Dois livros de ficção sobre futebol

05/07/2015

No texto anterior, discuti livros biográficos de atletas como fontes. Desta vez, abordo duas obras de ficção que tratam de futebol.

Antes de falar dos livros, porém, gostaria de contextualizar minha posição com relação ao assunto. Há muitos anos, sou um leitor ávido de obras ficcionais sobre o tema, escritas por brasileiros e estrangeiros. Contudo, na grande maioria dos casos, fico com a sensação de que não conseguem captar a magia do esporte. (Aliás, tenho a mesma impressão em relação à maioria dos filmes sobre a modalidade – sobretudo os ficcionais.) Até quando se trata de um dos meus autores preferidos, Nick Hornby, o livro sobre skate (Slam) é, em minha opinião, muito superior ao que trata de futebol (Febre de bola).

*  *  *

13582_gO primeiro título é, se não me falha a memória, o melhor romance sobre futebol que li: O drible, de Sérgio Rodrigues. O grande mérito é que não se trata de um bom livro de ficção sobre futebol, mas sim um bom livro de ficção – e ponto. Estou aplicando, para a obra, o mesmo raciocínio que aplico a boa parte dos trabalhos científicos que leio sobre esporte, principalmente sobre futebol.

É comum autores acadêmicos reclamarem de preconceito contra o tema dentro das ciências humanas. Sem dúvida, tal preconceito existe. Sem dúvida, também, hoje ele é muito mais fraco do que há, digamos, dez ou vinte anos. Persiste em áreas nas quais a pesquisa sobre o tema é recente e incipiente, como a Comunicação; ao passo que, em outras, como Antropologia e Sociologia, as pesquisas sobre esporte contam com grau maior de aceitação e legitimidade.

Contudo, a meu ver, o principal problema para a inserção das produções sobre esporte na Comunicação não reside no tema, e sim na qualidade dos trabalhos. Um exemplo: Marcio Telles ganhou o Prêmio Compós de melhor dissertação de 2014 com o trabalho “A recriação dos tempos mortos do futebol pela televisão : molduras, moldurações e figuras televisivas“. Ela não foi escolhida apesar de abordar o futebol, mas porque era excelente. Ponto. (Na verdade, não a li; mas, a julgar pelos artigos e apresentações relativos a ela que li/assisti, deve ser ótima mesmo.)

Voltando ao livro… A trama tem, digamos, três personagens principais. Um velho jornalista esportivo que vive recluso no interior fluminense, o filho do jornalista (que vive na Zona Sul carioca) e um talentoso jogador de futebol oriundo da mesma cidade do jornalista. Na verdade, são tramas e narrativas que se entremeiam, tratando de futebol, mas também de conflitos familiares barra-pesada, de relações/conflitos de classe social e gênero, da ditadura civil-militar, dos meandros do futebol e da relação dessa modalidade com o mundo dos espíritos. As histórias do personagem que trabalhou por décadas em redações evocaram-me Mario Filho, Nelson Rodrigues e Armando Nogueira, entre outros.

*  *  *

O segundo é No estilo de Jalisco, de Juan Pablo Villalobos, de quem tomei conhecimento recentemente, por dica de um dos escribas deste blogue. A recomendação inicial foi ler o espetacular Se vivêssemos em um lugar normal. Depois parti para o ótimo Fiesta en la madriguera, romance de estreia do autor, também traduzido no Brasil.
110_166-capa-jalisco-af (1)

No entanto, No estilo de Jalisco, cuja história se passa num bar, me pareceu bem menos interessante – não por se passar num bar, é óbvio. Um mexicano e um desconhecido (brasileiro) da mesa ao lado conversam, regados a muita bebida, a respeito de futebol e de reminiscências do primeiro sobre a seleção brasileira de 1970. “Conversam” talvez não seja o termo mais adequado, pois, como ocorre com frequência em bares cariocas – a ficção capta a realidade com maestria -, o sujeito manguaçado aluga quem está por perto, contando histórias e insistindo em sustentar de forma errática argumentos que pouco ou nada interessam ao ouvinte (in)voluntário. Para quem não conhece a Zona Sul da cidade: a escassez de espaço coloca as mesas  exageradamente próximas umas das outras, favorecendo as investidas dos ébrios malas solitários em busca desesperada de um interlocutor, como se o mundo fosse acabar caso um coitado não se disponha a ouvi-los. Você almoça, janta, bebe, petisca e/ou faz confidências a (às vezes, bem) menos de um metro de um estranho – ou de vários estranhos, dependendo da lotação e distribuição das mesas ao redor.

Trata-se, segundo li, do primeiro romance escrito diretamente em português pelo autor, que vive no Brasil.

*  *  *El rescate

Uma das atividades de Villalobos é traduzir para o espanhol autores brasileiros de ficção. Curiosidade: fazendo uma pesquisa para este texto, “descobri” que, entre as obras já traduzidas, está… O Drible. Saiu no México pela Anagrama, mesma editora que publica os livros de Villalobos.


Apontamentos metodológicos: biografias de atletas como fontes

23/02/2015

Por Rafael Fortes

As biografias de atletas de ponta são, creio, o principal filão editorial envolvendo o esporte. No segundo semestre do ano passado, li livros sobre Kelly Slater, Rafael Nadal e Roger Federer. Em comum, o fato de serem esportistas que admiro e estarem em atividade (e entre os melhores) em modalidades de que gosto e com as quais tenho razoável envolvimento: pesquiso e escrevo sobre surfe desde 2005 e, nos últimos três anos ou quatro, tenho visto e jogado tênis.

Neste texto, discuto alguns aspectos destas obras desde um olhar da história do esporte.

Quatro pontos para pensar

1) Trata-se de biografias publicadas há poucos anos sobre atletas relativamente jovens (independentemente da idade, jovens, capazes e motivados o suficiente para, ao final de 2014, estarem entre os três melhores na principal liga profissional de suas respectivas modalidades), em atividade e com títulos a conquistar. Ou seja, por um lado, se assemelham às biografias em geral; por outro, abordam conquistas, resultados e acontecimentos de uma carreira ainda em andamento.

2) O tênis e o surfe são comumente classificados como modalidades individuais. Uma análise histórica biografias poderia ajudar a compreender e problematizar a dicotomia esportes individuais x esportes coletivos, que vigora no senso comum do campo esportivo e costuma ser reproduzida acriticamente por nós, pesquisadores, que a tomamos como algo dado. Por exemplo: considerando que as biografias são obras sobre um indivíduo, que elementos são mobilizados para construir, descrever, explicar, narrar etc. sua trajetória (noção por si só rica, em termos de análise), bem como seus resultados, realizações etc.? É possível identificar traços comuns às biografias de atletas de modalidades individuais? E às de atletas de modalidades coletivas? Indo além: é possível perceber semelhanças e diferenças entre as características comuns, considerando tal dicotomia?

3) Quanto à autoria: quem é o autor da obra? O próprio atleta? O jornalista? Ambos? Parece-me haver três principais tipos, do ponto de vista formal:

a) Autobiografias em sentido estrito: o atleta escreve o texto (ou, ao menos, é assim que o livro é publicado: atribuindo o texto ao esportista)Nadal.

b) Autobiografias com um (co)autor (geralmente um jornalista). É o caso dos livros de Nadal e Slater: o “com” ou um “e” seguido do nome do jornalista está estampado na capa. Fico com a sensação de que, nestes casos, o autor é o jornalista e coube ao atleta dar os depoimentos e ajudá-lo com outras informações. Contudo, como as obras não apresentam autorreflexividade, é impossível saber ao certo que papeis foram desempenhados por cada um.

c) Biografias escritas por um jornalista. Neste caso, há a divisão entre “autorizadas” e “não-autorizadas”. As categorias são discutíveis (como, em parte, ficou evidente o debate travado em certos veículos de comunicação brasileiros há cerca de um ano e meio, a partir do grupo Procure Saber), mas há outros aspectos que podem ser analisados: os objetivos de quem escreve, os interesses da obra para a coletividade, a forma e o conteúdo.

O livro de Chris Bowers sobre Roger Federer abre espaço para pensar tais questões, pois é uma biografia não-autorizada. Diferentemente das outras duas, não contou com depoimentos do atleta, nem de familiares e pessoas próximas (pessoal e profissionalmente). Além disso, trata-se da segunda obra do autor sobre o tenista – inclusive mencionando que vários trechos de capítulos são reproduções da anterior.

FedererTalvez por isso pareceu-me o livro menos rico, e que mais se assemelha à cobertura jornalística tradicional sobre o esporte (relato de resultados, competições etc.). Uma hipótese é que, além de ter menos informações privilegiadas sobre o biografado, justamente por não ser autorizado, o autor tenha tido mais cuidado, de forma a evitar problemas (como um processo judicial). Já as biografias de Slater e Nadal são versões contadas/ditadas/oficiais, que provavelmente também passaram pelo crivo de  empresário, assessor de imprensa etc.

4) Outra questão diz respeito à tradução e à qualidade do texto. Nos casos das obras de/sobre Nadal e Slater, o texto final em português tem sérios problemas (como alguns dos que apontei ao tratar de outro livro). Além disso, há numerosos erros na tradução de termos específicos – como o nome de golpes e manobras. Creio que se trata de um problema crônico do mercado brasileiro, em que raras editoras investem o suficiente na qualidade da tradução e revisão, mesmo quando se trata de obras que se sabe que vão vender bastante.

Apontamentos finais

– As biografias sob a forma de livro são um importante elemento da construção de representações sobre o esporte, embora não tão poderosas quanto o jornalismo periódico e as transmissões ao vivo por televisão e rádio.

– Os livros biográficos são uma fonte pouco explorada na história do esporte no Brasil. As fontes principais continuam sendo jornais e revistas, além de crônicas, obras de literatos etc.

– Uma análise de tais obras poderia ser enriquecida pela discussão existente na História a respeito da viabilidade/possibilidade da biografia como trabalho científico. Aliás, vale a pena acompanhar este debate, por proporcionar reflexões teórico-metodológicas interessantes.

– Trata-se de fonte que permite alargar o subcampo da História do Esporte. A análise destas obras possibilita abordar novas questões, bem como lançar novas questões para temas já abordados: esportes individuais; construção de representações coletivas; identidade nacional; ídolos; popularidade de atletas e de modalidades; comercialização; produção e reprodução do próprio campo esportivo (formação dos biografados e sua trajetória até se tornarem estrelas); produção e reprodução de estereótipos sobre o esporte, tanto por proporcionar olhares peculiares sobre o âmbito profissional (que podem ser muito diferentes da visão glamourizada veiculada pelos meios de comunicação), quanto porque perdedores e aqueles que se afastam das competições (por variados motivos) raramente são objeto de cobertura midiática, quanto mais de biografia em livro.

– Pode-se também refletir sobre o caráter estético da fonte – algo que deveria acontecer em qualquer trabalho histórico, mas que raramente é feito quando se trata de fontes vinculadas ao jornalismo.

Slater– O autor também deve ser levado em consideração ao se discutir as obras. Neste texto, me referi genericamente aos autores não-atletas como “jornalistas”. Contudo, a atuação profissional deles pode ser bastante extensa, e nem sempre o jornalismo é a atividade principal. Jason Borte, coautor de Pipe Dreams, foi surfista profissional, editor de revistas de surfe, é mestre em educação e atua como professor tanto em uma escolinha de surfe quanto no ensino fundamental.

Referências bibliográficas

Biografias citadas

BOWERS, Chris. Roger Federer: Spirit of a Champion. London: John Blake, 2009.

NADAL, Rafael; CARLIN, John. Rafa: minha história. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.

SLATER, Kelly; BORTE, Jason. A biografia de Kelly Slater: pipe dreams. São Paulo: Gaia, 2004.

Para saber mais sobre metodologia e história do esporte

MELO, Victor Andrade de. Esporte, lazer e artes plásticas: diálogos. Rio de Janeiro: Apicuri/Faperj, 2009.

MELO, Victor Andrade de; DRUMOND, Mauricio; FORTES, Rafael; SANTOS, João M. C. M. Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro: 7Letras/Faperj, 2013.


São Cristóvão x Alemanha

18/01/2015

por Alvaro do Cabo

O mundo da ficção futebolística é pouco conhecido e debatido pelos pesquisadores e amantes do esporte mais popular em nosso país.

Apesar de adorar literatura, sou mais um admirador do que especialista, não tenho tido muito tempo para me dedicar a leituras de romances, contos e poesias ultimamente. Neste blog temos a ilustre presença de um desbravador literário oriundo das terras paraibanas, o gigante Edônio.

Sem querer me aventurar na seara analítica do príncipe de João Pessoa, gostaria neste post de compartilhar uma indicação literária e uma divagação reflexiva.

Gozando de merecidas férias com a família, me dediquei a leitura de uma antologia de contos de ficção futebolística organizado pelos pesquisadores da área de Letras do Washington College Shawn Stein e Nícolas Campistí “Por amor a la Pelota: once cracks de la ficcíon futeboléra”.

Primeiramente gostaria de destacar a iniciativa de valorizar a literatura sobre futebol na América Latina escolhendo o idioma espanhol e o gênero de contos. Os autores selecionaram 11 contos que representam os 10 países associados da CONMEBOL, além do tradicional futebol mexicano buscando estabelecer uma conexão identitária e geopolítica através de narrativas em que a paixão pelo futebol é o grande fio condutor.

Relatos de torcedores, disputas amadoras e colegiais, a mercantilização do futebol, e até mesmo um homicídio em pleno gramado em uma partida de veteranos são alguns dos temas presentes entre os autores escolhidos.

Ademais, cada escritor respondeu a um interessante questionário que aborda desde a importância do futebol na sua juventude até a possível relação do esporte com a política, os míticos estilos de jogo o significado da realização da Copa do Mundo de 2014 para o continente.

Curiosamente, o acionamento da memória da Copa ficou presente na minha mente justamente no conto brasileiro de Sergio Sant’ana “a boca do túnel” que foi publicado pela primeira vez em 1982 e confesso que desconhecia sua existência.

O excepcional texto tem como protagonista o veterano técnico da modesta equipe carioca do São Cristóvão, que relata os acontecimentos de uma partida realizada no Maracanã contra uma grande equipe de qualidade técnica muito superior.

Paralelamente aos lances do jogo, o treinador em sua inigualável solidão existencial na boca do túnel divaga sobre a vida e as possibilidades táticas, estéticas e metafísicas do jogo de bola.

A qualidade literária é fascinante e as referências à craques como Pelé, Garrincha, Afonsinho, Sócrates, Reinaldo, Zico, etc, criam um contexto nostálgico do futebol brasileiro que se acentua com a construção mítica do próprio São Cristóvão.

Temas acadêmicos recorrentes como o futebol-espetáculo, a paixão e a ideia de comunidade clubística, a relação entre política e esporte e até a atualmente superada discussão do futebol como ópio do povo aparecem ao longo do texto.

E, no resultado final, qualquer semelhança é mera coincidência. O São Cristóvão apanhou de 7 a 1. O jovem ponta Evilásio marcou o gol de honra da equipe alvinegra. O treinador foi demitido, porém era modesto e sensível. Os moradores do tradicional bairro continuaram sua bucólica rotina: bares abertos, estudantes namorando, o comércio fervilhando em uma paisagem cinza e modorrenta.

A equipe de Figueira de Melo talvez ainda seja conhecida hoje devido ao slogan “aqui nasceu o fenômeno” em referência a breve passagem nos juniores de Ronaldo Nazário ou pelo mais tradicional bar temático de futebol de São Paulo que leva seu nome. O solitário título carioca de 1926 está perdido nas brumas da memória das antigas gerações ou nos livros de estatísticas futebolísticas.

A vida continua, mas como recuperar a honra depois de um 7 a 1. Se para o modesto São Cristóvão é muito difícil, imagina para a soberba seleção da C.B.F.

– REFERÊNCIA

STEIN, Shawn e CAMPISI, Nícolas (orgs). Por amor a la pelota:once cracks de la ficcíon futbolera. Santiago,  Editorial Cuarto Próprio: 2014.

.


Mercado de Entretenimento, Saúde e Práticas Corporais no século XIX: a história do artista-atleta Bargossi e de sua família no Rio de Janeiro – Parte 1

24/08/2014

por Fabio Peres[i]

No dia 2 de agosto de 1885, parte dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro parecia fervilhar de euforia.  De acordo com os jornais, as tão esperadas corridas inaugurais do Derby Club finalmente ocorreriam naquele domingo de céu azul, quase de verão[ii].

O público, ansioso pela festa prevista para às 11h, começou a chegar ao evento a partir das 9h30 da manhã. Trens especiais (partindo da estação Central) e bondes (das Companhias Vila Isabel, São Cristóvão e Guarani) traziam pessoas que se aglomeravam nas arquibancadas ao passo que a excitação crescia. Era até mesmo difícil andar sem esbarrar em alguém.

Entre os espectadores, sem dúvida, estavam as elites econômicas, políticas e culturais da capital. As representantes do high-life e as estrelas do demi-monde fluminense compareceram em peso. A família imperial também. Assim como pessoas de outras classes, em especial, dos estratos médios. Todas elas contribuíram para a grande concorrência de público: falava-se em milhares e milhares de pessoas, um verdadeiro “formigueiro humano” que se distribuiu nos diferentes setores das arquibancadas (de acordo com o preço do bilhete e status social) ou no espaço entre as arquibancadas e a raia. O Diário do Brasil (04/08/1885) chega mesmo a afirmar que o público presente ultrapassou 12.000 pessoas, o que não era pouco para uma cidade que anos mais tarde, em 1890, possuía cerca de 522 mil habitantes[iii].

O clima de grande animação e alegria, contudo, não era apenas para ver as corridas de cavalo.  O entusiasmo, segundo os jornais, possuía também uma outra explicação: a exibição do andarilho italiano Bargossi e de sua esposa que se apresentariam nos intervalos dos páreos. De fato, Achilles e Josephine – vestidos a caráter, ela trajando saiote curto de tule coberto com cetim cor de rosa – percorreram cerca de 3.000 metros em poucos minutos[iv]; o tempo sendo marcado por um cronômetro elétrico. No mesmo dia, um pouco mais cedo e não muito distante dali, o casal também havia comparecido a outro evento, as corridas a pé do Club Atlhetico Fluminense. Os Bargossi, porém, não demonstraram nessa ocasião suas célebres habilidades. Somente assistiram as provas como previam os anúncios do clube.

 

Imagem1.18850801.Diario do Brazil.p.4

Figura 1: Anúncio do Derby Club com divulgação da apresentação do “célebre andarilho Bargossi” (Diário do Brazil, 01/08/1885, p.4).

 

Imagem2.1885.08.01.Diario de Noticias.p.3

Figura 2: Destaque da presença de Bargossi e sua esposa no anúncio do Club Athletico Fluminense (Diário de Notícias, 01/08/1885, p.3).

 

As expectativas em torno dessas duas breves aparições públicas na cidade foram em muito impulsionadas pela imprensa. Nos dias que antecederam aos eventos, vários periódicos dedicaram artigos sobre os feitos extraordinários do incansável Sr. Bargossi: distâncias sobre-humanas atingidas e adversários (incluindo cavalos) facilmente vencidos. O mundo todo, afinal, conhecia o “afamado” andarilho. Portugal, Grécia, Espanha, França, Itália, entre muitos outros países como Turquia, Rússia e Inglaterra, supostamente teriam presenciado suas façanhas. A alcunha de “homem locomotiva”, tantas vezes utilizada para descrevê-lo, se ajustava perfeitamente, como nenhuma outra, àquele momento. Fazia referência à uma das inovações do século XIX que mais excitaram a imaginação popular pelo seu poder e velocidade[v]. Ajudava, assim, a compor a narrativa epopeica do herói-atleta.

 

Imagem3.1885.08.16.Diario de Noticias.p.1

Figura 3: Gravura de Bargossi publicada no Diário de Notícias (16/08/1885, p. 1). Detalhe à representação da vestimenta.

 

O próprio imperador, aliás, teria reconhecido sua notoriedade, ao recebê-lo pessoalmente em São Cristóvão, dizendo que o “conhecia de tradição” e que contava em vê-lo no Derby[vi]. Além disso, diversas crônicas foram dedicadas ao Bargossi. Artur Azevedo, sob o pseudônimo “Eloi, o herói”, por exemplo, escreveu mais de uma vez sobre o andarilho em sua seção “De Palanque”, no Diário de Notícias[vii], [viii]. Em uma delas, logo após a chegada dos Bargossi à cidade, um dos futuros fundadores da Academia Brasileira de Letras dizia que:

Apresentaram-me ontem o andarilho dos andarilhos, o grande Bargossi, o homem locomotiva, o Bargossi-express. Ontem mesmo chegou de Lisboa, muito pesaroso por ter estado tantos dias a bordo do Biela. Se houvesse terra firme entre o novo e o velho mundo, o famoso andarilho teria economizado o dinheiro da passagem. Infelizmente, apesar de todos os prodígios de que Bargossi é capaz, não tem o extraordinário condão daquele ‘Ulisses, que, ardendo em brasas, / Sobre o mar das Trapizondas, / Andava por sobre as ondas / Como vós por vossas casas.’ (Diário de Notícias, 31/07/1885, p.1)

 

Em seguida, o corpo do andarilho passa a ganhar espaço no texto de Artur Azevedo (algumas vezes associando-o à saúde. Devemos lembrar, como apontamos em outro post, que a relação entre exercícios corporais e saúde não era óbvia em grande parte do século XIX e sua emergência e consolidação foram lentas e graduais, adquirindo especificidades em terras nacionais[ix]). A crônica – em vários momentos em tom zombeteiro e com ironia afiada – segue fazendo referências à fama, à fortuna e à saúde de Bargossi, bem como aos seus atributos corporais. E no caminho aproveita para utilizar as virtudes do andarilho para criticar problemas da sociedade imperial:

É um magnífico tipo da forte raça humana, alegre, vivo, inteligente, sadio. Gesticula como um ator de província e fala pelas tripas de Judas… Tem andado pedibus calcante por toda a Europa, e não será para admirar que um dia faça deveras o mesmo que o Vasques tantas vezes tem feito por troça: a viagem à volta do mundo a pé. Finalmente, um Judeu Errante… de 36 anos. […] Um homem que tanto corre deve ser, realmente, objeto de admiração num país que tão lentamente caminha. As pernas de Bargossi têm músculos de ferro. Numa exposição de gâmbias ele ganharia aqui, naturalmente, o primeiro prêmio. Enquanto tivermos bonds para todos os sítios, cruzando-se em todos os sentidos e exigindo um magro tostão para transportar a gente de um ponto a outro da cidade, não teremos pernas; – o bond encarrega-se de lhes afrouxar os músculos, quando não se incumbe de operação mais sumária: parti-las ao meio com as suas rodas malditas. As do Bargossi, sim! aquilo é que são pernas! E tem nelas tanta presunção o diabo do homem, que está sempre a mostrá-las e a pedir que lhas apalpem. Parece que tem o rei na barrigadas pernas. Dizem-me que com o auxílio delas Bargossi tem feito uma fortuna rápidaa correr. Aí está um homem que não tem o direito de perguntar: – Pernas, para que vos quero? Entretanto, apesar de rico, Bargossi é extraordinariamente modesto no seu modo de vida […]” (op. cit., grifos nossos).

 

Nos dias e meses que se seguiram, os Bargossi fizeram mais duas exibições no Rio de Janeiro (uma sem o glamour e a popularidade das anteriores) e tantas outras no estado de São Paulo e em países da América Latina. A família estava inserida em um de circuito internacional de exibições corporais – que há muito já era típica dos circos e dos teatros, inclusive nacionais –, mas que naquele final de século se dava cada vez mais em “novos” espaços de entretenimento.

Na verdade, muitas histórias marcaram a trajetória do “homem locomotiva”. Nem todas sobre as virtudes de Bargossi. Por exemplo, continuou a figurar nas crônicas de Azevedo (que chegou a colocar em xeque não só o sucesso do andarilho na capital, mas também a suposta relação entre exercícios corporais e saúde de suas exibições). No teatro de revista O Bilontra, que Azevedo escreveu com Moreira Sampaio, Bargossi e sua mulher foram representados de forma cômica. Por outro lado, foi objeto de poesias (como a de Olavo Bilac) e de contos (como os de Quirino Chaves). Além disso, o andarilho frequentou elegantes bailes no Rio de Janeiro. Participou de disputas acirradas (como a realizada com um escravo, que pelo inesperado desempenho obteve a liberdade e recebeu o sobrenome “Bargossi”). Em muitos casos, inclusive, seu nome foi usado como locução adjetiva. E mesmo após sua trágica morte no final de 1885, ao tentar atingir mais uma façanha, o andarilho despertou interesse científico sobre as suas qualidades e técnicas corporais.

Por certo, não foi por acaso que o chamaram de atleta e artista (não sem protestos de certos setores da classe artística da capital). Mas todas essas histórias ficarão para o próximo post.

_______________________________________________

[i] Esse post é fruto das conversas e pesquisas realizadas no âmbito do projeto “O corpo da nação: educando o físico, disciplinando o espírito, forjando o país: as práticas corporais institucionalizadas na sociedade da Corte (1831-1889)”, que conta com o apoio da FAPERJ e do CNPq e é coordenado por Victor Andrade de Melo.

[ii] Ver, por exemplo, Gazeta da Tarde (03/08/1885, p.2), Diário de Notícias (03/08/1885, p.1), Diário do Brazil (04/08/1885, p.1-2).

[iii] Maiores informações ver REPLÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRAZIL. Synopse do recenseamento de 31 de dezembro de 1890. Rio de Janeiro: Oficina da Estatística, 1898.

[iv] Os jornais apresentam relatos diferentes para a exibição. Por exemplo, o Diário de Notícias (03/08/1885, p.1) diz que o espetáculo dos Bargossi foi composto por dois momentos. Primeiro, o Sr. Bargossi, em um dos intervalos, percorreu 2.900 metros em 12 minutos e meio. Em outro intervalo correu a mesma distância junto com a sua esposa, sendo que ele completou a distância em 9 minutos e 30 segundos e ela em 13 minutos. A Gazeta da Tarde (03/08/1885, p.2), por sua vez, relata apenas a apresentação conjunta do casal, sendo que a distância informada pelo jornal foi de 3.200 metros, percorrida em 16 minutos, mas que a Sra. Bargossi teve dois minutos de vantagem. Já o Diário do Brazil (04/08/1885, p.1-2) informa distância e tempos diferentes dos outros jornais. E Artur Azevedo, em uma de suas crônicas, afirma que “O Bargossi, num dos intervalos dos páreos, andou meia légua em menos de um quarto de hora” (Diário de Notícias, 04/08/1885, p.1).

[v] Sobre o papel das ferrovias e, por conseguinte, das locomotivas no século XIX ver por exemplo HOBSBAWM, E. A era das revoluções, 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2013.

[vi] Diário de Notícias (02/08/1885, p.1)

[vii] Para uma reflexão sobre o esporte na obra de Artur Azevedo ver KNIJNIK, J.; MELO, V. A. Sport in Artur Azevedo’s Revues: A Reflection of Developments in Late 19th Century Rio de Janeiro Society. Aethlon: the journal of sport literature, v. XXVII:1, p. 103-119, Fall 2009 / Winter 2010.

[viii] Para maiores informações sobre a obra de Artur Azevedo na seção “De Palanque” ver SILVA, Esequiel gomes da. “De palanque”: as crônicas de Artur Azevedo no diário de notícias (1885/1886). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011. Disponível em: <http://www.culturaacademica.com.br/_img/arquivos/de_palanque.pdf >.  Acesso em: 14/08/2014.

[ix] Maiores informações ver MELO, V. A., PERES, F. F. A gymnastica no tempo do Império. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014 e MELO, V. A., PERES, F. F. O corpo da nação: posicionamentos governamentais sobre a educação física no Brasil monárquico. História, ciências, saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, 2014, no prelo.


Festa, futebol, ressaca, literatura e bola

02/03/2014

Por Edônio Alves

Em clima de carnaval, trago, desta vez, para nosso blog, uma história que reúne festa (embora seja a festa junina típica das cidades do interior do Brasil), futebol e ressaca. Nosso intuito, como sempre, é o de relacionar futebol e literatura, numa tentativa de esclarecer nosso internauta-leitor sobre as nuances dessas duas formas de expressão da alma nacional, que ora se faz pelos pés, ora se faz pelas mãos, ou seja: pelas chuteiras dos nossos jogadores de futebol ou pela escrita mágica de nossos escritores. A narrativa abordada aqui é de autoria do escritor Renard Perez e intitula-se “Copa do Mundo”. Vamos a ela.

 ***

O conto é uma pequena história, que relembra, em ritmo e clima de ressaca, a primeira conquista de um título mundial de futebol pelo Brasil, na Copa de 1958, realizada na Suécia. O texto é todo um registro nauseado das lembranças matutinas de um personagem que acorda ressacado dos excessos de uma festa junina a que tinha ido na noite anterior, e que se vê, agora, conduzido pela ambiência festiva e patriótica em seu entorno, diante da circunstância de enfrentar (assistir, ouvir) ou não, pelo rádio, a partida final da Copa contra a própria Suécia. Este é um daqueles contos através do qual se opera o encontro da consciência com a memória do narrador para disso resultar uma atmosfera intimista como esta que passa a narrar.

 Sendo assim, certo mal-estar vai logo se instaurando na história como resultado de algumas lembranças do personagem-narrador-protagonista marcadas por certa experiência traumática: a de ter também assistido o jogo final da Copa de 50, no Brasil, e em decorrência disso, ter amargado o acre sabor da derrota num momento em que sob todas as evidências do mundo, éramos o melhor país do mundo nas instâncias do futebol. Momento em que o futebol, para nós brasileiros, já era mais que o futebol. Era a face simbólica da nossa própria cara.

 “Entendo o patriotismo, patriotismo é a vitória do futebol no estrangeiro. Pátria é esse orgulho que me enche o peito, e me engrandece, dá-me vários metros de altura. De súbito, o Brasil é a mais soberana das nações, e as grandes potências de dez minutos atrás de repente se amesquinham e olham para nós lá de baixo, respeitosamente”, diz a certa altura o personagem-narrador, alternando seu estado de espírito de momento entre eufórico e nauseabundo.

 “Tenho um aperto na garganta. Mas sinto-me um tanto sem graça, ali sozinho no apartamento, de pijama e dorso nu, sem ninguém a quem comunicar a minha felicidade. Os livros enfileirados na estante parecem-me absurdos, é ridículo o jornal jogado por baixo da porta, com seus conscienciosos prognósticos sobre uma partida futura…”, observa noutro trecho o enfastiado narrador.

 Acreditamos, como exemplo, que estes dois registros acima já são suficientes para dar ao leitor a dimensão singular deste conto que, se não é inovador no tratamento simbólico do tema da posse e da perda – e da suas fundas repercussões no âmbito individual ou coletivo -, ao menos não é tributário do lugar-comum em termos de fatura narrativa que elenca o jogo de bola aos pés como motivo acessório ou principal.

 Um último momento-síntese desta narrativa de Renard Perez que, esclareçamos, não inova em nada em termos de investimento formal e que, contudo, traz alguma inflexão alvissareira no tocante a sua determinação temática, simboliza bem o caráter reflexivo geral da representação literária sobre a matéria social sobre a qual se debruça: no caso, a experiência da mentalidade brasileira sobre um dia tão especial.

 “É preciso contar o resto? Cada brasileiro, naquela manhã, a princípio terrível, depois gloriosa de domingo, sofreu como eu. Os gols que se sucederam me levaram definitivamente a ressaca. Mas não me tranquilizaram. Cheguei a desejar um avanço no tempo – chegar logo ao fim da partida, qualquer que ele fosse. O horrível era aquele martírio lento, martírio chinês”.

 E não terá sido assim que os brasileiros então sentiram – ou sentirão, agora, com esta narrativa – aquilo tudo?

***

PARA SABER MAIS:

Renard Perez nasceu em Macaíba (RN), em 3 de janeiro de 1928, e é um escritor brasileiro que dedicou sua carreira, sobretudo, aos gêneros do conto e da novela, embora tenha se aventurado também no romance e no ensaio crítico. Estreou com O beco em 1952. Sob a liderança de Dinah Silveira de Queiroz, integrou o grupo Café da Manhã, ao lado de Fausto Cunha, Samuel Rawet, Luis Canabrava, Daniel Dantas entre outros escritores. Advogado de formação, Renard dedicou-se principalmente ao jornalismo cultural. Passou por diversos jornais e revistas, dentre eles o Correio da Manhã, Revista da Semana, Revista Branca, de Saldanha Coelho, revista Manchete e jornal Última Hora, tendo sido ainda redator-chefe da revista Literatura. Em setembro de 2003, recebeu a Medalha Antônio Houaiss, oferecida pelo Sindicato dos Escritores do Estado do Rio de Janeiro (SEERJ) em sua sede, na Casa de Cultura Lima Barreto, pelos serviços prestados à literatura brasileira. A narrativa de futebol, Copa do Mundo, encontra-se publicada na reunião de contos sobre o tema intitulada, Contos brasileiros de futebol, organizada em 2005 por Cyro de Matos, sob os auspícios da Editora LGE, de Brasília.


Uma trama policial sobre os Jogos de 1992

27/01/2014

Rafael Fortes

Conheci os romances policiais de Manuel Vázquez Montalbán através de uma coleção com capa preta que a Companhia das Letras publicava anos atrás, e que incluía Luiz Alfredo Garcia-Roza, Tony Bellotto e Joaquim Nogueira – só para citar os brasileiros cujos livros li e recomendo pra quem gosta desse tipo de literatura.

FutbolPara quem não o conhece, Montalbán foi um jornalista, ficcionista e ativista catalão, admirado por muitos leitores mundo afora. Por exemplo, Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, é dedicado a ele (e a Pilar, claro). Torcedor do Barcelona, teve algumas de suas crônicas e textos jornalísticos sobre o clube reunidas em Fútbol: una religión en busca de un Dios (deste, confesso, não gostei, embora adore crônicas de futebol). Uma seleção de seus escritos jornalísticos foi publicada em três volumes entre 2010-2012.

*  *  *

Meses atrás, entrei numa livraria de Barcelona. Perguntei ao vendedor o que tinha de Montalbán. Enquanto caminhávamos até a estante, ele tentou me convencer a ler em catalão:

– Muito mais parecido com o português que o castelhano! Olha só!

Disse, enquanto abria um livro no idioma para comprovar o que dizia. Respondi:

– É uma língua interessante, mas vou ficar com o castelhano mesmo, que eu já consigo entender.

Enquanto o vendedor chutava – e acertava – os títulos que eu lera, mostrou-me onde estavam. Escolhi Sabotaje Olímpico, curioso por tomar conhecimento de uma história do detetive Pepe Carvalho relativa à Olimpíada de 92.

*  *  *

Lançado em 1993, o livro tem enredo e narrativa bem estranhos. A maior parte da trama se desenvolve durante os jogos de 1992. Uma série de acontecimentos  sugerem um movimento de sabotagem do megaevento esportivo, o que leva as autoridades – há uma profusão delas, estabelecendo entre si relações às vezes bizarras e inusitadas – à convocação de Carvalho para auxiliar as investigações. Entre as ocorrências, um sequestro do então presidente do Comitê Olímpico Internacional, o catalão Juan Antonio Samaranch.Sabotaje

O leitor se depara com trecho como este: “Durante dezessete dias a cidade estaria ocupada por uma ampla minoria de desportistas praticantes e por uma imensa maioria de esportistas por palavra, pensamento e omissão.”

Rapidamente aparecem muitos suspeitos para a sabotagem: empresas que não conseguiram comprar os direitos exclusivos para patrocinar os jogos; um político italiano desacreditado; setores das cidades de Madri e Sevilha, com grandes rivalidades em relação a Barcelona (Sevilha sediou um megaevento no mesmo ano: a Expo 92); setores da sociedade espanhola antipáticos às intenções independentistas catalãs, canais de televisão dos Estados Unidos, a Ku Klux Klan e a princesa Caroline de Mônaco, entre outros.

Mesmo as ironias mordazes e os absurdos se relacionam a elementos econômicos, políticos e culturais do contexto em que a obra foi escrita – que coincide com aquele em que se passa a trama. Sitiando Barcelona estão “submarinos errantes” cujos tripulantes se negam a aceitar o fim da União Soviética; a gastronomia catalã aparece em vários momentos como elemento identitário da região.

A obra pode ser lida como um contraponto ao senso comum que até hoje apresenta a Olimpíada de Barcelona como uma espécie de exemplo para o mundo de como uma competição esportiva de grande envergadura pode mudar positivamente uma cidade. Não é difícil encontrar este ponto de vista edulcorado sobre aqueles jogos na imprensa esportiva brasileira.

Assim como outras fontes de arte mencionadas neste blogue (por exemplo, do cinema, da pintura e da literatura), pode ser analisada historicamente, o que significaria ter em conta tanto o conteúdo quanto a forma. No caso desta, destaco a reflexividade, que se manifesta, por exemplo, nas menções a outras obras – como Os Mares do Sul – e na descrição de Carvalho em dado momento como um importante personagem literário do pós-franquismo.

O desfecho do sequestro? Não vou contar, claro.

Referência bibliográfica

MONTALBÁN, Manuel Vázquez. Sabotaje olímpico. Barcelona: Planeta, 2011.


De pai para filho: o goleiro Leleta e sua história

28/10/2013

Por Edônio Alves

Desta feita, mais uma vez amparado pela relação literatura e futebol, vamos destrinçar aqui a história de uma grande homenagem, tecida pelas malhas da ficção. O autor deste conto de futebol é Cyro de Matos, um experiente escritor que tem no jogo de bola aos pés uma das chaves de sua literatura abrangente e multifacetada. A análise que fizemos do seu texto, abaixo, visa tão somente apresentar ao apreciador deste blog (porque uma análise literária mais abrangente não caberia nesse espaço) a perícia que alguns escritores do tema têm ao jogar com a palavra como se bola elas fossem. Boa leitura!

 ***

O goleiro Leleta

Esta é uma narrativa simplória sobre futebol, o que não quer dizer desprovida de tom dramático e certo lirismo às vezes bucólico, às vezes elegíaco, que derrama seus efeitos sobre o leitor. O motivo do texto é contar uma situação humana particular vivida por entre um clima que mistura festa e alegria com pesar e tristeza. E em meio a tudo isso, o flagrar-se a universalidade do futebol enquanto motivo de sociabilidade humana presente nas mais diferentes culturas e nos mais distantes e longínquos rincões do mundo.

O bucolismo do texto é responsável por apresentar ao leitor essa faceta ubíqua da facilidade do jogo de bola em servir de fator de congraçamento universal entre os homens estejam onde eles estiverem. Trinta blocos-parágrafos de texto, quem sabe figurando os trinta anos de existência do Expressinho de Burburinho do Paraíso, clube de um lugarejo cerca de vinte quilômetros perto de Rio Claro, cidade onde se desenrola a história, são usados pelo narrador para contar um dia na sua vida e na vida de Leleta, o goleiro do time em apreço, que ao evitar um gol defendendo um pênalti em favor do adversário, dá o primeiro título ao clube fundado pelo seu pai, logo no dia em que ele morreu.

Depois de apresentar o lócus dos maiores atrativos da gente pacata dos dois lugarejos ­ em que se desenrola a história, nos dois blocos-textos que seguem:

“Em Rio Claro existe uma praça com jardim. A bandinha toca valsas, choros e marchas no coreto, aos domingos pela manhã. O cinema foi instalado no salão atrás da feirinha. O padroeiro da cidade é Santo Antônio, sua pequena igreja foi construída numa colina e é avistada de qualquer parte da cidade. Os fiéis chegam até à igreja depois de subirem uma escadaria com muitos degraus”.

***

“Burburinho do Paraíso (…) é bastante falado por causa da feira que funciona na pracinha onde o trem faz uma parada antes de seguir para o fim da linha, nas imediações do vilarejo de Serra Grande. O movimento é intenso em Burburinho do Paraíso aos sábados. A feira tem tudo que se possa imaginar. (…) Os moradores de Burburinho do Paraíso dizem que ali é que é lugar de viver. Ora essa, é um lugar mais bonito que Rio Claro. Nem se pode comparar” -,

o narrador desce propriamente às coisas do futebol sugerindo ligeiramente o clima de rivalidade entre as duas localidades. É esse clima que vai servindo de pano de fundo para se descortinar, através de uma prosa escorreita e leve, emocionalmente envolvente e psicologicamente empatizante, o dia triste de Leleta, vivido na mais esfuziante alegria, com a conquista do título de campeão pelo clube fundado pelo seu pai e no qual era ídolo da torcida.

“Quando se discute futebol em Rio Claro, na praça ou em outro lugar, o torcedor do São José Futebol Clube, sem esconder certo orgulho na voz, diz que o seu time é o mais querido na cidade. É o que tem mais torcida e mais títulos de campeão, entre os filiados à Liga Amadora de Futebol de Rio Claro”.

Todavia, há que se registrar, é precisamente esse contraste de uma cidade maior com um time melhor que prepara e potencializa, ao nível da narrativa, o impacto dramático do título de campeão, conseguido pelo Expressinho de Burburinho do Paraíso e vivido por Leleta, justamente no dia em que este perde seu pai:

“Quem esteve com o goleiro Leleta antes de começar o jogo ficou admirado de sua passiva tristeza. Ele explicou que queria jogar aquela partida de qualquer maneira porque nada mais adiantava fazer. ´(…) Essa é uma hora que chega pra todos nós`, observou, com seu jeito simples. Mas não ia ser um acontecimento difícil daquele que ia tirar a sua tranqüilidade e impedir que defendesse as cores do Expressinho de Burburinho do Paraíso”.

Consta, como se sabe, que o jogo houve e que o Expressinho de Burburinho do Paraíso foi campeão sobre o São José Futebol Clube, para a alegria e a tristeza do seu goleiro Leleta. E consta também que é típico do futebol o assentar-se sobre certos paradoxos de fundação, como o de separar para unir, o de perder pra ganhar, por exemplo; e aqui, o de sorrir para chorar, como conta Cyro de Matos nesta narrativa sob este aspecto bastante exemplar.

“Tudo era só festa na arquibancada e na geral. A torcida do Expressinho de Burburinho do Paraíso vibrava e cantava. Torcedores abraçavam-se. No gramado, um menino, que tinha Leleta como seu maior ídolo e depois viria a escrever esta história, viu quando o goleiro pegou a bola com as mãos sujas e aninhou-a no peito, como se estivesse tentando abafar uma dor que vinha pulsando dentro dele. (…) Geralmente, o goleiro atirava a bola ou sua camisa para o velho Neco no meio dos torcedores, onde sempre gostava de ficar, quando o Expressinho de Burburinho do Paraíso ganhava uma partida importante”.

Esta partida era particularmente importante, mas este não é o fim de tudo porque ainda consta que, então, o goleiro Leleta chorou muito só  – muito só -, debaixo do gol.

PARA SABER MAIS:

Cyro de Matos nasceu em Itabuna, Bahia, a 31 de janeiro de 1939. É contista, novelista, ensaísta, cronista, organizador de antologias e autor de livros para jovens e crianças. Advogado aposentado e jornalista com passagem na imprensa do Rio de Janeiro, publicou – na condição de poeta que também o é – dez livros para o leitor adulto assim como quatro infanto-juvenis. Como autor de prosa de ficção curta, publicou Os Brabos, que ganhou o Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras de 1979; O Mar na Rua Chile, crônicas, com o qual foi finalista do Prêmio Jabuti de 2003, e O Goleiro Leleta e Outras Fascinantes Histórias de Futebol, que venceu o Prêmio Hors Concours Adolfo Aizen da União Brasileira de Escritores, também 2003. Está presente em diversas antologias do conto no Brasil e em Portugal, Alemanha, Dinamarca e Rússia. Sua história “Ladainha nas Pedras” participa da antologia “Visões da América Latina”, organizada por Uffe Harder e Peter Poulsen, Editora Vindrose, Copenhague, ao lado de contos de Jorge Luís Borges, Juan Rulfo, Mario Vargas Llosa, Uslar Pietri, Alejo Carpentier, Juan José Arreola, Miguel Astúrias, Mário de Andrade, Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado e Clarice Lispector, dentre outros.

O conto O goleiro Leleta, analisado acima, integra a coletânea de história curtas organizada pelo autor, intitulada Contos brasileiros de futebol, publicada pela editora LGE, de Brasília, em 2005.


Política, literatura e atributos atléticos: comparações e analogias no século XIX

25/08/2013

por Fabio Peres[i]

Logo após a conquista da Copa de 62, Carlos Drummond de Andrade propôs em tom de graça e entusiasmo que a seleção brasileira deveria ocupar todos os postos ministeriais. Afinal, a vitória não significava pouca coisa. O bicampeonato “lavou os corações“, “uniu os desafetos” e “tornou possível a solução imediata dos problemas que nos afligem“. A crônica, publicada em 20 de junho de 1962, no Correio da Manhã (p.6), destacava com certa ironia as vicissitudes da conjuntura política da época:

“Este bi veio na hora H. Os políticos procuram um rumo para a nação e não o encontram, ou querem encontrá-lo fora do lugar. A mudança do Gabinete, que devia ser caso de rotina, assumiu ares de problema grave, e ninguém sabe como compor a nova equipe dirigente. Ninguém? É exagero. Modestamente vos proponho a equipe ideal, que não é nem pode ser outra senão a equipe detentora da Taça Jules Rimet […]”.

O escrete que compunha a então Seleção de Ouro possuía, de acordo com Drummond, as qualidades necessárias, tanto pessoais como técnicas, para o desempenho das funções do Gabinete e de cada pasta ministerial:

“Naturalmente o primeiro-ministro há de ser o Mauro, capitão do escrete. Bem o merece. É zagueiro, isto é, jogador de defesa e não do ataque, e isso convém a um primeiro-ministro, que se requer cauteloso, resistente, preocupado em proteger nossa vasta retaguarda […] Um velhinho sabido como Nilton Santos fica certo na Justiça, para distribuí-la ou negá-la como de mister, impor respeito e conduzir o jogo político à base de vivências, usando se preciso, seus traiçoeiros disparos. Na Fazenda, pede-se Gilmar, tão econômico no deixar passar gols; defendeu a meta como o Tesouro […]” (20/06/1962, p.6).

E por aí vai Drummond escalando o time de ministros. Didi, hábil em estabelecer com estilo e elegância nossa “independência no meio campo das nações“, para o cargo de  chanceler. Zagalo, pela sua polivalência, poderia estar em várias pastas (Agricultura, Indústria e Comércio, Minas e Energias ou Viação). Garrincha teria o privilégio de escolher aquela que fosse de seu agrado (afinal, “todo Ministério é pouco para este em sua simplicidade arguta“). Vavá e Amarildo sorteariam entre si a da Guerra. E os outros jogadores, bem como a comissão técnica, não seriam esquecidos, havendo lugar para todos. No caso de Pelé, “até ministro sem pasta honraria o Gabinete” (a crônica pode ser lida na integra no final do post).

Mas o que tudo isso tem a ver com a ginástica e a política praticadas no século XIX?

Nos últimos posts, argumentamos que o espraiamento da ginástica na sociedade da Corte se deu de forma multifacetada, através de um conjunto variado de atores, ideias e instituições (e não de maneira linear e unívoca como as teses, em geral, têm defendido). Não por acaso, chegamos a destacar em outra ocasião (Melo & Peres, 2013) que o termo no singular não seria nem mesmo o mais apropriado: existiam ginásticas, com diferentes técnicas e funções, que se manifestavam no Segundo Reinado.

Como diversas fontes têm sugerido, a presença de tais práticas na vida social carioca era maior do que se poderia supor. Talvez alguns dos indícios mais significativos dessa presença sejam aqueles justamente em que a ginástica figura em situações e espaços sociais que não são comumente identificados nas pesquisas tradicionais como “o” foco de origem de sua “difusão” ou “imposição”. Além das escolas, das instituições médicas, das instituições de defesa e, de modo geral, do Estado, a ginástica também estava nos teatros, nos circos e, por incrível que possa parecer, na literatura do século XIX.

Por certo, muito longe de gozar da mesma popularidade do futebol na época da crônica de Drummond, as referências literárias à ginástica podem ser encaradas como um sinal, entre outros, de sua vulgarização; que se dava, é bom lembrar, de modo desigual e heterogêneo entre os estratos sociais da cidade.

Em 1855, Joaquim Manuel de Macedo estabeleceu – assim como faria Drummond aproximadamente um século depois[ii] – relações entre atributos políticos e atléticos[iii] em suas obras. Também em tom zombeteiro sobre a troca de ministros e o oportunismo político, o escritor destacava em “A carteira de meu tio” que o estadista deveria aprender a arte da ginástica[iv].

O romance, que foi publicado em forma de folhetim na Marmota Fluminense, é narrado sob a perspectiva do sobrinho (do tio em questão), que decide, depois de passar alguns anos na Europa, ingressar na vida pública brasileira e se tornar político. Com traços que beiram o realismo, a obra – também caracterizada como uma crônica romanceada – traz à tona de maneira bastante bem-humorada o confronto entre, de um lado, as abstrações das leis (presentes na Constituição de 24, chamada no romance como defunta) e, de outro, a realidade e o cotidiano da pátria em meados do século XIX. Nesse cenário, em que há mistura de história e ficção, a sátira e a ironia são utilizadas como crítica à sociedade política imperial[v].

O trecho descrito na Marmota Fluminense (08/05/1855) começa quando o protagonista querendo se esquivar de uma visita indesejada, pula por uma janela, entrando em casa, sem que o visitante perceba: “de um salto puz-me dentro, e fui pé ante-pé recolher-me ao meu quarto“.  E cinicamente dispara contra as intempéries políticas do Império:

“Não tenho vergonha da acção, que pratiquei: não são somente ladrões e os namorados, que entram pelas janellas em vez de entrar pelas portas; os grandes políticos da escola do eu, que como se sabe, é predominante na actualidade, as vezes, e sempre que necessário aos seus interesses, pulam também pelas janellas para dentro do ministério, e até mesmo se sujeitam, a fim de chegar ao poleiro, a espremer-se tanto, que chegam a fazer caminho por qualquer buraquinho de rato” (p.1, grifos do autor).

Complementa o protagonista, fazendo referência à ginástica enquanto ponte tragicômica entre a análise pragmática da política e o sentido figurado e alegórico da prática corporal:

“É por isso que eu sustento que a gymnastica é uma arte indispensável aos estadistas: a politica toda se reduz a saber atacar e retirar, saltar e correr, agarrar e comer, tudo muito opportunamente […] só quem já foi ministro duas ou trez vezes pelo menos, e aproveitou-se do ministério para arranjar a vida, é que póde deitar-se todas as noites em colxões macios. Eu heide chegar lá; porque bons mestres me tem dado exemplos admiráveis, e aberto uma estrada, em que não se acha estrepe, nem atoleiro ” (08/05/1855, p.1-2, grifos nossos).

O romance de Joaquim Manuel de Macedo é apenas um exemplo da presença da ginástica na literatura do século XIX. Muitas referências podem ser encontradas nos periódicos do Segundo Reinado. Várias delas utilizaram o termo “ginástica” em sentido figurado[vi]. Tal polissemia, a nosso ver, estava associada a um compartilhamento, mesmo que mínimo, do que significava ginástica e dos papéis e valores atribuídos a ela, possibilitando assim usos por metáfora, metonímia, extensão de sentido etc. Mas isso fica para outra ocasião.

xxx

EM TEMPO 1: este post é dedicado ao seu Oswaldo (in memoriam); amante e profundo conhecedor de futebol, samba, política e, sobretudo, da vida.

EM TEMPO 2: em sua homenagem, reproduzo a seguir a crônica “Imagens da Vitória. Seleção de Ouro” de Carlos Drummond de Andrade, publicada em 20/06/1962 no Correio da Manhã (p.6).


[i] Esse post é fruto das conversas e pesquisas realizadas no âmbito do projeto “O corpo da nação: educando o físico, disciplinando o espírito, forjando o país: as práticas corporais institucionalizadas na sociedade da Corte (1831-1889)”, que conta com o apoio da FAPERJ e do CNPq e é coordenado por Victor Andrade de Melo.

[ii] Vale destacar que desde 1931, pelo menos, o tema futebol esteve presente de forma intermitente nos escritos de Carlos Drummond de Andrade. Com a conquista da Copa de 58, ele já havia aventado a possibilidade do presidente convidar determinados jogadores para pastas ministeriais. Maiores informações ver ANDRADE, Carlos Drummond. Quando é dia de Futebol.  Rio de Janeiro: Record, 2002.

[iii] Estamos utilizando o termo “atlético”, considerando que a ideia de desempenho atlético não se restringe exclusivamente a requisitos corporais ou físicos tomados em sentido stricto.

[iv] Joaquim Manoel de Macedo também fez menção à ginástica na obra Memórias da Rua do Ouvidor (1878), publicada originalmente em folhetins semanais no Jornal do Comércio.

[v] Maiores informações ver QUEIROZ, J. M. A carteira de meu tio: ficção e história em Joaquim Manuel de Macedo. Revista Brasileira de História e Ciências Sociais, v. 2, p. 1-10, 2010.

[vi] Não era raro, por exemplo, o uso da noção “ginástica política”, geralmente utilizada como categoria de acusação, isto é, em sentido pejorativo.

 


No último minuto – futebol e invenção

19/03/2013

Por Edônio Alves

A nossa proposta de estudar (ou discutir) a arte da literatura quando vinculada à arte do futebol – propósito da minha gratificante participação neste blog – tem considerado vários aspectos técnicos destes dois campos de expressão humanos. Desde a relação mais direta entre a bola e a palavra por meio da perspectiva lúdica em que tanto o jogador de futebol como o escritor se irmanam na maneira de criar ou produzir beleza até as formas diferenciadas com que cada um deles maneja o material de que dispõe para tocar a sua arte – a instauração da realidade ficcional por parte de um e a peripécia fugidia inventada pelo contato do corpo com a bola por parte do outro – tudo, mas tudo mesmo, nesse campo, se estabelece como que realizado pelo poder radiante da invenção. Ou da inventividade, por assim dizer. É isso que vamos conferir, precisamente, nesse conto de futebol do escritor carioca, Sergio Sant’ anna, um verdadeiro craque na arte da invenção literária. Sant’ anna talvez seja o nosso “Neymar” da literatura brasileira contemporânea, tão amplo é o seu repertório de jogadas geniais com a palavra ficcional. Um daqueles craques para quem a palavra – assim como a bola, tornada tema literário – se entrega sem receio e sem reservas como a pedir que lhe chutem em direção à meta, ao gol, ou mesmo ao agrado de uma firula ou de um drible desconcertante dado na cara do adversário. A bola a qui é a palavra e o jogador aqui é o nosso Sérgio Sant’ anna que a domina como poucos, no campo da literatura. É só conferir o que eu estou dizendo lendo o texto abaixo, uma análise comentada, feita por mim,  de um dos seus contos futeblísticos mais geniais.

x.x.x

No último minuto

Sérgio Sant´anna

Este é um texto ficcional muito inventivo que revela o domínio das formas de narrar em ficção e que se debruça sobre aspectos relevantes do futebol quando entendido como metáfora lingüística da vida em alguns dos seus aspectos essenciais. O elemento do imponderável, presente tanto na vida quanto no jogo; a força das circunstâncias na definição de situações que parecem revelar certa autonomia dos objetos sobre os seres; a impotência destes diante de fatos consumados que informam a existência; a sensação de um tempo decisivo na configuração de estados sem volta na permanente mudança dos entes e das coisas são, enfim, alguns desses aspectos colocados em pauta por esta história.

Mais uma vez a linguagem televisiva é requisitada como elemento formal e o que sobressai nessa narrativa, por conseguinte, é a capacidade que a televisão tem de potencializar os efeitos dos fatos decorridos sobre a consciência e o psiquismo dos que deles participam. Seja diretamente, ampliando a repercussão desses efeitos no íntimo dos seus protagonistas; seja indiretamente, reapresentando para nós espectadores (e, agora, leitores) dimensões múltiplas desses fatos em função da sua recorrente e sistemática repetição através das imagens que os configuram – passam e repassam – nesses tempos de modernidade.

O caso aqui é o de um goleiro que conta a história de um lance imprevisto que o envolveu numa partida de final de campeonato e que, justamente por ser previsível o seu desenrolar, torna imprevisíveis e duros os impactos do seu desfecho no âmbito humano desse jogador de futebol. A história nada mais é do que o reviver, por parte do goleiro personagem e narrador, o drama em que tomou parte e que, dadas as circunstâncias do seu momento decisivo, tenta, por este recurso narrativo, compreendê-lo no que ele tem de mais incompreensível e de imponderável.

“Canal 5”.

Começa assim a narrativa.

“É uma rebatida de defesa deles. A bola vem alta e cai pro Breno, nosso médio-apoiador. Ele a mata no peito, põe no chão e aí perde o domínio da pelota. Mas ninguém vai se lembrar disso: que a primeira falha foi do Breno. A bola fica, então, para o meia-armador deles: o Luiz Henrique. É o momento do desespero, o último minuto”.

Esse trecho, explique-se – como, ademais, todos os que vão ser transcritos aqui – é a descrição, pelo narrador, do lance capital que protagonizou e a que ele assiste depois pelas câmeras de TV de um dos canais que o transmitiram. Note-se o recurso da descrição imagética da TV como a conferir objetividade plena a algo que, no interior do personagem-narrador, é vivido de forma intensamente subjetiva.

“(…) É um chute rasteiro, um centro chocho… E eu grito: ‘deixa’. Eu fechei o ângulo direitinho e caio na bola. Eu sinto a bola nos meus braços e no peito. E sei que a torcida vai gritar e aplaudir, desabafando o nervosismo, naquele último ataque do jogo. Eu tenho a bola segura com firmeza no meu peito e, de repente, sinto aquele vazio no corpo. Eu estou agarrando o ar. A bola escapando e penetrando bem de mansinho no gol. A bola não chega nem alcançar a rede; ela fica paradinha ali…, depois da linha fatal.”

Como a não acreditar no que acontecera, tudo é literalmente repassado pelo narrador outra vez, agora através de um utilíssimo recurso da televisão.

“EM CÂMARA LENTA”.

“(…) O ponta esquerda deles, o Canhotinho, está tão longe da bola que parece impossível que consiga alcançá-la. (…) O passe foi tão longo [refere-se ao passe que o adversário Luiz Henrique fizera a esmo: ‘É um desses lançamentos de araques na afobação de fim de jogo, só pra ver o que acontece’] que mesmo em vídeo-tape, já sabendo do jogo, a gente custa a se convencer que ele chegará a tempo de tocar na bola. Então me vem agora, essa sensação absurda de que ainda pode acontecer tudo diferente, e corrigir minha falha”

Para conseguir um efeito cumulativo do seu drama – efeito que vai se ampliando à medida que a história avança –, o narrador conclui assim, a descrição do que via pelo canal 5: “E agarrei a bola, ela está segura nos meus braços e no meu peito. Nós vamos ser campeões. Eles param o tape só para mostrar isso: como eu estou tranqüilo com a bola. Neste instante, nós ainda somos campeões do Brasil”.

Os trechos seguintes da narrativa fazem a ligação entre a sua dimensão puramente intrínseca ao futebol e a repercussão humana, já, do ocorrido. Daí ser funcionalmente interessante, o narrador mudar a sua perspectiva de visão através da mudança do canal de TV.

“CANAL 3”.

“São vinte e dois minutos do primeiro tempo. Minha mulher senta ao meu lado e diz pra eu desligar a televisão e me esquecer daquilo tudo. ‘Amanhã é outro dia’, Ela diz. Amanhã é outro dia, eu penso. Eu vou sair na rua e ver o meu retrato em todos os jornais dependurados nas bancas: eu me preparando para defender aquele chute; eu com a bola nas mãos; eu com a bola perdida e já entrando no gol. Eu, o culpado da derrota. Eu, frangueiro, se não falarem pior: que eu estava vendido.”

“Quando vai começar o segundo tempo, minha mulher aperta a minha mão e fica me olhando assim meio de lado. Eu digo para ela ir dormir, não quero a piedade de ninguém”.

“O tempo passando, minuto por minuto. Eu ouço aquele barulho todo da torcida e é incrível como a alegria pode se transformar em tristeza tão de repente. Eu penso, também, como a vida se decide às vezes num centímetro de espaço ou numa fração de segundos. E me volta aquela loucura, a sensação de poder modificar um destino já cumprido, fazer tudo diferente. Ir naquela bola de outro jeito, espalmá-la para corner, mesmo sem necessidade”.

Novamente o recurso da câmara lenta e do vídeo-tape para intensificar ainda mais a sensação do drama vivido e, diante do incompreensível, tentar compreendê-lo ao divisá-lo sob os mais diferentes ângulos:

“Tape parado: Eu estou com a bola segura e escondida nos braços e sob o corpo”.

“Tape rodando lentamente: a gente percebe, a princípio, apenas que a bola se deformou: ela parece um ovo, com a ponta aparecendo entre os meus braços. É como se a bola inchasse e por isso se despregando do meu corpo e escorrendo mansamente pela grama. Até parar, caprichosamente, um pouco depois da linha fatal”

“POR DETRÁS DO GOL: No meio daquele inferno todo, eu me viro para trás e estou de cabeça baixa diante dos fotógrafos e cinegrafistas. Eu tenho vontade que o mundo desapareça ao meu redor. O mundo não desaparece. Eu cubro o rosto com as mãos e é assim que aquela câmera me focaliza. Eu cubro o rosto com as mãos aqui sentado diante do televisor, que me mostra cobrindo o rosto com as mãos lá dentro do gramado”.

Aqui fica concluída a mixagem dos três planos que envolvem a ocorrência vivida pelo personagem-narrador: o do jogo em si, quando o goleiro constata desolado o gol improvável que tomou; o do homem em jogo, quando ele sente o impacto do fato sobre os seus ombros e reage impotente, literalmente indefeso, e do jogo espetáculo, quando sua dor subjetiva é mostrada objetivamente pelas impiedosas objetivas das câmeras de TV.

Daí que o narrador, para ressaltar todos esses elementos envolvidos num jogo de futebol moderno, e para compor uma mimese adequada a sua transfiguração pela palavra literária, tenha inteligentemente escolhido o suporte da linguagem da televisão e com ela fixado a maneira pela qual, através da lógica do espetáculo, um momento que é de experiência individual, torna-se de vivência coletiva.

E para expandir ainda mais o âmbito de repercussão da sua falha de goleiro, e com isso expor mais precisamente a dimensão da sua dor interior, o narrador encerra a sua história a partir de mais um ângulo de observação em que a imagem cede lugar ao som, como a evidenciar, para o caso narrado, a eficácia da natureza tátil do veículo televisão, conforme preconizava deste meio de comunicação, o pensador Marshal McLuhan.*

O recurso de tirar partido do efeito cumulativo é o mesmo com as repetições da cena capital levadas ao paroxismo.

“CANAL 8 – Eles abriram os microfones e a gente escuta nitidamente os gritos da nossa torcida: ‘É campeão, é campeão’. Um grito que ecoará durante a noite inteira na cidade. Só que a torcida adversária que irá comemorar. ‘É campeão, é campeão’, o grito apenas mudando de um lado para o outro das arquibancadas”.

(…)

“EM CÂMERA LENTA – (…) Eles voltam à câmara uma porção de vezes. Aquela bola que sai de dentro do gol e volta aos meus braços e daí ao Canhotinho e dele de volta ao Luiz Henrique. Aquela bola que sai de novo dos pés de Luiz Henrique e rola para a ponta esquerda e até a linha de fundo, onde o Canhotinho bate nela todo torto e de esquerda e daí aos meus braços e depois para dentro do gol”.

“Eles repassam uma porção de vezes a jogada. (…) Como se fosse repetir-se para sempre, igual a um pesadelo”.

De temática simples, um evento relativamente comum em jogos de futebol (o lance em que o goleiro é traído pela bola, deixando passar um gol que todos – inclusive ele – asseguravam defendido: o chamado “gol frango”), o grande lance desse conto de Sérgio Sant´anna é a forma de narrá-lo. Um caso típico em que a forma ilumina o conteúdo. Conteúdo esse, o leitor pôde notar, tecido aqui por uma fabulação que é ela mesma rica em significados extras, e que por conseqüência disso salta da categoria de um mero evento de jogo para a dimensão de um daqueles pequenos dramas humanos que, mais do que as câmaras de TV, só as lentes da boa literatura sabem captar.

QUEM É O AUTOR:

Sérgio Sant’Anna nasceu no Rio de Janeiro, em 30 de outubro de 1941. É contista, romancista e poeta. Sua obra é notória pelo caráter experimental, abordando temas urbanos de várias formas diferentes, algumas bastante transgressivas e inovadoras. Embora já tenha publicado poesia, peças de teatro, novelas e romances, Sant’anna se considera primeiramente um contista. Seu romance mais célebre é As Confissões de Ralfo, publicado em 1975. O livro é a história de um escritor que decide escrever uma “autobiografia imaginária”, narrando vários fatos extraordinários numa sucessão inverossímil. Além de O sobrevivente (1969), publicou Notas de Manfredo Rangel, repórter – A respeito de Kramer (1973), Simulacros (1977), O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro (1982), Amazona (1986), Senhorita Simpson (1989), Breve história do espírito (1991), O monstro (1994) e Contos e novelas reunidos (1997). Ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti e também, por duas vezes, foi agraciado com o prêmio Status de Literatura. A narrativa, acima, No último minuto foi publicada, no livro, Contos brasileiros de futebol, editado em 2005, por Cyro de Matos, sob os auspícios da Editora LGE, de Brasília, e 22 contistas em campo, reunião de textos organizada por Flávio Moreira da Costa e publicada pela Ediouro, do Rio de Janeiro, em 2006.


O futebol de salão na literatura

18/11/2012

Por Edônio Alves

Em homenagem ao heptacameponato mundial de futebol de salão conquistado ontem, na Tailândia, pela Seleção Brasileira da modalidade, trago a este blog, dentro daquela nossa proposta de relacionar sempre o futebol com a arte da literatura, a análise de um conto de ficção em que este esporte figura como tema central. Dententor de uma hegemonia inquestionável no futebol de salão do planeta, o Brasil – como se não bastasse ter ganho sete vezes a taça mundial -, ostenta ainda o privilégio de possuir o maior jogador de futebol da modalidade, o nosso Falcão, que acaba de disputar a sua última Copa do Mundo pela seleção canarinho. A narrativa que segue, analisada em seus detalhes literários e estéticos – e porque não dizer técnico e táticos – trata da figura do goleiro no futsal, um personagem do futebol sempre rico em caracteres humanos e esportivos. Boa leitura!

Homem vestido de negro

Lourenço Cazarré

 Como já antecipamos acima, esta narrativa tem como objeto o futebol de salão e como tema o talento e a figura de um goleiro virtuose na sua função debaixo das traves. É narrada em primeira pessoa para um interlocutor virtual inominado a quem outro goleiro confessa sua admiração pelo mestre que certa vez enfrentou sem sucesso. Desta feita, a figura do goleiro é heroicizada utilizando-se para isso um recurso narrativo adequado: o solilóquio – tipo de diálogo sempre útil por meio do qual uma personagem pode expressar para outra, com a verossimilhança da sinceridade testemunhada, as suas impressões sobre as coisas e os seres deste mundo.

Isso pode ser visto já no início do conto quando a história principia com a resposta a uma pergunta virtualmente feita pelo interlocutor do narrador que, a partir daí, toma a palavra numa conversa em primeira pessoa: “A melhor partida? Sei lá! Foram tantas”.

E a prosa continua, em ritmo de papo informal com o relato que segue, em seus momentos principais:

“Ah, tem uma! Aquela foi inesquecível: jogamos contra uns caras que trabalhavam num matadouro. Uma noite infernal.

Foi assim”.

Com esse gancho dêitico, o narrador continua o relato esmerando-se em apresentar as circunstâncias de tempo e de espaço em que a tal partida se desenrolara, numa tarde-noite de muito calor em certo dia, no ginásio da cidade. Os pormenores da atmosfera pesada do clima e sua influência sobre a fisiologia humana são realçados ao máximo como pretexto funcional para que se apresente ao leitor as características daquela variante do jogo de futebol, o futebol de salão, ou futsal, como a modalidade é hoje mais conhecida:

“Ah, sim, claro, estou falando aqui é de futebol de salão e não desse negócio sem graça que é o futebol de campo. Estou falando de um jogo que é disputado numa quadra de cimento liso por caras que correm feito loucos, que trombam e caem a todo instante porque o campo é pequeno e a velocidade deles é tremenda. Caem e levantam no mesmo instante. Não tem aquela moleza do futebol de campo, com o sujeito se rebolando na grama só para engabelar o juiz”.

E a comparação entre os dois tipos de futebol não pára por aí. Prossegue com o intuito claro de supervalorizar o futsal em oposição ao congênere dos gramados – como, aliás, costumam fazer muitos dos amantes do jogo de futebol em geral – que, com efeito, quaisquer que sejam suas condições de prática, se na rua ou nos estádios, nas praias ou nas quadras fechadas, é o mesmo, no geral, para os goleiros. É aqui, pois, que o narrador introduz habilmente, sugestivamente, sorrateiramente, na conversa, o tema da sua história:

“De repente, o Magro me bateu no ombro e disse:

– Eu é que não queria estar na tua pele: vestir camiseta de goleiro com este baita calor!”

Pronto, está dada a deixa para a figura do goleiro entrar na narrativa como seu tema principal. E mais: com toda a sua carga de personagem um tanto marginal, mescla de herói e anti-herói, um tanto síntese ambígua e polissêmica (por isso, um tanto polêmica) de salvador e de vilão em meio à plataforma estrutural e comunicativa do jogo de futebol. E para demonstrar a sua capacidade criativa, no que tange à construção de estórias curtas de cunho ficcional tematizando o jogo da bola, o escritor Lourenço Cazarré aproveita-se da estrutura do conto – sempre curto, otimizado ao máximo em seus recursos expressivos – e com apenas dois diálogos sintetiza o universo funcional sempre controverso do goleiro; tanto no contexto do jogo como no da trama, simultaneamente:

“- Jogar no gol é moleza – continuou o magro. – Goleiro fica o tempo todo parado.

– Parado não quer dizer descansado – retruquei”.

E arremata (ele, o narrador) com essa: “Não se podia dar muita conversa ao magro. Ele vivia sempre tentando arranjar uma discussão”.

Segue agora, depois de um papo de vestiário entre os colegas de time, o momento em que o Magro, companheiro de clube, coloca em cena o personagem central do conto:

“- O pior para nós é o goleiro deles…”

Após o esclarecimento de quem se tratava, o narrador é taxativo:

“- Claro – eu disse. – Não vai dá pra nós. Ninguém mete gol nele”.

A narrativa, então, muda de tom, vazada agora num viés mais intimista, quase confessional. É o momento em que o relato torna-se memorialístico, com as reminiscências infantis do personagem-narrador moldando com uma espécie de ternura apaixonada um retrato pouco comum da figura dos goleiros em narrativas de futebol:

“Quando eu era pequeno, nas noites de sábado, meu pai me levava para assistir às partidas do campeonato de futebol de salão da cidade. No início eu não prestava muita atenção nos jogos porque, a todo instante, meus olhos se voltavam para os homens debaixo das traves. Eu era fascinado pelos goleiros. Torcia por eles, vibrava quando um deles, qualquer um, fazia uma defesa. Achava meio estúpido aquilo de correr atrás da bola. O legal era ficar debaixo do gol, esperando o ataque”, registra com saudade.

Uma digressão que não retarda o texto, mas, muito ao contrário, serve para adiantar o ponto nodal da trama, a configuração prosoprográfica do seu personagem nuclear, é utilizada para além disso, para encenar uma representação social muito comumente colada às emblemáticas e fascinantes figuras dos goleiros de futebol:

“Dentre os goleiros, o meu preferido era o Catofe. Não só porque ele era o melhor, e ele era de longe o melhor, mas principalmente porque era o mais elegante. Sempre impecável. Alto, magro, só se vestia de negro: tênis, meias, luvas, calção e camiseta. Até as joelheiras eram negras! Estava sempre bem penteado: o cabelo loiro besuntado de brilhantina, repartido no lado por uma risca perfeita”.

A digressão então se encerra com uma chave retórica típica: “Está bem, volto ao jogo que lhe contava”.

E a história caminha para o seu final com o narrador explicando, antes, como fora a partida: o entrosamento antigo do seu time que de nada servira, embora tenham jogado uma barbaridade; as qualidades do seu principal jogador, o Boca, que chutava muito bem etc., e uma conjectura que lhe viera à cabeça sobre a filosofia pragmática do esporte.

“No futebol de salão, ganha quem erra menos. O sujeito não pode chegar um milésimo de segundo atrasado. Todo erro é fatal. É jogo de paciência, de espera. Pra ganhar é preciso acertar quando o adversário erra. É como na vida, o sujeito só sobe quando o outro falseia a passada”.

Em momento algum, portanto, o grande goleiro falseou a passada porque o time do narrador desta história não venceu aquele jogo.

“E por que isso?, se pergunta, a certa altura.

“Ora, por causa daquele goleiro, o goleiro do time do matadouro de porcos, o alemão velho, o que chamavam Catofe”, responde a si mesmo, para logo em seguida confessar ao seu interlocutor oculto:

“Quando terminou a partida, saí correndo do meu gol, comovido. Atravessei a quadra, abracei o Catofe pelos joelhos e levantei ele. Ele ficou meio espantado com aquilo porque há muito tempo não tinha mais fãs. Mas, depois, passou a mão pelos meus cabelos e disse:

– Valeu Guri!”

Isso porque o narrador registra que ele pegou todas. Que guarnecia o gol inteiro, porque sempre, com uma perna ou um braço, ele mudava a trajetória da bola, viesse ela de onde viesse. Enfim, que o goleiro fechou o gol.

Essa, todavia – esse “Valeu guri”-, é a expressão-chave da história, o seu fecho de ouro, porque logo mais à frente, o narrador conclui, emocionado:

“Como lhe disse, daquela época para cá, joguei centenas de partidas. Esqueço todas, nem contos os gols. Mas aquele zero a zero com os caras do matadouro não consigo esquecer. Até hoje eu ainda me lembro da leveza do corpo magro dele. Vejo o espanto nos olhos dele. Sinto o peso da mão dele, enluvada, na minha cabeça. Escuto a sua voz rouca me dizendo:

– Valeu, guri”.

PARA SABER MAIS:

Lourenço Cazarré, o autor da história acima, nasceu em Pelotas (RS) em 29 de julho de 1953. Desde 1981, ano em que saiu seu primeiro livro, Agosto, sexta-feira, treze, este escritor e jornalista gaúcho já teve mais de duas dezenas de obras publicadas. Grande contista brasileiro, conquistou o Prêmio Açorianos de Literatura, na categoria Contos, em 2002, com Ilhados. Esteve presente por duas vezes na Bienal Nestlé de Literatura, em 1982 e 1984; no Prêmio Jabuti, em 1999 e em mais de uma dezena de outros concursos. Sua novela, O mistério da obra-prima, foi traduzida para o espanhol e editada pela Fondo de Cultura Económica, do México. Entre sua obra infanto-juvenuil destacam-se os livros, Clube dos leitores e histórias tristes, A cidade dos ratos: uma ópera-roque, Quem matou o mestre de matemática? e Nadando contra a morte, que levou o Prêmio Jabuti de 1999. O conto, O homemvestido de negro, foi publicada na coletânea, 11 Histórias de futebol, integrante da Coleção Prosa Presente, da Editora Nova Alexandria, de São Paulo, que saiu em 2006.