Futebol e Lazer em dois contos de Antônio de Alcântara Machado

24/08/2020

Por Elcio Loureiro Cornelsen

Desde os primórdios do futebol no Brasil, intelectuais não ficaram alheios àquela modalidade esportiva e de lazer que, gradativamente, ultrapassava os limites do ground e do field dos clubes nobres de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro e alcançava os campos improvisados, as ruas e os terrenos baldios das cidades brasileiras. A crônica seria o gênero eleito por intelectuais para versarem sobre o esporte bretão, seja para criticá-lo, seja para louvá-lo. Numa seleta galeria figuram nomes como João do Rio, Coelho Neto, Lima Barreto, Graciliano Ramos, entre outros, que trouxeram o football para os debates nos salões literários.

No final da década de 1910, o futebol já iniciava a sua franca popularização, que se intensificaria nas décadas seguintes. Um dos grandes marcos literários da época foi o movimento modernista, capitaneado, entre outros, por escritores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Antônio de Alcântara Machado. E o futebol não ficou de fora do projeto modernista. Um dos expoentes da vanguarda paulista, Mário de Andrade fez uma referência ao futebol em sua obra prima, o romance Macunaíma (1928). De maneira inusitada, o “herói sem nenhum caráter”, ao mesmo tempo índio e negro, surgiria como o inventor do futebol em terras brasilis, em uma espécie de mito fundador antropofágico. Vejamos o trecho a seguir, extraído do capítulo “A francesa e o gigante”, em que os irmãos Manaape, Jiguê e Macunaíma encenam a invenção do futebol:

[…] O herói não maliciava nada. Vai, Jiguê pegou num tijolo, porém pra não machucar muito virou-o numa bola de couro duríssima. Passou a bola pra Maanape que estava mais a frente e Maanape com um pontapé mandou ela bater em Macunaíma. Esborrachou todo o nariz do herói. – Ui! Que o herói fez. Os manos bem sonsos gritaram: – Uai! Está doendo, mano! Pois quando bola bate na gente nem não dói! Macunaíma teve raiva e atirando a bola com o pé bem pra longe falou: – Sai, peste! Veio onde estavam os manos: – Não faço mais papiri, pronto! E virou tijolos pedras telhas ferragens numa nuvem de iças64 que tomou São Paulo por três dias. O bichinho caiu em Campinas. A taturana caiu por aí. A bola caiu no campo. E assim foi que Macunaíma inventou o bicho-do-café, Jiguê a lagarta-rosada e Macunaíma o futebol, três pragas. (ANDRADE, 1992, p. 62)

E a “praga” do futebol, como é designada pelo narrador do romance, se alastraria ainda mais nas décadas seguintes, tornando-se um dos traços culturais, esportivos e de lazer de grande significado para o Brasil. Outro expoente da vanguarda paulista, Oswald de Andrade, também abriu espaço para o futebol no célebre romance Memórias sentimentais de João Miramar (1924), no qual incluiu um poema intitulado “Bungalow das rosas e dos pontapés”, no qual o futebol aparece como parte de um cenário urbano:

Bondes gols
Aleguais
Noctâmbulos de matches campeões
E poeira
Com vesperais
Desenvoltas tennis girls
No Paulistano
Paso doble. (ANDRADE, 1967, p. 123)

De acordo com o historiador Bernardo Borges Buarque de Hollanda,

Oswald de Andrade registra com seus versos livres, em forma de instantâneos fotográficos, a mesma presença do futebol na cidade moderna de São Paulo. Ao lado dos bondes eletrificados, elemento simbólico do progresso […], bem como da eletricidade de modo geral, que possibilita as primeiras partidas noturnas na cidade, em princípio dos anos 1920, os gols integram-se a esse novo tempo de agitação e frenesi que contagia as grandes metrópoles sob o influxo da modernização. (HOLLANDA, 2015, p. 26-27)

O poema “Bungalow das rosas e dos pontapés” é composto por uma única estrofe que contém 08 versos livres, ou seja, com métricas variáveis. Em seu segundo verso, composto apenas pela palavra “Aleguais”, temos uma gíria do jargão do futebol nos anos 1920: de acordo com o dicionário Aulete, tal expressão teria sido um dos primeiros “cantos de guerra” da torcida brasileira, que teria origem no enunciado “Allez! Go! Hack!”, transformado em “Aleguá-guá-guá”. E segundo o historiador Bernardo Borges Buarque de Holanda,

[a] palavra “Aleguais”, por exemplo, era um grito usual no período, abrasileiramento de uma expressão francesa. Com ela, o torcedor paulistano tradicionalmente comemorava o gol de sua equipe. A bem dizer, tratava-se de uma interjeição similar a outra bem comum á época, ‘hip, hip, hurrah’, dos torcedores no Rio de Janeiro. (HOLLANDA, 2015, p. 27)

Se em Macunaíma o futebol surge numa linha de passe entre os irmãos Manaape, Jiguê e Macunaíma, em Memórias sentimentais de João Miramar o futebol já faz parte do cenário urbano da “pauliceia desvairada”, e os “aleguais” atestam que o esporte bretão já era parte do lazer daqueles que acorriam aos clubes – no caso, o tradicional Clube Athletico Paulistano – para vibrar e torcer por seus times.

Entretanto, seria em dois contos de Antônio de Alcântara Machado, publicados na obra Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), que o futebol surgiria como lazer para garotos do bairro étnico do Brás. O primeiro deles é “Gaetaninho”, em que o protagonista, filho de italianos, gostava de jogar bola na rua. Como em flashes, o narrador assim se refere à habilidade de Gaetaninho que, mesmo quando tentava fugir das chineladas de sua mãe, valia-se da ginga do futebol: “Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia-volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro. Eta salame de mestre!” (MACHADO, 2010, p. 27). E os jogos na rua representavam o momento de lazer dos meninos: “O jogo na calçada parecia de vida ou morte” (MACHADO, 2010, p. 28). Nino, Beppino e Gaetaninho jogavam futebol animados:

Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ele cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
─ Vá dar tiro no inferno!
─ Cala a boca, palestrino!
─ Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola, um bonde o pegou. Pegou e matou. No bonde vinha o pai de Gaetaninho. (MACHADO, 2010, p. 28)

Além do momento trágico alcançado no conto com o atropelamento e morte de Gaetaninho, ironicamente, ele realizou seu sonho de um dia poder andar de carro, como o Beppino já havia feito no início do conto, ao acompanhar o féretro da Tia Peronetta, que fora sepultada no Cemitério do Araçá. Gaetaninho seria levado para o cemitério de carro: “Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho caixão fechado com flores pobres em cima” (MACHADO, 2010, p. 29).

Portanto, nesse conto de Antônio de Alcântara Machado, o futebol aparece como prática urbana de lazer em um bairro étnico, com vários representantes da colônia italiana de São Paulo. Com todos os riscos que se corria ao se jogar bola nas calçadas e vias, com um trânsito já em expansão no final da década de 1920, o protagonista acaba sendo vitimado por correr atrás de uma bola perdida sem prestar atenção e acaba atropelado por um bonde.

Entretanto, é no conto “Corinthians 2 x Palestra 1” que o futebol ganha maiores contornos enquanto lazer. Numa disputa entre dois dos principais clubes de São Paulo, o Sport Club Corinthians Paulista, fundado em 1910, e o Palestra Itália, fundado em 1914, time da colônia italiana, constroi-se uma imagem do torcer como lazer. No estádio do Parque Antártica, os torcedores vibram com seus times:

[…] Em torno do trapézio verde a ânsia de vinte mil pessoas. De olhos ávidos. De nervos elétricos. De preto. De branco. De azul. De vermelho.
Delírio futebolístico no Parque Antártica. (MACHADO, 1993, p. 32)

Quando o Corinthians marca o primeiro tento, as arquibancadas extravasam a emoção:

─ Aleguá-guá-guá! Aleguá-guá-guá! Urrá-urrá! Corinthians!
Palhetas subiram no ar. Com os gritos. Entusiasmos rugiam. Pulavam. Dançavam. E as mãos batendo nas bocas:
─ Go-o-o-o-o-o-ol! (MACHADO, 1993, p. 33)

Nota-se que o narrador se esmera em descrever algo que é da ordem da performance do torcedor, como movimentos corporais, gestos e cânticos. E os torcedores do Palestra Itália também tiveram o seu momento de euforia:

Matias centrou. A assistência silenciou. Imparato emendou. A assistência berrou.
─ Palestra! Palestra! Aleguá-guá! Palestra! Aleguá! Aleguá! (MACHADO, 1993, p. 34)

E o comportamento da torcida também é tema em um lance da arbitragem:

Mas o juiz marcou um impedimento.
─ Vendido! Bandido! Assassino!
Turumbamba na arquibancada.
[…]
─ Nem torcer a gente pode mais! Nunca vi! (MACHADO, 1993, p. 35)

Após o Corinthians marcar o segundo gol e findar a partida, as ruas da cidade foram tomadas pelos torcedores eufóricos pela vitória de seu time: “A alegria dos vitoriosos demandou a cidade. Berrando, assobiando e cantando” (MACHADO, 1993, p. 39).

A título de conclusão, reconhece-se que esses flashes urbanos ficcionais da Paulicéia no final da década de 1920 evidenciam a crescente popularização pela qual o futebol passava, como lazer para muitos, seja nos jogos dos garotos no Brás, seja no comportamento dos torcedores nas arquibancadas do estádio do Palestra Itália diante de um clássico reunindo dois clubes cada vez mais populares naquela época. Essas cenas da vida cotidiana, de Brás, Bexiga e Barra Funda, pautadas pelas trivialidades e pelo corriqueiro, fazem desfilar seus tipos humanos em meio a eventos hilários ou trágicos, em que o futebol aparece como um momento de lazer.

Referências

ANDRADE, Mário. Macunaíma (1928). São Paulo, Círculo do Livro, 1992.

ANDRADE, Oswald de. Bungalow das rosas e dos pontapés (1024). In: PEDROSA, Milton. Gol de letra: o futebol na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Gol, 1967, p. 123.

AULETE. Aleguá (verbete). Disponível em: http://www.aulete.com.br/alegu%C3%A1. Acesso em: 09 jul. 2020.

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Ecos da Semana de Arte Moderna? A recepção ao futebol em São Paulo e o movimento modernista nas décadas de 1920 e 1930. In: CORNELSEN, Elcio; AUGUSTIN, Günther; SILVA, Silvio Ricardo da (orgs.). Futebol, linguagem, artes, cultura e lazer. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2015, p. 17-26.

MACHADO, Antônio de Alcântara. Corinthians 2 x Palestra 1 (1927). In: RAMOS, Ricardo (org.). A palavra é… futebol. São Paulo: Scipione, 1993, p. 31- 39.

MACHADO, Antônio de Alcântara. Gaetaninho (1927). In: In: LIMA, João Gabriel de (org.). Livro Bravo! Literatura e Futebol. São Paulo: Ed. Abril, 2010, p. 27-29.


Futebol e Lazer em dois contos de Antônio de Alcântara Machado

24/08/2020

Elcio Loureiro Cornelsen

Desde os primórdios do futebol no Brasil, intelectuais não ficaram alheios àquela modalidade esportiva e de lazer que, gradativamente, ultrapassava os limites do ground e do field dos clubes nobres de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro e alcançava os campos improvisados, as ruas e os terrenos baldios das cidades brasileiras. A crônica seria o gênero eleito por intelectuais para versarem sobre o esporte bretão, seja para criticá-lo, seja para louvá-lo. Numa seleta galeria figuram nomes como João do Rio, Coelho Neto, Lima Barreto, Graciliano Ramos, entre outros, que trouxeram o football para os debates nos salões literários.

No final da década de 1910, o futebol já iniciava a sua franca popularização, que se intensificaria nas décadas seguintes. Um dos grandes marcos literários da época foi o movimento modernista, capitaneado, entre outros, por escritores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Antônio de Alcântara Machado. E o futebol não ficou de fora do projeto modernista. Um dos expoentes da vanguarda paulista, Mário de Andrade fez uma referência ao futebol em sua obra prima, o romance Macunaíma (1928). De maneira inusitada, o “herói sem nenhum caráter”, ao mesmo tempo índio e negro, surgiria como o inventor do futebol em terras brasilis, em uma espécie de mito fundador antropofágico. Vejamos o trecho a seguir, extraído do capítulo “A francesa e o gigante”, em que os irmãos Manaape, Jiguê e Macunaíma encenam a invenção do futebol:

[…] O herói não maliciava nada. Vai, Jiguê pegou num tijolo, porém pra não machucar muito virou-o numa bola de couro duríssima. Passou a bola pra Maanape que estava mais a frente e Maanape com um pontapé mandou ela bater em Macunaíma. Esborrachou todo o nariz do herói. – Ui! Que o herói fez. Os manos bem sonsos gritaram: – Uai! Está doendo, mano! Pois quando bola bate na gente nem não dói! Macunaíma teve raiva e atirando a bola com o pé bem pra longe falou: – Sai, peste! Veio onde estavam os manos: – Não faço mais papiri, pronto! E virou tijolos pedras telhas ferragens numa nuvem de iças64 que tomou São Paulo por três dias. O bichinho caiu em Campinas. A taturana caiu por aí. A bola caiu no campo. E assim foi que Macunaíma inventou o bicho-do-café, Jiguê a lagarta-rosada e Macunaíma o futebol, três pragas. (ANDRADE, 1992, p. 62)

E a “praga” do futebol, como é designada pelo narrador do romance, se alastraria ainda mais nas décadas seguintes, tornando-se um dos traços culturais, esportivos e de lazer de grande significado para o Brasil. Outro expoente da vanguarda paulista, Oswald de Andrade, também abriu espaço para o futebol no célebre romance Memórias sentimentais de João Miramar (1924), no qual incluiu um poema intitulado “Bungalow das rosas e dos pontapés”, no qual o futebol aparece como parte de um cenário urbano:

Bondes gols
Aleguais
Noctâmbulos de matches campeões
E poeira
Com vesperais
Desenvoltas tennis girls
No Paulistano
Paso doble. (ANDRADE, 1967, p. 123)

De acordo com o historiador Bernardo Borges Buarque de Hollanda,

Oswald de Andrade registra com seus versos livres, em forma de instantâneos fotográficos, a mesma presença do futebol na cidade moderna de São Paulo. Ao lado dos bondes eletrificados, elemento simbólico do progresso […], bem como da eletricidade de modo geral, que possibilita as primeiras partidas noturnas na cidade, em princípio dos anos 1920, os gols integram-se a esse novo tempo de agitação e frenesi que contagia as grandes metrópoles sob o influxo da modernização. (HOLLANDA, 2015, p. 26-27)

O poema “Bungalow das rosas e dos pontapés” é composto por uma única estrofe que contém 08 versos livres, ou seja, com métricas variáveis. Em seu segundo verso, composto apenas pela palavra “Aleguais”, temos uma gíria do jargão do futebol nos anos 1920: de acordo com o dicionário Aulete, tal expressão teria sido um dos primeiros “cantos de guerra” da torcida brasileira, que teria origem no enunciado “Allez! Go! Hack!”, transformado em “Aleguá-guá-guá”. E segundo o historiador Bernardo Borges Buarque de Holanda,

[a] palavra “Aleguais”, por exemplo, era um grito usual no período, abrasileiramento de uma expressão francesa. Com ela, o torcedor paulistano tradicionalmente comemorava o gol de sua equipe. A bem dizer, tratava-se de uma interjeição similar a outra bem comum á época, ‘hip, hip, hurrah’, dos torcedores no Rio de Janeiro. (HOLLANDA, 2015, p. 27)

Se em Macunaíma o futebol surge numa linha de passe entre os irmãos Manaape, Jiguê e Macunaíma, em Memórias sentimentais de João Miramar o futebol já faz parte do cenário urbano da “pauliceia desvairada”, e os “aleguais” atestam que o esporte bretão já era parte do lazer daqueles que acorriam aos clubes – no caso, o tradicional Clube Athletico Paulistano – para vibrar e torcer por seus times.

Entretanto, seria em dois contos de Antônio de Alcântara Machado, publicados na obra Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), que o futebol surgiria como lazer para garotos do bairro étnico do Brás. O primeiro deles é “Gaetaninho”, em que o protagonista, filho de italianos, gostava de jogar bola na rua. Como em flashes, o narrador assim se refere à habilidade de Gaetaninho que, mesmo quando tentava fugir das chineladas de sua mãe, valia-se da ginga do futebol: “Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia-volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro. Eta salame de mestre!” (MACHADO, 2010, p. 27). E os jogos na rua representavam o momento de lazer dos meninos: “O jogo na calçada parecia de vida ou morte” (MACHADO, 2010, p. 28). Nino, Beppino e Gaetaninho jogavam futebol animados:

Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ele cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
─ Vá dar tiro no inferno!
─ Cala a boca, palestrino!
─ Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola, um bonde o pegou. Pegou e matou. No bonde vinha o pai de Gaetaninho. (MACHADO, 2010, p. 28)

Além do momento trágico alcançado no conto com o atropelamento e morte de Gaetaninho, ironicamente, ele realizou seu sonho de um dia poder andar de carro, como o Beppino já havia feito no início do conto, ao acompanhar o féretro da Tia Peronetta, que fora sepultada no Cemitério do Araçá. Gaetaninho seria levado para o cemitério de carro: “Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho caixão fechado com flores pobres em cima” (MACHADO, 2010, p. 29).

Portanto, nesse conto de Antônio de Alcântara Machado, o futebol aparece como prática urbana de lazer em um bairro étnico, com vários representantes da colônia italiana de São Paulo. Com todos os riscos que se corria ao se jogar bola nas calçadas e vias, com um trânsito já em expansão no final da década de 1920, o protagonista acaba sendo vitimado por correr atrás de uma bola perdida sem prestar atenção e acaba atropelado por um bonde.

Entretanto, é no conto “Corinthians 2 x Palestra 1” que o futebol ganha maiores contornos enquanto lazer. Numa disputa entre dois dos principais clubes de São Paulo, o Sport Club Corinthians Paulista, fundado em 1910, e o Palestra Itália, fundado em 1914, time da colônia italiana, constroi-se uma imagem do torcer como lazer. No estádio do Parque Antártica, os torcedores vibram com seus times:

[…] Em torno do trapézio verde a ânsia de vinte mil pessoas. De olhos ávidos. De nervos elétricos. De preto. De branco. De azul. De vermelho.
Delírio futebolístico no Parque Antártica. (MACHADO, 1993, p. 32)

Quando o Corinthians marca o primeiro tento, as arquibancadas extravasam a emoção:

─ Aleguá-guá-guá! Aleguá-guá-guá! Urrá-urrá! Corinthians!
Palhetas subiram no ar. Com os gritos. Entusiasmos rugiam. Pulavam. Dançavam. E as mãos batendo nas bocas:
─ Go-o-o-o-o-o-ol! (MACHADO, 1993, p. 33)

Nota-se que o narrador se esmera em descrever algo que é da ordem da performance do torcedor, como movimentos corporais, gestos e cânticos. E os torcedores do Palestra Itália também tiveram o seu momento de euforia:

Matias centrou. A assistência silenciou. Imparato emendou. A assistência berrou.
─ Palestra! Palestra! Aleguá-guá! Palestra! Aleguá! Aleguá! (MACHADO, 1993, p. 34)

E o comportamento da torcida também é tema em um lance da arbitragem:

Mas o juiz marcou um impedimento.
─ Vendido! Bandido! Assassino!
Turumbamba na arquibancada.
[…]
─ Nem torcer a gente pode mais! Nunca vi! (MACHADO, 1993, p. 35)

Após o Corinthians marcar o segundo gol e findar a partida, as ruas da cidade foram tomadas pelos torcedores eufóricos pela vitória de seu time: “A alegria dos vitoriosos demandou a cidade. Berrando, assobiando e cantando” (MACHADO, 1993, p. 39).

A título de conclusão, reconhece-se que esses flashes urbanos ficcionais da Paulicéia no final da década de 1920 evidenciam a crescente popularização pela qual o futebol passava, como lazer para muitos, seja nos jogos dos garotos no Brás, seja no comportamento dos torcedores nas arquibancadas do estádio do Palestra Itália diante de um clássico reunindo dois clubes cada vez mais populares naquela época. Essas cenas da vida cotidiana, de Brás, Bexiga e Barra Funda, pautadas pelas trivialidades e pelo corriqueiro, fazem desfilar seus tipos humanos em meio a eventos hilários ou trágicos, em que o futebol aparece como um momento de lazer.

Referências

ANDRADE, Mário. Macunaíma (1928). São Paulo, Círculo do Livro, 1992.

ANDRADE, Oswald de. Bungalow das rosas e dos pontapés (1024). In: PEDROSA, Milton. Gol de letra: o futebol na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Gol, 1967, p. 123.

AULETE. Aleguá (verbete). Disponível em: http://www.aulete.com.br/alegu%C3%A1. Acesso em: 09 jul. 2020.

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. Ecos da Semana de Arte Moderna? A recepção ao futebol em São Paulo e o movimento modernista nas décadas de 1920 e 1930. In: CORNELSEN, Elcio; AUGUSTIN, Günther; SILVA, Silvio Ricardo da (orgs.). Futebol, linguagem, artes, cultura e lazer. Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2015, p. 17-26.

MACHADO, Antônio de Alcântara. Corinthians 2 x Palestra 1 (1927). In: RAMOS, Ricardo (org.). A palavra é… futebol. São Paulo: Scipione, 1993, p. 31- 39.

MACHADO, Antônio de Alcântara. Gaetaninho (1927). In: In: LIMA, João Gabriel de (org.). Livro Bravo! Literatura e Futebol. São Paulo: Ed. Abril, 2010, p. 27-29.


Rádio, música, cores berrantes e capas de fita: dois objetos e o surfe na primeira metade dos anos 1990

02/08/2020

Por Rafael Fortes (rafael.soares@unirio.br)

Meses após o falecimento de minha avó Dirce, em 2016, entre os muitos papéis que encontrei na casa dela estavam os abaixo, relativos a um rádio. O aparelho propriamente dito, não achei.

As especificações informam que o rádio funciona com 4 pilhas AA, “não incluídas”, e que a amplitude de frequência do AM vai de 530 a 1710KHz, ao passo que a do FM fica entre 88 e 108 MHz – um padrão internacional. As instruções explicam como sintonizar as estações, que as pilhas devem ser retiradas se o produto ficar fora de uso por duas semanas ou mais etc. O aparelho permite ouvir por um alto-falante ou por fones de ouvido a emissão das estações captadas.

Não há data de fabricação, mas considero provável que tenha sido em meados dos anos 1990. O país de produção foi a China, os papéis originalmente distribuídos com o equipamento que aqui aparecem escaneados foram impressos em Hong Kong e tenho quase certeza de que o aparelho foi adquirido nos Estados Unidos. O fabricante Gran Prix Electronics (daí a sigla GPX) dava garantia de 90 dias: “essa garantia lhe dá direitos legais específicos e você também pode ter outros direitos, os quais variam de estado para estado”, como frequentemente ocorre nos EUA. A GPX INC., empresa situada no estado de Missouri, fazia a distribuição.

Mas o que de fato me interessa é a parte superior da frente da embalagem onde, imagino, veio encartado o aparelho.

Chamo a atenção para dois pontos. Primeiro, a palavra “sports” (esportes) que dá título ao produto. A primeira e principal característica destacada é ser à prova de água e de areia. Os dois elementos remetem à praia, e a ideia de ser um equipamento adequado para uso durante a prática de atividades esportivas na faixa de areia ou no mar é explicitada pela imagem do lado direito: um windsurfista manejando vela e prancha enquanto usa o rádio.

Segundo, a utilização de cores berrantes (amarelo, verde, rosa, azul – as mesmas adotadas pelos fabricantes de post-its/blocos adesivos/stick notes) na composição gráfica, tanto no lado esquerdo quanto na prancha e bermuda do windsurfista. A mistura colorida e o uso de tons chamativos ou “ácidos” eram muito presentes nas revistas de surfe da época, tanto brasileiras quanto californianas. A moda ligada à praia e surfwear, também.

A composição gráfica recortada remete às noções de ação/movimento e a lista colorida de características do lado esquerdo se assemelha aos adesivos (ou “plásticos”, como muitos os chamavam no Rio de Janeiro), um produto muito popular à época entre adolescentes, com destaque para os aficionados da cultura de praia e/ou do surfe.

*  *  *

Um pouco antes, mas ainda na primeira metade dos anos 1990, eu comprava fiado periodicamente revistas de surfe – e outros produtos gráficos – na banca que ficava a cargo do Beto e do Magrão, na esquina das ruas Álvares de Azevedo e Tavares de Macedo, em Icaraí (Niterói). Numa edição de Fluir (publicada em São Paulo, 1983-2016; foi fonte e objeto de minha tese de doutorado, que cobriu o lançamento até 1988), vieram encartados como brinde folhas contendo capas de fitas cassete para recortar.

Comentários breves:

a) Usei totalmente o produto. Comprei a revista, recortei as “capas de fita”, como eram chamadas, escrevi os nomes das músicas, dobrei, troquei pela capa original que vinha com o logotipo do fabricante e encaixei no estojo de plástico. Colei na capa um adesivo com o número 12, o que indicava o número desta fita no acervo que ficava numa gaveta de uma mesinha de cabeceira do meu quarto. Como venho apontando em diferentes textos, era comum os leitores das revistas não apenas as folhearem, mas também recortarem fotos, logotipos, títulos de matérias e colá-los em diferentes superfícies (paredes do quarto, face interna ou mesmo externa da porta de armário guarda-roupa) ou objetos (cadernos, agendas). Além, é claro, de destacar o pôster que comumente vinha encartado nas páginas centrais.

b) O crédito da foto é de Sebastian Rojas, importante fotógrafo de surfe do período. A prancha usada pelo surfista não creditado na peça (possivelmente os créditos vieram no corpo da edição da revista que trouxe as capas de fita como brinde) tem cores nos tons em voga na época, conforme mencionei na primeira parte. Tais tons também figuram nos logotipos de Fluir que aparecem na capa (junto com a foto) e nas lombadas.

c) A marca da fita, TDK, era uma das principais disponíveis no Rio de Janeiro à época, assim como Sony e Basf.

d) O plástico do estojo original da fita está fosco/borrado, dificultando a leitura do que está escrito na capa. Por isso fotografei a capa dentro e fora dele nas imagens acima.

e) A fita é composta basicamente por músicas da banda de rock autraliana Midnight Oil. Ela fazia sucesso entre os interessados por surfe e/ou por rock no Brasil à época, particularmente os ouvintes da Rádio Fluminense FM, de Niterói (RJ), onde nasci e morava. A fita foi gravada por mim a partir de CDs do Midnight Oil emprestados de amigos. Há três músicas do Diesel and Dust (Beds Are Burning, Sometimes e The Dead Heart – essa última, uma das músicas de que mais gosto na vida, em especial nessa versão), do Blue Sky Mining (Blue Sky Mine, Forgotten Years e King of the Mountain) e do Earth and Sun and Moon (Truganini, My Country e Drums of Heaven). Completam o lado B Things Don’t Seem (Australian Crawl), Out That Door e Come Anytime (Hoodoo Gurus) e Orange Crush (R.E.M.). Explorei esta relação entre o que se chamava de “surf music”, formado principalmente por meia dúzia de grupos australianos, as emissoras de rádio e uma certa noção de cultura surf entre setores da juventude de classe média do Rio de Janeiro neste artigo.

*  *  *

Os objetos apontam para diferentes articulações entre produção industrial, exploração comercial do esporte, busca de associação de produtos e marcas ao universo do surfe, em voga e em moda na época, no Brasil e nos Estados Unidos, entre setores da juventude. Grupos empresariais de peso investiram para associar-se à modalidade, buscando ampliar o público consumidor entre as crianças, adolescentes e jovens. Uns investiam mais no esporte, outros menos. Exemplos notórios foram as marcas Juba&Lula e Alternativa (vendidas na Mesbla) e Suncoast (da C&A). Questões que foram tocadas de passagem em um ou outro escrito meu, mas que carecem de exploração e desenvolvimento. Fica a sugestão para os jovens pesquisadores.

Referências

FORTES, Rafael. O surfe brasileiro e as mídias sonora e audiovisual nos anos 1980. Logos, ed. 33, v. 17, n. 2, p. 90-105, 2o. sem. 2010. Disponível em:

<http://www.logos.uerj.br/PDFS/33/08_logos33_fortes_surfe.pdf>.

 


100 anos do futebol feminino no Rio Grande do Norte: histórias de pioneirismo e protagonismo esportivo

27/07/2020

Por Aira Bonfim (airafbonfim@gmail.com)

Enquanto alguns jornais e revistas do início do século passado buscavam associar a imagem de mulheres esportistas à atributos de delicadeza, beleza e frivolidades, acervos fotográficos da coleção do Instituto Tavares de Lyra (RN) e registros da revista carioca Vida Sportiva revelam imagens de garotas atléticas reais – e nem tão graciosas assim.

O olhar marrento, os corpos fardados e os braços cruzados são pistas visuais oferecidas por esses acervos que nos ajudam a pensar as formas de apropriação prática do futebol pelas brasileiras das primeiras décadas do século XX.

O exemplo aqui escolhido refere-se às fontes disponíveis sobre as equipes femininas de futebol do estado do Rio Grande do Norte e que circularam pela imprensa brasileira entre os anos de 1918 a 1920.

Em março de 1920 o semanário Vida Sportiva, responsável pela divulgação de notícias esportivas dos mais longínquos estados do Brasil, revelaria na sua capa a foto do ABC Football Club, time de futebol feminino da cidade de Natal, e, curiosamente associado a Liga de Desportos Terrestres na mesma época.

Futebol feminino de RN na capa da revista Vida Sportiva de março de 1920

Futebol feminino de RN na capa da revista Vida Sportiva de março de 1920

A foto da capa refere-se a um campeonato de futebol feminino realizado no sítio Senegal, residência do Coronel Joaquim Manoel Teixeira de Moura, o Quincas Moura. Tratava-se, de acordo com a mesma revista, de um prélio perdido de 12×0 pelo ABC F.C. (capa) contra o scratch feminino do Centro Sportivo Natalense, outra equipe pertencente à liga potiguar.

Tanto a raridade visual como a evidência histórica da partida de futebol são confirmações importantes que mulheres jogaram bola no Brasil, principalmente quando levamos em conta que na mesma época tal modalidade só crescia e se popularizava em todos os estados.

Jogadoras do ACB Football Club e Centro Sportivo Natalense em 1920

Nos últimos anos, tanto a mídia esportiva, como pesquisadores e instituições tem reiterado o episódio paulistano de 1921 entre as “senhoritas” dos bairros do Tremembé́ e da Cantareira, como um marco inaugural de moças jogando bola no Brasil. No entanto, apesar de existirem novas confirmações de episódios isolados entre meninas, antes e depois de 1921, o futebol feminino, como modalidade esportiva e competitiva, não se desenvolveu oficialmente como modalidade naquela época.

Diferente das experiências iniciadoras do futebol masculino no país, a exemplo de Charles Miller em São Paulo, e outros entusiastas do esporte bretão inglês como Thomas Donohue (Bangu Athletic Club) e Oscar Cox (Fluminense Football Club), às iniciações femininas nesse esporte aproximam-se mais das experiências atléticas vividas entre as crianças, presenciadas principalmente nas ruas, escolas, igrejas, clubes e nas periferias das festividades esportivas.

Meses antes da divulgação da capa feminina na Vida Sportiva, a revista afirmou que a cidade do Natal podia gabar-se de ter sido a primeira do Brasil a criar agremiações esportivas “de elementos exclusivamente femininos”[1]. O texto referia-se ao Centro Náutico Feminino de Natal e o Clube Náutico Jundiahy, da cidade de Macaíba, fundados sob a orientação do Centro Náutico Natalense. Todos, desde 1918, já ostentavam publicamente garotas disputando provas de remo.

Competidores da Yole Anta, do Centro Náutico Potengy, em 1918. Fonte: Vida Sportiva.

De acordo as notícias sobre a vida esportiva norte-rio-grandense, o ano de 1915 havia marcado o grande boom das práticas esportivas entre aquela comunidade do Nordeste. Os cronistas de Vida Sportiva narram que graças ao football e os esportes náuticos em pouco tempo se proliferaram os encontros atléticos entre a juventude de Natal.[2]

Com exceção do turfe, as elites de Natal e redondezas já se consideravam pessoas com acesso a uma variada gama de esportes em 1915. Houve inclusive investimento público do governo local, que apesar de modesto, foi citado na época como uma contribuição significativa para o desenvolvimento esportivo da região.

Imagem da equipe feminina de futebol de Natal publicada em maio de 1920.

Enquanto uma parte da juventude feminina experimentava as competições de regatas (os rowings), os textos da revista também revelam a experimentação feminina em outras variedades esportivas que, na “impossibilidade absoluta de praticarem o football, elas haviam inventado o hand-ball e praticavam o basketball”:

“O bello sexo natalense não quis ficar indifferente a esse louvável movimento patriótico da juventude masculina.

Adheriu à nobre causa, certo de que a educação physica é uma necessidade.

Empreendedora, intelligente, a mocidade feminina natalense, resolveu também entregar-se à prática de desportos (…)” [3]

A novidade o futebol feminino revelado pelo semanário Vida Sportiva, órgão oficial dos cronistas esportivos do Rio de Janeiro, já havia antecipado o tema na sua capa de um mês antes, em 21 de fevereiro de 1920, quando escolheu a ilustração de uma jogadora de futebol vestida com o uniforme do Botafogo Futebol Clube, do Rio de Janeiro.[4]

Se desconhece qualquer performance pública de mulheres jogando bola no clube do Botafogo nessa época, no entanto, o mesmo não se pode dizer de outros clubes cariocas como o Villa Isabel F.C.(1915), o Progresso F.C.(1919), o C.R. Flamengo (1919) e o River S.C.(1919), que já indicavam a exibição de equipes mistas ou de meninas contra meninos nas suas festividades esportivas e domingueiras.[5]

Após alguns meses da publicação das capas da revista Vida Sportiva com jogadoras de futebol, em meados de 1920, encontra-se também no Rio de Janeiro, evidências de mulheres jogando futebol no Helios (1920), C.R. Vasco da Gama (1923), S.C. Celeste (1923) e São Cristóvão A.C. (1929).

A investida das capas com mulheres esportistas, além de outra publicação sobre o team feminino potiguar divulgada em maio de 1920 [6] inserem-se num contexto de divulgação de crônicas que incentivaram a prática dos esportes entre as brasileiras pela revista Vida Sportiva.

Textos com títulos sugestivos como: ‘Porque não se incita o sexo frágil a praticar os sports?’(1918), “a mulher nos sports”, a “a saúde e a belleza da mulher pelo cultura physica”, “o dever physico da mulher moderna”, todas de 1920, exemplificam o tom da campanha empreendida por esse veículo de imprensa da época.

Vale destacar que o ano de 1920 também marcou a profusão de equipes de futebol feminino na Europa. Só na França, no mesmo ano, estima-se que em torno de 150 grupos jogaram bola.[7] Anos antes, também foi fundada La Fédération des Sociétés Feminines et Sportives de France, que entre tantas ações, destaca-se a parceria com as pioneiras do futebol, as desportistas inglesas.

A parceria europeia resultou no primeiro jogo internacional feminino entre Inglaterra e França, em Preston, com 25 mil espectadores em 1920. A partida feminina entre França e Inglaterra, em julho de 1920, ganhou uma página inteira da Vida Sportiva[1]. Esse episódio aconteceu no campo do Chelsea F.C. e a publicação trouxe imagens das capitãs Macgnemond e Kell, assim como uma defesa da goleira da equipe francesa (Fémina Sport) e uma cena da partida de futebol (com um árbitro homem!)

Jogadoras inglesas e francesas ocupam uma página inteira de Vida Sportiva em julho de 1920

De volta ao cenário brasileiro e ao estado do Rio Grande do Norte, endereço das primeiras imagens publicadas do futebol feminino no país, vale destacar algumas pequenas curiosidades sobre as agremiações esportivas potiguares. O Centro Sportivo Natalense foi fundado da associação entre o Flamengo Foot-ball Club com o Alecrim Foot-ball Club[9], ambos de Natal.

O sportman João Café Filho (1899-1970), nessa época, era o diretor de esportes do Alecrim F.C. O jovem potiguar era o goleiro da agremiação e anos mais tarde, o único potiguar a ocupar o cargo de presidente do Brasil, desde que assumiu a presidência entre 24 de agosto de 1954 e 8 de novembro de 1955, depois do suicídio de Getúlio Vargas.

Se já não fosse um episódio revelador, o historiador Dr. Anderson Tavares de Lyra, fundador do Instituto Norte-Rio-Grandense de Genealogia e do Instituto Tavares de Lyra (Macaíba- RN), apresenta na sua catalogação fotográfica informações que identificam a volante da equipe do Centro Sportivo Natalense como sendo Jandira Carvalho de Oliveira Café (1904-1989), futura esposa de João Fernandes Campos Café Filho e primeira dama do Brasil.

Além da constatação que uma primeira dama nordestina atuou nos primórdios do futebol de mulheres no Brasil, ainda há mais novidades entre o seleto grupo. A equipe feminina rival do ABC Football Club também conta com outra personagem de prestígio nacional: Celina Guimarães Viana (1890-1972). A jogadora do ABC F.C. (time da capa da Vida Sportiva), além de dona do acervo de fotos disponíveis hoje no Instituto Tavares de Lyra, se tornou professora e reconhecida como a primeira mulher a conquistar o direito ao voto no Brasil em 1927.[10]

Segundo o memorialista Anderson Tavares de Lyra, as fotografias da época apresentam dois espaços: o estádio Juvenal Lamartine e o sítio Senegal, ambos no bairro do Tirol e pertencentes ao Coronel da Guarda Nacional e Presidente da Intendência de Natal, Joaquim Manoel Teixeira de Moura, Quincas Moura.

O coronel, adepto das animações proporcionadas pelos encontros festivos e esportivos naquela região, tinha entre suas convidadas, sobrinhas, primas e filhas. O episódio das jogadoras de futebol do Rio Grande do Norte é excepcional e curioso em sua época, e ao mesmo tempo, na luz da contemporaneidade, 100 anos mais tarde, são histórias e protagonismos pouco conhecidos de mulheres, jogadoras, historiadores e instituições do esporte.

Em 2020, continuamos demandando esforços coletivos para constituir histórias mais plurais de um esporte que despertou paixões em todos os tipos de pessoas – e essa totalidade também inclui as mulheres.

O recado já estava dado pelo cronista da revista Vida Sportiva de 1918:

“quem está affeito a assistir as lutas de football, quantas vezes não terá adimirado do enthusiasmo com que varias torcedoras assistem o transcorrer da pugna?

Essas torcedoras, adeptas da cultura physica, não sentirão por vezes, ancias de se entremearem nas lutas?

Certamente que sim!

Animome-las! Incitemo-las, para que em breve possamos ver em cada recanto da nossa capital, um club em que a mulher possa cultivar os sports”.[11]

Notas

[1] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 11, 13 dez. 1919.

[2] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 3, 29 nov. 1919.

[3] Idem.

[4] O escudo da imagem sugere a composição de letras que o clube carioca usava antes da fusão com o Clube de Regatas Botafogo.

[5] BONFIM, Aira Fernandes. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). 2019. 213 f. Dissertação (Mestrado em História) – CPDOC – Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.

[6] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 18, 15 mai. 1920.

[7] Williams, 2003; Doble, 2017; William e Ress, 2015.

[8] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 19, 24 jul. 1920.

[9] Diário de Pernambuco, Recife, p. 2, 6 jul. 1918.

[10]http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/celina-guimara-es-de-primeira-eleitora-a-a-rbitra-de-futebol/451775. Acesso em junho de 2020.

[11] Vida Sportiva, Rio de Janeiro, p. 7, 8 jun. 1918.

Referências

BONFIM, Aira Fernandes. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915–1941). 2019, Dissertação — Mestrado em História, Política e Bens Culturais, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Rio de janeiro, 2019.

DOBLE, Anna. The Secrety History of woman’s football. In: Newsbeat. 19/07/2017. http://www.bbc.co.uk/newsbeat/article/40654436/the-secret-history-of-womens-football. Acesso em 23/01/2019.

WILLIAMS, Jean; HESS, Rob. “Women, Football and History: International Perspectives.” The International Journal of the History of Sport. Vol. 32, Iss. 18, 2015.


Histórias do esporte e das práticas corporais em Rubem Fonseca (parte 2)

26/04/2020
Por Fabio Peres

Em A grande arte (1983), romance de Rubem Fonseca, o protagonista-narrador Mandrake nos conta que:

[…] lembrava do primeiro dia: uma noite, ia passando pela avenida Ataulfo de Paiva e vi as janelas iluminadas de uma academia de ginástica. Desde os tempos de Eva Cavalcanti Meier eu ficara fascinado pelas mulheres que faziam ginástica. Mas essa era outra história. Na academia várias mulheres corriam em fila, ao som de música que não se ouvia da calçada. A frente, de malha preta, uma mulher alta e magra, de pernas longas e fortes, o pescoço meio curvado, movimentava-se sem esforço. Esperei a aula acabar e ela sair. Abordei-a na rua. “Estava vendo você fazer ginástica. Parecia um cavalo num quadro de Ucello”, eu disse. “Eu sei quem é Ucello”, ela disse, “da Uffizi”. Não era o da Uffizi era o do Louvre, o negro do centro, com as patas levantadas, mordendo os freios, o focinho torcido para a esquerda. Ela não falava com estranhos, mas meu rosto inspirava confiança a todas as mulheres do mundo. Além disso, era a primeira vez que alguém lhe dizia que ela parecia um cavalo (grifos nossos).

Em um post anterior, defendi que talvez poderíamos usar o adjetivo esportivo para qualificar a literatura de Rubem Fonseca, escritor recém falecido no último dia 15.

O argumento – na época de publicação do post – era que, não apenas o fenômeno esportivo esteve frequentemente presente desde os seus primeiros escritos, como também as diferentes narrativas para representar as práticas esportivas e corporais  eram impregnadas de temporalidades e espacialidades que lhe conferiam uma, por assim dizer, consciência histórica.

A Batalha de San Romano (c. 1435 a 1440). Paolo Uccello. Museu do Louvre (Paris, França). Obra mencionada em A Grande Arte (FONSECA, 1983), na qual a ginástica realizada por uma personagem é comparada ao cavalo negro representda no centro do quadro.

Ao defender a possibilidade de tratar a literatura de Fonseca como objeto ou fonte histórica, a provocação era uma forma de perturbar os limites e as fronteiras do campo da História do Esporte; uma maneira de nos ajudar a entrever histórias justapostas e entrecruzadas à prática esportiva: histórias “do corpo, de gênero, da cidade, de classe, da discriminação racial, da homofobia”, entre tantas outras, que a obra fonsequina é capaz de revelar.

Se as histórias são mais ou menos conservadoras ou críticas, lineares ou complexas, ambíguas ou unívocas, sem nuances, é algo que a História do Esporte ainda precisa melhor investigar. Constitui um duplo e intrincado desafio de reconstruir o universo do autor, historicamente situado, e o “mundo” que o texto procura expressar.

Como forma de homenagear o “realismo feroz” de sua obra, como definiu Antonio Candido (1989, p.210), e sua literatura esportiva, reproduzo a seguir o conto O desempenho, publicado em 1969 no livro Lúcia McCartney, no qual uma luta de Vale-tudo é narrada em primeira pessoa.

Clique na imagem para acessar O desempenho (1969).

Sem dúvida, a “vida pregressa como boxeador, jogador de basquete, atleta aquático (chegou a nadar três vezes por semana do Morro da Viúva à Praça 15)” de Rubem Fonseca – como relata seu amigo, jornalista, também escritor, Sergio Augusto (2020) – ajuda a entender a presença e a estética atribuída a tais práticas em suas obras. Mas essa história ficará para um próximo post.

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AUGUSTO, Sérgio. Zé Rubem. Estado de S. Paulo. Especial, H8, 25 de abril de 2020.

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. Rio de Janeiro: Ática, 1989.


Em defesa de arquibancadas mais plurais: rememorando a Coligay

17/02/2020

Luiza Aguiar dos Anjos (IFMG – Campus Formiga)

No dia 27 de março de 1977, o Grêmio fez sua estreia na 57ª edição do Campeonato Gaúcho de Futebol. O clube iniciava sua caminhada no torneio com a esperança de acabar com um longo período sem títulos, assim como interromper a série de conquistas estaduais do rival Internacional, que vinha de uma sequência de oito taças consecutivas, sagrando-se campeão anualmente desde 1969. Para agravar o incômodo gremista com o sucesso do principal adversário, a equipe colorada não se impunha apenas em seara local, tendo sido bicampeã nacional ao conquistar a Copa Brasil de 1975 e de 1976.

Ao longo da competição, os dois maiores times do estado fizeram o que se esperava deles: superaram os demais e decidiriam entre si quem seria o campeão estadual daquele ano.

O jogo derradeiro foi disputado no Estádio Olímpico. Em casa, em frente à sua torcida, era que o Grêmio buscaria encerrar aquele infeliz jejum de títulos.

O teor dramático da partida começou quando, aos 22 minutos de jogo, foi marcado um pênalti a favor do Grêmio. O atacante Tarciso, batedor oficial do time e com boa média de acertos, mandou uma bomba à esquerda do goleiro colorado, mantendo o empate sem gols. Mas não tardou para o placar ser inaugurado. Em um embate de ânimos cada vez mais exaltados, aos 42 minutos, ainda no primeiro tempo de jogo, o atacante André Catimba fez a festa dxs[1] gremistas. O momento tornou-se ainda mais memorável com a comemoração. O jogador tentou um salto mortal, mas interrompeu o movimento no meio do caminho, ao sentir uma distensão muscular, caindo de forma completamente desajeitada. Com a aproximação do fim da partida, a torcida tricolor não conteve a comemoração, pulando das arquibancadas e ocupando o campo. Trinta minutos passados da invasão, sem condições de retomar o jogo, o árbitro declarou seu encerramento. Após oito anos, o Grêmio voltava a levantar a taça de campeão estadual.

Em meio ao furor dessa conquista, na edição do dia seguinte à partida, o jornal Zero Hora – periódico mais popular do Rio Grande do Sul – reservou uma página inteira para tratar da história da constituição de uma nova torcida gremista que, desde o início do Campeonato Gaúcho, chamava a atenção dxs frequentadorxs do Estádio Olímpico: a Coligay.

Recorte da reportagem da Zero Hora sobre a Coligay (26/09/1977)

Como o nome indica, essa torcida era formada predominantemente por homens homossexuais, o que já parece ser motivo de surpresa e curiosidade no contexto futebolístico brasileiro, no qual a heterossexualidade, mais do que tomada como norma, é enfatizada como valor. Contudo, tal agrupamento fez-se notório não (apenas) porque explicitava a homossexualidade de seus integrantes em sua retórica, mas, sobretudo, porque fazia de tal identidade sexual o norteador de sua performance estética nas arquibancadas: trajavam longas batas com as cores do Grêmio, cada uma delas com uma letra na frente que formava o nome do clube, complementadas por “rebolados frenéticos e gritinhos um tanto histéricos” (TORCIDA…, 1977, p.42).

Coligay fazendo sua festa no estádio Olímpico

A Coligay surgiu da iniciativa do empresário gremista Volmar Santos. Ele teve a ideia, liderou a mobilização e realizou as articulações financeiras e logísticas necessárias para efetivar sua formação. Volmar era proprietário da boate gay Coliseu e foram seus frequentadores quem ele convidou para fundar a torcida. A boate acabou servindo como sede. Xs componentes iam ao Coliseu no sábado, viravam a madrugada, e, na manhã seguinte, ali mesmo, pegavam seus apetrechos ali armazenados, se organizavam e seguiam para o estádio em que o Grêmio fosse jogar.

Num primeiro momento, o gremismo da torcida foi questionado, mas sua animação e assiduidade fizeram com que conquistassem o reconhecimento dx torcedorxs, jogadores e dirigentes. Prova disso é que a Coligay se manteve em atividade nos estádios até os primeiros anos da década de 1980.

Existindo durante os violentos tempos de ditadura militar, se esquivaram da repressão governamental ao não se envolver com a militância política e por possuir entre seus integrantes ou apoiadores “gente importante”, segundo o líder Volmar (FONSECA, 1977). Também não buscaram compor uma militância homossexual mais ampla ou organizada – o que também poderia fazer deles alvos do policiamento. Baseavam sua atuação na festa. O que não é pouco.

É inegável que o estádio de futebol privilegia um tipo bastante específico de masculinidade, associada, sobretudo, à virilidade e à agressividade, traços também enfatizados na cultura gaúcha. A reafirmação desses valores perpassa com frequência pela definição e representação dos homossexuais como a antítese desse modelo de masculinidade, o que os legitimou como alvos históricos da violência verbal e, por vezes, física de torcedorxs de futebol. A Coligay acaba por desarticular a expectativa de desencaixe e inadequação de homens homossexuais ao espaço futebolístico, sem que ela tenha se mostrado uma torcida “igual às outras”. Ela compactuou com códigos do futebol, se dispondo ao confronto físico e verbal, empunhando bandeiras e apoiando intensamente a sua equipe. Por outro lado, impôs seus requebros, suas vestimentas espalhafatosas, seu linguajar debochado e provocativo.

Nos últimos anos, a participação de sujeitos LGBT+s nos esportes, e mais especificamente no futebol, tem se tornado um tópico de análise e discussão. Torcidas, jogadorxs, clubes e federações, que durante décadas ignoraram a existência de tais sujeitos – e mesmo contribuíram com sua invisibilidade – têm sido convocados a responder e agir sobre alguns dos processos que xs mantém à margem, com destaque para as manifestações homofóbicas, mas não apenas. A mídia tem contribuído com isso ao tratar esses temas de forma mais frequente e crítica.

Nesse processo, a Coligay tem sido relembrada, após algumas décadas de esquecimento (ou ocultação). Sem supor uma idealização dessa torcida, acredito que ela nos ajuda a perceber que outras experiências de torcer, mais plurais, são possíveis.

 

Referências

FONSECA, Divino. Para o que der e vier. Placar, n.370, p.48-50, 27 mai. 1977.

TORCIDA: Coligay: história e pedágio da vitória. Zero Hora, Porto Alegre, p.42, 26 set. 1977.

 

Para saber mais:

Esse texto foi elaborado a partir da minha Tese de Doutorado, abaixo identificada. Nesse ano, publicarei um livro baseado nessa pesquisa, com acréscimos e adaptações. A obra, lançada pela Editora Dolores, será intitulada “Plumas, arquibancadas e paetês: uma história da Coligay”.

ANJOS, Luiza Aguiar dos. De “São bichas, mas são nossas” à “Diversidade da alegria”: uma história da torcida Coligay. 2018. 388f. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) – Faculdade de Educação Física, Fisioterapia e Dança, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.

[1] Utilizo o “x” com o intuito de adotar uma linguagem não-binária. A escolha visa descaracterizar a ideia de que as palavras são masculinas ou femininas, assim como a utilização do masculino como referência. Ao usar o “x” busco contemplar igualmente homens, mulheres e aqueles e aquelas que fogem da norma binária. Especificamente nos momentos em que for tratar de agrupamentos que possuem exclusivamente pessoas identificadas como homens mantenho o uso do masculino.


“Um arco-íris multicultural de sotaques e cores de pele”: a diversão no Campeonato Mundial de Surfe Amador de 1988

19/01/2020

Por Rafael Fortes (rafael.soares@unirio.br)

O Campeonato Mundial de Surfe Amador realizado em 1988 em Porto Rico é frequentemente apontado por jornalistas, surfistas e memorialistas como um marco na trajetória brasileira no âmbito competitivo internacional. Isto porque o brasileiro Fabio Gouveia sagrou-se campeão da categoria Open, a de maior destaque (o mundial amador é uma competição por equipes e este aspecto costumava receber pouco destaque na imprensa brasileira, mas esta é outra história). Um título inédito, tanto entre os campeonatos da primeira era (1964 até 1972, sendo o de 68 também em Porto Rico) quanto aqueles realizados a partir de 1978, organizados pela International Surfing Association (ISA), fundada em 1976.

Enquanto nas revistas de surfe brasileiras a cobertura enfatizou a vitória do atleta conterrâneo, em publicações internacionais a ênfase foi – como era de se esperar – distinta (ainda que Surfing tenha mencionado mais de uma vez o título do brasileiro, inclusive dedicando a ele uma coluna de um terço de página assinada por Sam George). Neste texto, trato de uma reportagem específica, assinada por Mitch Varnes em Surfing, publicação com sede em San Clemente (Califórnia) e circulação nos EUA e em diversos países, inclusive o Brasil. A edição de 1988 do Campeonato Mundial de Surfe Amador recebeu um grande destaque. A matéria de Varnes ocupou nove páginas. Entre os possíveis motivos, penso na condição de Porto Rico (até certo ponto parte dos Estados Unidos), a proximidade (menor gasto com passagens) e a grandiosidade do evento, que contou com patrocínio de diversas empresas dos EUA.

No geral, as matérias com cobertura dos campeonatos de fato destacavam mais a disputa por equipes (fruto do total de pontos obtidos nas categorias disputadas por indivíduos). Isto também ocorreu com a reportagem em questão. Interessa-me, aqui, destacar a grandiosidade e o caráter festivo atribuídos ao evento. A começar pelo título: “O Maior Espetáculo da Terra”. A reportagem destacou que o campeonato foi realizado em três locais do “Havaí do Atlântico”, ocupou duas semanas do mês de fevereiro e atraiu um público porto-riquenho grande e entusiasmado. Vinte e seis países foram representados por quase 400 surfistas – dois recordes. Entre eles “inscrições supreendentes vieram de países como Israel, Itália, Noruega e Alemanha Ocidental”. Houve numerosos elogios aos esforços e competência dos porto-riquenhos na organização – um contraste nítido com as críticas ao campeonato de 1984, na Califórnia.

A ampla maioria dos participantes não tinha possibilidades de título (algo muito frequente em competições esportivas, mas raramente abordado na cobertura midiática), então importou-se mais em jogar sinuca e se divertir no “Ala Mar, um popular point noturno frequentado por competidores menos preocupados ou por aqueles já eliminados. Dançando noite afora no clima tropical, as multidões de surfistas formavam um arco-íris multicultural de sotaques e cores de pele”.

As festas parecem ter sido ótimas. Uma foto mostra jovens à noite num bar/casa noturna, com a legenda: “a equipe venezuelana experimenta um pouco da hospitalidade local”. Vários na imagem seguram latas de Budweiser, cerveja patrocinadora do campeonato. Os competidores ficaram hospedados numa base militar desativada dos EUA – em uma das noites, os Ramones fizeram um show exclusivo para os participantes.

Já o chefe da delegação dos Estados Unidos estabeleceu um toque de recolher para seus subordinados. Por ocasião do “show de talentos especial” das delegações, “a ausência” dos atletas daquele país foi “mais notável”. Para completar, o chefe da delegação apresentou uma reclamação formal à organização, argumentando, segundo a reportagem, que tal evento noturno “mantinha seus surfistas acordados até muito tarde, comprometendo desnecessariamente a seriedade da competição”. Em contraste, na referida noite,

“O resto do mundo se divertiu à beça. Sob a luz das estrelas e o conjunto de bandeiras nacionais esvoaçantes, os japoneses lutaram sumô; (…) os anfitriões porto-riquenhos e os visitantes taitianos compararam provocativos flamencos com vigorosas hulas. Foi uma noite rara e especial, e somente uma corajosa iniciativa de Bill McMillen, da Flórida, que subiu ao palco com sua solitária gaita e tocou algumas canções de blue-grass, salvou o tristemente desinteressado time dos Estados Unidos de um distanciamento cultural total.”

Após estes e outros parágrafos sobre o espírito de alegria e congraçamento que estes encontros de jovens proporcionam, a matéria se encerra citando o caso do representante da Noruega, praticante solitário nas águas geladas de seu país, mas “talvez o surfista mais satisfeito de todo o evento” por nele ter encontrado camaradagem e, durante “duas semanas loucas e ensolaradas (…), uma família” na comunidade do surfe.

Para saber mais

FORTES, Rafael. A cobertura do Campeonato Mundial Amador em Surfing (1978-1990). Contracampo, Niterói, v. 36, n. 2, p. 179-199, ago.-nov. 2017. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.22409/contracampo.v36i2.955>. (A version in English is available.)

Sobre o esporte em Porto Rico, ver os trabalhos do pesquisador Antonio Sotomayor, em especial o livro The Sovereign Colony: Olympic Sport, National Identity, and International Politics in Puerto Rico. Lincoln: University of Nebraska Press, 2016.


“Pintou o verão!”: surfe, skate e juventude na revista Pop (1972-1979)

23/09/2019

Por Leonardo Brandão (brandaoleonardo@uol.com.br)

No Brasil, durante a década de 1970, os esportes praticados à maneira californiana, principalmente o surfe e o skate, encontraram na revista Geração Pop – chamada somente como Pop a partir de sua edição de número 32 – um dos seus principais meios de comunicação. Colorida e publicada com periodicidade mensal pela editora Abril entre novembro de 1972 e agosto de 1979, essa revista chegou a contar com 82 edições em seus quase sete anos de existência e atingir um considerável público leitor para a época, pois, de acordo com a declaração de sua editora, ela “vendia pelo menos 100 mil exemplares mensais” (MIRA, 2000, p. 154).

A Pop não foi uma revista específica sobre esporte, mas sim uma publicação que aliava a divulgação da música Pop (sobretudo o rock) com diversos temas considerados por ela como de interesse juvenil. Focada em rapazes e moças entre 14 e 20 anos, ela utilizava-se de inúmeras gírias existentes na época para elaborar um clima de maior proximidade com seus leitores e, com isso, gerar certa intimidade no momento da leitura.

A revista Pop teve uma influência muito grande em determinados segmentos juvenis; pois por viverem numa época onde não havia Internet e, segundo entrevistas, num “clima de ditadura”, eles acabavam por ter pouco material disponível em termos de informação cultural. Além disso, foi através da Pop que muitos jovens, durante a metade da década de 1970, conheceram algumas das tendências esportivas da juventude norte-americana, como o surfe, o skate, o bodyboard, entre outros (BRANDÃO, 2014).

Segundo a historiadora Denise Bernuzzi de Sant’Anna, embora a revista Pop tivesse na música sua ancoragem central, ela também passou a “atrair milhares de jovens da classe média e aproximá-los do mercado especializado na venda de novos acessórios e roupas para as atividades esportivas em expansão” (2005, p. 8). Na década de 1970, dentre essas “atividades esportivas em expansão”, encontravam-se de forma reticente nas páginas da revista Pop os esportes praticados à maneira californiana, sobretudo o surfe e o skate. De acordo com o pesquisador Luís Fernando Borges, o propósito dessa revista foi justamente o de buscar um contato com o público jovem, e para isso ela veiculava as últimas novidades surgidas no acelerado mundo da cultura juvenil, recheando suas páginas de artistas como “Elton John, Secos & Molhados, os últimos campeonatos de surf e skate” (2003, p. 07).

Podemos observar um bom exemplo neste sentido ao analisarmos a capa da edição de novembro de 1977 da revista Pop, a qual comemorava, em letras garrafais, que “PINTOU O VERÃO!”, estampando um jogo de imagens fotográficas que, composta tal como um mosaico, objetivava tanto traçar um painel do que se encontrava em seu interior  quanto capturar os olhares de quem passasse por uma banca de revistas: garotas de biquíni, jovens surfistas “entubando” uma onda, astros do rock descontraídos e sem camisa, manobras “de arrepiar” de skatistas em grandes tubos de concreto.

Figura 1: Revista Pop, editora Abril, nº 61, 1977.

A revista Pop se valia dos corpos magros e bronzeados como espetáculo aos olhos e desejos dos leitores. Como nos lembrou o historiador Georges Vigarello (2006, p. 171), trata-se de uma época em que já é possível percebermos um maior ritmo dado às expressões e aos movimentos, com sorrisos mais expansivos e corpos mais desnudos, aspectos esses acentuados pelos espaços de férias, praias e divertimentos. Nesta mesma direção, Sant’Anna (2010, p. 190) sugere que essas manifestações reforçavam “a voga da alegria juvenil”, exaltando a “libertação” do corpo.

O pesquisador ou a pesquisadora que se interessa pela história dos esportes praticados à maneira californiana, sobretudo a história do surfe e a do skate, encontrará nessa revista uma série de elementos convidativos à reflexão. Pelo fato de Pop ter sido a primeira publicação impressa no Brasil dedicada exclusivamente à juventude e pela quantidade considerável de edições publicadas durante a década de 1970, ela é, sem dúvida, uma fonte imprescindível para a compreensão dos esportes californianos e da condição juvenil na história recente.

Referências Bibliográficas

BRANDÃO, Leonardo. Para além do esporte: uma história do skate no Brasil. Blumenau: Edifurb, 2014.

BORGES, Luís Fernando Rabello. Mídia impressa brasileira e cultura juvenil: relações temporais entre presente, passado e futuro nas páginas da revista Pop. In: Anais do XXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, INTERCOM – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Minas Gerais, 2003, p. 1 – 14.

MIRA, Maria Celeste. O leitor e a banca de revistas: a segmentação da cultura no século XX. São Paulo: Olho d’Água/Fapesp, 2000.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Uma história da construção do direito à felicidade no Brasil. In: FREIRE FILHO, João (org.). Ser feliz hoje: reflexões sobre o imperativo da felicidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010, p. 181 – 193.

SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Representações sociais da liberdade e do controle de si. In Revista Histórica, São Paulo, v. 5, 2005, p. 1 – 17.

VIGARELLO, Georges. História da beleza: o corpo e a arte de se embelezar, do Renascimento aos dias de hoje. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.


Alfândega, noitadas e mercadorias de presente: uma breve passagem de surfistas sul-africanos pelo Rio de Janeiro

19/08/2019

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

A África do Sul tinha papel importante no cenário internacional do surfe na segunda metade dos anos 1970, tanto pela qualidade das ondas de seu território quanto pela participação de surfistas, dirigentes, juízes, empresários e/ou profissionais de mídia, entre outros, oriundos daquele país. Isto se dava concomitantemente ao crescente isolamento internacional do país, que incluía boicotes como forma de pressão contra os sucessivos governos devido à política de segregação racial conhecida como apartheid. Nos últimos anos, tenho me dedicado tanto a investigar o lugar peculiar do surfe em meio ao boicote esportivo internacional, como também às representações do Brasil e do Rio de Janeiro em revistas internacionais.

Um dos indícios de uma cultura e economia do surfe fortes em um determinado país nos anos 1970 e 1980 é a existência de publicações especializadas, sobretudo revistas. Criada em 1976 na cidade de Durban e ainda em circulação, Zigzag é a mais longeva e provavelmente a mais importante revista de surfe da África do Sul. A edição de junho-agosto (a periodicidade era então trimestral) de 1979 trouxe matéria a respeito de uma viagem realizada por três surfistas às Américas. Os sul-africanos – um deles, autor do texto – viajaram para Brasil, Peru e Canadá. Eis dois trechos:

“(…) passar pela alfândega no Rio de Janeiro (…) Medo de possivelmente passar horas tentando convencer um funcionário olhudo de que só tenho mercadorias para os pobres ratos de surfe brasileiros. Para minha surpresa, sou liberado após dar ao cavalheiro um exemplar de ZigZag – ele ficou amarradão. A animação de Rico ao ver um funcionário da alfândega de fato sorrindo foi contagiante. Os dias que se seguiram são selvagens com noites loucas e gente amigável vivendo apenas o agora. Rico e sua bela mulher Bia quase me convencem a ficar para o Carnaval, mas o chamado da minha próxima parada é grande demais. 1980 será meu ano de carnaval! (…)

Em verdadeiro estilo sul-americano, um voo de seis horas leva 12 para chegar a Lima após o piloto decidir que precisa de algumas horas de pausa para um lanche e faz uma escala imprevista em São Paulo.” (LARMONT, Mike. The Snow Boogie. Zigzag, jun.-ago. 1979. Tradução minha. Abaixo, a primeira página do texto.)

Gostaria de abordar brevemente quatro pontos no trecho citado. Primeiro, as referências à passagem pelo controle alfandegário na entrada em território brasileiro, ocorrida no aeroporto internacional do Galeão, no Rio de Janeiro. Larmont afirma que estava receoso quanto ao trato que receberia por parte dos funcionários responsáveis pela revista de bagagens e a como classificariam os objetos que trazia – segundo ele, agrados para presentear surfistas brasileiros. Relata ainda ter sido um exemplar da própria Zigzag o argumento final que permitiu o desenrolo (como se diria na linguagem corrente das quebradas cariocas) com o trabalhador da alfândega. Seria este um servidor público da Receita Federal? Acredito que sim, embora não seja possível afirmar ao certo. Seria ele um adepto do surfe ou, ao menos, um interessado na modalidade? Também é difícil dizer, mas parece que o exemplar da publicação despertou interesse no servidor, talvez por gosto pessoal, talvez por configurar um item raro a ser dado de presente a uma pessoa querida. Haveria, além dos números de Zigzag, outros itens/mercadorias trazidos como presente na bagagem? A partir do próprio texto não é possível responder.

Segundo, a recepção por parte de Rico de Souza, surfista com grande circulação e contatos internacionais no período. Acredito que as relações de amizade, acolhimento e/ou reciprocidade estabelecidas entre adeptos de diferentes países foram importantes, tanto para reduzir os altos custos envolvidos nas viagens (ficar na casa de conhecidos eliminava os custos de hospedagem e, em alguma medida, de traslados e alimentação), ajudando a viabilizá-las, quanto por facilitarem o acesso a informações (como condições do mar em diferentes praias) e os trâmites do dia-a-dia (facilita muito a vida do viajante, especialmente o monoglota, estar acompanhado de alguém com conhecimento de hábitos e idioma locais). Esta questão, que tem aparecido em diferentes fontes em minhas pesquisas, ainda não foi explorada pelos estudos históricos sobre o surfe – ao menos aqueles publicados em inglês, espanhol ou português.

Terceiro, algumas das menções ao Brasil e aos brasileiros. O autor destaca a beleza de uma mulher (a anfitriã), usa a palavra selvagem para adjetivar as noitadas (o termo também aparece com frequência nas caracterizações da África do Sul feitas por estrangeiros – brasileiros, inclusive) acompanhadas de “gente amigável” que vivia apenas o presente. As intensas atividades de lazer e o estímulo dos anfitriões quase levam o viajante mudar os planos e esticar a estada para incluir o período do Carnaval.

Por fim, a decisão do piloto de realizar uma escala imprevista durante o voo Rio de Janeiro-Lima é classificada como parte de um “verdadeiro estilo sul-americano” – a ver se tal categorização aparecerá em outras edições quando se menciona o Brasil e demais países do continente. Os sul-africanos seguiram viagem rumo a terras peruanas e, posteriormente, da América do Norte, onde os meses iniciais do ano correspondem ao inverno. No Canadá, como se pode notar nas fotos que ilustram a página, os sul-africanos praticaram esqui e snowboard. Era muito comum, na época, que os adeptos de uma modalidade dedicassem parte relevante do seu tempo a outras. No caso do surfe, aqueles com acesso a áreas com neve (como alguns estadunidenses e franceses, por exemplo), costumavam praticar esportes de inverno durante férias, feriados e períodos com pouca oferta de boas ondas. Esse intercâmbio de modalidades é um aspecto ainda pouco explorado nas pesquisas sobre a história do esporte que situam seu recorte na segunda metade do século XX – talvez nos levando a acreditar numa excessiva especialização que não correspondia à experiência concreta do adepto comum, e quiçá tampouco de vários atletas de ponta no âmbito competitivo mais comercial/profissional.

Para saber mais

Conferir os trabalhos do historiador Glen Thompson, incluindo sua tese de doutorado Surfing, Gender and Politics: Identity and Society in the History of South African Surfing Culture in the Twentieth-Century, defendida em 2015 na Stellenbosch University. Agradeço a ele por me facilitar a consulta de seu acervo pessoal de revistas sul-africanas, entre as quais a edição mencionada neste texto.

Uma coleção de capas escaneadas de Zigzag está disponível no site de Al Hunt.

A pesquisa que deu origem a este post tem apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), por meio do edital Jovem Cientista do Nosso Estado (2017).


A invenção do skate vertical

22/04/2019

Por Leonardo Brandão

Como surgiu o skate vertical? Esse que é praticado em rampas no formato de “U”? Uma explicação relevante acerca de seu surgimento pode ser conferida no vídeo-documentário Dogtown and Z-Boys, dirigido por Stacy Peralta e lançado no ano de 2001. Esse filme traz imagens raras sobre o início da prática do skate nos EUA, enfatizando uma equipe de skatistas norte-americana conhecida como Z-Boys, exibindo suas primeiras manobras e espaços percorridos.

A equipe Z-Boys, abreviatura de Zephyr (uma loja montada para surfe e skate), era composta de doze pessoas, surfistas na sua origem, mas que acabaram fazendo do skate sua prática principal. Com exceção de um, Chris Cahill, todos os demais foram localizados pelo produtor do documentário, o norte-americano Stacy Peralta, o qual também fazia parte dessa equipe de skatistas. A única mulher do grupo era a skatista Peggy Oky. Compunham o restante da equipe os skatistas Shogo Kubo, Bob Biniak, Nathan Pratt, Jim Muir, Allen Sarlo, Tony Alva, Paul Constantineau, Jay Adams e Wentzle Ruml.

Stacy Peralta, ex-skatista profissional e atual diretor de documentários, conseguiu reencontrar praticamente todos esses skatistas da década de 1970, os quais tomaram caminhos díspares na vida, e desde o final da referida época não tinham mais se encontrado. Hoje eles são empresários, a maioria casada e alguns ainda praticam o skate regularmente. Através de entrevistas, conversas e depoimentos, Stacy Peralta foi estruturando seu documentário, fazendo da atual memória desses skatistas o fio condutor de sua história.

A explicação sobre o surgimento do skate vertical aparece na parte final deste documentário. Sabemos que, dentre as modalidades existentes atualmente na prática do skate, a de maior popularidade junto ao grande público é o skate vertical. Constantemente exibido pelos canais televisivos, muitas vezes em campeonatos “Ao Vivo”, como os transmitidos pelo programa Esporte Espetacular da Rede Globo, o skate vertical se caracteriza por ser uma modalidade onde o skate é praticado em grandes rampas de madeira ou cimento, com aproximadamente quatro metros de altura e denominadas “half-pipe” (“meio tubo” em português) ou em pistas com rampas no formato de uma bacia “bowl”. Nessas rampas, que podem ser representadas pela letra “U”, os skatistas executam inúmeras manobras, mas as que normalmente mais chamam a atenção são os saltos, chamados de aéreos, onde tanto o skate quanto o corpo do skatista permanecem no ar por alguns segundos até retornarem novamente o contato com a rampa.

De acordo como o vídeo-documentário Dogtown and Z-Boys, o surgimento do skate vertical foi possível após a conjugação de dois fatores: de um lado, houve a apropriação dos movimentos do surfe na prática do skate, e, de outro, ocorreu uma grande seca no Estado da Califórnia em meados de 1970.

Segundo relatam os depoentes desse filme, “a prefeitura não permitia molhar o jardim e nem se podia servir água em restaurante, então, o que aconteceu, foi que todas as piscinas abundantes no sul da Califórnia estavam secando”. Por isso: “a seca da Califórnia atuou como parteira da revolução do skate, enquanto centenas de piscinas de Los Angeles foram deixadas vazias e sem uso”.

O aspecto pitoresco dessa história encontra-se na arquitetura das piscinas californianas, pois elas não se assemelham com as encontradas no Brasil. Aqui as piscinas são quadradas, retangulares, com as paredes retas, as quais formam um ângulo de 90º graus com o solo. Na Califórnia, as piscinas exibidas no filme possuíam um formato oval, redondo. As paredes dessas piscinas continham transições, que lembravam as ondas do mar, com ondulações simétricas e perfeitas. Foi essa “rampa” nas paredes das piscinas californianas, somada à habilidade e à técnica dos skatistas de Dogtown, sobretudo os da equipe Z-Boys, que forneceram às piscinas vazias uma outra utilidade nunca antes pensada: elas viraram as primeiras pistas de skate vertical.

De acordo com o filme, foram esses skatistas que, ao praticarem skate em piscinas vazias revolucionaram essa atividade, apontando para horizontes nunca antes imaginados, e tornando possível, anos depois, a montagem de rampas verticais (half-pipes) que passariam a imitar as paredes inclinadas das piscinas californianas. Segundo os membros da equipe Zephyr, eles foram os primeiros a andarem em piscinas vazias, e nem imaginavam o que era possível fazer. Em seus relatos, eles dizem:

A primeira meta no primeiro dia foi passar acima da lâmpada (que fica na parede inclinada da piscina). Depois começamos com arcos duplos (andar com dois skatistas de uma só vez), chegando ao ladrilho da piscina dos dois lados. A meta era chegar à beirada, bater a roda na beirada.

Tony Alva, considerado um dos mais habilidosos skatistas da equipe, lembra o fato de que só foi possível realizarem tal feito por terem sido, antes de skatistas, surfistas. Pois os mesmos movimentos que faziam com suas pranchas na onda do mar, eram os necessários para subirem com seus skates nas paredes curvas das piscinas. Segundo seu relato: “era completamente fora dos padrões, mental e fisicamente. Mas, por sermos surfistas sabíamos os movimentos necessários, só não sabíamos se eram possíveis”. Ainda de acordo com Alva, o pioneirismo da equipe Z-Boys foi algo marcante na exploração desse novo terreno. Para ele, “definitivamente fomos os primeiros a andar numa piscina”, e finaliza lembrando: “é preciso entender que o que fazíamos nunca havia sido feito, aquilo simplesmente não existia”.

Figura 1: Uso do skate nas ondulações de uma piscina na Califórnia no início da década de 1970. Fonte: Imagem do filme Dogtown and Z-boys.

O que os Z-boys chamavam de andar “com o eixo baixo”, ou seja, com o corpo mais abaixado, tal como faziam nas ondas, forneceu a eles a possibilidade de executarem manobras diferenciadas e em lugares até então inusitados, como nas ondulações das piscinas. Eles, enquanto surfistas, transportaram seus movimentos para o skate. Não se trata de skatistas que se espelharam em surfistas, mas de surfistas que se fizeram skatistas.

Na invenção cultural de utilizar piscinas vazias como lugares possíveis de se praticar skate, houve tanto uma representação quanto uma apropriação. Representação porque a piscina passou a ser vista não como um tanque de água para banhos e mergulhos, mas sim como um lugar de exercícios físicos e acrobáticos para o skate. Mudaram-se, pois, os sentidos, as representações. Deste modo, a invenção do skate vertical se deu por meio de práticas de reutilização, efetivando as representações como apropriações. A piscina foi, mais do que pensada de uma forma diferente do usual, experimentada em sua concretude. Os skatistas não só a significaram de um modo diferente, mas também a utilizaram com outras finalidades.

Para saber mais:

Dogtown and Z-Boys. Ficha Técnica: Título Original: Dogtown and Z-Boys. Gênero: Documentário. Tempo de Duração: 87 minutos. Ano de Lançamento (EUA): 2001. Site Oficial: http://www.dogtownmovie.com. Estúdio: Agi Orsi Productions / Vans Off the Wall. Distribuição: Sony Pictures Classics / Imagem Filmes. Direção: Stacy Peralta. Roteiro: Stacy Peralta e Craig Stecyk. Produção: Agi Orsi. Música: Paul Crowder e Terry Wilson. Fotografia: Peter Pilafian. Desenho de Produção: Craig Stecyk. Edição: Paul Crowder.

Referências

BRANDÃO, Leonardo. Para além do esporte: uma história do skate no Brasil. Blumenau: Edifurb, 2014.

BRANDÃO, Leonardo. Prazeres sobre pranchas: o lúdico e o corpo nos esportes californianos. In: Recorde: Revista de História do Esporte. Vol. 2, n. 2, dezembro de 2009, p. 1 – 29.