Medicina, ginástica e saúde no Rio de Janeiro do século XIX: a infância e a escola como objetos e espaços sociais de intervenção (parte 2)

27/02/2023

Fabio Peres e Victor Melo[i]

No post anterior, abordamos como a ginástica tornou-se cada vez mais uma questão relacionada à educação e à infância nos periódicos científicos da década de 1840. Este processo, que começou nas décadas anteriores, estava inserido em um campo de disputas em que diferentes agentes, práticas e saberes buscavam se legitimar.

Como sinalizamos, o Dr. Francisco Paula Candido mencionou a ginástica no discurso da comemoração do 12º aniversário da Academia Imperial de Medicina[ii].

Nesse discurso – realizado em sessão pública com a presença do imperador no Palácio Imperial da Cidade -, a prática corporal serviu como exemplo, entre os antigos, da relação desejável entre conhecimento especializado e o Estado:

Em última análise fica incontestável a influência, que a ginástica, a sobriedade, e outros preceitos higiênicos erigidos em leis, adaptados à índole e necessidade dos Lacedemônios, exerceu na educação daqueles, que essas mesmas leis transformarão em heróis (1841, p.144).

O presidente da Academia Imperial de Medicina deixava, desse modo, manifesta a posição da entidade: uma autorrepresentação da medicina enquanto portadora de um saber sobre a saúde física e coletiva, que deveria prevalecer sobre a vida social e política do Império. Não será coincidência que posteriormente Paula Candido ocupará a presidência da Junta Central de Higiene Pública (1850-1864).

O futuro do país e da sociedade como um todo dependeria, segundo Candido, do diagnóstico proveniente da ciência e, em particular, da medicina:

[..] no apogeu da civilização o legislador deve chamar a contribuição todos os ramos dos conhecimentos humanos sob pena de ficar atrás do século em que vive (p.1841, p. 143).

Tal perspectiva fica mais evidente nas atribuições que a Academia, segundo Paula Candido, deveria exercer na educação brasileira, difundindo o saber médico entre a população. Como vimos, esse saber, conforme parte dos médicos da entidade defendiam, incluiria a introdução da prática da ginástica nas escolas do país. Tal posição seria depois consolidada oficialmente pela Academia Imperial de Medicina, ao se pronunciar a favor da necessidade do ensino da ginástica nas escolas de instrução primária[iii].

Revista Medica Brasileira, v.1, n.3, julho de 1841.

Aliás, não se sabe ao certo o papel que a Academia Imperial de Medicina teve na introdução dos exercícios ginásticos no Colégio Pedro II, que ocorrera em 1841, que foi defendida por Emilio Maia com veemência no ano anterior. Contudo, naquela ocasião, o mestre de ginástica contratado foi justamente Guilherme Luiz de Taube, que quase 10 anos antes solicitou um parecer da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro sobre o seu breve tratado sobre ginástica.

Em todo caso, parece-se nos adequado afirmar que, na perspectiva dos esculápios, a ginástica materializaria (assim como os demais preceitos da educação física e da higiene, as quais ela estava articulada) a medicalização do cotidiano escolar.

Um exemplo da defesa de tal perspectiva pode ser identificado na RMF, na qual foram publicados os preceitos de higiene estabelecidos pelo decano da Faculdade de Medicina de Paris e adotados nas escolas públicas francesas[iv]. Além de diversas recomendações referentes a alimentos e bebidas, vestuário, banhos etc., a prática de exercícios, incluindo a ginástica, constitui uma orientação que deve ser seguida no meio escolar.

A educação voltada para a infância se constituiria, assim, em locus por excelência do saber médico sobre a ginástica. Essa, porém, seria uma das faces, entre outras, da ginástica médica; embora, talvez, a que os médicos dedicariam maior atenção a partir daquele momento.

Nesse cenário, avançará também a discussão sobre os métodos, bem como sobre os mecanismos fisiológicos e terapêuticos envolvidos na prática corporal, reforçando e, em alguns casos, ampliando o rol de enfermidades tratadas ou prevenidas pela ginástica. O parecer do Dr. Rego Cesar a um opúsculo sobre “ginastica médica sueca”, apresentado a pedido da Academia Imperial de Medicina, pode ser entendido como uma forma de melhor compreender os efeitos e os possíveis usos da prática corporal[v]. Rico em detalhes sobre as ações fisiológicas promovidas pela ginástica, a enumeração das moléstias que poderiam ser combatidas dá uma dimensão da possível importância atribuída a tais exercícios pelas ciências médicas: paralisia, apoplexia, problemas na coluna vertebral, catarro nos pulmões, tísica tuberculosa, asma, hiperemia abdominal, constipação, hemorroida, ingurgitamento do fígado, gota, reumatismo, escrófula, moléstias nos genitais e na bexiga, entre outras.

Adicionalmente, de acordo com Rego Cesar, a prática corporal também acostumaria o cidadão à disciplina, à obediência, tornando-o útil à defesa pátria. A ginástica ficava, assim, também associada ao corpo do (inclusive, do futuro) soldado[vi]. Contudo, na visão do médico, a difusão e as condições para sua prática ainda seriam bastante deficientes no país, inclusive nas associações estrangeiras, se constituindo em mero divertimento ou passatempo, e no Colégio Pedro II, cujo curso seria incompleto, imperfeito e facultativo. Ao mesmo tempo, haveria falta de professores devidamente habilitados para ensiná-la adequadamente.  

O parecer do Dr. Rego Cesar apresentava, portanto, indícios dos desafios enfrentados, ainda na década de 1870, na longa e sinuosa trajetória da implementação da ginástica nas escolas, apesar dos “avanços” em relação à legitimação do saber médico sobre a prática. Anos depois outro médico defenderá que a ginástica se constituísse como fundamento de toda “educação individual e coletiva”. Mas essa história ficará para o próximo post.


[i] Parte do texto foi publicado originalmente em: PERES, Fabio de Faria e MELO, Victor Andrade de. O trato da gymnastica nas revistas médicas do Rio de Janeiro na primeira metade do século 19. História da Educação [online]. 2015, v. 19, n. 46, pp. 167-185. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2236-3459/46494&gt;. ISSN 2236-3459.

[ii] Revista Medica Brasileira, v.1, n.3, julho de 1841, p. 140-149.

[iii] Embora não tendo acesso a tal documento, o parecer do Dr. Corrêa de Azevedo sobre a ginástica médica sueca faz referência a esse episódio. Provavelmente se refere ao relatório Da Utilidade da Gymnastica nas Escolas de Ensino Primário, apresentado pelos médicos José Pereira Rego Filho, João Pinto Rego Cesar e João Batista dos Santos.

[iv] Revista Medica Brasileira, Abril de 1842, p. 679-684.

[v] Annaes Brasilienses de Medicina, Novembro e Dezembro de 1876, p. 240-245.

[vi] Deve-se lembrar que tal tema foi abordado no relatório De-Simoni sobre o tratado de Taube e, posteriormente, na memória Contribuições para o Estudo das Moléstias da Guarnição da Corte escrita pelo Dr. Manoel José de Oliveira, membro titular da Academia Imperial de Medicina (Annaes Brasilienses de Medicina, Julho a Setembro de 1883, p.35-95).


O ESPORTE E A HISTÓRIA DO CORPO

12/09/2022

Por: Leonardo Brandão (historiador)

 

A prática do esporte passa pelo corpo, mas nem sempre atinamos para as modificações nos movimentos corporais presentes no desenvolvimento de um esporte. As técnicas corporais tanto podem se modificar no interior de uma determinada prática esportiva quanto novos movimentos corporais podem surgir ou antigos perderem a utilidade. Aqui, neste breve texto, irei comentar um pouco como o corpo, ou o que poderíamos chamar de uma História do Corpo, adentrou para o campo das pesquisas históricas e como ele poderia auxiliar na pesquisa sobre a história do esporte.

Segundo o historiador Peter Burke, sabemos que “mais ou menos na última geração, o universo dos historiadores se expandiu a uma velocidade vertiginosa” (BURKE, 1992, p. 7), propiciando o aparecimento de novos campos de investigação, especialidades e temáticas que antes não eram, se quer, cogitadas como próprias para a análise histórica. Toda essa expansão acarretou modificações de abordagens metodológicas e também o surgimento de novos objetos no campo epistemológico dessa disciplina (PRIORE, 1994, p. 55).

Não há dúvidas de que o avanço da chamada Nova História – que em grande parte é um desdobramento das revoluções historiográficas inauguradas a partir da Escola dos Annales – ajudou a fragmentar e a criar novas possibilidades de estudos. Ainda segundo as palavras de Burke,

Nos últimos trinta anos nos deparamos com várias histórias notáveis de tópicos que anteriormente não se havia pensado possuírem uma história, como, por exemplo, a infância, a morte, a loucura, o clima, os odores, a sujeira e a limpeza, os gestos, o corpo, a feminilidade, a leitura, a fala e até mesmo o silêncio (BURKE, 1992, p. 11 – grifo nosso).

Nesse sentido, portanto, a História do Corpo é uma linha de pesquisa que parte da premissa de que o corpo – seus usos e representações – não é um dado imutável da natureza e nem somente pertence a ela. Mas sim, como já demonstrado por muitos historiadores (mas também por filósofos, sociólogos e antropólogos) uma construção cultural e histórica que pode se modificar de tempos em tempos. É nessa perspectiva, portanto, que o corpo pode ser visto como um “documento” e, assim, possuir não uma, mas várias histórias. Pois, conforme nos lembrou Jacques Le Goff, “a concepção do corpo, seu lugar na sociedade, sua presença no imaginário e na realidade, na vida cotidiana e nos momentos excepcionais sofreram modificações em todas as sociedades históricas” (LE GOFF, 2006, p. 10).

Tal linha de pesquisa está presente na historiografia francesa desde o final da década de 1970. Em grande parte, ela tomou força a partir da publicação do livro do historiador Georges Vigarello, intitulado Le corps redressé (“O corpo endireitado”), no qual ele analisa as técnicas de correção corporal que tiveram por objetivo corrigir a postura daqueles sujeitos que apresentavam um “desequilíbrio” com os novos padrões de civilidade exigidos pela nobreza em fins do século XVI. Em entrevista publicada na revista Projeto História da PUC/SP, Vigarello respondeu de modo bastante claro quais seriam os seus interesses em realizar análises sobre o corpo numa perspectiva histórica,

São várias as razões que explicam meu interesse pela história. Entre elas, saliento a necessidade de mostrar a distância entre sensibilidades de outras épocas e aquelas que experimentamos em nossos dias. Trata-se, em particular, de mostrar as distâncias entre nossas representações sobre o corpo e aquelas de indivíduos do passado. Esta experiência me parece bastante surpreendente […] (pois ela) me permite interrogar de modo agudo tudo aquilo que faz a originalidade de nosso tempo (VIGARELLO, 2000, p. 227).

Voltando a nossa questão inicial, isto é, sobre a relação do esporte com o corpo, e aqui eu penso mais nos esportes que estudo – no caso o skate – não é difícil observarmos essas modificações nas atividades corporais. Os usos do corpo no skate, se compararmos a década de 1960, quando o skate estava próximo da patinação artística, com os anos recentes, marcados pela a invenção de tantas manobras e modalidades distintas, fica claro que algo irrompeu no domínio das técnicas corporais deste esporte, levando-nos a compreensão que tanto os sujeitos quanto seus corpos são construções históricas.

 

Para saber mais:

BRANDÃO, Leonardo. Histórias esquecidas do esporte. In: Conexões: Revista da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Campinas, v. 7, n. 2, 2009, p. 13 – 23.

 

Referências Bibliográficas

BURKE, Peter. A escrita da história. São Paulo: UNESP, 1992.

LE GOFF, Jacques. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

PRIORE, Mary Lucy Murray Del. A história do corpo e a Nova História: uma autópsia. In: Revista da USP, São Paulo, nº. 23, 1994.

VIGARELLO, Georges. O corpo inscrito na história: imagens de um “arquivo vivo”. In: Projeto História, n. 21, novembro de 2000.


Medicina, ginástica e saúde no Rio de Janeiro do século XIX

28/03/2022

Fabio Peres e Victor Melo*

Em posts anteriores1, 2, 3, contamos um pouco sobre a história do processo de legitimação, institucionalização e difusão do saber médico a respeito das práticas corporais, em especial a ginástica, no Rio de Janeiro do século XIX.

Uma das premissas principais dessa história é que a relação entre exercícios corporais e saúde não era a princípio tão óbvia e muito menos incontestada. Tratou-se de uma construção que se deu de forma lenta, paulatina e muitas vezes pouca harmônica entre agentes, instituições, práticas e saberes que configuravam o campo médico-científico nos oitocentos. Uma relação que se consolidou no decorrer daquele século, apesar de inúmeras controvérsias. Não apenas a comunidade médica teve que “lutar” pela legitimação de suas práticas e saberes junto ao Estado e à sociedade, como também teve que lidar internamente com a regulação dos conflitos e dilemas dessa mesma comunidade pari passu em que o campo científico também mudava.

Os primeiros indícios desse processo se deram nos anos 1830, conforme apresentado nos posts anteriores. Porém, ainda na década de 1830, é possível identificar algumas modificações no trato do tema nos periódicos médicos científicos.

Novos objetos, abordagens e legitimidades

Mesmo que ainda persistissem alguns traços identificados no Semanário de Saúde Pública (1831-1833), a abordagem sobre a ginástica ganhou maior especificidade. Diferente do caráter mais geral e informativo, começou-se a publicar estudos mais detalhados, ao mesmo tempo em que a autoridade e a legitimidade médica se expandiram para outras esferas.

Embora se perceba a permanência de textos com características ensaísticas – um padrão narrativo no qual há, em geral, uma mistura entre opiniões, reconstrução histórica, julgamentos morais e projetos políticos -, alguns artigos já apresentavam feições, consideradas hoje, por assim dizer mais científicas, cuja audiência principal seria a própria comunidade médica[1]. Tais escritos abordaram de maneira mais detalhada os benefícios da ginástica, sejam eles biológicos ou sociais.

O processo de institucionalização da ginástica passou a progressivamente contar com importantes fundamentos e alicerces das ciências médicas. Isso, todavia, não significou que no interior do campo médico havia consenso absoluto. Valerá prospectar os debates publicados na Revista Médica Fluminense (1835-1841) e na Revista Médica Brasileira (1841-1843), ambas editadas pela antiga SMRJ, já transformada em Academia Imperial de Medicina[2], bem como em outros periódicos médicos da ocasião.

Importa assinalar que naquele momento começaram a circular, em alguns jornais da Corte, algumas matérias sobre a ginástica, nas quais há referências a sua importância para a saúde. Um exemplo é o artigo “Da Ginástica”, publicado em duas ocasiões: no Diário do Rio de Janeiro[3] e no Museu Universal[4]. Além do destaque ao estabelecimento de ensino dirigido por Francisco Amoros[5], na França, o texto salienta que, em 1780, o médico Tissot escreveu a obra Ginástica Medica, em que estabeleceu regras e métodos para os exercícios corporais. De acordo com o artigo, a prática contribuiria para educar homens vigorosos, revertendo a má dirigida educação física da primeira infância, que formaria “arlequins” e “afeminados”.

Em abril de 1836, a Revista Médica Fluminense publica um pequeno trecho da obra Essai general d’education physique, morale et intellectuelle, escrito por Jullien de Paris[6].  O autor, ao defender a necessidade de o médico conhecer o homem físico e moral, sugere que a ginástica é uma estratégia eficiente para manter o equilíbrio do corpo humano.

Mesmo não sendo médico, a preocupação do autor francês com as relações entre saúde e educação acabava por reiterar a importância da medicina no que tange à instrução da infância e da juventude. Na Revista Médica Fluminense já houvera antes uma aproximação entre a ginástica e a formação de crianças e da “mocidade”. Nesse caso, todavia, se tratava de uma obra reconhecida no campo educacional, aprovada e adotada pelo Conselho Real de Instrução Pública francês. O periódico, nesse sentido, procura endossar a autoridade do saber médico a partir do reconhecimento da legitimidade que outras áreas lhe conferem.

Alguns anos depois, em 1839, um artigo sobre pneumonia tuberculosa, de autoria de Mr. Fourcault, é publicado na Revista Médica Fluminense[7]. Ao tratar da influência do clima e dos lugares nas afecções ligadas à doença, o autor destaca o problema da falta de exercícios (passeios, corridas, ginástica, dança e esgrima):

É sobretudo na segunda infância, e ao tocar a época da puberdade, que se deve prevenir a incubação lenta e graduada das moléstias tuberculosas; desditosos os meninos débeis e linfáticos, cuja inteligência prematura se cultiva à custa das forças físicas! Os estudos porfiados, a falta de exercício ao ar livre, alteram sua constituição, e os dispõe às mais graves afecções. Os passeios frequentes, as carreiras, a ginástica, a esgrima, a dança etc., são pois indispensáveis na tenra idade para manter o equilíbrio de uma importante função (p. 112).

A ginástica – entendida como um conjunto específico de técnicas corporais ou como sinônimo de qualquer exercício – passaria, no decorrer do século XIX, a ser citada em diversos estudos associados ao tratamento de moléstias de diferentes naturezas: enxaqueca[8], anemia[9], tísica[10],[11], paralisia[12], ortopedia[13], alienação mental[14], doenças crônicas do coração[15] etc.

Ainda em 1839, um médico publicaria um artigo sobre os benefícios da ginástica em terras brasileiras. Mas essa história ficará para um próximo post.


* Parte do texto foi publicado originalmente em: PERES, Fabio de Faria e MELO, Victor Andrade de. O trato da gymnastica nas revistas médicas do Rio de Janeiro na primeira metade do século 19. História da Educação [online]. 2015, v. 19, n. 46, pp. 167-185. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2236-3459/46494&gt;. ISSN 2236-3459.

[1] A linguagem, o formato, a análise de dados, a citação de referências e pesquisas acadêmicas no corpo do texto, entre outros, são aspectos que os diferem do gênero ensaio.

[2] Brasil. Decreto de 8 de Maio de 1835. Converte a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro em Academia, com o titulo de Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro; e dá-lhe estatutos. Na ocasião, a Academia passou a receber recursos do Tesouro público.

[3] Diário do Rio de Janeiro, 09/03/1838, p. 1.

[4] Museu Universal, ed. 43, 28/04/1838, p. 341.

[5] Além de diretor do Ginásio Normal de Paris, Francisco Amoros (Valência, 1770 – Paris, 1848) é considerado um dos precursores da Educação Física moderna e um dos difusores do ensino da ginástica na França. Para mais informações, ver Sirvent (2005) e Arnal (2009).

[6] Revista Médica Fluminense, ed. 1, vol. II, abril de 1836, p. 237-243.

[7] Revista Médica Fluminense, ed. 3, junho de 1839, p. 103-112.

[8] Arquivo Médico Brasileiro, dezembro de 1846, p. 89.

[9] Arquivo Médico Brasileiro, janeiro de 1848, p. 73-77.

[10] Arquivo Médico Brasileiro, abril de 1847, p. 175.

[11] O Progresso Médico, 1877, p. 449-457.

[12] Annaes Brasilienses de Medicina, abril de 1852, p. 172-177.

[13] Annaes Brasilienses de Medicina, outubro de 1853, p. 13-16.

[14] Annaes de Medicina Brasiliense, julho de 1848, p. 12-16

[15] O Brasil Médico, setembro de 1888, p. 266-269.


Em defesa de arquibancadas mais plurais: rememorando a Coligay

17/02/2020

Luiza Aguiar dos Anjos (IFMG – Campus Formiga)

No dia 27 de março de 1977, o Grêmio fez sua estreia na 57ª edição do Campeonato Gaúcho de Futebol. O clube iniciava sua caminhada no torneio com a esperança de acabar com um longo período sem títulos, assim como interromper a série de conquistas estaduais do rival Internacional, que vinha de uma sequência de oito taças consecutivas, sagrando-se campeão anualmente desde 1969. Para agravar o incômodo gremista com o sucesso do principal adversário, a equipe colorada não se impunha apenas em seara local, tendo sido bicampeã nacional ao conquistar a Copa Brasil de 1975 e de 1976.

Ao longo da competição, os dois maiores times do estado fizeram o que se esperava deles: superaram os demais e decidiriam entre si quem seria o campeão estadual daquele ano.

O jogo derradeiro foi disputado no Estádio Olímpico. Em casa, em frente à sua torcida, era que o Grêmio buscaria encerrar aquele infeliz jejum de títulos.

O teor dramático da partida começou quando, aos 22 minutos de jogo, foi marcado um pênalti a favor do Grêmio. O atacante Tarciso, batedor oficial do time e com boa média de acertos, mandou uma bomba à esquerda do goleiro colorado, mantendo o empate sem gols. Mas não tardou para o placar ser inaugurado. Em um embate de ânimos cada vez mais exaltados, aos 42 minutos, ainda no primeiro tempo de jogo, o atacante André Catimba fez a festa dxs[1] gremistas. O momento tornou-se ainda mais memorável com a comemoração. O jogador tentou um salto mortal, mas interrompeu o movimento no meio do caminho, ao sentir uma distensão muscular, caindo de forma completamente desajeitada. Com a aproximação do fim da partida, a torcida tricolor não conteve a comemoração, pulando das arquibancadas e ocupando o campo. Trinta minutos passados da invasão, sem condições de retomar o jogo, o árbitro declarou seu encerramento. Após oito anos, o Grêmio voltava a levantar a taça de campeão estadual.

Em meio ao furor dessa conquista, na edição do dia seguinte à partida, o jornal Zero Hora – periódico mais popular do Rio Grande do Sul – reservou uma página inteira para tratar da história da constituição de uma nova torcida gremista que, desde o início do Campeonato Gaúcho, chamava a atenção dxs frequentadorxs do Estádio Olímpico: a Coligay.

Recorte da reportagem da Zero Hora sobre a Coligay (26/09/1977)

Como o nome indica, essa torcida era formada predominantemente por homens homossexuais, o que já parece ser motivo de surpresa e curiosidade no contexto futebolístico brasileiro, no qual a heterossexualidade, mais do que tomada como norma, é enfatizada como valor. Contudo, tal agrupamento fez-se notório não (apenas) porque explicitava a homossexualidade de seus integrantes em sua retórica, mas, sobretudo, porque fazia de tal identidade sexual o norteador de sua performance estética nas arquibancadas: trajavam longas batas com as cores do Grêmio, cada uma delas com uma letra na frente que formava o nome do clube, complementadas por “rebolados frenéticos e gritinhos um tanto histéricos” (TORCIDA…, 1977, p.42).

Coligay fazendo sua festa no estádio Olímpico

A Coligay surgiu da iniciativa do empresário gremista Volmar Santos. Ele teve a ideia, liderou a mobilização e realizou as articulações financeiras e logísticas necessárias para efetivar sua formação. Volmar era proprietário da boate gay Coliseu e foram seus frequentadores quem ele convidou para fundar a torcida. A boate acabou servindo como sede. Xs componentes iam ao Coliseu no sábado, viravam a madrugada, e, na manhã seguinte, ali mesmo, pegavam seus apetrechos ali armazenados, se organizavam e seguiam para o estádio em que o Grêmio fosse jogar.

Num primeiro momento, o gremismo da torcida foi questionado, mas sua animação e assiduidade fizeram com que conquistassem o reconhecimento dx torcedorxs, jogadores e dirigentes. Prova disso é que a Coligay se manteve em atividade nos estádios até os primeiros anos da década de 1980.

Existindo durante os violentos tempos de ditadura militar, se esquivaram da repressão governamental ao não se envolver com a militância política e por possuir entre seus integrantes ou apoiadores “gente importante”, segundo o líder Volmar (FONSECA, 1977). Também não buscaram compor uma militância homossexual mais ampla ou organizada – o que também poderia fazer deles alvos do policiamento. Baseavam sua atuação na festa. O que não é pouco.

É inegável que o estádio de futebol privilegia um tipo bastante específico de masculinidade, associada, sobretudo, à virilidade e à agressividade, traços também enfatizados na cultura gaúcha. A reafirmação desses valores perpassa com frequência pela definição e representação dos homossexuais como a antítese desse modelo de masculinidade, o que os legitimou como alvos históricos da violência verbal e, por vezes, física de torcedorxs de futebol. A Coligay acaba por desarticular a expectativa de desencaixe e inadequação de homens homossexuais ao espaço futebolístico, sem que ela tenha se mostrado uma torcida “igual às outras”. Ela compactuou com códigos do futebol, se dispondo ao confronto físico e verbal, empunhando bandeiras e apoiando intensamente a sua equipe. Por outro lado, impôs seus requebros, suas vestimentas espalhafatosas, seu linguajar debochado e provocativo.

Nos últimos anos, a participação de sujeitos LGBT+s nos esportes, e mais especificamente no futebol, tem se tornado um tópico de análise e discussão. Torcidas, jogadorxs, clubes e federações, que durante décadas ignoraram a existência de tais sujeitos – e mesmo contribuíram com sua invisibilidade – têm sido convocados a responder e agir sobre alguns dos processos que xs mantém à margem, com destaque para as manifestações homofóbicas, mas não apenas. A mídia tem contribuído com isso ao tratar esses temas de forma mais frequente e crítica.

Nesse processo, a Coligay tem sido relembrada, após algumas décadas de esquecimento (ou ocultação). Sem supor uma idealização dessa torcida, acredito que ela nos ajuda a perceber que outras experiências de torcer, mais plurais, são possíveis.

 

Referências

FONSECA, Divino. Para o que der e vier. Placar, n.370, p.48-50, 27 mai. 1977.

TORCIDA: Coligay: história e pedágio da vitória. Zero Hora, Porto Alegre, p.42, 26 set. 1977.

 

Para saber mais:

Esse texto foi elaborado a partir da minha Tese de Doutorado, abaixo identificada. Nesse ano, publicarei um livro baseado nessa pesquisa, com acréscimos e adaptações. A obra, lançada pela Editora Dolores, será intitulada “Plumas, arquibancadas e paetês: uma história da Coligay”.

ANJOS, Luiza Aguiar dos. De “São bichas, mas são nossas” à “Diversidade da alegria”: uma história da torcida Coligay. 2018. 388f. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) – Faculdade de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.

[1] Utilizo o “x” com o intuito de adotar uma linguagem não-binária. A escolha visa descaracterizar a ideia de que as palavras são masculinas ou femininas, assim como a utilização do masculino como referência. Ao usar o “x” busco contemplar igualmente homens, mulheres e aqueles e aquelas que fogem da norma binária. Especificamente nos momentos em que for tratar de agrupamentos que possuem exclusivamente pessoas identificadas como homens mantenho o uso do masculino.


“Pintou o verão!”: surfe, skate e juventude na revista Pop (1972-1979)

23/09/2019

Por Leonardo Brandão (brandaoleonardo@uol.com.br)

No Brasil, durante a década de 1970, os esportes praticados à maneira californiana, principalmente o surfe e o skate, encontraram na revista Geração Pop – chamada somente como Pop a partir de sua edição de número 32 – um dos seus principais meios de comunicação. Colorida e publicada com periodicidade mensal pela editora Abril entre novembro de 1972 e agosto de 1979, essa revista chegou a contar com 82 edições em seus quase sete anos de existência e atingir um considerável público leitor para a época, pois, de acordo com a declaração de sua editora, ela “vendia pelo menos 100 mil exemplares mensais” (MIRA, 2000, p. 154).

A Pop não foi uma revista específica sobre esporte, mas sim uma publicação que aliava a divulgação da música Pop (sobretudo o rock) com diversos temas considerados por ela como de interesse juvenil. Focada em rapazes e moças entre 14 e 20 anos, ela utilizava-se de inúmeras gírias existentes na época para elaborar um clima de maior proximidade com seus leitores e, com isso, gerar certa intimidade no momento da leitura.

A revista Pop teve uma influência muito grande em determinados segmentos juvenis; pois por viverem numa época onde não havia Internet e, segundo entrevistas, num “clima de ditadura”, eles acabavam por ter pouco material disponível em termos de informação cultural. Além disso, foi através da Pop que muitos jovens, durante a metade da década de 1970, conheceram algumas das tendências esportivas da juventude norte-americana, como o surfe, o skate, o bodyboard, entre outros (BRANDÃO, 2014).

Segundo a historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna, embora a revista Pop tivesse na música sua ancoragem central, ela também passou a “atrair milhares de jovens da classe média e aproximá-los do mercado especializado na venda de novos acessórios e roupas para as atividades esportivas em expansão” (2005, p. 8). Na década de 1970, dentre essas “atividades esportivas em expansão”, encontravam-se de forma reticente nas páginas da revista Pop os esportes praticados à maneira californiana, sobretudo o surfe e o skate. De acordo com o pesquisador Luís Fernando Borges, o propósito dessa revista foi justamente o de buscar um contato com o público jovem, e para isso ela veiculava as últimas novidades surgidas no acelerado mundo da cultura juvenil, recheando suas páginas de artistas como “Elton John, Secos & Molhados, os últimos campeonatos de surf e skate” (2003, p. 07).

Podemos observar um bom exemplo neste sentido ao analisarmos a capa da edição de novembro de 1977 da revista Pop, a qual comemorava, em letras garrafais, que “PINTOU O VERÃO!”, estampando um jogo de imagens fotográficas que, composta tal como um mosaico, objetivava tanto traçar um painel do que se encontrava em seu interior  quanto capturar os olhares de quem passasse por uma banca de revistas: garotas de biquíni, jovens surfistas “entubando” uma onda, astros do rock descontraídos e sem camisa, manobras “de arrepiar” de skatistas em grandes tubos de concreto.

Figura 1: Revista Pop, editora Abril, nº 61, 1977.

A revista Pop se valia dos corpos magros e bronzeados como espetáculo aos olhos e desejos dos leitores. Como nos lembrou o historiador Georges Vigarello (2006, p. 171), trata-se de uma época em que já é possível percebermos um maior ritmo dado às expressões e aos movimentos, com sorrisos mais expansivos e corpos mais desnudos, aspectos esses acentuados pelos espaços de férias, praias e divertimentos. Nesta mesma direção, Sant’Anna (2010, p. 190) sugere que essas manifestações reforçavam “a voga da alegria juvenil”, exaltando a “libertação” do corpo.

O pesquisador ou a pesquisadora que se interessa pela história dos esportes praticados à maneira californiana, sobretudo a história do surfe e a do skate, encontrará nessa revista uma série de elementos convidativos à reflexão. Pelo fato de Pop ter sido a primeira publicação impressa no Brasil dedicada exclusivamente à juventude e pela quantidade considerável de edições publicadas durante a década de 1970, ela é, sem dúvida, uma fonte imprescindível para a compreensão dos esportes californianos e da condição juvenil na história recente.

Referências Bibliográficas

BRANDÃO, Leonardo. Para além do esporte: uma história do skate no Brasil. Blumenau: Edifurb, 2014.

BORGES, Luís Fernando Rabello. Mídia impressa brasileira e cultura juvenil: relações temporais entre presente, passado e futuro nas páginas da revista Pop. In: Anais do XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Minas Gerais, 2003, p. 1 – 14.

MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura no século XX. São Paulo: Olho d’Água/Fapesp, 2000.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Uma história da construção do direito à felicidade no Brasil. In: FREIRE FILHO, João (org.). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 181 – 193.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Representações sociais da liberdade e do controle de si. In Revista Histórica, São Paulo, v. 5, 2005, p. 1 – 17.

VIGARELLO, Georges. História da beleza: o corpo e a arte de se embelezar, do Renascimento aos dias de hoje. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.


Deslizar, escorregar, equilibrar: o corpo e o lúdico nos esportes californianos

17/06/2018

Por Leonardo Brandão

Segundo o historiador Roy Porter (1992) a fotografia pode ser uma grande fonte (embora ainda permaneça “estranhamente subexplorada”) de compreensão do corpo. O registro fotográfico já documenta quase um século e meio dos aspectos físicos e, embora ela não seja um instantâneo da realidade, é um registro da linguagem corporal e do espaço social tão ou mais informativo que o texto impresso. Acreditamos, nesse sentido, que o arquivo fotográfico pode nos revelar e confirmar variados aspectos das transformações físicas na contemporaneidade, apresentando também dados sobre a linguagem corporal, os gestos e seus modos de utilização e investimento.

Observemos a fotografia a seguir:

Figura 1: Jovem praticando o “surfe na rua” na cidade do Rio de Janeiro em 1975. Fonte: Revista Pop, nº 38, 1975, p. 61.

Vemos nessa imagem – originalmente publicada nas páginas de uma revista chamada Pop, existente entre 1972 e 1979 – um jovem praticando skate numa rua levemente em declive. Pela descrição da matéria, sabemos que se trata de um espaço localizado no Rio de Janeiro e que essa imagem data de 1975. Não há dúvidas que se trata de uma fotografia sobre o equilíbrio. Pois o que esse jovem faz é um jogo de equilíbrio corporal. A ausência dos calçados e equipamentos de proteção revela o uso do skate como um “surfinho”, isto é, apenas como divertimento espontâneo e sem vínculos com campeonatos, juízes, tabelas etc. Além disso, o próprio movimento corporal realizado era muito próximo daqueles utilizados pelos surfistas nas ondas do mar.

Essa imagem (figura 1) é ilustrativa de uma característica central dessas atividades oriundas da Califórnia e que estavam se introduzindo no cotidiano das práticas juvenis no Brasil, pois tais atividades investiam mais numa flexibilidade física atenta aos gestos de equilíbrio do que no acúmulo de forças para o levantamento de algum peso, o que fazia do corpo menos um suporte do gesto do que sua expressão.

Ao reduzirem o esforço muscular em prol de outros elementos para praticá-lo, o skate – assim como o surfe ou outras atividades praticadas à maneira californiana – abria novas possibilidades de euforia, êxtase e vertigem. Não tanto a força dos músculos, mas sim a flexibilidade e a busca pelo equilíbrio estariam no cerne performático em questão. De acordo com as palavras da historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna,

Os esportes californianos, por exemplo, que se expandem em várias partes do mundo a partir dos anos 70, tem por objetivo menos o cansaço salutar – característica dos antigos esportes comprometidos com os ideais higienistas de salvação de uma raça – do que a vivência de sensações de prazer, físicas e mentais, imediatas e inovadoras. O surfe, a asa delta, o windsurf, por exemplo, conduzem o olhar do esportista menos em direção à força realizada por seus músculos do que às flexibilidades motoras que ele é capaz de manter sob controle. De onde se explica, nessas atividades, o emprego de verbos que evocam o prolongamento de sensações de prazer e de controle do conjunto dos movimentos, tais como voar, escorregar, equilibrar (2000, p. 3).

Iniciar-se em tais atividades, portanto, significava dar menos evidência às questões corporais que envolviam força muscular e uma maior atenção ao equilíbrio corporal, controlado sob tênues movimentos de braços e pernas.  Esse investimento lúdico do corpo, para além de suas possibilidades de força, potência muscular e virilidade – aspectos tão bem explorados pelos esportes tradicionais –, favoreceu sua interpretação como um possível objeto de comunicação através de uma série inusitada de gestos e movimentos (os quais passariam a ser chamados, posteriormente, como “manobras” ou “truques”). A construção dessa nova relação com o corpo, ou desta nova corporalidade, também passou a expressar um desejo por aventuras e deslizamentos os mais variados, sendo o aprendizado de tais técnicas uma questão de conquistar, através do corpo – ou “in-corporar” – essas novas possibilidades de movimento, equilíbrio e frenesi estético.

Ao observar o que chama de “práticas emergentes contemporâneas”, o professor Deibar René Herrera (2009) também afirmou ser possível percebermos nessas atividades outras formas de construção do corpo já diferentes daquelas apontadas pelo filósofo Michel Foucault através de seus estudos sobre as instituições disciplinares, as quais evidenciavam a formação de corpos dóceis. Para Herrera, faz-se importante admitirmos que o mundo contemporâneo também vem configurando outros usos do corpo que já não estão de acordo somente com a sociedade disciplinar e nem necessitam da obediência de outros tempos. Usos do corpo, em sua visão, que se formaram a partir dessas novas práticas culturais juvenis e que se constituíram enquanto práticas de subjetivação.

Assim, algumas das análises de Foucault propõem-se a descrever e analisar um mundo no qual estamos deixando de conhecer, um presente que está se transformando em passado, cujas marcas ainda moldam muitas experiências, mas não todas. As atividades do surfe e do skate, entre outras, se constituíram num momento histórico onde os poderes disciplinares já eram menores e menos expressivos.

Para muitos jovens, os chamados “esportes californianos” representaram, nesses anos iniciais, uma espécie de liberdade e fonte de criação para novos movimentos corporais. Além disso, essas atividades também incentivaram outras formas de sociabilidade, que se fizeram como agregações tribais pautadas na diversão, na ludicidade e na vivência festiva do cotidiano.

 

Referências

BRANDÃO, Leonardo. Para além do esporte: uma história do skate no Brasil. Blumenau: Edifurb, 2014.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 2009.

HERRERA, Deibar René Hurtado Herrera. “In-corporar en la sociedad moderna y en las prácticas emergentes contemporaneas” In Recorde: Revista de História do Esporte. Volume 2, número 2, dezembro de 2009, p. 1- 19.

PORTER, Roy. História do corpo. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992, p. 291 – 326.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Entre o corpo e a técnica: antigas e novas concepções. In Motrivivência, ano XI, n. 15, agosto de 2000, p. 1 – 6.


Proezas Ginásticas no Rio de Janeiro do século XIX: aproximações de uma história corporal da história da cidade

18/03/2018

Por: Fabio Peres e Victor Melo[i]

Em posts anteriores tentamos argumentar que a ginástica – em suas diferentes conotações, formas e tipos – fazia parte da paisagem do Rio de Janeiro do século XIX.  

Mas algo que parece ser central, que constitui ainda um desafio pouco explorado no campo da História do Esporte no Brasil, é corpo per se  tomado como domínio ou objeto de investigação histórica.  

De forma provocativa, podemos dizer que, via de regra, a história das práticas corporais são pouco ou quase nada, com as devidas exceções, corporal.  

No nosso caso, por exemplo, devemos discutir melhor a possibilidade do papel das exibições de ginástica na gestação de um (talvez novo?) ethos corporal na cidade.

A ausência de tipos variados de fontes, sem dúvida, é um obstáculo. Mas será que não haveria formas de se aproximar, mesmo que de maneira ainda incipiente, das representações do corpo?

No decorrer do século XIX, circos que destacavam proezas ginásticas como uma atração se tornaram comuns e muito apreciados na cidade. Mesmo que essa “ginástica-espetáculo” não tivesse grande número de praticantes, sempre cativou um público ávido por novidades; ao que parece de distintos estratos sociais. Temos defendido, inclusive, que antes dos exercícios oferecidos em escolas e agremiações, ela ajudou a gestar uma sensibilidade pública para com a prática.

A especificidade desses espetáculos é que seu poder de sedução estava atrelado diretamente ao próprio corpo, o que incomodava alguns intelectuais, que desejavam anexar à ginástica uma base moral e sanitária.

Devemos lembrar que “a crítica aos exageros do desenvolvimento muscular por ele mesmo e ao funambulismo é ponto passível em todos os educadores que pensaram a educação física escolar nesse momento de transição da sociedade brasileira” (HEROLD JUNIOR, 2005, p. 247).

Para o público, todavia, essa não era uma preocupação. Mesmo quando cresceram as contestações, continuou sendo observável a influência circense nos mais distintos âmbitos.

Se a ginástica era uma das atrações de muitos espetáculos, que tipos de exercícios eram realizados?

Vejamos, por exemplo, a apresentação de Mr. Vally no “Pomposo espetáculo ginástico e dramático, para ser representado perante S. M. o Imperador, o Senhor D. Pedro II, a Augusta Família Imperial”, no Teatro Constitucional Fluminense, em abril de 1838. O “mestre de ginástica de Londres e de Paris” (O Despertador, 27/2/1839, p. 3) prometia executar “na coluna giratória, e nas duas colunas, os mais lindos e delicados exercícios ginásticos, forças, e posições acadêmicas” (O Despertador, 19/4/1838, p. 3).

cap.1.figura 5. O Despertador, 27.2.1839, p. 3.

O Despertador, 27/2/1839, p. 3.

Algumas dessas proezas se tornariam comuns não só nas exibições artísticas como também no cotidiano das sociedades ginásticas e clubes.

Era o caso de números como “A flor da ginástica”, a “Escada perigosa” e o “Salto do Niágara”, “de cujo desempenho deixa o espectador extasiado” (Correio Mercantil, 18/1/1863, p. 4). Em muitas outras ocasiões, os exercícios foram fartamente descritos, um belo retrato de como se organizava a ginástica naquela ocasião).

Vally tornou-se também modelo da Academia Imperial de Belas Artes, em função da sua compleição corporal e por executar as “mais elegantes Estátuas, tiradas da mitologia e da história antiga” (Ver Diário do Rio de Janeiro, 4/4/1839, p. 2.). Vale o registro de como um novo padrão de corpo começava a circular e ser apreciado na cidade, antecipando um movimento que se tornará mais perceptível no quartel final do século XIX e começo do XX (MELO, 2011).

Nos circos melhor constituídos, a ginástica dividia espaço com as atividades equestres e dramáticas, ainda que seja difícil precisar exatamente os limites de cada termo.

Em março de 1840, por exemplo, promoveu um espetáculo João Bernabó, que trabalhara com Chiarini e tinha parcerias constantes com E. G. Mead. Suas apresentações ocorreram em um curro de propriedade de Manoel Luiz Alves de Carvalho, situado no Campo de São Cristóvão, onde também seriam organizadas corridas de touros. A imagem do anúncio, uma parada de mão realizada em um cavalo em movimento, nos permite ver o quanto os exercícios equestres e ginásticos se mesclavam.

cap.1.Imagem6

Diário do Rio de Janeiro, 16/5/1840, p. 3.

Outros detalhes conseguimos saber na atuação da Companhia do francês Fouraux, que se apresentou, em 1852, no mesmo Circo Olympico. Na programação das funções de fevereiro, num rol de 11 atividades divididas em duas partes, cinco referem-se a exercícios de equilíbrios, entre os quais “a luta ginástica, e vários saltos perigosos por cima de seis cavalos, executada por todos os artistas da companhia”, e “exercícios ginásticos e salto dos duplos toneis” (Correio Mercantil, 12/2/1852, p. 4).

Uma informação merece ser destacada no que tange à atuação dessa companhia: “O Sr. Fouraux tem a honra de prevenir o público que dá lições de equitação” (ibid.). Na realidade, vários foram os profissionais que trabalharam nos dois âmbitos, no espetáculo e no ensino, importante indício de que houve um trânsito de informações e referências.

Vejamos outro exemplo. Ao comentar a performance de Neal e Rogers, do Circo Grande Oceano, um cronista lembra que muitos amadores buscavam os ginásios para se exercitarem, e que as atividades acrobáticas eram as mais difíceis e apreciadas. Informa que os dois artistas dirigiam uma escola de ginástica própria, além de encantarem por sua exibição:

Uma vez são as provas de uma força hercúlea o que admira a todos, outra a flexibilidade dos seus corpo, como se fossem de borracha, os graciosos movimentos, as transformações incríveis, as posições incompreensíveis (Correio Mercantil, 24/6/1862, p. 4),

Nas exibições ginásticas utilizavam-se implementos diversos: camas elásticas, cordas, pórticos, barras e trapézios, material que também seria adotado em escolas e clubes. Força, equilíbrio, flexibilidade, agilidade eram valências físicas mobilizadas. Coragem e ousadia eram valores destacados. O risco era a dimensão mais comumente exaltada, tida como importante fator de atração de “um público que sabe reconhecer o quanto custa um trabalho cheio de perigos, pela incerteza que há nesta arte”.

cap.1.Imagem2

Correio Mercantil, 22/1/1860, p. 4

Vejamos essa longa descrição de um cronista sobre as sensações causadas pelo espetáculo de dois ginastas no Politeama Fluminense:

Todos os corações como que deixam de palpitar; o sangue gela-se nas veias; o sistema nervoso sofre violentas impressões e das mãos frias do espectador dessora uma transpiração gélida e incomoda. Só volta o coração a sua regular oscilação de pêndulo da vida, e o calor se espalha pelo corpo, quando os dois artistas terminaram aquele perigosíssimo exercício. Então as mãos aplaudem freneticamente e o entusiasmo transborda em todos os peitos (Gazeta da Tarde, 30/7/1881, p. 2).

Essas impressões mobilizaram a cidade de tal maneira que chegaram a ser desencadeadas iniciativas de controle por parte das autoridades:

O Sr. Desembargador chefe de polícia expediu circular aos subdelegados determinando que obriguem os empresários de circos ginásticos a usar redes e outros aparelhos de salvação, próprios para guardarem a vida dos artistas que se arriscam em tais trabalhos (O Globo, 1/9/1877, p. 2).

De fato, eventualmente vemos pelos jornais algum incidente, em número bem menor do que fazia crer as propagandas dos circos, que exageravam para atrair o público. Vejamos a notícia de um acidente: “No espetáculo da tarde de ontem no circo Grande Oceano, teve lugar um deplorável acontecimento. O Sr. Julius Buislay teve a infelicidade de cair de um dos trapézios da altura de 30 pés, ficando com o braço direito fraturado em duas partes” (A Atualidade, 13/7/1863, p. 3). Essas ocasiões, de alguma forma, ajudavam a reforçar a ideia de que aquela atividade era mesmo perigosa. Curiosamente, uma das companhias em que mais incidentes foram registrados foi a do Teatro-Circo, que se apresentava como a “nec plus ultra da ginástica”, isso é, “a que não pode ser ultrapassada”. De fato, suas apresentações eram marcadas por números muito arriscados, chamando muito a atenção do público.

Desafiar e superar as condições naturais eram claramente dimensões mobilizadas nos espetáculos, intencionalidades que vão marcar, seja qual for o teor do discurso, a prática da ginástica na Corte. Isso por vezes era mais sutil, por outras era explícito. Vejamos como se anuncia a apresentação de Jeronymo Lauriano da Costa, que sem os braços executava várias proezas somente com os pés: “Prodígio e aborto da natureza” (Correio Mercantil, 5/2/1860, p. 4).

Uma vez mais o circo refletia um dos dramas da modernidade. Era possível superar os limites divinos por um processo de produção racional de conhecimento. Doenças podiam ser superadas pela medicina. Pontes superavam obstáculos naturais. As técnicas permitiam aos homens “flutuar”. A ginástica dos circos transitava por padrões de racionalidade tanto quanto a dos médicos. A diferença era a especificidade do diálogo.

As proezas ganhavam diferentes definições, tais como: “Grandes volteios aéreos, e saltos por cima das tiras, executados pela Sra. Varin”; “Diferentes exercícios de equilíbrio e força, pelo Sr. Francisco”; “Trabalho grotesco de elevações, passando por cima de diferentes objetos e pipas, executados pelo Sr. Joanny Fouraux” (Correio Mercantil, 11/3/1852, p. 4). Da mesma forma, muitas eram as denominações utilizadas: salto ginástico, salto aéreo, elevações ginásticas, volteios ginásticos.

Um exercício muito conhecido era assim descrito: “As argolas volantes, ou os suplícios romanos, trabalho de forças e grande dificuldade, executado pelo Sr. Francisco” (Correio Mercantil, 16/5/1852, p. 4). Voos e saltos eram muito valorizados. Por exemplo, a “Grande luta ginástica e acadêmica” tratava-se da execução de “saltos mortais em diferentes sentidos, por cima de muitos cavalos” (Correio Mercantil, 24/6/1852, p. 4.)

Em muitas ocasiões relacionavam-se as cenas a feitos “históricos” (como “O grego heroico em combate com o mouro rebelde”), “primitivos” (como “o selvagem do norte no exercício da caça) ou “exóticos” (como “a carreira rápida do volteador chinês” e “a carreira veloz da sílfide”). Todas essas atrações integraram a programação do Circo Olympico de 27 de maio de 1860 (Correio Mercantil, 27/5/1860, p. 4).

No decorrer do século XIX vários sentidos se cruzavam ao redor da palavra “gymnastica”, bem como diversos termos tocavam em dimensões que se relacionavam com a prática, tais como “exercício”, “athleta”, “lucta”. Não surpreende, assim, que alguns circos tenham abrigado atividades correlatas.

Por exemplo, em dezembro de 1856, o Circo da Guarda Velha anuncia a realização de “Grande luta de assalto” (Correio Mercantil, 19/12/1856, p. 4), da qual participariam “jovens atletas desta capital”. Tratava-se de uma eliminatória: ao fim do dia sairia o campeão. Os promotores, Duffaud e Hyppolite, não somente convidavam a tomar parte “os amadores destas partidas de ginástica”, como anunciam que “dão lições particulares da luta Chausson, ou de pés e pugilato, ou de socos, etc”.

Enfim, como já apontamos em outras ocasiões, parecia mesmo onipresente no Rio do século XIX, inclusive corporalmente, nossa estimada ginástica.

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[i] Parte deste texto foi publicado originalmente em MELO, Victor Andrade de; PERES, Fabio de Faria. A gymnastica no tempo do Império. Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2014. (Coleção Visão de Campo)


Machado de Assis, João do Rio, Olavo Bilac e os novos padrões corporais no Rio de Janeiro da transição dos séculos XIX e XX

17/11/2017

Por Victor Andrade de Melo

Março de 1871 (no tempo da ficção, já que a obra foi escrita nos anos finais do século XIX). Bentinho e Capitu uma vez mais deixam sua casa na Glória para jantar na residência de Escobar e Sancha, na Praia do Flamengo. Em certo momento da noite, na janela a ouvir o barulho do mar em ressaca (como os olhos de Capitu, conforme sugeria o protagonista), perdido em pensamentos, Bentinho percebe o amigo se aproximar:

– O mar amanhã está de desafiar a gente, disse-me a voz de Escobar, ao pé de mim.
– Você entra no mar amanhã?
– Tenho entrado com mares maiores, muito maiores. Você não imagina o que é um bom mar em hora bravia. É preciso nadar bem, como eu, e ter estes pulmões disse ele batendo no peito, e estes braços; apalpa.

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Banhistas na Praia do Flamengo/década de 1910

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Bentinho assume que, a princípio, em Sancha lembrou quando apalpou o braço de Escobar. Todavia, logo uma sensação constrangedora lhe acometeu: “achei-os mais grossos e fortes que os meus, e tive-lhes inveja; acresce que sabiam nadar”. No retorno à Glória, inebriado pelo forte ruído do oceano, Bentinho se dá conta do incômodo que lhe causava a figura de Escobar, materializado numa fotografia que possuía em casa.

Entre tantas leituras possíveis, podemos ver em Dom Casmurro um embate entre modelos de masculinidade. Machado de Assis, na composição de seu personagem “másculo”, o destaca, entre outras características, pela compleição muscular e pelo hábito de praticar um esporte. O comerciante e empreendedor Escobar enfrenta mares bravios com seus bons pulmões e braços fortes. Morre não por covardia, mas sim por ousadia. Bentinho, ao contrário, toma ciência de sua fraqueza e inveja o amigo: sabe-se débil em muitos sentidos.

Podemos também considerar que se trata de uma dramatização de um embate entre o homem da tradição bacharelesca, que só se dedica às coisas da “mente” e do “espírito”, e o novo burguês, que expressa com seu corpo os comportamentos e posturas que marcam uma personalidade disposta a aceitar desafios. Enfrentar o oceano com seus próprios braços é um sinal definidor do perfil desse homem.

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Remadores na Praia do Flamengo/Década de 1920

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O que bem capta Machado de Assis são as mudanças de perfil e de padrão de exposição corporal na cena fluminense das últimas décadas do século XIX, tão bem definidas por João do Rio alguns anos mais tarde. No início do século XX, ele sugeriu que “Fazer esporte há 20 anos ainda era para o Rio uma extravagância. As mães punham as mãos na cabeça, quando um dos meninos arranjava um altere. Estava perdido. Rapaz sem um pincenez, sem discutir literatura dos outros, sem cursar as academias – era um homem estragado”. A contrário disso, na virada de centúrias, segundo seu olhar,

Rapazes discutiam “muque” em toda parte. Pela cidade, jovens, outrora raquíticos e balofos, ostentavam largos peitorais e a cinta fina e a perna nervosa e a musculatura herculeana dos braços. Era o delírio do rowing, era a paixão dos esportes. Os dias de regatas tornavam-se acontecimentos urbanos.

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Regata na Enseada de Botafogo/1ª década do século XX

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Não que o esporte fosse uma novidade na cidade. Desde a primeira metade do século XIX, diversas modalidades já vinham se estruturando, em conjunto com outras práticas corporais (ginástica, dança, patinação), expressões da valorização crescente de uma vida pública, materializada, inclusive, pela conformação progressiva de um mercado ao redor dos entretenimentos.

Naquela transição de séculos, contudo, no quadro de um Rio de Janeiro em mudanças, no qual se percebe ainda maior adesão ao ideário e imaginário da modernidade, bem como fortalecimento das relações com parâmetros simbólicos do continente europeu, as atividades físicas deixaram de ser uma exceção, venceram resistências culturais e, incorporando preocupações com a saúde e higiene, tornaram-se valorizadas por um significativo estrato da população, consideradas mesmo como um modelo de um novo padrão de vida que deveria se desejar para que o país pudesse progredir.

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Remadores do Clube Boqueirão do Passeio

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Os homens, como bem observa Luiz Edmundo, “já começam a mostrar corpos rijos e bem desenhados de músculos, muito orgulhosos de suas linhas, exibindo-se em calções, mas dos longos, dos que vão abaixo da linha do joelho” (1957, p. 840). Os remadores se tornam um exemplo.

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Remadores do Vasco da Gama

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O remo era representado como o esporte do “exercício physico”, termo-chave sempre usado pelos que defendiam e propagavam os benefícios dessa prática. Era encarado como o esporte da saúde; do desafio, contra o outro e contra o mar, que educa o músculo e a moral. Seria supostamente uma prática adequada para forjar uma juventude altiva, forte e com “liberdade de espírito” suficiente para conduzir a nação ao progresso necessário.

Olavo Bilac, ardoroso defensor do progresso e da modernização do país, celebrava:

Essa geração, que está se educando no mar, face a face com o perigo, criando a energia muscular e energia moral, já é mais bela, mais forte, mais nobre do que a minha. Os adolescentes de hoje já não são como os de ontem, magros e tristes, macambúzios e histéricos, criados entre o rigor do carrancismo paterno e a brutalidade dos mestres boçais, entre sustos e palmadas, sem exercício físico e sem liberdade de espírito (…) os meninos de hoje já são bravos como homens.

Assim, sempre que se falava dos atletas de remo, procurava-se destacar suas formas físicas, sua vigorosidade, sua “saúde”. O remador campeão brasileiro de 1903 era apresentado física e moralmente como uma figura próxima da perfeição: “Arthur Amendoa, é de estatura mediana, moreno, bela estatura, bela complexão de atleta, bastante musculoso, dotado de muito bom gênio e no trato é cortes; excelente companheiro e amigo leal”. As fotos de remadores exibem para o grande público a nova formação corporal que melhor expressava o que se esperava dos novos tempos.

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Remadores do Clube de Regatas Gragoatá

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Para mais informações

MELO, Victor Andrade de Melo. Cidade sportiva. Rio de Janeiro: Relume Dumará/Faperj, 2001.

MELO, Victor Andrade de Melo. Corpos, bicicletas e automóveis: outros esportes na transição dos séculos XIX e XX. In: PRIORE, Mary del, MELO, Victor Andrade de (org.). História do esporte no Brasil: do Império aos dias atuais. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 70-106.

MELO, Victor Andrade de Melo. O corpo esportivo nas searas tupiniquins – um panorama histórico. In: PRIORE, Mary del, AMANTINO, Marcia. (orgs.). História do corpo no Brasil. São Paulo: Editora da Unesp, 2011. p. 123-145.

MELO, Victor Andrade de Melo. Novas performances masculinas: o esporte, a ginástica, a educação física (século XIX). In: PRIORE, Mary del, AMANTINO, Marcia (orgs.). História dos homens no Brasil. São Paulo: Editora da Unesp, 2013. p. 119-152.

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Histórias do esporte em Rubem Fonseca (parte 1)

17/04/2017

por Fabio Peres

Cruel, realista, desconcertante, brutal, mórbido. Entre tantos termos utilizados para descrever a literatura de Rubem Fonseca, talvez possamos também adicionar o adjetivo esportivo. Afinal, basta uma breve leitura de sua obra para perceber que não são poucos os contos e romances em que o esporte e as atividades físicas, em geral, ocupam lugar – ora mais, ora menos – privilegiado.

Desde a publicação de Os Prisioneiros (1963), primeira coletânea de contos do autor, o objeto está lá, por assim dizer, em suas variadas formas; às vezes de maneira mais clara ou quase desapercebido de modo sútil. Como aponta a escritora Maria Alice Barroso, Rubem já se destacava no conto Fevereiro ou março (1963)  pela incorporação de “um excelente tipo à galeria de personagens da literatura brasileira: o atleta vagabundo, frequentador das academias de boxe, portador de uma ética toda sua” (apud AUGUSTO, 2009, posfácio)[i].

Capa da edição de 1963 de Os Prisioneiros

O personagem-narrador inicia a história descrevendo como a condessa Bernstroa, mulher casada com a qual teve um caso, explicava a manutenção de suas formas corporais:

Era uma velha, mas podia dizer que era uma mulher nova e dizia. Dizia: põe a mão aqui no meu peito e vê como é duro. E o peito era duro, mais duro que os das meninas que eu conhecia. Vê minha perna, dizia ela, como é dura. Era uma perna redonda e forte, com dois costureiros salientes e sólidos. Um verdadeiro mistério. Me explica esse mistério, perguntava eu, bêbado e agressivo. Esgrima, explicava a condessa, fiz parte da equipe olímpica austríaca de esgrima — mas eu sabia que ela mentia.

O personagem continua desfiando a história explicando como foi seu dia, um sábado de carnaval, marcado por certa imprevisibilidade e também, não por acaso, por certa angústia:

Era de manhã, no primeiro dia de carnaval. Ouvi dizer que certas pessoas vivem de acordo com um plano, sabem tudo o que vai acontecer com elas durante os dias, os meses, os anos. […] Eu — eu vaguei pela rua, olhando as mulheres. De manhã não tem muita coisa para ver. Parei numa esquina, comprei uma pera, comi e comecei a ficar inquieto. Fui para a academia.

A descrição dos exercícios na academia é acompanhada por uma série de sentidos, pensamentos, práticas e gestos:

[…] comecei com um supino de noventa quilos, três vezes oito. O olho vai saltar, disse Fausto, parando de se olhar no espelho grande da parede e me espiando enquanto somava os pesos da barra. Vou fazer quatro séries pro peito, de cavalo, e cinco para o braço, disse eu, série de massa, menino, pra homem, vou inchar. E comecei a castigar o corpo, com dois minutos de intervalo entre uma série e outra para o coração deixar de bater forte; e eu poder me olhar no espelho e ver o progresso. E inchei: quarenta e dois de braço, medidos na fita métrica.

A academia, por sua vez, é lugar de encontros, de construção (e também de desconstrução) de vínculos e laços sociais. Os amigos, frequentadores de academia -ao que tudo indica de um bairro da Zona Sul carioca –, organizam a “diversão” para aquele carnaval:  “porrada pra todo lado”. A ideia era simples. Se fantasiar de mulher e então:

O povo cerca a gente pensando que somos bichas, nós estrilamos com voz fina, quando eles quiserem tascar, a gente, e mais vocês, se for preciso, põe a maldade pra jambrar e fazemos um carnaval de porrada pra todo lado. Vamos acabar com tudo que é bloco de crioulo, no pau, mesmo, pra valer. Você topa?

Após alguns desdobramentos (e outras referências aos sentidos e usos do corpo), o narrador se auto descreve para o marido da condessa, adquirindo assim características de um novo “tipo” inserido em um meio social com senso moral e ético próprios, como chamou atenção Maria Alice Barroso:

na academia eu faço ginástica de graça e ajudo o João, que é o dono, que ainda me dá um dinheirinho por conta; vendo sangue pro banco de sangue, não muito para não atrapalhar a ginástica, mas sangue é bem-pago e o dia em que deixar de fazer ginástica vou vender mais e talvez viver só disso, ou principalmente disso. Nessa hora o conde ficou muito interessado e quis saber quantos gramas eu tirava, se eu não ficava tonto, qual era o meu tipo de sangue e outras coisas. Depois o conde disse que tinha uma proposta muito interessante para me fazer e que se eu aceitasse eu nunca mais precisaria vender sangue, a não ser que eu já estivesse viciado nisso, o que ele compreendia, pois respeitava todos os vícios. Não quis ouvir a proposta do conde, não deixei que ele a fizesse; afinal eu tinha dormido com a condessa, ficava feio me passar para o outro lado. Disse para ele, nada que o senhor tenha para me dar me interessa. Tenho a impressão que ele ficou magoado com o que eu disse […] Por isso, continuei, não vou ajudar o senhor a fazer nenhum mal à condessa, não conte comigo para isso. Mas como?, exclamou ele, […], mas eu só quero o bem dela, eu quero ajudá-la, ela precisa de mim, e também do senhor, deixe-me explicar tudo, parece que uma grande confusão está ocorrendo, deixe-me explicar, por favor. Não deixei. Fui-me embora. Não quis explicações. Afinal, elas de nada serviriam.

No mesmo livro (Os prisioneiros de 1963) novamente a ginástica, a “malhação”, bem como as competições de “físico”, típicas de academia, seriam mencionadas no conto Os inimigos; para alguns críticos da época o melhor da coletânea. Além disso, o conto que dá nome ao livro curiosamente se inicia por uma conversa entre uma psicanalista e um cliente sobre a inconveniência e mesmo inadequação de usar roupa “esportiva” no Centro da cidade, lugar por excelência de trabalho.

O panorama, por assim dizer, esportivo da literatura de Rubem Fonseca, de fato, é vasto e instigante. Por exemplo, o ambiente e os frequentadores de academia voltariam a fazer parte da obra do autor em 1965 no conto A Força Humana (do livro A Coleira do cão). Na realidade, trata-se em certo sentido de uma continuação de Fevereiro ou março. Já em 1969, o antigo Vale-Tudo seria objeto central do conto O Desempenho no famoso livro Lúcia McCartney.

Em 1979, breves referências ao futebol e ao balé apareceriam em O cobrador (no livro homônimo). Na mesma obra menções à ginástica retornariam em Mandrake (além do xadrez) e, em 1992, em o Romance Negro. Por outro lado, uma competição inusitada no Pantanal está em AA (abreviação do “esporte” de mesmo nome) em 1998 no livro a Confraria dos Espadas. Também em 1992, há uma menção à rua do Jogo da Bola – uma prática de diversão que esteve presente na cidade do Rio de Janeiro no século XVIII e XIX[ii] – em A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro.

Em 2001, exercícios aeróbicos, de alongamento e de musculação são citados em Copromancia, na obra Secreções, excreções e desatinos. Corrida na praia aparece em Caderninhos de nomes no ano seguinte em Pequenas criaturas. Em Laurinha surge mais uma vez uma referência ao futebol no livro Ela e outras mulheres de 2006. E a relação de Lima Barreto com o futebol é citada no romance O seminarista de 2009.

Mas essas e outras histórias ficarão para os próximos posts. Em todo caso, mais do que uma mera provocação, denominar a literatura de Rubem Fonseca de esportiva pode ser uma forma de perturbar os limites e as fronteiras do campo da História do Esporte; uma maneira talvez que nos ajude a entrecruzar várias histórias: do corpo, de gênero, da cidade, de classe, da discriminação racial, da homofobia, das diferentes modalidades e práticas esportivas, das emoções, da estética, da literatura, entre muitas outras histórias.

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[i] AUGUSTO, Sergio. Estreia consagradora. In: FONSECA, Rubem. Os prisioneiros. Rio de Janeiro: Agir, 2009.

[ii] Maiores informações ver MELO, Victor Andrade de. MUDANÇAS NOS PADRÕES DE SOCIABILIDADE E DIVERSÃO: O jogo da bola no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). História,  Franca ,  v. 35,  e105,    2016 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-90742016000100514&lng=en&nrm=iso>. access on  17  Apr.  2017.  Epub Dec 19, 2016.  http://dx.doi.org/10.1590/1980-436920160000000105.


Futebol e “sacanagem”: ocasionalidades nas trajetórias

21/04/2016

Por Victor Andrade de Melo

Ao ver o título deste post, o(a) leitor(a) pode pensar que se trata de um texto sobre os cartolas do futebol brasileiro, sobre as desigualdades salariais que grassam entre os jogadores ou sobre os problemas relativos à organização da Copa do Mundo de 2014, tais como gastos excessivos na construção de estádios, remoções de comunidades ou dinheiro público desperdiçado em um suposto legado que nunca veio.

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VLT de Cuiabá – o sistema não funciona, a despeito de ser uma das obras mais caras do Estado

VLT de Cuiabá – o sistema não funciona, a despeito de ser uma das obras mais caras do Estado

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Pois bem, quero de pronto acalmar (ou decepcionar) o(a) leitor(a). Aqui não tratarei disso. O uso do termo “sacanagem” remete-nos à transição dos anos 1970/1980, quando comumente era usado como sinônimo ou para fazer referência a algo relativo ao sexo.

Por exemplo, algumas pornochanchadas, gênero que fez muito sucesso no período, eram chamadas de “filmes de sacanagem”. Quando jovem, tinha inveja de alguns amigos que conseguiam burlar os pais e ver algumas dessas películas que passavam uma vez por semana, bem tarde, numa emissora de televisão (se não me engano, na Bandeirantes, num programa chamado “Sala Especial”).

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Nos dias de hoje, esses filmes têm sido exibidos no Canal Brasil. Na verdade, tinham um padrão de exibição corporal que, se comparado ao que na atualidade vemos mesmo na TV aberta, pode parecer algo bem pueril. Na época, contudo, habitavam o sonho erótico da meninada, junto com umas revistas vendidas na banca com uma tarja preta, chamadas, não sei bem o porquê, de “suecas”.

Pois bem, é sobre isso que pretende tratar este post, mais especificamente do primeiro filme brasileiro de sexo explícito, lançado em 1982, “Coisas Eróticas”, dos diretores Raffaele Rossi e Laerte Callichio.

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Cartaz do filme

Cartaz do filme

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Antes, contudo, deixe-me abordar a segunda parte do título do post – “ocasionalidades na trajetória”.

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Um dos temas que mais me interessa é a intensa presença da prática esportiva em nosso cotidiano, os rastros que deixa no dia-a-dia, nos mais diferentes âmbitos. No passado, chamei esse esforço de prospectar tal ocorrência como uma tentativa de “arqueologia social do esporte”. Em muitas situações são ocasionalidades. De toda forma, ajudam a lançar um olhar sobre o tema.

Por exemplo, chama-me a atenção como o futebol foi relevante para os membros de dois grupos culturais importantes dos anos 1970, os Novos Baianos e o Nuvem Cigana. Destaca-se a importância dada ao velho esporte bretão nas entrevistas disponíveis em dois belíssimos recentes documentários dedicados às trajetórias desses movimentos (Filhos de João – O Admirável Mundo Novo Baiano, disponível aqui https://www.youtube.com/watch?v=d57VtNeR9W8; e As Incríveis Artimanhas da Nuvem Cigana, informações aqui https://www.facebook.com/As-Incr%C3%ADveis-Artimanhas-da-Nuvem-Cigana-448283485269672/).

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Capa de LP dos Novos Baianos

Capa de LP dos Novos Baianos

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O velho esporte bretão, curiosamente, aparece na trajetória de um dos responsáveis pelo primeiro filme brasileiro de sexo explícito – Raffaele Rossi

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Tomei conhecimento desse filme pelo incrível e louvável trabalho de Denise Godinho e Hugo Moura, que se dedicaram a recuperar esse capítulo pouco conhecido da história do cinema brasileiro.

– Sobre o livro “Coisas eróticas”, ver  http://blooks.com.br/dica-blooks-coisas-eroticas-de-hugo-moura-e-denise-godinho/

– Sobre o documentário “A primeira vez do cinema brasileiro”, ver https://aprimeiravezdocinemabrasileiro.net/

– O filme “Coisas Eróticas” está largamente disponível na internet

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Capa do livro

Capa do livro

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Os autores recuperaram com esmero todas as fases do projeto – a ideia, o convencimento dos técnicos envolvidos, a seleção e convencimento de atores e atrizes, as filmagens com precários recursos, as dificuldades com a censura, o lançamento (decidido de forma abrupta para dar conta da tristeza que acometia a população em função da desclassificação da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1982), os desdobramentos na própria produção cinematográfica e para os personagens envolvidos.

Raffaele Rossi, que até o lançamento do filme era um polêmico e menos valorizado diretor da Boca do Lixo paulistana, enriqueceu com “Coisas Eróticas”. Sua principal decisão para investir sua fortuna foi criar um…time de futebol de salão!

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Cartaz de O Homem Lobo, filme dirigido do Rossi

Cartaz de O Homem Lobo, filme dirigido do Rossi

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A decisão tinha em conta a paixão do diretor pelo esporte e, obviamente, uma enorme imprevidência, que o levou inclusive a perder tudo o arrecado com o filme em uma década de gastos excessivos. De toda forma, em 1983, criou o Grêmio Recreativo Rossi, com sede no próprio sítio onde passava dias com a família e oferecia festas inesquecíveis.

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Grêmio Recreativo Rossi

Grêmio Recreativo Rossi

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Rossi investiu alto na iniciativa, tanto na construção de instalações adequadas, com o que havia de mais moderno, quanto na formação da equipe, trazendo inclusive três jogadores do Paraguai, na época vice-campeão mundial da modalidade. O primeiro jogo fez crescer no diretor a certeza de que se tratava de um bom investimento – 3 X 2 no poderoso Banespa.

O futuro, contudo, não exponenciaria o esperado. O time faliu junto com seu criador.

– Mais informações sobre o time, ver https://aprimeiravezdocinemabrasileiro.net/ (1h07min. a 1h08min.)

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Dinheiro da “sacanagem” bancando o esporte. Nesse caso da equipe de Rossi, nenhum problema. Sacanagem da braba, no pior sentido do termo, estava na mesma época ocorrendo na articulação entre cartolas do futebol e de escolas de samba, gente do jogo do bicho, setores da ditadura e da polícia, assunto magistralmente tratado por Aloy Jupiara e Chico Otavio em “Os porões da contravenção – Jogo do bicho e ditadura militar: a história da aliança que profissionalizou o crime organizado” (http://www.blogdaeditorarecord.com.br/2015/11/30/os-poroes-da-contravencao-de-aloy-jupiara-e-chico-otavio/). De fato, iria crescer muito o número de sacanagens ao redor do esporte-rei do Brasil.

A comparação é plausível. “Coisas Eróticas” hoje parece coisa de criança, como o pareciam frente a ele aqueles filmes da “Sala Especial” que povoavam nossas imaginações (e movimentavam nossos corpos) infantis.

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