PROFESSOR GIANCARLO MACHADO LANÇA NOVO LIVRO SOBRE SKATE

16/04/2023

Entrevista por Leonardo Brandão

 @leobrandao77

  Foto: Divulgação

Os estudos acadêmicos sobre o skate receberam, recentemente, uma importante contribuição. Trata-se do livro: “A cidade do skate: sobre os desafios da citadinidade”, de autoria do antropólogo e professor universitário Giancarlo Machado. O livro, que contou com apoio da Capes, foi publicado pela Editora Hucitec no âmbito da coleção “Antropologia Hoje”.

Para saber mais sobre este livro, eu fiz uma rápida entrevista com o autor. Foram apenas 3 perguntas, mas que ajudam a lançar luz sobre a obra, inclusive citando os locais onde ela pode ser adquirida.

1 – Gian, conte como surgiu a ideia do livro? Ele é fruto de uma pesquisa universitária?

R: O livro incorpora reflexões realizadas para fins de minha tese de doutorado, intitulada “A cidade dos picos: a prática do skate e os desafios da citadinidade”, defendida em 2017 no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, e também traz questões recentes a partir das disciplinas e investigações que venho desenvolvendo no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Social da Unimontes-MG, onde estou vinculado como professor permanente. A obra é, portanto, derivada de pesquisas universitárias. Para dar visibilidade aos resultados, bem como para propagar temáticas ligadas ao skate acadêmico e aos estudos urbanos, mobilizei esforços para que o livro fosse publicado. Submeti o manuscrito para apreciação do comitê da coleção “Antropologia Hoje” – sendo esta responsável por publicar livros de referência nacional na área da Antropologia – e, após a aprovação, iniciei a negociação com a HUCITEC, editora que atualmente abriga a coleção e que fora responsável pelo lançamento do livro. Cabe destacar que tal livro contou com apoio da Coordenação de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES), código de Financiamento 001, através do Programa de Apoio à Pós-Graduação (PROAP), auxílio 0928/2020, processo 88881.593009/2020-01. Sou grato, assim, ao PPGDS/Unimontes, Editora HUCITEC e CAPES por tornarem possível a publicação de “A cidade do skate: sobre os desafios da citadinidade”. E também, mas não menos importante, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), que garantiu minha bolsa de doutorado a partir da qual viabilizei boa parte da pesquisa, aos skatistas que tive contato no curso do trabalho de campo, e aos professores e pesquisadores que contribuíram com críticas e direcionamentos.

2 – Do que trata o livro? Como ele está estruturado?

R: O skate de rua é o foco de uma investigação antropológica que o trata não apenas como uma prática multifacetada que transcorre no urbano, mas, igualmente, como uma própria prática do urbano transposta por subversões, conflitos e negociações, enfim, por posicionamentos díspares frente às governanças que são feitas dos espaços urbanos. Evidencia-se como os skatistas embaralham ordenamentos e põem em suspensão embelezamentos estratégicos de uma cidade gerenciada como mercadoria e voltada para práticas de cidadania que são englobadas sobretudo por lógicas de consumo. A publicação está divida em duas partes, sendo que, cada uma, traz dois capítulos. O primeiro deles, intitulado “Manobras na Praça Roosevelt: embates em torno da prática do skate”, traz uma abordagem etnográfica que analisa as sociabilidades e os conflitos que emergem a partir das apropriações que os skatistas fazem da Praça Roosevelt, um dos principais picos de skate de São Paulo. Evidencia, portanto, embates e negociações entre perspectivas citadinas e normatizações institucionais por meio das quais são colocadas em tela as estratégias esperadas, bem como as subversões que delas são feitas, para a apropriação de certos espaços públicos paulistanos. O segundo capítulo, por sua vez nomeado “Entre a destruição e a criação: quando os skatistas fazem a cidade”, aborda os múltiplos sentidos que permeiam o universo da prática do skate de rua em São Paulo. Por meio de uma investigação detida em várias situações são reveladas as experiências citadinas mais valorizadas pelos skatistas, como os rolês e a busca por picos em espaços não definidos de antemão. As análises revelam as relações de poder, assimetrias, desigualdades e segregações que calham em São Paulo e como os skatistas resistem e se impõem em toda sorte de espaços a partir de suas manobras e táticas astuciosas. O terceiro capítulo, “Skate, esporte e política: governanças da citadinidade”, demonstra como uma série de agenciamentos político-urbanísticos vem tentando enquadrar a prática do skate de rua conforme suas próprias rubricas com vistas a amenizar — ou até mesmo coibir — os impactos de sua realização em determinados espaços e equipamentos urbanos não planejados para as ações dos skatistas. “A espetacularização da citadinidade: sobre a cooptação do skate de rua” é o título do quarto e último capítulo. Ao contrário do anterior, onde são priorizados os enquadramentos institucionais que visam combater a citadinidade inerente a prática do skate de rua, este capítulo revela o distanciamento de certos skatistas em relação às estratégicas pretensões que fomentam apenas a sua dimensão esportivizada. O capítulo exprime, com efeito, como as experiências urbanas dos skatistas, malgrado os combates que a elas são destinados, também são cooptadas a ponto de provocar uma reconfiguração e espetacularização de certos espaços da cidade. Enfim, é um livro que aborda as contradições da citadinidade a partir de resistências e capturas.

3 – Onde é possível adquiri-lo? Ele está a venda pela Internet?

R: O livro pode ser adquirido através de vários canais. A editora HUCITEC está responsável pela venda direta em seu próprio site (https://lojahucitec.com.br/). Também é possível encontrá-lo em demais livrarias online, como Amazon e Estante Virtual. Ou, ainda, com o skatista Murilo Romão, do coletivo Flanantes (@flanantes_), e pelo projeto “Skate Acadêmico” (@skateacademico ou skateacademico@gmail.com). No final do mês de maio de 2023 acontecerá o lançamento em São Paulo, na livraria Tapera Tapéra.


MEU PRIMEIRO TEXTO PARA UMA REVISTA DE SKATE

02/01/2023

Leonardo Brandão

@leobrandao77

Historiador e Professor Universitário

No início de 2004, período no qual estava terminando meu bacharelado em História na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), publiquei meu primeiro texto sobre skate numa mídia impressa de alcance nacional: a revista 100% Skate (Atualmente a grafia desta revista/mídia digital aparece como CemporcentoSK%TE).

Nesta época, estava escrevendo meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), requisito obrigatório para a obtenção do meu almejado título de historiador. Eu havia resolvido pesquisar (para espanto de alguns professores mais ortodoxos, mas também motivado pelos entusiastas da “Nova História”) a prática do skate; tema até então inédito nos estudos historiográficos no país (havia alguns trabalhos na área da Educação Física, mas nada em História).

Foi neste contexto que tive a coragem de enviar pelos Correios (pois eu não tinha computador e nem acesso fácil à Internet nesta época) um pequeno texto para essa revista da qual já era leitor desde a sua fundação no ano de 1995.

O texto foi enviado com mais dúvidas do que certezas: Será que ele chegaria a seu destinatário? Será que seria lido pelo editor? (na época, o skatista profissional Alexandre Vianna) Será que seria publicado? Algum tempo se passou e, para minha surpresa, recebi pelos Correios a edição impressa da revista em minha residência; nela, havia meu texto publicado! Foi uma festa, mas também o início de uma parceria que se mantém (com períodos de maior e menor intensidade) até os dias atuais.

Relendo esse texto após quase duas décadas de sua publicação, ainda hoje o considero interessante, pois ele nos incita a pensar sobre as possibilidades do corpo. A seguir, reproduzo-o na íntegra para que ele chegue a novos leitores (talvez alguns que nem eram nascidos na época de sua publicação original). Após isso, escrevo outro breve texto atualizando algumas informações nele contidas e finalizo sugerindo alguns links para quem quiser saber mais sobre o assunto aqui tratado.

CONVITE À QUESTÃO: O QUE PODE O CORPO?

Quando, no século XVII, o filósofo holandês Bento Espinosa (1632 – 1677) escreveu “Ética”, um dos livros mais importantes de toda a história da filosofia, ele observou: “Ninguém, na verdade, até o presente, determinou o que pode o corpo, isto é, a experiência não ensinou a ninguém, até o presente, o que, considerado apenas como corporal pelas Leis da Natureza, o corpo pode fazer e não fazer”. Séculos passaram e a questão continua inquietante. Afinal: que pode o corpo?

Transportando essa questão para o universo do skate, ela parece redobrar o seu valor. Pois foi com ele e por ele que o corpo pôde saltar gigantescas escadas, descer corrimãos, andar por transições, bordas, bancos, palcos etc. O skate descobriu novas possibilidades para o corpo e, a cada dia que passa, skatistas demonstram algo novo que ainda se pode fazer com ele: Bob Burnquist provou que o corpo pode dar um looping num tubo, Tony Hawk demonstrou que o 900º é possível numa rampa vertical, outros tantos já exploraram seus corpos de inúmeras maneiras, sempre tentando ultrapassar seus limites e provando que o corpo humano, com um skate sob os pés, pode se superar constantemente, encontrar novos desafios e lugares para andar.

A evolução permanente nas manobras de skate lança o desafio da superação infinita: criar novas manobras, executá-las em lugares inusitados, fazer diferente. O futuro no skate, ao contrário da grande maioria dos esportes, é uma caixa de surpresas a demonstrar que o novo pode ser inventado sempre.

(Texto publicado na edição impressa da revista 100% Skate, n. 74, maio de 2004, p. 96).

Atualizações: Realmente, Bob Burnquist foi o primeiro skatista a realizar um looping num tubo “natural”, isto é, não projetado para o skate. Ele realizou tal façanha no dia 23 de novembro de 2003 às 16h e 20 minutos, tal como consta no site da Transworld Skateboarding listado abaixo. Há relatos, todavia, de que o looping em rampas projetas para o skate havia sido concluído já em 1979 pelo skatista norte-americano Duane Peters. Importante registrar que no ano de 1998, Tony Hawk decidiu recuperar a ideia do looping e o realizou com perfeição, documentando o feito no filme “The End” da Birdhouse. Ainda sobre Bob, o skatista também teve os méritos de realizar o primeiro looping com gap, isto é, com uma abertura na parte superior do tubo. Acerca do giro de 900º, com o passar do tempo, mais rotações foram introduzidas. Em maio de 2020 o skatista curitibano Gui Khury foi o primeiro a realizar o 1080º (três giros completos) numa rampa vertical e entrou para o Guinness World Records (antes dele, em 2012, o skatista Tom Schaar havia conseguido os três giros, mas numa Mega rampa, o que permite maior velocidade e amplitude nas manobras).

 

Para saber mais:

1 – Site da Transworld Skateboarding que afirma o pioneirismo de Bob Burnquist no looping num tubo “natural”.

https://skateboarding.transworld.net/news/bob-burnquist-makes-skateboarding-history/

2 – Veja o próprio Bob Burnquist, em entrevista no Programa Podpah flow cast, recuperando a história dos skatistas que fizeram o looping e citando o nome de Duane Peters e Tony Hawk.

https://www.youtube.com/watch?v=1tTs9iGdThM

3 – Tony Hawk realizando o looping no ano de 1998 em imagens do filme “The End” da Birdhouse:

https://www.youtube.com/watch?v=gO07tMtmByg&t=5s

4 – Vídeo do skatista Gui Khury realizando o primeiro 1080º numa rampa vertical (half-pipe) no canal do youtube do Guinness World Records:

https://www.youtube.com/watch?v=TnwT7rBLKY0


O AVANÇO DO SKATE FEMININO*

23/05/2022

Leonardo Brandão

Historiador e Professor Universitário

@leobrandao77

“Não se nasce mulher; torna-se mulher”. Esta frase pertence a escritora Simone de Beauvoir (1908 – 1986), a qual, através do livro intitulado “O Segundo Sexo”, lançado em 1949, contribuiu para questionar os lugares de sujeito que a sociedade patriarcal reservava para as mulheres, uma vez que a posição das mulheres na sociedade era (ainda é?) determinada por fatores culturais e sociais. A reflexão de Beauvoir exerceu forte influência no movimento feminista e, desde então, muitas conquistas foram obtidas.

Embora, nos últimos anos, estejamos vivendo no país uma espécie de retrocesso civilizatório, ainda assim, quando observamos o skate feminino, há motivos de sobra para nos orgulharmos. Rayssa Leal, Gabriela Mazetto, Yndiara Asp, Virgina Fortes, Pipa Souza, Priscila Morais, Esther Solano, Giovana Dias, Vitória Mendonça, Atali Mendes, Kemily Suiara, Pamela Rosa, Marina Gabriela, Vitória Bortolo, Karen Feitosa, Agatha Pinheiro, entre muitas outras, estão ora elevando o nível das manobras nas competições, ora manobrando em pistas e/ou filmando pelas ruas. Num Brasil que insiste em caminhar para trás, essa maior presença das mulheres no skate é um sinal de progresso.

E o que falar da História do Skate Feminino? Embora saibamos que, desde o início elas sempre estiveram sobre o carrinho, os estudos sobre este tema ainda são escassos. No Brasil, quem ajudou a preencher um pouco dessa lacuna foi a pesquisadora Márcia Luiza Figueira, estudiosa que produziu a primeira tese de doutorado específico sobre skate feminino, intitulado “Skate para meninas: modos de se fazer ver em um esporte em construção”, defendida em 2008 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Num capítulo publicado no livro “Skate & Skatistas: questões contemporâneas”, Márcia Figueira evidenciou algumas conquistas do skate feminino a partir da virada do milênio. Ela lembra que um passo importante no aumento de sua visibilidade foi dado pela revista CemporcentoSKATE em 2001, quando foi inaugurado o encarte 100%SkateGirl, no qual a skatista Giuliana Ricomini estreou a seção “ponto de vista”. No ano seguinte, em 2002, na segunda edição desse encarte, seu editorial explicava:

“Há muito que as meninas ambicionavam um espaço só seu na revista. Pediram, clamaram, reclamaram (e mais uma infinidade de outros verbos). Sobretudo elas ANDARAM de skate. Por isso CONSEGUIRAM […] insistiram em andar de skate, em acertar manobras, em correr campeonatos, em evoluir”.

As meninas (eu prefiro o termo mulheres) foram conquistando seus espaços nos veículos de mídia especializado. No ano de 2004, a extinta revista Tribo também passou a dedicar uma seção para elas, intitulado Lilith. Neste mesmo ano, segundo os estudos de Marcia Figueira, Alexandre Vianna, que na época presidia a Confederação Brasileira de Skate (CBSk), afirmou ser “legal ver as meninas se unindo na construção de um espaço e de uma identidade dentro do skate nacional”.

Um marco importante nessa batalha por visibilidade ocorreu em julho de 2006, época da simbólica publicação da centésima edição da revista CemporcentoSKATE. Nela, pela primeira vez, uma skatista aparecia na capa dessa revista. Tratava-se da skatista Eliana Sosco, com uma manobra (noseslide) descendo um corrimão de escadaria, fotografada por Renato Custódio.

Daí em diante muitas outras conquistas ocorreram, como a capa da Ligiane Xuxinha na edição de setembro de 2011 ou o sucesso internacional da skatista Letícia Bufoni, por exemplo. Mesmo no universo acadêmico, surgiram mais mulheres pesquisando a prática do skate. Em 2014, Allana Joyce Scopel defendeu na UFMG a dissertação de Mestrado “A apropriação do Parque da Juventude pelos Skatistas”; e em 2016, na FURG, Juliana Cotting Teixeira defendeu a dissertação “Cenas Urbanas: skatistas, ocupação da cidade e produção de subjetividades”.

Além disso, muitas crews de skate feminino surgiram, como as Pantaneiras Skate Girls na cidade de Campo Grande/MS (encabeçado pela skatista Edduarda Grego) ou as Batateiras, em São Paulo, que surgiram com o intuito de incentivar e fomentar o skate feminino. As Batateiras, inclusive, figuraram no documentário Skate Le Monde, produzido para a televisão francesa TV5 Monde[1].

A história do skate feminino é rica e merece muito mais investigação e registro. As primeiras praticantes, a luta por visibilidade, o preconceito, a corporalidade, questões de gênero, etnia e tantos outros enfoques são possíveis. O trabalho de Marcia Figueira foi pioneiro ao desbravar o assunto, mas outros estudos podem ser feitos. E aí, você skatista que está fazendo ou pretende fazer uma faculdade? Que tal este tema para um Trabalho de Conclusão de Curso? Pois, afinal, vamos combinar que o universo do skate ficou muito mais interessante com a presença das mulheres!

* Este post é uma versão levemente modificada do texto “Sim, elas podem!”, publicado na edição impressa da revista CemporcentoSKATE, edição n. 220, de out/nov de 2021.

[1] O episódio pode ser visto em: https://www.tv5unis.ca/videos/skate-le-monde/saisons/1/episodes/9

 


POR UMA HISTÓRIA CULTURAL DOS SHAPES

27/09/2021

Por: Leonardo Brandão – @leobrandao77

Historiador e Professor Universitário

A história do skate geralmente é associada a eventos e personagens, sua evolução técnica, a formação de um campo esportivo ou aos conflitos que engendrou no espaço urbano. Entretanto, há um elemento importante que também nos ajuda a compreender sua trajetória: a prancha do skate, chamada de shape, seus formatos e grafismos.

De acordo com o pesquisador carioca Thiago Cambará, autor de uma dissertação de mestrado sobre este assunto, um primeiro desenvolvimento mais notável na arte dos grafismos nos shapes começou por volta de 1974 nos Estados Unidos, e isso a partir de um dos integrantes do grupo Z-Boys, chamado Wes Humpston. Ele começou a fazer nas suas pranchas (e na de alguns amigos), desenhos influenciados por símbolos encontrados nas jaquetas de motoqueiros ou mesmo em histórias em quadrinhos undergrounds (como as produzidas pelo desenhista Robert Crumb). Não demorou para que ele, junto a outro membro desta equipe (Jim Muir) fundassem uma marca de skate. Assim, no ano de 1978 nascia a Dogtown Skateboards, que foi a primeira empresa a fazer o uso de serigrafia para imprimir design gráficos em séries nos shapes.

Imagem 1: Shape Dogtown

Ainda de acordo com este autor, o contexto histórico do final do final dos anos 70 e início da década seguinte, marcado fortemente pela ascensão do punk-rock e do heavy metal, explica a escolha por desenhos baseados em caveiras, ossos ou animais ferozes. No ano de 1978, por exemplo, surgia nos Estados Unidos a empresa Powell Peralta, que se destacou pelo uso da famosa caveira – apelidada de Ripper – concebida pelo artista Vernon Courtlandt Johnson (VCJ).

Imagem 2: Ripper: a famosa caveira da Powel Peralta

Outra marca que fez um bom uso dos grafismos foi a Santa Cruz, que teve no artista Jim Phillips seu centro criativo, famoso pela criação da mão gritante (Screaming Hand) no ano de 1985, a qual estampou não apenas shapes mas também muitas roupas e adesivos desta marca e, até hoje, continua sendo sua principal identidade visual.

Imagem 3: Screaming Hand, da marca Santa Cruz

Com o tempo, outras influências foram surgindo, como tons mais abstratos vindo da cena musical da New Wave, e os desenhos também foram se modificando e apresentando abstracionismos e texturas mais coloridas, como vários modelos de shapes das marcas Sims e Vision atestam à época.

No Brasil, a arte dos shapes também teve um expressivo desenvolvimento. Empresas como a Lifestyle e Urgh! (entre outras) produziram shapes memoráveis no final da segunda metade da década de 1980 e início da seguinte. Nesta época, segundo Mallo Ryker (skatista desde 1987 e animador de gráficos em shapes):

“O skate tinha uma identidade com os models e com a personalidade dos skatistas, e cada um tinha a sua especialidade. Você se identificava muito com o rolê do skatista e com o model que ele usava, tanto o gráfico quanto o formato do shape, e aquilo era tua bandeira, o que te representava” (Entrevista realizada em 05/05/2020 – Arquivo do Autor).

Numa entrevista que também realizei com o Mauro Azevedo (proprietário da empresa Lifestyle), ele explicou que neste período sua marca tinha por “foco principal ouvir o skatista. A gente teve essa visão: uma marca de skate tem que ouvir o skatista. Então a Lifestyle passou a traduzir a ideia do skatista nos desenhos e formatos dos shapes (…)”. Mauro conta que cada skatista de sua equipe tinha um formato de shape diferente. Ele deu o exemplo do skatista Fernandinho “Batman”, que foi desenvolvendo o formato de seus shapes para ladeira conforme as manobras que ia realizando e aprendendo; então, conforme ele pegava no shape para dar um slide, ele falava:

“Aqui eu pego assim, aqui eu dou a manobra tal, então, ele sempre fez uns shapes diferentes né! O Daniel Bourqui, que era um skatista de vertical, era um shape largo com um tail bem alto em função das manobras que ele fazia no vertical, e o Rui Muleque e Beto or Die, ambos streeteiros, foram aperfeiçoando os pro models deles ao longo dos anos. Então, o pro model traduzia muito o rolê de cada skatista…e isso era o que era legal, o model era a característica do skatista” (Entrevista realizada em 15/06/2020 – Arquivo do Autor).

Atualmente – e infelizmente – os shapes perderam muito da estética que tinha no final dos anos 80. Tanto é que são apelidados de shapes Band-Aid ou Shapes Palito de Picolé, pois apresentam sempre um mesmo formato e gráficos pouco trabalhados. Por outro lado, há um movimento crescente que parece dizer que nada impõe que este destino seja inexorável. Nos Estados Unidos, o skatistas canadense Andy Anderson passou a assinar um model de shape todo quadrado, útil para adaptar manobras de freestyle no street moderno; empresas como a New Deal estão relançando shapes do início dos anos 90 com duas furações para os eixos e o skatista Mike Vallely vem produzindo shapes diferenciados com sua marca Street Plant.

No Brasil, recentemente, a marca Lodo Boards, numa parceria com o site Trocando Manobras do skatista Filipe Maia, lançou um shape no formato oval; e a própria Lifestyle relançou seus models que fizeram sucesso no final dos anos 80, como podemos observar na imagem a seguir:

Imagem 4: Shape da Lifestyle, model Rui Muleque (Stage III)

Talvez o futuro não seja dominado unicamente pelos shapes band-aid, pois o crescente saudosismo dos shapes com gráficos elaborados, outros formatos, com nose pequeno e tail grande, ou todo cheio de dobras e quinas, possa de fato retornar e construir um futuro mais aberto para experimentações estéticas e para a pluralidade de estilos!

Para saber mais:

CAMBARÁ, Thiago. Skate e o seu design gráfico: uma breve análise. In: BRANDÃO, Leonardo; HONORATO, Tony (Org.). Skate & Skatistas: questões contemporâneas. Londrina: UEL, 2012, p. 111 – 146.

PHILLIPS, Jim. Surf, Skate & Rock Art. Atglen: Schiffer Publishing, 2004.


Skate, atitude e política

25/06/2021

Por: Leonardo Brandão (@leobrandao77)

Universidade Regional de Blumenau – FURB

IMAGEM: Murilo Romão, do coletivo Flanantes, praticando skate de rua no centro de São Paulo/SP. Fotografia: André Calvão. Clique sobre a imagem para ampliá-la.

NOTA INTRODUTÓRIA:

No dia 21 de junho comemora-se o Dia Mundial do Skate. Neste ano, fui convidado para realizar um depoimento num evento organizado na Unibes Cultural, em São Paulo/SP. O organizador deste evento solicitou um depoimento sobre a relação entre skate, atitude e política. O depoimento que proferi tomou por base este texto que segue abaixo para leitura.

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A relação entre a prática do skate e a noção de atitude é antiga. Podemos retornar no tempo e nos lembrar dos Z-Boys, grupo de skatistas que, nos Estados Unidos, revolucionou essa atividade durante a década de 1970 ao invadir piscinas em propriedades particulares e praticar skate em suas transições, fato este que está no documentário “Dog Town and Z-Boys”, dirigido por Stacy Peralta e que, inclusive, pode ser conferido no You Tube para quem tiver curiosidade[1].

A atitude na prática do skate se revela de inúmeras maneiras, seja pelo visual (a indumentária), na sua relação com a música (geralmente com o punk-rock, ou o chamado skate-rock e também ao rap) e, sobretudo, nas manobras; isto é, na escolha das manobras e onde realiza-las. Na prática do skate de rua (street), há um elemento incontestável de atitude no flanar pelo urbano, quando os skatistas se apropriam de determinados elementos da cidade, os chamados aparelhos urbanos, tais como escadas, transições, bancos, guias etc.

Na história do Skate, tais atitudes ganham dimensões políticas. No caso do Brasil, é conhecida sua proibição na cidade de São Paulo no ano de 1988, pelo autoritarismo de seu prefeito à época, Jânio Quadros…O skate apenas voltou a legalidade na gestão de Luiza Erundina no início dos anos 90. Todo este episódio da proibição do skate em São Paulo encontra-se muito bem documentado, e isso tanto no Jornal “A Folha de S. Paulo” quanto na revista Yeah!, que tinha como editor-chefe Paulo Anshowinhas e que foi uma das principais mídias de skate da década de 1980 no país. Posteriormente, vale destacar que também tivemos políticas públicas que beneficiaram o skate ao construir espaços específicos para sua prática. Exemplos neste sentido podem ser observados na gestão da ex-prefeita Marta Suplicy, que viabilizou a entrega de inúmeras pistas no Projeto Centros de Bairro[2] ou na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad, que além de incentivar a ideia de “cidade para pessoas”, também realizou a construção de pistas de skate, como o Centro de Esportes Radicais, localizado no Bom Retiro ou ainda a Pista de Skate da Chácara do Jóckey.

Mas há uma relação mais complexa que envolve skatistas e a temática do poder. Para além das políticas públicas aqui destacadas, podemos pensar que o poder se relaciona com a atitude do skate de inúmeras maneiras. Recentemente, tivemos a destruição de um pico clássico do skate paulistano, no Vale do Anhangabaú. Inconformados, os skatistas resistiram e conseguiram, através de um movimento urbano que ficou conhecido como “Salve o Vale”, viabilizar parte da reconstrução deste pico, sob supervisão e projeto do arquiteto Rafael Murolo. Este novo pico atualmente é conhecido como o Memorial. Esta história de luta e negociação com o poder público virou um livro, organizado pelo skatista profissional Murilo Romão e que conta toda a saga do skate no Vale do Anhangabaú, desde os primórdios, passando pela destruição e a posterior construção do memorial, que se tornou um aparelho urbano skatável.

Este acontecimento, portanto, nos mostra que o poder não tem apenas uma via, ele pode reprimir, mas também pode ser usado para a construção, para algo positivo. No caso do skate praticado na rua, os skatistas conhecem há muito tempo a temática do poder, que neste caso é quase sempre utilizado na forma disciplinar, sobretudo com guardas e policiais, que não autorizam o uso de determinados espaços urbanos. Mas existem maneiras de contornar esse poder disciplinar e realizar a apropriação da cidade, e o coletivo Flanantes, que vem produzindo uma série de filmes sobre o uso criativo do skate nos espaços públicos é uma prova disso (Todos os vídeos dos Flanantes podem ser conferidos também no Youtube).

Por fim, há também uma outra dimensão do poder, e na minha tese de doutorado, que deu origem ao livro “Para Além do Esporte: Uma História do Skate no Brasil”, que eu intitulei de Poder Esportivo. Esta modalidade do poder visa transformar o skate num esporte de competição, criando regras, categorias, rankings etc. Trata-se de um poder que visa moldar o skate no campo esportivo, sendo, uma de suas maiores conquistas, a entrada do Skate nas Olimpíadas.

Este breve panorama nos faz ver, portanto, que não podemos falar no skate no singular, mas sim no plural. Não existe o skate ou o skatista, mas sim determinadas formas de utilizar o skate, seu uso heterotópico nas ruas ou na forma de competição em espaços delimitados e organizados para tanto; como também não existe o skatista, mas skatistas, com identidades múltiplas, pois enquanto há aquele que se reconhece enquanto um atleta (houve num passado até quem já se intitulou “Atleta de Cristo”), existem outros que preferem interpretar o skate, na expressão do skatista Klaus Bohms, como uma “ferramenta de reinterpretar espaço”, o que associa o skate muito diretamente ao campo artístico.

Para saber mais:

BRANDÃO, Leonardo. Para além do Esporte: uma história do skate no Brasil. Blumeau: Edifurb, 2014.

ROMÃO, Murilo (Org.) Vale TXT. São Paulo: Flanantes, 2020.


[1] https://www.youtube.com/watch?v=7YKPEDayb_U, acesso em 15/06/2021.

[2] https://cemporcentoskate.com.br/fiksperto/marta-suplicy-oficializa-a-entrega-das-44-pistas-de-skate-em-sp/, acesso em 15/06/2021.