O AVANÇO DO SKATE FEMININO*

23/05/2022

Leonardo Brandão

Historiador e Professor Universitário

@leobrandao77

“Não se nasce mulher; torna-se mulher”. Esta frase pertence a escritora Simone de Beauvoir (1908 – 1986), a qual, através do livro intitulado “O Segundo Sexo”, lançado em 1949, contribuiu para questionar os lugares de sujeito que a sociedade patriarcal reservava para as mulheres, uma vez que a posição das mulheres na sociedade era (ainda é?) determinada por fatores culturais e sociais. A reflexão de Beauvoir exerceu forte influência no movimento feminista e, desde então, muitas conquistas foram obtidas.

Embora, nos últimos anos, estejamos vivendo no país uma espécie de retrocesso civilizatório, ainda assim, quando observamos o skate feminino, há motivos de sobra para nos orgulharmos. Rayssa Leal, Gabriela Mazetto, Yndiara Asp, Virgina Fortes, Pipa Souza, Priscila Morais, Esther Solano, Giovana Dias, Vitória Mendonça, Atali Mendes, Kemily Suiara, Pamela Rosa, Marina Gabriela, Vitória Bortolo, Karen Feitosa, Agatha Pinheiro, entre muitas outras, estão ora elevando o nível das manobras nas competições, ora manobrando em pistas e/ou filmando pelas ruas. Num Brasil que insiste em caminhar para trás, essa maior presença das mulheres no skate é um sinal de progresso.

E o que falar da História do Skate Feminino? Embora saibamos que, desde o início elas sempre estiveram sobre o carrinho, os estudos sobre este tema ainda são escassos. No Brasil, quem ajudou a preencher um pouco dessa lacuna foi a pesquisadora Márcia Luiza Figueira, estudiosa que produziu a primeira tese de doutorado específico sobre skate feminino, intitulado “Skate para meninas: modos de se fazer ver em um esporte em construção”, defendida em 2008 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Num capítulo publicado no livro “Skate & Skatistas: questões contemporâneas”, Márcia Figueira evidenciou algumas conquistas do skate feminino a partir da virada do milênio. Ela lembra que um passo importante no aumento de sua visibilidade foi dado pela revista CemporcentoSKATE em 2001, quando foi inaugurado o encarte 100%SkateGirl, no qual a skatista Giuliana Ricomini estreou a seção “ponto de vista”. No ano seguinte, em 2002, na segunda edição desse encarte, seu editorial explicava:

“Há muito que as meninas ambicionavam um espaço só seu na revista. Pediram, clamaram, reclamaram (e mais uma infinidade de outros verbos). Sobretudo elas ANDARAM de skate. Por isso CONSEGUIRAM […] insistiram em andar de skate, em acertar manobras, em correr campeonatos, em evoluir”.

As meninas (eu prefiro o termo mulheres) foram conquistando seus espaços nos veículos de mídia especializado. No ano de 2004, a extinta revista Tribo também passou a dedicar uma seção para elas, intitulado Lilith. Neste mesmo ano, segundo os estudos de Marcia Figueira, Alexandre Vianna, que na época presidia a Confederação Brasileira de Skate (CBSk), afirmou ser “legal ver as meninas se unindo na construção de um espaço e de uma identidade dentro do skate nacional”.

Um marco importante nessa batalha por visibilidade ocorreu em julho de 2006, época da simbólica publicação da centésima edição da revista CemporcentoSKATE. Nela, pela primeira vez, uma skatista aparecia na capa dessa revista. Tratava-se da skatista Eliana Sosco, com uma manobra (noseslide) descendo um corrimão de escadaria, fotografada por Renato Custódio.

Daí em diante muitas outras conquistas ocorreram, como a capa da Ligiane Xuxinha na edição de setembro de 2011 ou o sucesso internacional da skatista Letícia Bufoni, por exemplo. Mesmo no universo acadêmico, surgiram mais mulheres pesquisando a prática do skate. Em 2014, Allana Joyce Scopel defendeu na UFMG a dissertação de Mestrado “A apropriação do Parque da Juventude pelos Skatistas”; e em 2016, na FURG, Juliana Cotting Teixeira defendeu a dissertação “Cenas Urbanas: skatistas, ocupação da cidade e produção de subjetividades”.

Além disso, muitas crews de skate feminino surgiram, como as Pantaneiras Skate Girls na cidade de Campo Grande/MS (encabeçado pela skatista Edduarda Grego) ou as Batateiras, em São Paulo, que surgiram com o intuito de incentivar e fomentar o skate feminino. As Batateiras, inclusive, figuraram no documentário Skate Le Monde, produzido para a televisão francesa TV5 Monde[1].

A história do skate feminino é rica e merece muito mais investigação e registro. As primeiras praticantes, a luta por visibilidade, o preconceito, a corporalidade, questões de gênero, etnia e tantos outros enfoques são possíveis. O trabalho de Marcia Figueira foi pioneiro ao desbravar o assunto, mas outros estudos podem ser feitos. E aí, você skatista que está fazendo ou pretende fazer uma faculdade? Que tal este tema para um Trabalho de Conclusão de Curso? Pois, afinal, vamos combinar que o universo do skate ficou muito mais interessante com a presença das mulheres!

* Este post é uma versão levemente modificada do texto “Sim, elas podem!”, publicado na edição impressa da revista CemporcentoSKATE, edição n. 220, de out/nov de 2021.

[1] O episódio pode ser visto em: https://www.tv5unis.ca/videos/skate-le-monde/saisons/1/episodes/9

 


Um filme: Fútbol Violencia S.A. (*)

17/05/2021

Por Rafael Fortes (rafael.soares@unirio.br)

Fútbol Violencia S.A. é um documentário de 2009-10 de Pablo Tesoriere,  diretor e fotógrafo de nacionalidade argentina. Ele dirigiu, entre outros, Puerta 12 (que resenhei) sobre a confusão que matou mais de 70 pessoas num River x Boca no Estádio Monumental de Núñez.

Por que a violência no futebol? Por que tanta violência nos estádios argentinos? O futebol é um espelho do mundo? Essas são algumas das questões propostas ao se iniciar a obra. À última pergunta, o escritor Eduardo Galeano responde, de cara, “sim”: a violência faz parte do mundo, portanto, também integra o futebol. Durante quase duas horas, o mosaico de falas combina esta visão do futebol como reflexo da sociedade (e/ou como uma espécie de microcosmo) com o apontamento de elementos de especificidade que esta modalidade esportiva e a experiência concreta de frequentar seus estádios guardam naquele país: masculinidade / heterossexualidade / heteronormatividade, péssimos serviços, violência e hostilidade policial e institucional etc. Sempre considero importante destacar que, do ponto de vista histórico, inexistem características intrínsecas a qualquer modalidade esportiva – todas resultam do processo histórico de atribuição de valores pelas sociedades e indivíduos.

Abaixo está o trailer. Buscando pelo título, é possível encontrar o filme inteiro na mesma plataforma.

O documentário é sobre a violência no futebol, torcidas organizadas (barras bravas), crime e política. Vários entrevistados tratam os membros de torcidas organizadas do país como “militantes profissionais” ou “gente que vive do futebol”. Fala-se bastante sobre o dinheiro envolvido nas atividades, e que circula tanto em torno das partidas (obtenção e vendas de ingressos e drogas; traslados e demais custos para comparecer a jogos em casa e fora), quanto da administração dos clubes (patrocínio, transações de jogadores, categorias de base, contratos de prestação de serviços etc.). As barras bravas costumam ser fundamentais nas relações de poder clubísticas e decisivas nas eleições de diretoria. Não raro, o alcance do futebol e destas relações se integra ao âmbito político-partidário. (Embora o documentário não mencione seu nome – salvo engano meu -, Mauricio Macri presidiu o Boca Juniors entre 1995 e 2008. Em 2005, foi eleito deputado federal. Em 2007 e 2011, prefeito de Buenos Aires. Presidiu a República Argentina de 2015 a 2019.)

A maior parte das imagens que aparecem datadas – em especial vídeos de brigas nas arquibancadas e gramados – são de 2005-6. Há também gravações de protestos e passeatas de torcedores de clubes – neste caso, de 2007 a 2009, período de produção do próprio filme.

Fotos de arquivo retratam episódios passados – muitas delas em preto e branco, quando de décadas anteriores à de 1990. São matérias de jornais diários sobre os crimes e fotos pessoais – de acervos familiares – das vítimas fatais da violência.

A produção do filme realizou muitas entrevistas, gravadas com diferentes enquadramentos de câmera. Elas dão voz a torcedores, empresários, advogados, autoridades do estado (políticos/ex-políticos do Executivo e Legislativo, juízes), um psicólogo da polícia, um pesquisador (o onipresente Pablo Alabarces), familiares de jovens assassinados por torcedores, dirigentes/ex-dirigentes de clubes e jornalistas, muitos jornalistas. Somam-se depoimentos na saída de audiências dos processos criminais sobre a morte de torcedores e a gravação de reuniões envolvendo diferentes atores sociais para tratar de problemas de clubes, como o Talleres de Córdoba. Esse conjunto de imagens parece ter sido produzido e gravado especialmente para o filme.

Há um tanto de imagens repetidas (inclusive uma em que aparece um torcedor com uma camisa do Flamengo numa confusão dentro de um campo).

O filme permite considerar as variáveis que dizem respeito aos modos ou estilos de torcer, que vem sendo abordados por pesquisadores do futebol. Cantar, pular e agitar os braços são hábitos – não necessária nem essencialmente agressivos – de aficionados argentinos em modalidades esportivas distintas. Caso tenha dúvida, recomendo assistir a este vídeo da final da Copa Davis de 2016, em… Zagreb, na Croácia. Ou às imagens, no próprio Fútbol Violencia S.A., de jovens e sorridentes torcedores do Rosario Central num protesto de 2007.

O filme mostra confusões e brigas envolvendo a torcida de dezenas de times diferentes: o problema é geral. Há imagens de arquivo impressionantes. Impressionantes, mas não estranhas para quem está habituado a frequentar estádios brasileiros nos últimos 30 anos, ao menos. (Narrei memórias afins neste texto em que trato do livro Entre os vândalos).

Já estive em partidas de primeira, segunda e terceira divisões em diferentes estádios de Buenos Aires. Vi confusões e brigas a poucos metros de distância em duas ocasiões. A mais violenta delas, de longe, foi uma batalha campal na saída de um jogo de terceira divisão entre All Boys e Atlanta (há testemunhas: estava acompanhado de três colegas pesquisadores). Na “menos” violenta, Ariel, o argentino que acabara de encontrar na entrada do Nuevo Gasómetro (conheci o sujeito na véspera, dentro do metrô; ele me disse que veria o San Lorenzo no domingo e me convidou a ir) e fora gentilmente – sob meus protestos – tentar comprar ingresso com desconto com membros de uma torcida organizada, levou um soco na cara. A isso imediatamente se seguiu um choro do filho, de uns 8-10 anos, que tinha ficado sob meus cuidados e, compreensivelmente, se assustou ao ver o pai apanhar. “Papá peleó, Papá peleó”, gritava o menino, enquanto eu tentava acalmá-lo. O pai foi ao banheiro, lavou o rosto e veio nos encontrar como se nada tivesse acontecido. Dirigiu um “não foi nada” ao garoto, enquanto passava a mão na boca, ainda sangrando um pouco. Retorno ao filme.

Que fazer?

Segundo o documentário, a única providência tomada pela Associação do Futebol Argentino (AFA) fora a proibição de torcida visitante nos jogos. A AFA foi presidida por Julio Grondona por 35 anos, até 2014 – o dirigente estava no cargo durante o período de produção do filme, portanto. O que se convencionou chamar no Brasil de torcida única é uma das medidas “fáceis” de serem tomadas quando o objetivo é fingir que se está fazendo algo, mas não se quer enfrentar o problema. Outra é a perda de pontos – advogada inclusive por alguns pesquisadores do esporte, às vezes sob o pseudo-argumento de que “algo precisa ser feito” -, defendida e aplicada pelos mesmos dirigentes (no Brasil, na Argentina, na Espanha) que são parte crucial e estrutural  do problema.

A polícia frequentemente aparece como parte do problema, e não da solução. Os entrevistados apontam a corrupção estrutural como a principal questão, mas há quem aborde as péssimas condições de trabalho dos policiais, os salários baixos e a conduta muitas vezes violenta de alguns policiais.

A falta de investigações e de responsabilização pelas mortes e crimes correlatos no futebol (e no esporte) grassam na Argentina. Neste ponto, me parece, nada muito diferente do Brasil. Afinal, por aqui, até o Ministério Público Federal (celebrado por muitos por conta da Lava-Jato e outras operações), recusa-se terminantemente a utilizar a cooperação internacional e os documentos recebidos de procuradores e autoridades de países como Suíça e Estados Unidos para investigar dirigentes esportivos e seus corruptores (executivos e proprietários de empresas de comunicação, especialmente canais de televisão, detentores de direitos de exclusividade das transmissões; donos de agências de publicidade e de intermediação de contratos e negócios esportivos, como placas de publicidade fixa nos estádios) – conforme amplamente descrito, documentado e argumentado nas obras jornalísticas abaixo.

(*) Texto originalmente publicado no BELA – Blog Estudos do Lazer.

Sugestões de leitura

BUFORD, Bill. Entre os vândalos: a multidão e a sedução da violência. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 [1991].

JENNINGS, Andrew. Jogo sujo: o mundo secreto da Fifa: compra de votos e escândalo de ingressos. São Paulo: Panda Books, 2011.

RIBEIRO JR., Amaury; CIPOLONI, Leandro; AZENHA, Luiz Carlos; CHASTINET, Tony. O lado sujo do futebol. São Paulo: Planeta, 2014.


PESQUISA DE MESTRADO NA UFRJ IRÁ COMPARAR PICOS CLÁSSICOS EM SÃO PAULO/SP E RIO DE JANEIRO/RJ[1]

10/05/2021

Entrevista realizada por: Prof. Dr. Leonardo Brandão (FURB)

Instagram: leobrandao77


As pesquisas universitárias sobre skate no Brasil vem crescendo tanto em quantidade quanto em qualidade. Já são vários os Trabalhos de Conclusão de Curso (os famosos TCC’s) que abordam, sob diferentes ângulos, a prática e a cultura do skateboard. Algumas pesquisas avançam também na Pós-Graduação, com dissertações de Mestrado   e Teses de Doutorado. Neste âmbito, a mais recente pesquisa aprovada para se tornar uma dissertação de Mestrado vem do Rio de Janeiro/RJ, na pessoa do geógrafo e skatista Luciano Hermes (43 anos), que recentemente foi aprovado no Mestrado em História Comparada na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e com um projeto que visa comparar os processos de reivindicação da prática do skate em dois picos clássicos, o Vale do Anhangabaú em São Paulo (que agora é o Memorial) e a famosa Praça XV no Rio de Janeiro/RJ

Conversei um pouco com Luciano para conhecê-lo melhor e saber um pouco mais de seu projeto de pesquisa, seus objetivos e como ele pretende realizá-lo. A seguir, nosso bate-papo:

1 – Olá Luciano! Gostaria que você se apresentasse, contando um pouco sobre você, em especial sua trajetória na cena do skate e acadêmica.

Olá! Meu nome é Luciano Hermes da Silva. Tenho 43 anos e sou skatista desde 1989. Comecei a andar de skate no breve período de existência da Associação de Skate de São Gonçalo (ASSG). A primeira coisa que se reparava era que os próprios skatistas, em regime de mutirão, montavam rampas e trilhos para andarem de skate em uma rua de asfalto liso. A família de um dos skatistas não se incomodava com a sessão em frente de casa, como também deixava guardar na garagem os obstáculos. A ASSG organizou alguns campeonatos de skate entre 1988 e 1989 que foram muito importantes para a História do skate no RJ.

Bom que se diga, que na virada da década de 1980 até meados da década de 1990, muita coisa mudou no skate e na sua própria prática. Daí que a cada nova fase, um certo tipo de pico se tornava mais frequentado por nós. De início as rampas de madeira da ASSG, e depois, o ringue de patinação do Campo de São Bento, as mini-ramps (Lauro Müller, Urca, Piratininga e Mutuá), a pista de São Francisco, além dos precários picos de rua.

A prática de skate intensa até 1997 foi interrompida por causa de trabalho e estudos, até que só foi ‘resgatada’ junto com a liberação do skate na Praça XV, em 2011.

Atuo como professor de Geografia desde 2001 e, de 2012 até os dias de hoje, trabalho como professor de Geografia na rede municipal do Rio de Janeiro.

A partir de 2013, juntamente com Nelson Diniz, que é também skatista, professor e pesquisador em Planejamento Urbano e Regional, iniciou-se um esforço analítico sobre a prática do skate. Em coautoria, publicamos e apresentamos ao debate acadêmico algumas elaborações nossas a respeito dos conflitos relativos à prática do skate em espaços públicos no Rio de Janeiro.

Fui recentemente aprovado no mestrado no Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ (PPGHC-UFRJ), na turma de 2021, com o projeto cujo título é: “O skate conquista o centro da cidade: Praça XV-RJ e Vale do Anhangabaú-SP em perspectiva comparada”.

2 – Explique como você teve a ideia de escrever este projeto de mestrado que foi aprovado na UFRJ e qual o seu objetivo?

A pesquisa sobre a prática do skate em espaços públicos nos permitiu identificar padrões de ação dos skatistas e dos gestores urbanos no caso da Praça XV, no Rio de Janeiro. De modo que, ao observar o que se passou no Vale do Anhangabaú, já se dispunha de alguns conceitos.

A ideia decorreu do interesse em identificar semelhanças e diferenças nos dois casos. O objetivo central do projeto é estabelecer uma perspectiva comparada dos padrões de ação dos skatistas organizados no Coletivo XV e no Salve o Vale nos processos de reivindicação de uso dos espaços públicos da Praça XV e do Vale do Anhangabaú.

Entre os objetivos específicos da pesquisa, um merece destaque: a discussão sobre a centralidade da categoria espaço público nos discursos dos dois casos considerados.

3 – Como você fará esta pesquisa? Fale um pouco sobre a questão do método.

O projeto está sob orientação do Professor Dr. Fernando Luiz Vale Castro e sob co-orientação da Professora Drª Andréa Casa Nova Maia, o que significa algumas mudanças de estratégia no decorrer do curso. De toda forma, o plano inclui os seguintes procedimentos: revisão da literatura, realização de entrevistas, trabalhos de campo de observação participante, pesquisa iconográfica e audiovisual.

A análise dos Decretos e dos Planos Diretores subsidiará o estabelecimento dos marcos temporais, bem como a elaboração dos questionários das entrevistas.

Como se trata de um processo recente e de pouca sistematização a respeito, o recurso das entrevistas é de grande relevância. Pretende-se realizar entrevistas com os skatistas responsáveis pela organização do Coletivo XV e do Salve o Vale, com representantes das instituições da administração públicas envolvidas nos processos de negociação (Secretaria de Parques e Jardins e Instituo Nacional do Patrimônio Histórico, no Rio de Janeiro e Secretaria Municipal de Infraestrutura Urbana e Obras, em São Paulo), bem como com representantes das empresas responsáveis pela construção dos mobiliários urbanos adicionados à Praça XV.

A observação participante é o recurso ao qual se recorrer para o registro da dinâmica da normalidade dos espaços públicos considerados. Pretende-se adotar a prática do registro em diário de campo para a tomada de notas a respeito, por exemplo, do convívio entre skatistas e demais frequentadores e transeuntes tanto da Praça XV, quanto do Vale do Anhangabaú.

Através dos registros fotográficos e audiovisuais, tanto das mídias especializadas, quanto dos acervos particulares, pretende-se reconstituir a trajetória da ocupação dos skatistas na Praça XV e no Vale do Anhangabaú.

4 – O espaço final é seu. Deixe algum recado para quem está lendo essa entrevista e pretende pesquisar skate na Universidade.

Muito obrigado pela recepção e pela consideração à pesquisa.

Diria que o mais importante é definir qual aspecto do skate se vai investigar. Com o objeto bem definido é que se elabora uma questão para ser pesquisada. Um exemplo banal, no caso da História do skate: “Quais manobras já mandaram subindo o corrimão tal?” Nenhuma das manobras descendo o corrimão responde à questão.

No mais, diria que a recepção é sempre muito boa quando se apresenta a ideia a outros pesquisadores.

O caminho está minimamente pavimentado, na medida em que há, tanto no Brasil quanto em outros países, uma produção considerada válida para se tomar por referência.

SAIBA MAIS

“O que o skate pode dizer sobre o ensino de geografia?”

Luciano Hermes da Silva e Nelson Diniz (2014)

https://www.cp2.g12.br/ojs/index.php/GIRAMUNDO/article/view/50

“Contra-uso skatista de espaços públicos no Rio de Janeiro”

Nelson Diniz e Luciano Hermes da Silva

http://emetropolis.net/artigo/202?name=contra-uso-skatista-de-espacos-publicos-no-rio-de-janeiro


[1] Publicado originalmente, com pequenas alterações, no site da revista CemporcentoSKATE.


Histórias do esporte e das práticas corporais em Rubem Fonseca (parte 2)

26/04/2020
Por Fabio Peres

Em A grande arte (1983), romance de Rubem Fonseca, o protagonista-narrador Mandrake nos conta que:

[…] lembrava do primeiro dia: uma noite, ia passando pela avenida Ataulfo de Paiva e vi as janelas iluminadas de uma academia de ginástica. Desde os tempos de Eva Cavalcanti Meier eu ficara fascinado pelas mulheres que faziam ginástica. Mas essa era outra história. Na academia várias mulheres corriam em fila, ao som de música que não se ouvia da calçada. A frente, de malha preta, uma mulher alta e magra, de pernas longas e fortes, o pescoço meio curvado, movimentava-se sem esforço. Esperei a aula acabar e ela sair. Abordei-a na rua. “Estava vendo você fazer ginástica. Parecia um cavalo num quadro de Ucello”, eu disse. “Eu sei quem é Ucello”, ela disse, “da Uffizi”. Não era o da Uffizi era o do Louvre, o negro do centro, com as patas levantadas, mordendo os freios, o focinho torcido para a esquerda. Ela não falava com estranhos, mas meu rosto inspirava confiança a todas as mulheres do mundo. Além disso, era a primeira vez que alguém lhe dizia que ela parecia um cavalo (grifos nossos).

Em um post anterior, defendi que talvez poderíamos usar o adjetivo esportivo para qualificar a literatura de Rubem Fonseca, escritor recém falecido no último dia 15.

O argumento – na época de publicação do post – era que, não apenas o fenômeno esportivo esteve frequentemente presente desde os seus primeiros escritos, como também as diferentes narrativas para representar as práticas esportivas e corporais  eram impregnadas de temporalidades e espacialidades que lhe conferiam uma, por assim dizer, consciência histórica.

A Batalha de San Romano (c. 1435 a 1440). Paolo Uccello. Museu do Louvre (Paris, França). Obra mencionada em A Grande Arte (FONSECA, 1983), na qual a ginástica realizada por uma personagem é comparada ao cavalo negro representda no centro do quadro.

Ao defender a possibilidade de tratar a literatura de Fonseca como objeto ou fonte histórica, a provocação era uma forma de perturbar os limites e as fronteiras do campo da História do Esporte; uma maneira de nos ajudar a entrever histórias justapostas e entrecruzadas à prática esportiva: histórias “do corpo, de gênero, da cidade, de classe, da discriminação racial, da homofobia”, entre tantas outras, que a obra fonsequina é capaz de revelar.

Se as histórias são mais ou menos conservadoras ou críticas, lineares ou complexas, ambíguas ou unívocas, sem nuances, é algo que a História do Esporte ainda precisa melhor investigar. Constitui um duplo e intrincado desafio de reconstruir o universo do autor, historicamente situado, e o “mundo” que o texto procura expressar.

Como forma de homenagear o “realismo feroz” de sua obra, como definiu Antonio Candido (1989, p.210), e sua literatura esportiva, reproduzo a seguir o conto O desempenho, publicado em 1969 no livro Lúcia McCartney, no qual uma luta de Vale-tudo é narrada em primeira pessoa.

Clique na imagem para acessar O desempenho (1969).

Sem dúvida, a “vida pregressa como boxeador, jogador de basquete, atleta aquático (chegou a nadar três vezes por semana do Morro da Viúva à Praça 15)” de Rubem Fonseca – como relata seu amigo, jornalista, também escritor, Sergio Augusto (2020) – ajuda a entender a presença e a estética atribuída a tais práticas em suas obras. Mas essa história ficará para um próximo post.

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AUGUSTO, Sérgio. Zé Rubem. Estado de S. Paulo. Especial, H8, 25 de abril de 2020.

CANDIDO, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. Rio de Janeiro: Ática, 1989.


O skate vai ao cinema

23/02/2020

Por: Leonardo Brandão (brandaoleonardo@uol.com.br)

            Muitos ficaram surpresos com o resultado do Oscar 2020 quando viram o anúncio, no dia 09 de fevereiro, da vitória do curta-metragem documental Learning to Skateboard in a Warzone (If You’re a Girl) – Aprendendo a andar de skate em uma zona de guerra (se você é uma menina) – dirigido pela norte-americana Carol Dysinger e com produção de Elena Andreicheva. Este filme, de 39 minutos, retrata um grupo de garotas integrantes do Skateistan, um projeto social (sem fins lucrativos) fundado em 2007 por dois skatistas australianos, Oliver Percovich e Sharna Nolan, os quais tinham como objetivo introduzir o skate como um elemento de ludicidade para crianças e jovens afegãs de bairros pobres e que tiveram suas vidas marcadas pela violência. Esse documentário foi descrito por Orlando von Einsiedel (vencedor do Oscar em 2017 com Os Capacetes Brancos) como um “bonito retrato de esperança, sonhos e superação de medos”.

Figura 1: Cartaz do filme “Learning to Skateboard in a Warzone (If You’re a Girl)”, o qual traz também a informação que o mesmo havia vencido o prêmio de melhor curta-documentário no festival Tribeca no ano de 2019.

Mas não é de hoje, todavia, que existe uma relação muito forte entre cinema e skate. Neste post, iremos categorizar os tipos de filme que o envolvem, diferenciando documentários de filmes feitos por empresas de skate, assim como sua aparição em filmes de grande produção (muitas vezes breve) de seu uso em filmes independentes e realizados com baixo orçamento. Para tanto, elencamos quatro categorias que nos ajudarão a diferenciar esses diversos modos como o skate vem aparecendo nos cinemas e nas telas.

1 – Documentários sobre skate: Além do supracitado Learning to Skateboard in a Warzone (If You’re a Girl), que ganhou a estatueta do Oscar, a prática do skate, e em especial determinados skatistas, vem sendo há tempos retratados em documentários. Um bastante relevante neste quesito é Dogtown and Z-Boys (2001/EUA), dirigido por Stacy Peralta, o qual venceu na categoria melhor diretor no Festival de Sundance em 2001 com esse documentário. O filme retrata a equipe de skatistas Z-Boys, em especial, o modo como eles influenciaram o desenvolvimento dessa atividade durante a década de 1970, e isso tanto no tocante ao estilo corporal (advindo do surfe) quanto na utilização de espaços inusitados para sua prática, como as piscinas vazias (as quais foram posteriormente reproduzidas com rampas de madeira no formato de um grande “U”, dando origem ao skate vertical). Além deles, também podemos citar aqui o reflexivo e trágico Stoked: the rise and fall of Gator (EUA, 2002, dirigido por Helen Stickler) que narra a vida do skatista norte-americano Mark “Gator” Rogowski, um grande expoente do skate vertical durante a década de 1980, mas que, num ato insensato, acabou preso e condenado por 31 anos pelo assassinato da amiga de sua namorada. Numa temática semelhante à de Stoked, o filme documentário Rising Son: The Legend of Skateboarder Christian Hosoi (EUA, 2006, dirigido por Cesario Montaño), buscou reproduzir a complicada trajetória do skatista Christian Hosoi (que junto com Tony Hawk, foi o skatista mais popular da década de 1980). Hosoi, de astro internacional desta prática, chegou a ser preso – por acusação de tráfico de drogas – e ficou durante quatro anos numa prisão federal dos EUA, chamada San Bernardino Central Detention Center.

No Brasil, destacamos o documentário Vidas sobre Rodas (2010), do cineasta paulistano Daniel Baccaro, produzido sob patrocínio de grandes empresas, como Guaraná Antarctica e Banco Bradesco. Exibido em circuitos de cinema alternativos, esse filme baseia-se na trajetória de quatro skatistas (Sandro Dias “Mineirinho”, Lincoln Ueda, Cristiano Mateus e Bob Burnquist) e por meio da biografia desses personagens, também narra aspectos da história do desenvolvimento do skate brasileiro. Na contracapa do DVD deste documentário, encontramos a seguinte descrição: “O filme irá contar a história do skate brasileiro nesses últimos 20 anos, um período marcado pela transição da marginalidade para a chamada fase pop, quando o skate nacional conquista seu espaço na grande mídia e com ele o respeito da sociedade como um todo”.

Figura 2: Cartaz do documentário brasileiro “Vida sobre Rodas” dirigido por Daniel Baccaro e lançado em 2010.

2 – Super produções: Existem muitos filmes de “grande produção” que fizeram uso do skate. Um dos principais exemplos neste sentido é Back to the future (De volta para o futuro), de 1985, do diretor Robert Zemeckis. Na trama, o skate aparece sob os pés do protagonista, interpretado por Michael J. Fox. Na continuação da franquia, com “De volta para o futuro II”, de 1989, a cena com o skate flutuante mexeu com a imaginação de toda uma geração (ver cena retirada do Youtube logo abaixo). Ainda neste mesmo campo de exemplos, podemos citar o longa-metragem Espetacular Homem-Aranha, dirigido por Marc Webb e que estreou no Brasil no ano de 2012. Esse filme retratou a saga do icônico herói dos quadrinhos como sendo ele, antes de tudo, um skatista (nas cenas de skate, o ator Andrew Garfield sedia lugar ao dublê, skatista e também praticante de parkour, Willian Spencer). O Homem-Aranha skatista foi visto por inúmeros espectadores ao redor do mundo e arrecadou uma grande bilheteria.

3 – Filmes independentes: Numa perspectiva menos comercial, existem os filmes de baixo orçamento e feitos por diretores que envolvem a prática do skate com o debate de questões sociais. Um dos mais premiados dessa categoria foi Paranoid Park (2007, EUA, dirigido por Gus Vant Sant), longa que gira em torno de um skatista de 16 anos – interpretado por Gabe Nevins – que acaba matando, acidentalmente, um segurança nas proximidades de uma pista de skate onde pratica. Nesta mesma linha, temos os filmes do diretor Larry Clark. No ano de 1995, Clark dirigiu Kids, filme que se tornou um marco em sua carreira e causou furor ao exibir nos cinemas o cotidiano junkie de um grupo de skatistas de Nova York (alguns dos protagonistas do filme eram, de fato, skatistas bastante atuantes nesta cidade, como Harold Hunter). Embalado por manobras de skate, uso de drogas e recheado de cenas de sexo adolescente, Kids acabou por denunciar a facilidade com que o vírus HIV estava sendo transmitido por uma geração que vivia o presente sem as clássicas perspectivas profissionais de futuro. Outro filme com direção de Larry Clark chama-se “Roqueiros” (Wassup Rockers, EUA, 2005), o qual aborda os problemas causados por um grupo de skatistas – ouvintes de punk rock – de um bairro pobre de Los Angeles que decidem, aleatoriamente, praticar skate numa das áreas mais nobres do condado de Los Angeles, Berverly Hills. Neste filme, além de debater a problemática da apropriação dos espaços urbanos e a repressão policial, Larry Clark também problematiza o contato entre jovens de diferentes classes sociais.

4 – Filmes produzidos por empresas de skate: A emergência desse gênero de filmes, com foco prioritário na execução de manobras de skate, teve início no ano de 1984 com o lançamento de “The Bones Brigade Video Show”, pela empresa Powell Peralta, a qual foi fundada no ano de 1978 por George Powell e Stacy Peralta. Essa marca veio a produzir, nos anos subsequentes, os filmes: Future Primitive (1985), The Search for Animal Chin (1987), Public Domain (1988), Ban This (1989) e Propaganda (1990). Tais filmes, assim como muitos outros que foram produzidos por diferentes companhias de skate, apresentam como objetivo principal exibir a técnica corporal dos skatistas membros de suas equipes, e isso tanto com filmagens realizadas nas ruas quanto em pistas. Por intermédio de tais filmes, nomes (antes desconhecidos) foram divulgados, pequenas marcas tornaram-se famosas e manobras (antes consideradas impossíveis) foram imortalizadas. Nos Estados Unidos, além da já citada Powell Peralta, muitas outras empresas produziram filmes com manobras de skate que se tornaram bastante cultuados. Dentre esses, destaca-se Video Days, produzido pela empresa Blind Skateboards e dirigido por Spike Jonze no ano de 1991. Entre os talentosos skatistas que aparecem neste filme, como Guy Mariano e Marc Gonzales, um deles, chamado Jason Lee, acabou se tornando um comediante festejado em seriados de televisão da NBC, onde fez fama com o engraçado e inusitado My Name is Earl.

Para finalizar esse post, ficamos com a parte do skatista Jason Lee em Video Days, de 1991. Essa parte foi retirada do Youtube e apresenta como trilha sonora as músicas “Real World” da banda Hüsker Dü e a canção “The Knife Song” do Milk.

PARA SABER MAIS

BRANDÃO, Leonardo. Trajetórias do skate no cinema: dos filmes de grande produção ao documentário Dogtown and Z-Boys. In: FORTES, Rafael; MELO, Victor Andrade de. (orgs). Comunicação e Esporte: reflexões a partir do cinema. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2014, p. 71 – 86.


Rugby, de Manuel Soriano

17/03/2019

Por Rafael Fortes

Rugby é o título de uma novela do escritor argentino Manuel Soriano (para saber mais sobre o autor, ver esta entrevista); depois de ter lido o livro, mas antes de escrever esse texto, esbarrei com uma referência a um outro texto de Soriano no episódio 4 do Podcast Stadium), publicada em 2010. Não conhecia o livro, com o qual esbarrei num sebo de Buenos Aires. Embora abordar questões de forma, estrutura e narrativa literárias a respeito do esporte seja terreno de outros autores deste blogue – André Couto, Edônio Alves, Elcio Cornelsen e Victor Melo -, me aventuro a mais um texto a respeito de uma obra ficcional.

A trama é narrada em primeira pessoa por Mocho, 22 anos, advogado (tal qual o autor) que joga rugby numa equipe amadora, formada em sua maioria por ex-alunos de uma escola tradicional da Grande Buenos Aires. A trama oferece dezenas de oportunidades para discutir-se as relações entre o esporte e a sociedade, notadamente no que diz respeito aos diferentes grupos sociais. Abaixo cito algumas.

a) Racismo e preconceito

Há uma conversa em que vários dos envolvidos associam uma excursão à África do Sul para jogar rubgy à possibilidade de “comer uma negra”, e também ao risco de contrair HIV – mas, claro, afirma um deles, os sul-africanos é que são racistas. Nas conversas do terceiro tempo, há também piadas relacionadas a judeus e coreanos.

À parte a questão esportiva, há muitos outros trechos notáveis, inclusive combinando racismo com preconceito de classe, como o ato de se confundir com “bolivianos” membros de povos autóctones das províncias de Salta e Jujuy (eu mesmo já cometi esse erro na primeira vez que estive na Argentina, ao comprar uma bata na Feirinha de San Telmo).

b) O jovem de classe média-alta revoltado

“Se ouve mais cumbia em Barrio Parque e Recoleta que na própria favela”. “Há uma idade, digamos os quinze ou dezesseis, em que é uma coisa bem vista renegar sua classe. É parte da rebeldia adolescente.” “Os de San Isidro se tornam torcedores do Tigre. Brabões de torcida desde criancinha. Os de Belgrano, de Excursionistas ou Defensores (melhor Excursionistas, porque são chamados “os favelados”)” (p. 54).

“Mas tudo isso é passageiro. É coisa da adolescência. A rebeldia se desvanece facilmente porque na realidade nunca existiu. Com os anos aparece um trabalho e sua gravata, as madeixas, voltam os esses e as palavras em inglês, aparecem as namoradas, as aulas de tênis e as saladinha de rúcula. Tudo isso se sucede com total naturalidade. Fiquem tranquilos, pais: não se desesperem. Seus filhos vão se parecer com vocês. Os melões do sistema se acomodam sozinhos.” (p. 55)

Aqui, a escolha de times que raramente disputam a primeira divisão do campeonato argentino é uma das maneiras de ser – ou, ao menos, de parecer – diferente. Tommy, um amigo yuppie de Mocho que decide torcer pelo Huracán no futebol para ser diferentão entre os amigos, diz: “Todos nós aspirantes a milionários temos uma [excentricidade].” E fazer aula de tênis é um dos indícios de conformidade com a normalidade.

c) Esporte na escola

Mocho estudou na Christian School (o nome é assim mesmo, em inglês), um “colégio inglês e misto” localizado entre os bairros de classe alta de Palermo e Nuñez. Nele,

“o esporte é muito importante, mais do que a História e as Matemáticas. Para os homens há duas opções: o rugby ou o vôlei. Esta decisão parece insignificante mas determina a vida social de cada aluno. O vôlei é para os maricas, aqueles que gostam de poesia, os que têm medo das pancadas. O rugby é para os que não são maricas, os que não têm medo das bordoadas. Com as mulheres acontece mais ou menos o mesmo, mas com o hóquei: elas são as lindas, as de sainha curta e pernas bronzeadas, e as do vôlei são as feias, as gordas e as de óculos” (p. 21).

Tais afirmações não estão lá para reforçar tal estado de coisas, mas para expor as vísceras de uma sociedade extremamente preconceituosa, a partir de dentro. Mocho não se identifica com tais valores, embora em alguma medida compartilhe deles e se beneficie do meio social em que foi criado e circula. Há muito sarcasmo e ironia ao longo de toda a narrativa.

O colégio é administrado pelos filhos dos fundadores, que têm o rugby em alta estima: “Se a equipe ganha (…) até te deixam faltar na manhã seguinte”. “Não é casualidade que o futebol não seja uma opção. Os donos têm medo que tire gente do rugby. Um ano fizeram um teste e saiu meio time. Todos nós gostamos do futebol”. Há uma estratificação de jogadores/alunos na escola entre os da equipe principal e os do segundo time. Uniformes distintos, ônibus com ou sem ar-condicionado para deslocamento até os campos de jogo etc.

d) O círculo de contatos e o esporte na vida adulta como mecanismos que auxiliam a perpetuação de privilégios

Uma rede de relações é estabelecida entre companheiros e ex-companheiros de time, extensiva a amigos próximos e familiares. O Christian Old Boys Rugby & Hockey Club, pelo qual Mocho joga no presente da trama, é um clube fundado para ser frequentado exclusivamente por ex-alunos e ex-alunas da Christian School. Após alguns anos, passa a aceitar sócios que não sejam ex-aluno, porque precisa de gente para completar os times e porque está mal financeiramente. E aí aparecem figuras completamente estranhas ao convívio social dos ex-alunos, como o gerente de um camelódromo em Avellaneda, “que sempre anda com peça” (ou seja, armado “com um 38 carregado debaixo do assento”).

Eis a caracterização do lugar do clube na liga:

“O clube compete na terceira divisão da União de Rugby de Buenos Aires. O ascenso está sempre próximo, mas nunca se concretiza. Nesta categoria de rugby é mais digno que glamouroso. Nunca rola de jogar em San Isidro ou em Pilar, nem há modelos nos olhando nas arquibancadas. O mais comum é visitar lugares como Florencio Varela, Ciudad Evita, Lanús ou Ituzaingó; lugares com nome de estação de trem, campos sem grama, de terra dura e sangue nos joelhos, banhos de água fria (…)”

Na narrativa sobre o passado construída aos 22 anos de idade pelo protagonista, ficam claras as relações sociais proporcionadas pelo ambiente escolar e pelo time, que incluem as famílias dos colegas. O rugby funciona dentro desta teia de relações: no fim das contas, o protagonista consegue um estágio num escritório de direito porque o entrevistador também foi rugbier a vida inteira.

e) Atribuição de apelidos, iniciação sexual e trotes

Aqueles que de alguma forma desviam de certas normas e convenções recebem tratamento específico e um apelido: Cristãozinho, o colega com deficiência que é “incluído” na turma, à custa de piadas sobre o tamanho de seu membro e outras zoações; “China” [Chino], o colega de time cujo apelido não é considerado uma ofensa, “desde que o cara não seja chinês de verdade”.

A iniciação sexual de vários membros do time da escola com uma mesma prostituta, durante uma viagem à província de Tucumán, sob os auspícios do técnico: “muitos vão a este tour como garotos e voltarão como homens”.

As noções normativas de masculinidade e heterossexualidade que se cruzam com o caráter de classe. A “estreia” sexual dos filhos homens da classe alta com as mulheres trabalhadoras domésticas. No time adulto, os “trotes” com os novatos, como uma ocasião em que um deles é deitado no no chão e obrigado a beber cerveja que escorre pelo peito, barriga e genitais de um colega de time; depois, companheiros de equipe lhe enfiam um desodorante pelo ânus.

f) Crimes contra o patrimônio como principal forma de violência

Um árbitro que, dirigindo seu automóvel rumo a uma partida de fim de semana, erra uma saída na autopista e vai parar na entrada de uma “favela fudidíssima”, sofre um sequestro-relâmpago.

Mocho e seu amigo Ariel, também colega de equipe, vivem no mesmo bairro de classe média alta, “cheio de embaixadas e mansões, mas […] muito próximo da Favela 31”. Ao contrário do narrador, Ariel já foi assaltado várias vezes. Conta uma delas: “Me cercaram três negros de merda na praça e roubaram meu iPod e o celular”. (A trama se passa em 2007). Nem todos, contudo, são assim. Os “cartoneros” (o nome vem das caixas de papelão que recolhem e vendem para atravessadores do mercado de reciclagem), designação daqueles que catam lixo, “são bons negros. Exemplares. Ensinam o ofício a seus filhos. Estão mostrando a eles seu futuro. Antes trabalhavam com carros puxados por cavalos, mas a sensibilidade da Sociedade Protetora dos Animais acabou com isso. É um esforço desumano para um cavalo, argumentaram. Agora as pessoas puxam seus próprios carros” (p. 11). A esses bons negros se contrapõem os maus: os viciados em crack. “Esses negros são os piores. Um negro desesperado é um negro perigoso” (p. 12).

Há a participação de famílias de bem em passeatas e manifestações “por mais segurança”. Na prática, demandam mais policiamento e punições mais duras para condenados por crimes dos quais se veem como vítimas – mas não para todos os crimes, cometidos por quaisquer pessoas, como fica claro ao longo da própria trama.

g) A atribuição de valores a uma modalidade esportiva (e a suposição de que são exclusivos dela)

– A associação das pessoas às posições em que jogam, incluindo elaborações pseudo-psicológicas e sociais a respeito de por que cada um joga em tal posição, e o que isso significa a respeito do perfil e do caráter do indivíduo. (O leitor atento e afeito a outros esportes perceberá que esta lógica e os próprios atributos não são exclusivos do rugby, mas, pelo contrário, comuns a muitas modalidades esportivas. Mas, para ter tal percepção, é preciso conhecer a historiografia disponível sobre outras modalidades.). Tais explicações, por um lado, emulam/reproduzem um certo senso comum do rugby, funcionando como uma rica chave de leitura para interpretação do pesquisador. Por outro, trazem uma visão própria do narrador, às vezes ácida e repleta de críticas a este mesmo senso comum.

– Marcas no corpo: a situação “miserável” da coluna cervical causada pelos impactos do jogo; a orelha deformada como símbolo de coragem e de dedicação ao esporte.

– A (suposta) coragem necessária para praticar o jogo: “Muito cedo em minha vida me dei conta de que era um covarde”. Isto não impede Mocho de ter uma extensa carreira no esporte, mas o expõe a situações em que sua masculinidade e companheirismo são postos à prova. Em dado momento, adversários o perseguem por todo o campo gritando: “Cagão! Cagão!”

“Simplesmente não gostava do contato. De qualquer forma, o rugby é um esporte muito mais tático e estratégico do que se pensa.  É possível ser bom usando a cabeça, entendendo o jogo, e deixando para os gordos e os brutos a parte das pancadas”.

– Além da coragem, há noção de sacrifício, explicitada pelas discussões com o preparador físico. “Não me dou muito bem com ele. É jovem mas tem alma e cabeça de milico. Ele diz que eu não jogo para o time, que jogo para mim, que não gosto de me sacrificar. Claro que não. Quem gosta de se sacrificar? Se eu gostasse, já não seria sacrifício.”

“Hernán Perdomo é o nome do preparador físico. Foi um jogador bem bom de Primeira, mas destruiu um joelho e teve que largar antes da hora. É daí que deve vir o ressentimento. Daí e de não poder ter feito carreira militar. Duchas frias de madrugada, o indivíduo não é nada, o time é tudo, saltos de rã, obediência devida. Esse seria seu paraíso. A disciplina e a convicção são essenciais para a vida militar e para o rugby. Não há êxito sem disciplina e não há disciplina dem a mais cega obediência. É “raro” que os alemães não tenham gostado deste esporte” (p. 49-50).

– Inclusão de biotipos e corpos marginalizados: “o rugby é especialmente amável com os gordos”

– A chatice dos treinamentos e de certas partes do jogo: “O único que me cansa é treinar o scrum, sem dúvida uma das coisas mais estúpidas do esporte mundial, junto com o arremesso de martelo. (…) Se o scrum é absurdo durante um jogo, muito mais embaraçante é treiná-lo”. Há frases maravilhosas para aqueles que, como eu, já treinaram, mesmo odiando fazê-lo: “Há algo de curativo nisto de correr como um imbecil ao redor de um campo.”

– A marcada diferença, ao menos no discurso do narrador, entre o olhar para o juiz no rugby em relação ao do futebol. O árbitro é convidado e participa da confraternização pós-jogo (terceiro tempo).

– O consumo abusivo de álcool. “No rugby pega mal não beber, é como ser viado ou vegetariano”. No episódio principal narrado, os jogadores começaram a beber já no vestiário, após uma “derrota humilhante” que não “murchou o clima de euforia” com a festa que viria a seguir.

– A violência e as agressões como parte do jogo e da intimidação psicológica do adversário. Nunca joguei rugby, mas já competi em vôlei, basquete, futebol, futsal, futebol soçaite e tênis e em todas estas há mecanismos semelhantes. No surfe, que pesquiso há anos, tais práticas também acontecem em competições.

– Aturar o discurso motivador do capitão na roda de jogadores antes de entrar em campo. O capitão em questão gostava de discursar sobre a família e os valores cristãos, mas era um bandido capaz de cometer “todas as infrações possíveis”, inclusive pedofilia. (Um típico cidadão de bem ou humano direito…). Mocho considera esse discurso motivador dos capitães um dos maiores sofrimentos de sua “carreira rugbística”. Contudo, o contraste é brutal em relação ao capitão até o ano anterior, “um grande jogador e uma ótima pessoa”, que foi jogar “em um clube da segunda divisão da Itália. A prática, contudo, se estende a outras modalidades. E o caso específico da hipocrisia do capitão não é exclusivo do rugby, nem do esporte: trata-se de algo presente em toda a sociedade.

– As relações com os técnicos.

“Espécie rara, os técnicos de rugby. Nunca conheci gente com tanta vocação para o que fazem; estão convencidos de que se pode construir um mundo melhor à base de tackles, rucks e malls. Tive de tudo: bons, maus, autoritários, estudiosos, socialistas, compreensivos, moralistas, dogmáticos, gritões e silenciosos. Mas todos compartilham essa convicção de que o rugby te faz uma pessoa melhor, o rugby formador de sujeitos, escola de vida, como se joga se vive. Até tive um no colégio que falava conosco em inglês” (p. 70-1).

Um deles “parecia saído de um desses filmes ianques em que um técnico obstinado torna um grupo de inúteis campeões do mundo”.

– Outras referências a outros esportes. O uso de quadras de tênis pelo narrador-jogador como unidade de medida para informar ao leitor o tamanho do salão do clube onde os jogadores almoçam antes das partidas. Embora alguns pesquisadores brasileiros reproduzam o senso comum de que “tênis é um esporte de elite” (já ouvi isso várias vezes), na Argentina ele é um dos esportes mais populares, tal qual em países como Estados Unidos e França. Há referências a outras modalidades: um jogador muito inteligente “é como Juan Román Riquelme” e “pode pensar como um enxadrista”.

h) Confraternizações e festas em torno do esporte

O acontecimento fundamental da trama é o terceiro tempo de uma partida de rugby que acontece na véspera da semifinal histórica à qual a seleção argentina da modalidade havia se classificado, na Copa do Mundo de 2007, contra a África do Sul. Há uma extensa narrativa dos procedimentos.

O almoço de equipe antes da partida, “um compromisso inadiável”. Nas conversas à mesa, o assunto inevitável da partida da seleção. Uns dizem acreditar ser possível vencer os favoritos sul-africanos. Outro dispara: “- Fico de saco cheio das propagandas dos Pumas [seleção argentina de rugby]. […] Prefiro que perdam para não seguir suportanto essa tortura.” Fiquei pensando nas propagandas envolvendo jogadores, seleção e técnico brasileiros antes e durante as copas do mundo de futebol.

A preparação para o terceiro tempo:

“Esse dia estávamos nos preparando para uma festa. Estava tudo pronto: engradados de cerveja, iluminação e som, litros de fernet [bebida popular na Argentina, geralmente tomada junto com coca-cola] e até uma máquina de fumaça. Não preparávamos festa em todos os terceiros tempos, mas o sucesso dos Pumas nos tinha contagiado e essa era uma ocasião especial. Havíamos combinado com as MINITAS do hóquei. Elas jogavam fora, mas viriam assim que terminasse sua partida. Nunca há muitas mulheres em nossos terceiros tempos: namoradas, algumas amigas e pare de contar.”

O narrador explica também o que é o terceiro tempo:

“O terceiro tempo é o orgulho do rugby. É o momento em que os membros das duas equipes, que haviam se matado de lutar dentro do campo, se unem para compartilhar um espaço de diversão e camaradagem. É o momento de ser cavalheiros, de distinguir-se do futebol, de fazer brincadeiras com os rivais e o árbitro, de ser um pouquinho ingleses”.

 

 


Videoclipe como fonte histórica

27/11/2017

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

A ideia deste texto surgiu meses atrás, num papo com o colega Leonardo Brandão, professor de História na FURB, em Blumenau (SC). Ele pesquisa história do skate no Brasil há muitos anos – e em 2018 junta-se à equipe do blogue. É muito legal que os esportes radicais – ou californianos, como ele denomina – sejam o foco principal de outro pesquisador por aqui.

Faço neste texto alguns apontamentos sobre o potencial do videoclipe como fonte histórica.

Dark Necessities – o clipe e a Califórnia

Eis o clipe de Dark Necessities, do Red Hot Chili Peppers:

O clipe é gravado na Califórnia, estrelado por gente que lá vive (a banda e as skatistas) e dirigido pela atriz hollywoodiana Olivia Wilde – que, segundo o verbete da Wikipedia, “vive e trabalha em Venice e Los Angeles“. Venice é um distrito de Los Angeles com forte presença de artistas, esportistas, hippies etc., sendo, junto com a vizinha Santa Monica, importantes em termos de lançar modas e estilos; e lugares onde o skate tem uma enorme presença e relevância. Abundam no vídeo as referências às subculturas locais.

A Califórnia e, particularmente, a região metropolitana de Los Angeles são temas constantes nas músicas da banda, desde o uso de heroína sob viadutos em áreas degradadas do Centro (Under the Bridge) a brincadeiras com as representações do estado em relação a outros (Dani California). Para além de gostar de um punhado de canções, a banda tem para mim um significado especial, pois foi muito importante na formação, no amadurecimento e na manutenção de outra que me é muito cara, o Pearl Jam.

Voltando ao clipe… Estão lá as palmeiras; as avenidas e ruas; a imensa quantidade de asfalto (uma das características do Sul da Califórnia, onde está Los Angeles); a prática de skate por diversos cantos da cidade – facilitada, em alguma medida, pelas quantidades expressivas de superfície cobertas por asfalto, concreto e cimento; os amplos corredores de supermercado; os estúdios de tatuagem.

Ao mesmo tempo em que é o estado mais populoso e rico dos EUA e sede de boa parte das empresas ligadas a internet e tecnologia (provedores de acesso, Intel, Google, Facebook, indústria pornográfica, desenvolvedores de websites e empresas que os hospedam estão lá; mais fácil é listar as gigantes que não estão: Amazon e Microsoft, ambas no outro extremo da Costa Oeste, na região metropolitana de Seattle), o Sul da Califórnia também representa, nos Estados Unidos, ao menos desde meados do século XX, o paraíso sonhado para se viver, se passar férias ou se mudar após a aposentadoria. Muita gente que para lá viaja acaba decidindo ficar. Se mal compararmos com o caso brasileiro, os estereótipos em torno da Califórnia e algumas de suas características unem boa parte do que, no senso comum brasileiro, se associa ao Rio de Janeiro, ao litoral do Nordeste e a São Paulo.

Os corpos

Estão lá os corpos. Movimentam-se cantando, dançando e brincando (banda) ou rodando no carrinho pela cidade (elas skatistas). Mas não se trata apenas de andar de skate: ali está incorporado um certo estilo associado ao Sul da Califórnia e a grupos que lá vivem, especialmente jovens. Mais: há um recorte de estilo dentro do próprio skate: são longboarders, o que implica a construção de representação de formas de andar de skate distintas de outras. Diferença que se estabelece não apenas pelo tamanho do skate, mas também por como se anda, em que lugares da cidade, o que se faz sobre ele, que tipos de manobras e ações são enfatizadas. Os corpos e seus movimentos são centrais neste produto audiovisual.

Eles – ou melhor, a pele – estão à mostra. Carregam e exibem muitas, muitas tatuagens. Tatuagens que fazem parte de diversos estilos de vida, culturas e subculturas, grupos/segmentos californianos: skatistas, surfistas, artistas, hippies, junkies, latinos, negros e/ou muitos outros.

Os corpos ostentam piercings, pulseiras, brincos, cabelos longos. Estão lá os bonés de aba reta, as camisas de flanela, os shorts, shortinhos, calças e bermudas.

Os corpos da banda exibem marcas da idade: rugas.

Os corpos delas, das skatistas, contém também ralados, machucados, roxos, cicatrizes, cascas de ferida, remendos com esparadrapo.

Estão lá quatro garotas fazendo o que querem com seus corpos. Um texto da jornalista Jéssica Oliveira considerou essa a principal característica do vídeo: estar sintonizado com os tempos atuais e com os progressos na luta das mulheres para se libertar de padrões impostos pelos homens, pela sociedade e/ou pelo machismo. Trata-se de uma leitura muito interessante do videoclipe.

Uma das skatistas faz uma tatuagem no interior da boca. O clipe representa tal escolha como não apenas um feito individual, mas parte de um ritual coletivo. Afinal, quando falamos da cultura em torno de um esporte – e particularmente nos casos em que este evolve para um estilo de vida -, não se trata apenas de praticá-lo, mas de compartilhar uma série de vivências com o grupo do qual se faz parte (por isso alguns autores preferem usar o conceito de tribo ou tribo urbana para se referir aos skatistas). E a vivência em grupos, em especial durante a adolescência, significa se submeter a um conjunto de normas, em busca de ser aceito. Portanto, a meu ver o ato de fazer tal tatuagem pode ser compreendido de diversas formas, desde o prisma da escolha e liberdade individual até a inserção num contexto coletivo mais amplo, com as expectativas, demandas e desejos de participação, integração, reconhecimento e, também, submissão.

Ao mesmo tempo em que tem traços característicos de muitos outros clipes do RHCP – como a própria banda aparecer tocando/cantando/dançando -, é uma ode às mulheres e, a meu ver, também à Califórnia e ao skate.

Videoclipe como fonte histórica

Propor o videoclipe como fonte história significa levar em consideração elementos dos produtos baseados em imagens em movimento (cinema, televisão etc.): os formatos e gêneros; montagem, sonorização, edição, fotografia etc.; ângulos de câmera, enquadramento, duração dos planos, ritmo e tipo de cortes etc. Não analisei tais elementos na seção acima, mas deixo alguns apontamentos: a) o uso de câmeras em movimento para gravar as cenas de skate; b) o close e os enquadramentos para mostrar os corpos femininos (tatuagens, cicatrizes etc., bastante distintos das lógicas de erotização que geralmente cercam a filmagem destes corpos); c) os cortes dados pela música: num padrão até 0’43”, noutro a partir daí, quando entra o baixo tocado por Flea (a partir daí é que as skatistas entram em ação).

A noção de videoclipe como fonte história não se descola, é claro, da música como fonte histórica – outra fonte pouco explorada na história do esporte. No caso das canções, cabe analisar a letra (coisa que tampouco fiz com o clipe acima – entre outros motivos, porque a letra não é explicitamente sobre mulheres, skate ou Califórnia). Penso, por exemplo, na representação de hábitos e atividades de lazer num domingo “típico” do Rio em Eu quero ver gol, do Rappa ou Jesualda, de Jorge Ben Jor (canções que falam de esporte, de hábitos culturais, das clivagens de classe social, de zonas geográficas e de asfalto x morro; ambas permitem discutir gênero). Ou nos três primeiros discos do Rappa e do Planet Hemp como fontes ricas para se analisar representações do Rio de Janeiro nos anos 1990 – infelizmente, boa parte delas, tão verazes e atuais naquela época como hoje (Tumulto, Miséria S.A., Tribunal de rua, Mão na cabeça, Todo camburão tem um pouco de navio negreiro, Legalize já, Hey Joe e Zerovinteum). Não se trataria, evidentemente, de analisar apenas as letras. Pode-se abordar também: as melodias; a forma de cantar; as sirenes de polícia e muitos outros efeitos sonoros; diálogo com gêneros e formas musicais (no caso, influências do dub, do reggae, do hardcore, de Jorge Ben Jor; os samplers de outros artistas e recursos eletrônicos; ritmo; instrumentos e formas de tocá-los.

Ou seja, é possível ter em conta, na análise, forma, conteúdo, aspectos técnicos da música, da letra e das imagens que aparecem no videoclipe; a trama do videoclipe, o contar ou não de uma história, os estilos/gêneros cinematográficos ou televisivos a que remete: ficção, documentário, colagem, desenho animado, experimentações gráficas ou visuais. Feito para consumo massificado ou conceitual, para disputar prêmios em festivais? Ou ambos?

Do ponto de vista cronológico e temporal, penso ser possível estabelecer pelo menos três referências: 1) o ano/época/contexto/lugar em que a música foi produzida; 2) o ano/época/contexto/lugar em que o videoclipe foi produzido (geralmente muito próximo ou idêntico ao da música, mas nem sempre); 3) o ano/época/contexto/lugar em que se passa a trama, ou aos quais ela remete.

Finalizo com dois exemplos. No primeiro, que nada tem a ver com esporte, mas também é do Chili Peppers, a trama homenageia/remete a diferentes bandas, artistas e épocas/décadas (cabelos, maquiagens, roupas, modo dos músicos se portarem no palco, instrumentos tocados, equipamentos de som etc.). A música é Dani California, à qual já me referi antes. Tal com em “Dark Necessities”, as imagens não buscam representar a letra.

Segundo, É Brasil, Representa (Brazilian Storm), de Gabriel O Pensador, Apollo Nove e Alex Freitas Gomes. Lançados este ano, o clipe e a música são uma ode ao surfe brasileiro: destacam uma série de nomes, datas e acontecimentos do passado, ao mesmo tempo em que celebram a presença significativa de brasileiros (em quantidade e em termos de resultados) nos anos recentes no Circuito Mundial profissional masculino, incluindo os títulos conquistados por Gabriel Medina (2014) e Adriano de Souza (2015).

Embora com objetivos, estilos e diálogos bem distintos, ambos representam o passado (mais o primeiro que o segundo) e o presente a partir do presente.

Para saber mais

  • Sobre o uso de fontes ligadas à arte e à mídia para a pesquisa histórica: MELO, Victor A.; DRUMOND, Mauricio; FORTES, Rafael; MALAIA, João. Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.
  • Textos deste blogue que contendo a palavra clipe.

Bra Boys

01/06/2017

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

No Cineclube Sport de maio, vimos Bra Boys, dirigido por Sunny Aberton e Macario de Souza e lançado em 2007. O que segue abaixo é um conjunto de anotações de minha lavra, em parte estimuladas pelo filme, em parte pelo debate que se seguiu. Agradeço a todos(as) que participaram pelas estimulantes contribuições e questões.

O tema é um grupo de surfistas conhecidos como Bra Boys, residentes do bairro e locais da praia de Maroubra, em Sydney (Austrália).

Do ponto de vista estético, trata-se inegavelmente de um filme de surfe. Feito por e para surfistas, com cenas de surfe. Reifica determinadas visões sobre o esporte (quase todas positivas, muitas idealizadas), que permeiam um certo senso comum da modalidade. Por exemplo, a ideia de que o mar e o surfe fornecem um escape da sociedade. Em parte, evidentemente, isto é verdade. Mas é retratada como se o surfista, antes, durante e depois de surfar, não falasse ou convivesse com outros surfistas.

Do ponto de vista da circulação, me parece que não foi exibido em circuito no Brasil e na maioria dos países (exceto a Austrália e partes dos EUA), tendo circulado em festivais de documentários e festivais de filmes de surfe (obtendo prêmios em alguns destes).

Classe social e enquadramentos midiáticos

Bra Boys permite discutir a questão de classe social, bem como uma frase que escuto com frequência em âmbito acadêmico: “surfe é esporte de elite”. Na mesma linha, é um bom filme para debater estas perguntas: o que é o surfe? Há possibilidades de respostas universais para esta pergunta? Acredito que não. É preciso investigar as realidades locais. Buscar respostas locais para perguntas universais, como disse Giovanni Levi em texto que li recentemente (agradeço ao também escriba deste blogue, Victor Melo, pela indicação). Em outras palavras, à pergunta geral o que é o surfe?, é possível elaborar outras, específicas, para as quais Bra Boys dá algumas respostas e subsídios: o que é o surfe na Austrália? O que é o surfe para os australianos? O que é o surfe para aqueles garotos de Maroubra? O que é o surfe para os que ficam impedidos de surfar (por servirem nas forças armadas e terem sido transferidos para lugares sem onda; por estarem na prisão ou longe do litoral)?

(Pequena digressão: uma das coisas que mais me impressionaram e impactaram quando pesquisei revistas de surfe californianas publicadas entre os anos 1970 e 1990 foram as cartas de leitores enviadas desde a prisão. Fiquei impressionado por dois motivos: o teor das cartas; e também por, depois de um tempo, perceber que algumas prisões da Califórnia contavam com bibliotecas, que, por sua vez, tinham assinaturas de revistas de surfe – uma das leituras que mais atraíam jovens presos, muitos dos quais por crimes relacionados a drogas.)

Outro assunto a discutir é o enquadramento realizado pela mídia, que tende a tratar como banditismo as atividades desenvolvidas por grupos juvenis de camadas populares. Caminhando na direção oposta, o filme é uma construção realizada pelos próprios jovens: direção, produção, edição etc., exceto a narração, feita pelo ator Russel Crowe. Um dos motivos para fazê-lo, como afirmam logo no início, é estarem cansados de apanhar, sofrer abusos, ser tratados como bandidos ou invisíveis pela mídia, pelo governo e pela polícia (o tratamento da polícia para com esses jovens, guardadas as devidas proporções, parece muito mais civilizado do que o padrão vigente nas quebradas do Rio de Janeiro – o padrão do que é aceitável, é claro, pode mudar bastante de uma sociedade para outra). A cor da pele da maioria também é diferente daquela hegemônica entre os pobres do Rio, mas são, de fatos, jovens de uma área degradada. O alto número de mortos (sempre um indício de problemas) é um dado importante.

 

Território e localismo

Um dos principais assuntos/questões que o filme permite discutir é o vínculo com o território e o localismo. O localismo, em suas diferentes manifestações, é um fenômeno presente em praias de vários países, ainda que pouco apareça nas representações midiáticas do esporte. Pelo que observei até hoje, a postura mais comum é silenciar sobre o tema. E, na maioria das ocasiões em que é tratado, isto se dá sob a forma de crítica: o localismo é classificado como um comportamento atrasado, violento e de ignorantes. Contudo, algum grau de relativismo, contextualização e até glamourização pode ocorrer (às vezes combinado com criminalização e acusações) quando se trata do North Shore da ilha de Oahu, no Havaí. (Para uma interessante – embora a meu ver exageradamente engajada e maniqueísta – análise e crítica da criminalização promovida pela mídia hegemônica a respeito dos locais e do localimo no North Shore, ver o último capítulo de Walker, 2011).

Por outro lado, o bairro é pouquíssimo explorado na trama. Fiquei curioso para saber e entender mais, já que argumenta-se que o vínculo com ele é um dos aspectos que definem o caráter, a identidade e os valores desses jovens (como, por exemplo, a alegada rejeição do racismo e da xenofobia). Bra Boys argumenta que o localismo não necessariamente significa recusa e intolerância com relação ao outro. Quando se trata de uma comunidade “multicultural” como Maroubra, não é a etnia, religião ou país de origem que decidirá quem cabe no grupo: todos podem fazer parte do que é o nós.

Gênero e masculinidades

A partir tanto do comportamento dos personagens e do fato de serem praticamente todos masculinos, quanto da quase ausência de personagens femininas, é possível discutir questões relativas a gênero e masculinidade. Há ainda, o contraponto da avó Ma (possivelmente uma corruptela de “avó”, em inglês). É impressionante a força desta mulher, cuja casa é uma espécie de abrigo seguro (safe heaven, se diria em inglês) para crianças e adolescentes de famílias destrambelhadas e destruídas pela pobreza, desemprego, violência e drogas. Isso inclui os próprios netos de Ma, o trio de irmãos que protagoniza o filme (um deles co-diretor da obra).

Um tema que aparece rapidamente no filme são as diferentes medidas restritivas impostas pelo poder público aos banhistas australianos ao longo do século XX. Segundo Douglas Booth (2001), em seu fascinante livro sobre as culturas de praia australianas, houve momentos em que cercas de arame farpado dividiam as praias, de forma a separar homens de mulheres.

Por sinal, as restrições, perseguições e criminalização do surfe e dos surfistas são um dos muitos assuntos por investigar na história desta prática no país. Em alguns dos poucos trabalhos sobre a modalidade (Cunha, 2000; Fortes, 2011), há indícios de uma série de problemas, controvérsias e até notícias de mortes em vários municípios do litoral catarinense, Arraial do Cabo (RJ) e Recife (PE). Há tanto repressão e conflitos com o Estado quanto com determinados grupos ou setores da sociedade, como pescadores e banhistas. Também no caso da história do skate no Brasil, este é um caminho tão promissor quanto pouco explorado, exceto, até onde sei, por iniciativas pontuais do pesquisador Leonardo Brandão (como este e este artigos).

Bibliografia

BOOTH, Douglas. Australian Beach Cultures: The History of Sun, Sand and Surf. London: Frank Cass, 2001.

CUNHA, Delgado Goulart da. Pescadores e surfistas: uma disputa pelo uso do espaço da Praia Grande. 2000. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2000.

FORTES, Rafael. O surfe nas ondas da mídia: esporte, juventude e cultura. Rio de Janeiro: Apicuri/Faperj, 2011.

WALKER, Isaiah Helekunihi. Waves of Resistance: Surfing and History in Twentieth-Century Hawai’i. Honolulu: University of Hawai’i Press, 2011.

 

 

 

 

 

 

 


Mais sobre a cultura do surfe no Sul da Califórnia

29/05/2017

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

Esta postagem completa uma trilogia iniciada por “Pesquisando história do surfe no Sul da Califórnia” e “Os museus de surfe da Califórnia“. Diferentemente do que geralmente faço, foco é mais em imagens que no texto. Todas as fotos são de minha autoria.

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A lista de surf shops, marcas, empresas, shapers e oficinas de produção de materiais e equipamentos originários do Sul da Califórnia é enorme. Cito algumas: Clark Foam, Dewey Weber, Gordon & Smith, Hobie, Infinity Surfboards, Mark Diffenderfer, Pat Curren, Rusty, Ventura Surf Shop, (há listas extensas na internet, como esta).

Em entrevista [em inglês] ao projeto Sport in the Cold War (Esporte na Guerra Fria), o historiador Mark Dyreson afirma que os Jogos Olímpicos foram arenas para a divulgação de produtos, hábitos, práticas, modalidades esportivas e valores associados à Califórnia: camisas “havaianas”, calças jeans, filmes de Hollywood, praia, natação, vôlei de praia, mountain bike. Isto se deu em diferentes momentos do século XX, em especial nos anos 1930 e nos anos 1980, quando Los Angeles sediou as Olimpíadas de verão, em 1932 e 1984. Na mesma cidade encontram-se os estúdios hollywoodianos, cujos filmes cumpriram uma dupla função: produtos de exportação, também funcionaram como instrumentos de propaganda de uma série de elementos do que se convencionou chamar de culturas californianas, tanto para consumo interno (para públicos dentro do país e tropas espalhadas pelo planeta) quanto em escala mundial.

Esta postagem está organizada por cidade/localidade, começando pelo Condado de San Diego.

San Diego

Entre os diversos centros culturais, museus e galerias do Balboa Park está o San Diego Hall of Champions. Um dos atrativos é um Hall da Fama homenageando atletas nascidos na cidade e/ou no condado. O skatista Tony Hawk, de Carlsbad (no norte do condado), é um dos homenageados no Hall da Fama.

San Diego é uma das capitais da cerveja e das cervejarias artesanais nos EUA. Algumas têm referências a praia (e se localizam próximas à praia) e/ou ao surfe, como Rip Current. De uma lista de cinco cervejas temáticas de surfe disponível no site da revista Surfer, duas são de cervejarias localizadas no Condado de San Diego (em San Diego e San Marcos). E outra da Surf Brewery de Ventura, outra importante cidade de surfe californiana.

Ao sul de San Diego encontra-se Imperial Beach, a última cidade e uma das últimas praias da Costa Oeste do país. Como de costume, o píer favorece a formação de boas ondas dos dois lados. Além de humanos, Imperial Beach também recebe surfistas caninos, que contam com um apoio de seus donos para dropar nas ondas. Até campeonato de surfe de cachorros eu tive oportunidade de assistir (uma boa onda está em 3’14”). Note-se que a gravação foi disponibilizada num site chamado Dog Sports News, algo como Notícias de Esportes Caninos. Havia um conjunto de barraquinhas com produtos especializados, venda de petiscos e cervejas, brinquedos e brincadeiras para crianças etc. O campeonato contava com palanque, sistema de som, chamada de competidores e distribuição de camisetas antes do início de cada bateria etc.

Ao norte do condado, Oceanside, sede do California Surf Museum, é outra cidade que respira surfe. Tal como Imperial Beach, tem seu píer.

Huntington Beach

Esta pequena cidade considera a si mesma a capital do surfe competitivo na Califórnia. Motivos não faltam, como se pode ver nas fotos e legendas acima. Campeonatos, história, passado, campeões, ídolos, comércio, turismo e outros elementos formam uma notória e especial relação entre surfe, território, cultura e economia. Os lados do píer são um importante pico de surfe, assim como da prática de vôlei de praia – a Califórnia é o principal celeiro de jogadores(as) de vôlei de praia dos EUA. Atravessando a rua a partir do píer, chega-se à Calçada da Fama do Surfe, inaugurada em 1978 (mais informações nas legendas das fotos). Nela há uma estátua de Duke Kahanamoku.

Cerca de Los Angeles: DE Santa Monica a Venice

Embora haja um predomínio do surfe no litoral, o skate também é muito praticado. Em cidades como Santa Monica e Venice, a quantidade de cartazes e placas proibindo o skate é um indicativo de sua relevância e ubiquidade.

Santa Cruz

Santa Cruz é outra surf city importante. Localizada bem mais ao norte, é também conhecida pelas águas geladas. Na colina da qual se desce para pegar onda em Steamer Lane encontra-se a placa acima – o tipo de artefato cultural que enche os olhos de um pesquisador de humanidades. Nele lê-se o seguinte (tradução minha):

– O primeiro surfista na onda [ou seja, a ficar de pé sobre a prancha] tem a preferência

– Reme dando a volta na onda, não pelo meio dela

– Controle sua prancha

– Ajude os outros surfistas

Por Sam Reid

O estabelecimento de regras – e os métodos e iniciativas para tentar garantir que sejam cumpridas e obedecidas – são uma característica importante do surfe, ainda que objeto de muita controvérsia. Na visão de muitos de seus praticantes, devido ao número limitado de ondas (sobretudo de ondas boas e de fácil acesso), é preciso estabelecer critérios de preferência e convivência de forma a reduzir a ocorrência de conflitos.

San Clemente

Abaixo estão outras fotos do Surfing Heritage and Culture Center:

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Este texto já estava pronto quando soube da notícia da morte de John Severson, aos 83 anos.”Nascido e criado em Pasadena e San Clemente” [ambas na Califórnia], em 1960  Severson publicou um impresso para divulgar um filme que produzira. Chamava-se The Surfer, depois virou Surfer. Transformou para sempre esta notável atividade sobre a qual escrevo desde 2004, além de ter inspirado praticamente todos os periódicos congêneres de surfe do mundo. Severson vendeu a revista na primeira metade dos anos 1970, mas sempre se manteve próximo ao surfe, inclusive em sua produção artística. Surfline, Liga Mundial de Surfe e a Surfer publicaram belos necrológios. Outros virão.


Os museus de surfe da Califórnia

06/02/2017

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

Como prometi, hoje trato dos cinco museus de surfe localizados na Califórnia. Neste texto, estou usando a categoria nativa, ou seja, considero museus de surfe as cinco instituições que se classificam como tais. Eles se estendem desde Oceanside, no sul do estado, até Santa Cruz. Seguirei este trajeto sul-norte na ordem de apresentação. Todas as fotos sem crédito de autor foram feitas por mim. Informações específicas sobre itens dos acervos estão nas legendas das fotos.

California Surf Museum (CSM, Oceanside)

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Foi o museu em que estive mais vezes. Fica perto da estação de trem e do píer onde surfam e treinam locais e/ou profissionais – o píer aparece constamentemente em séries do canal Off.

Tem uma excelente coleção de revistas, que ficam numa sala confortável e exclusiva para pesquisadores. A pesquisa neste museu fez parte de uma experiência maior, daquelas que não têm preço nessa vida: durante o ano em que vivi na Califórnia, fui respeitado como pesquisador de história do surfe e da mídia do surfe de uma forma como raramente aconteceu noutros lugares – incluindo o Rio de Janeiro e o Brasil – em mais de dez anos dedicados ao tema.

Comandada pela historiadora Jane Schmauss, a equipe é prestativa e simpática – quando solicitadas por mim, as pessoas sorriam e se interessavam pelo meu trabalho, em vez de rosnarem, como acontece noutros lugares e cidades por aí. Conta com voluntários e trabalhadores assalariados. Segundo me explicou Jane, o museu recebe cerca de 25 mil visitantes anuais. O imóvel onde está há alguns anos pertence à Prefeitura de Oceanside – cuja sede fica próxima -, que o alugado a preço subsidiado. Ali pertinho também está a biblioteca municipal (a visita à biblioteca da cidade é um programa bacana, assim como em várias cidades e bairros californianos).

O forte do acervo, como em três outros museus, são as pranchas. Entre doações, empréstimos, exposição permanente e temporária, é possível ter contato com boa parte da produção de pranchas do sul da Califórnia desde os anos 1950. Há também exemplares mais antigos: paipos havaianos, pranchas para salvamento no mar etc. Mas o foco está nos shapers da própria região – vários dos quais são sócios contribuintes do próprio museu e doaram e/ou emprestaram pranchas de sua lavra. Algumas estão autografadas pelos shapers, outras, pelos que as surfaram. Há doações de Kelly Slater e de outros atletas famosos do esporte profissional e/ou das ondas grandes (nas ocasiões em que estive lá, a exposição temporária era sobre surfe em ondas grandes; preparava-se uma exposição sobre surfe durante a Guerra entre os EUA e o Vietnã). Há também seções dedicadas a outros aspectos, como bodyboard e surfe de peito. Tem uma vitrine muito interessante com jogos e brinquedos que têm o surfe como tema – de Barbie a Banco Imobiliário – e outra com dezenas de parafinas.

Sou suspeito para falar, pois nesse museu fiz parte de minha pesquisa de pós-doutorado. Além disso, tive uma experiência bacana como usuário (e não como pesquisador) em todas as ocasiões em que estive lá. Isso porque está em exibição a prancha de Bethany Hamilton – de quem eu nunca ouvira falar até recentemente. Trata-se de uma havaiana, de uma família de surfistas, que teve um braço arrancado por um tubarão enquanto pegava onda com uma amiga, aos 12 anos de idade. A história está contada em dois filmes (um documentário e um de ficção) e um livro. Bethany tornou-se ícone dos e das adolescentes e tem sua própria linha de produtos de beleza. Além disso, o que mais me impressionou: continuou surfando. E bem: embora não corra o circuito mundial, volta e meia participa de um etapa como convidada. Em 2016, chegou à semifinal da de Fiji – é bom lembrar, Bethany surfa com a desvantagem de não ter um braço para remar, se equilibrar e, dependendo do lado para o qual a onda quebra, adequar a velocidade colocando a mão na parede da onda e/ou segurando a borda da prancha.

Enfim, a experiência definitiva de visitante é ficar sentado num pufe, perto da prancha de Bethany, e esperar para ver alguma criança se aproximar (a Califórnia é cheia de crianças, tanto locais quanto turistas). A cara de surpresa que as crianças fazem é indescritível. Cobrem a boca com a mão, mordem os dedos, andam para trás, correm para chamar a atenção de alguém. Ao que parece, todas conhecem a história de Bethany (e por isso a reação). Fica a dica: se você, leitor(a) um dia for ao CSM, e a prancha de Bethany ainda estiver lá, fique uns minutos na área central, como quem não quer nada, até que chegue uma criança ou grupo de crianças à parte dedicada à surfista. A reação delas valerá a visita.

Surfing Heritage and Culture Center (SHACC, San Clemente)

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Para quem vem do sul, San Clemente é a primeira cidade litorânea do Condado de Orange (vulgo OC). Nesta importante cidade de surfe está o SHACC. A entrada para a exposição, que consiste basicamente de pranchas (ver informações no álbum de fotos), custa US$ 5. Para fazer pesquisa no acervo, que conta com revistas, livros e outros documentos, como cartas, é preciso ser membro da associação, o que custa US$ 50 por ano. A reprodução de materiais (uso de scanner etc.) é paga à parte.

Assim como o congênere de Oceanside, o museu é obra do esforço de um conjunto de surfistas, boa parte deles sócios que doam tempo e/ou dinheiro para a manutenção e desenvolvimento do local. Servem também como espaço para a realização de lançamentos de livros e filmes, homenagens, leilões (nos quais se leiloam pranchas e outros objetos para arrecadar recursos para o próprio museu), jantares de homenagem e/ou de arrecadação de fundos para as próprias entidades e para outros fins. Quando estive lá, fui atendido de forma muito simpática por Barry Haun, que, de bermuda e chinelo, me deu informações, forneceu contatos que poderiam ser úteis à minha pesquisa e, enquanto eu fazia a visita, fez a gentileza de telefonar para uma das pessoas para avisar que eu entraria em contato.

International Surfing Museum (Huntington Beach)

Este é o museu em que fui recebido com menos simpatia. Talvez as condições fossem desfavoráveis: era um domingo, ali pela hora do almoço, e havia dezenas de torcedores ruidosos do San Francisco 49ers tocando o terror assistindo ao jogo num pub em frente. (Tocando o terror nos padrões dos EUA, evidentemente; brincadeira de criança, quando se compara com as torcidas de futebol no Brasil.) O que me pareceu mais interessante do acervo foram itens específicos do surfe na própria cidade, sede de importantes campeonatos ao longo de décadas.

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Santa Cruz Surf Museum (Santa Cruz)

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O Santa Cruz Surf Museum é tão pequeno que não daria para o acervo focar em pranchas – elas não caberiam no local. Contudo, tem seus atrativos. O primeiro deles é ficar dentro de um farol. Segundo, fica num lugar belíssimo, à beira-mar, em cima da ponta onde, logo abaixo, está Steamer Lane, uma das ondas mais famosas da Califórnia. Ou seja, a visita ao museu pode ser combinada com uma sessão nas gélidas águas locais – ou, em casos como o meu, com a assistência. O mesmo estacionamento é usado pelos visitantes do museu e pelos surfistas. Terceiro, tem entrada gratuita. Quarto, o acervo tem algumas fotos interessantes, assim como informações sobre aspectos do surfe local, como… ataques de tubarão.

Além de importante cidade de surfe californiana, conhecida pelas boas ondas e pelo mar frio, Santa Cruz é o lugar de origem de um dos principais fabricantes de roupas térmicas para surfe do mundo: O’Neill.

Santa Barbara Surf Museum (Santa Barbara)

Deste, não sei por que, não consegui encontrar as fotos. Assim como o de Santa Cruz, o forte são as pranchas. Há também muitas capas de discos e cartazes de filmes. De todos, foi o que me pareceu mais amador: na verdade, parece uma iniciativa pessoal de um apaixonado pelo surfe. O inacreditável: no domingo em que estive lá, não vi ninguém no museu. Isso mesmo: desde o momento que cheguei até a hora em que saí, não havia absolutamente ninguém lá dentro. O museu não cobra entrada, e é possível levar um adesivo deixando numa caixinha, em troca, uma doação de US$ 1. A casa onde funciona é meio difícil de achar, pois fica numa daquelas ruas meio estranhas: termina do nada numa linha de trem e recomeça do outro lado, só que você olha e não sabe por onde atravessar (pois há grades e muros). E uma vantagem, sem dúvida, é ficar na linda Santa Barbara.