no período entre-guerras. Koloniales Bildarchiv der Stadt- und Universitätsbibliothek Frankfurt a.M

Prática de atletismo, tiro e equitação na Escola colonial de Rendsburg no período entre-guerras.
Koloniales Bildarchiv der Stadt- und Universitätsbibliothek Frankfurt a.M

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Referências:

BECHHAUS-GERST, M.; LEUTNER, Mechthild (Hg.) Frauen in den deutschen Kolonien, Berlin: CH Links Verlag, 2009.

CORREA, Sílvio M. de S. Colonialismo, Germanismo e Sociedade de Ginástica no Sudoeste Africano. Recorde: Revista de História do Esporte.v. 5, n. 2, julho-dezembro de 2012 (a).

CORREA, Sílvio M. de S. Sociabilidades numa pequena cidade portuária do sudoeste africano (1884-1914). Revista Urbana (Dossiê Cidades e Sociabilidades), Unicamp, v.4, n.5, 2012 (b).

CORREA, Sílvio M. de S. As corridas de cavalos no sudoeste africano sob domínio colonial alemão (1884-1914). Trabalho apresentado no II Conferência internacional sobre desporto e lazer  no continente africano: práticas e identidades. Lisboa, 2012 (c).

 DIETRICH, Anette. Weiße Weiblichkeiten: Konstruktionen von „Rasse“ und Geschlecht im deutschen Kolonialismus. Bielefeld: Transcript Verlag, 2007.

SCHMEIDT, Wilhelm R.; WOLCKE-RENK, Irmtraud. Deutsch-Südwets-Afrika: Fotos aus der Kolonialzeit 1884-1918.

TODZI, Kim Sebastian. Rassifizierte Weiblichkeit. Der „Frauenbund der deutschen Kolonialgesellschaft“ zwischen weiblicher Emanzipation und rassistischer Unterdrückung, Universität Hamburg, 2008.

WESSELING, Henri. Les empires coloniaux européens 1815-1819, Paris: Gallimard, 2004.

 WILDENTHAL, Lora. German women for empire (1884-1945), Durham: Duke University Press, 2001.


Corridas de cavalos na Namíbia durante o domínio colonial alemão (1884-1914)

08/01/2013

por Sílvio Marcus de Souza Correa

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Em 1884, o Segundo Império Alemão logrou obter algumas colônias no continente africano. Entre elas, a região que compreende a atual Namíbia. Na então colônia alemã do sudoeste africano, houve o maior contingente de imigrantes alemães durante o colonialismo na África. Em relação às outras colônias alemãs, a história colonial da Namíbia registra também o maior número de associações esportivas e recreativas. Por isso, algumas práticas desportivas que se desenvolveram na Namíbia fizeram parte dos primeiros capítulos da história do esporte no continente africano. Entre elas, destacaram-se as corridas de cavalo.

As corridas de cavalos eram organizadas por associações que reuniam criadores e proprietários de cavalos e demais amadores do turfe. Já no início do século XX, as corridas de cavalo faziam parte do calendário esportivo e festivo da então colônia alemã do sudoeste africano.

Segundo as memórias de Clara Brockmann, além da pompa dos uniformes dos oficiais nas tribunas, a elegância de roupas e dos chapéus com penas de avestruz fazia lembrar as corridas na Alemanha, se não fosse a paisagem agreste em seu entorno e na qual predominavam as acácias.[i]

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Páscoa, Pentecostes e Natal eram datas certas de festividades e para as quais se organizavam corridas de cavalo. Na Páscoa de 1909 foram realizadas corridas de cavalos e uma festa popular esportiva na Baía de Lüderitzbucht, onde havia sido descoberto diamantes em 1908. No jornal local foi publicado um anúncio do programa das corridas de cavalos e no qual informava-se sobre certas regras e modalidades das provas e valores dos respectivos prêmios. Os cavaleiros não podiam ser nativos. Aos nativos era permitida participação apenas na última prova: corrida de mulas. Aliás, o primeiro prêmio das seis modalidades para brancos variava de 200 a 500 marcos. Já o primeiro prêmio para a corrida de mulas era no valor de 100 marcos.[i] Uma semana depois, o jornal local publicou matéria sobre o evento, salientando a presença feminina e de autoridades oficiais, além da performance da banda musical de um navio imperial ancorada na Baía de Lüderitz e que animou o público durante o intervalo das corridas.[ii] Enfim, as corridas de cavalos eram uma ocasião especial para celebrar o colonialismo, sobretudo depois da guerra colonial (1904-1907) na Namíbia.

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Para as corridas de cavalos, a Baía de Lüderitz foi uma localidade proeminente por vários fatores. Nas memórias de Max Ewald Baericke, o Campo dos Bôeres naquela localidade era ideal para as carreiras.[i] Sua pista arenosa tinha a forma elíptica e sua extensão era de 800 metros. Havia uma tribuna, um placar para apostas e tendas para café e cerveja. Mulheres em suas melhores roupas elegantes, oficiais, marinheiros, soldados em seus uniformes, jóqueis em seus trajes esportivos e outros em roupas civis formavam uma assistência pitoresca. Os criadores de cavalos importavam garanhões.  Havia puros sangues e a maior parte deles importada da Cidade do Cabo. O valor das apostas era alto e os prêmios significativos. Em geral, as corridas de cavalos terminava com um baile e distribuição dos prêmios no grande salão do Hotel Kapps.

A consulta em jornais permite inferir que uma das primeiras referências às corridas de cavalo na então colônia alemã do sudoeste africano foi a notícia publicada no semanário da cidade portuária de Swakopmund, em meados de 1902. O evento esportivo foi realizado em Keetmanshoop, promissor “local de corrida do futuro em nossa colônia”, segundo o jornal.[ii] Mas se as corridas tiveram futuro na Namíbia, a colônia alemã não teve a mesma sorte. Em 1914 houve a ocupação de tropas sul-africanas e britânicas. Em 1919, os países aliados e vencedores da Primeira Guerra Mundial impuseram fim ao colonialismo alemão.

Através de práticas como as corridas de cavalos, a história do esporte e do lazer permite compreender a formação e a consolidação de um campo esportivo e de sociabilidades na então colônia alemã do sudoeste africano e, por conseguinte, algumas formas de reprodução de estruturas coloniais. Além disso, pode-se estudar algumas mudanças sociais, econômicas e políticas em sua correlação com as mudanças no campo esportivo.


[i] BAERICKE, Max E. Lüderitzbucht (1908-1914). Historische Erinnerungen eines alten Diamantensuchers aus der deutschen Diamantenzeit in Südwestafrika zwischen den Jahren 1908 und 1914 mit einer geschichtlichen Einleitung. Windhoek, NWG, 2001 p.175-176.

[ii] Deutsch-Südwestafrikanische Zeitung, Swakopmund, 17.07.1902.


[i] Lüderitzbuchter Zeitung, Lüderitzbucht, 13.04.1909, p.4.

[ii] Lüderitzbuchter Zeitung, Lüderitzbucht, 17.04.1909, p.5


[i] Brockmann, Clara. Briefe eines deutschen Mädchens aus Südwest, Berlin: Ernst Siegfried Mittler und Sohn,1912, p.131-132.

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