Adhemar Ferreira da Silva: representações de um herói olímpico (parte 3)

29/11/2021

Fabio Peres e Victor Melo*

DO GALEÃO ATÉ O OBELISCO. Ademar Ferreira da Silva Aclamado Ontem Por Toda a População Carioca. Regresso Triunfal do Maior Atleta Brasileiro de Todos os Tempos - O Povo, Emocionado, Viu e Ovacionou o Herói [...] (Última Hora, 14/12/1956, p.8)  

O retorno de Adhemar ao Brasil, após a conquista da medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Melbourne, foi cercado por um misto de expectativa e exaltação. Os periódicos refletiam e, ao mesmo tempo, fomentavam uma certa inquietação em torno do “herói” que “mais uma vez, soube fazer tremular a bandeira do Brasil no mastro olímpico maior”[i].

Desde a vitória e, principalmente, nos dias que antecederam a sua chegada, os jornais anunciaram cada vez com maior comoção e destaque o seu regresso. O Diário Carioca até mesmo noticiou na primeira página da edição de 13 de dezembro a programação completa do cerimonial de sua recepção no Rio de Janeiro. O feito de Adhemar foi considerado tão memorável que a TV Tupi fez uma cobertura ao vivo[ii], algo bastante incomum à época.

A solenidade começou ainda no Aeroporto com a entrega de um galhardete bordado em ouro pelo presidente do Departamento de Imprensa Esportiva da Associação Brasileira de Imprensa. Altas autoridades do país estavam presentes, entre os quais o ministro da educação e cultura (Clóvis Salgado) e o prefeito do Distrito Federal (Negrão de Lima)[iii]. Um cortejo de automóveis, que passou pela Av. Rio Branco, uma das principais da cidade, conduziu o atleta para ser recebido pelo presidente da República, Juscelino Kubitschek.

Nos jornais, foram publicadas fotografias da recepção no Palácio do Catete (sede do poder executivo), nas quais Adhemar aparecia ao lado do presidente da República. As legendas que as acompanhavam são emblemáticas das representações que se buscava construir em torno do atleta, nas quais se mesclavam as ideias de povo, Estado e nação. O leitor era informado que Adhemar recebeu uma “consagradora recepção […] do povo carioca”, bem como ouviu do governante máximo da nação “palavras de estímulo e agradecimento pela extraordinária projeção que deu ao Brasil através da sua magnífica vitória […]”[iv].

Última Hora (14/12/1956, p.1) e Diário Carioca (14/12/1956, p.1)                 

A despeito dessa exaltação, novos tempos vivia o Brasil. O governo Vargas, imerso em denúncias e escândalos, acabou de forma trágica, com o suicídio do líder histórico. O governo de transição foi marcado por grande tensão, assim como a eleição de Juscelino Kubitschek, que assumiu e governou sempre sob muitas críticas e conflitos. Sua administração (1856-1961) seria marcada pela aceleração do processo de industrialização e crescimento econômico, mas também pelo aumento da dívida pública e inflação. Houve grande projeção do país no cenário internacional, especialmente por fatos do âmbito cultural, como a bossa nova, a arquitetura moderna e as conquistas esportivas (entre as quais o título máximo do futebol, na Copa do Mundo da Suécia, em 1958)[v].

Dessa vez, a vitória de Adhemar não foi unanimemente celebrada. Ainda que as contestações não recaíssem sobre a imagem de Adhemar, a ausência de outros bons resultados nos Jogos Olímpicos chamou a atenção e foi motivo de debate. Considerava-se tal ocorrido como sinal da fragilidade do Estado brasileiro, críticas que se dirigiam à atuação do novo presidente da República. Wilson Brasil foi bem explícito:

FRACASSO! Papelão! O Brasil novamente fracassa redondamente nas Olimpíadas. E que fracasso! Não conseguimos nada, senão o título de Adhemar Ferreira da Silva. Felizmente, ainda temos essa exceção. Aliás, esporte em nosso país é isso: Adhemar e futebol. Além disso, nada mais há[vi].

Se antes a vitória de Adhemar era considerada como grande triunfo da nação, fato que projetaria uma boa imagem do Brasil no exterior, a nova conquista foi por alguns encarada como bálsamo não suficiente para esconder os problemas enfrentados pelo país. Como sugeriu um cronista:

Estamos sempre por baixo de países insignificantes, que nenhuma importância tem no concerto mundial. Se não fosse Adhemar Ferreira da Silva, teríamos ficado atrás de paisinhos que quase não aparecem no mapa […]. Está positivado que nos encontramos ainda muito distantes da maturidade. Precisamos enxergar a realidade como ela é e nos convencermos de nossa insignificância […] a fim de conseguirmos alguma coisa no futuro[vii].

Essa compreensão estava se delineando desde os Jogos Pan-Americanos de 1955 (Cidade do México), quando a delegação brasileira não teve bom desempenho, explicitando para alguns “a nossa inferioridade esportiva”[viii]. Ainda assim, a conquista, de Adhemar (medalha de ouro e quebra de recorde mundial[ix]) ganhou grande repercussão. O Globo fez questão de não apenas publicar uma matéria especial, de página inteira, como também organizou uma homenagem no estádio do Maracanã, o grande palco do esporte nacional[x].

O Globo, 19/03/1955, segunda seção, p.1.

As competições internacionais continuavam sendo valorizadas como forma de projeção nacional, contudo com menor ufanismo ao seu redor. Aliás, poucos dias após a notícia da vitória de Adhemar, chamou-se a atenção para a apropriação política em torno da exaltação exagerada da nação. Numa coluna em que eram apresentados os piores e melhores fatos da semana, a “pior coisa” escolhida foi a posição de “urubus e demagogos”, “abutres” que tratavam a conquista do atleta com “frases ocas, enfeitadas, demagógicas, estarrecedoras, falando em bandeiras, patriotadas etc.”[xi].

Em todo caso, ainda prevaleceu um tom festivo e celebratório ao herói. Afinal, a vitória em Melbourne correspondeu à expectativa construída nos meses anteriores às Olimpíadas, mesmo que o atleta tenha enfrentado certas dificuldades para conseguir o índice de classificação.

Uma ampla matéria sobre as chances dos atletas brasileiros em Melbourne destacou – ainda que ponderando sobre as dificuldades que Adhemar teve para treinar durante o ano – que ele era a principal esperança da delegação nacional obter alguma medalha de ouro[xii]. A expectativa ganhou também contornos continentais. O Jornal do Brasil chamou atenção ao fato de que foi o único latino-americano com possibilidade de vitória nas provas de atletismo indicado por cronistas esportivos europeus “mais destacados”[xiii]. Já Jesse Owens, o “Homem das Quatro Medalhas de Ouro em Berlim”, havia declarado poucos dias antes do Jogos que Adhemar era “sem dúvida alguma um dos maiores atletas mundiais do momento”[xiv].

Última Hora, 9/11/1956, p.16.

No próprio dia das provas do salto triplo, o Diário Carioca chegou a informar, logo na capa, aumentando a expectativa do leitor, que Adhemar se classificara “reservando energias” para a final que ocorreria à tarde[xv]. O Globo e o Última Hora se colocavam como testemunhas privilegiadas e, de modo indireto, também como partícipes e caudatários da conquista[xvi].

A popularidade e o prestígio de Adhemar, não é demais assinalar, se tornaram bastante expressivos no intervalo entre as duas Olímpiadas. Seu nome era frequentemente citado como o maior esportista do Brasil, inclusive por atletas de outras modalidades, como o futebol[xvii]. Matérias e colunas de jornais dedicadas à vida de “famosos”[xviii] e “personalidades”[xix], para além do campo esportivo, se referiam a ele como uma celebridade. A pista de atletismo de Belo Horizonte (MG) foi batizada com seu nome[xx].

O sentimento de nacionalismo, caro à participação de atletas brasileiros em contendas internacionais desde o começo do século XX[xxi], ganhou novos contornos na segunda conquista olímpica de Adhemar. A exaltação do atleta como símbolo do êxito da nação foi conciliada a certas qualidades individuais do bicampeão olímpico, algo que aparecera menos intensamente na vitória de 1952.

Negro, culto e portador de “virtudes” tanto atléticas como psicológicas, intelectuais e morais – as representações sobre Adhemar incorporavam a autoimagem de uma nação que seguia buscando consolidar, interna e externamente, uma narrativa identitária mestiça – entendida como sinal positivo da formação social brasileira.

Não foram poucos os traços apreciados, às vezes de maneira difusa, nos jornais. Eles abarcam desde questões como a facilidade de Adhemar se expressar publicamente (inclusive em outros idiomas como o inglês, francês e espanhol), passando por sua ampla formação e trajetória educacional formal, chegando a seu jeito pessoal, suas relações familiares, a vocação para o trabalho e seu posicionamento no mundo do esporte.

Um dia após a conquista da medalha em Melbourne, o Última Hora buscava sintetizar todas essas qualidades em uma coluna que homenageava Adhemar. Tratava-se de – como salientava o periódico em letras garrafais – de um “embaixador” que “honra todo o Brasil”[xxii]:

O leitor entenderá perfeitamente que se preste nestas colunas uma homenagem particularmente vibrante e comovida ao atleta excepcional que fez com que o mundo inteiro, ontem, pronunciasse com admiração o nome do Brasil. Pois as qualidades do coração e do espírito de Adhemar estão à altura do valor excepcional dos seus músculos. E em qualquer ponto do globo em que o grande campeão do salto triplo vai exibir-se, torna-se, com efeito, um magnífico embaixador esportivo.

Parte do reconhecimento passava, assim, pela ideia de representatividade positiva do Brasil em terras estrangeiras, pela capacidade de figurar como símbolo de uma nação. Adhemar seria, nesses termos, um arauto de uma certa “brasilianiedade” laudatória: 

Bom filho, bom esposo, bom pai, Adhemar é um homem inteligente, estudioso, mais culto do que a média dos atletas, que sempre pensa em deixar a melhor impressão em todo país que vai visitar, e em fazer a mais benéfica propaganda das coisas e da gente do Brasil.

Não era incomum que a afetividade das relações familiares e seu papel na índole do triplista estivessem frequentemente presentes nos periódicos. O Última Hora, assim que recebeu o telegrama de Melbourne anunciando a conquista, se incumbiu de transmitir “em primeira mão” a notícia do feito aos pais do atleta em São Paulo. No dia seguinte (28/11/1956), o jornal carioca publicou com exclusividade a reportagem intitulada “O Campeão Cumpriu com a Palavra: Antes de Seguir Para Melbourne Adhemar Prometeu à Esposa uma Nova Conquista Para o Brasil” em que, não apenas noticiava a felicidade dos “genitores” com a vitória do filho, como também reproduzia a emoção de sua esposa:

Confesso que não dormi direito essa noite, pois esperava aflita pelo resultado da prova”, disse, inicialmente, dona Elza […] E, olhando para Adiel, a filhinha do casal, concluiu: “Papai cumpriu o que nos havia prometido! Quando foi para Helsinki prometeu uma medalha para Adiel. Agora, prometeu uma medalha para o nosso segundo filho. E cumpriu a palavra”, finalizou (Última Hora, 28/11/1956, p.8).

Os laços familiares voltariam a figurar nos periódicos nas comemorações de seu retorno ao Brasil. O Globo publicou na capa da edição do dia 14/12/1956 uma fotografia de Adhemar, cercado por fãs no desembarque do aeroporto, sorrindo com a sua filha no colo. Adicionalmente no caderno interno da edição, além da fotografia em que Adhemar recebia os cumprimentos do presidente da república, a matéria continha uma terceira fotografia em que o atleta beijava sua filha: “assim que desembarcou […] Adhemar foi cercado pelos presentes, tendo sempre ao colo a sua filhinha Adiel, que com sua esposa e seus pais chegara na véspera de São Paulo para recebe-lo”[xxiii], destacava o periódico. No mesmo dia, o Última Hora, por sua vez, publicou não apenas três fotografias de Adhemar com a sua família – entre tantas outras que compunham a cobertura de sua chegada ao Rio – como também fez questão de publicar uma pequena seção cujo título era a “Emoção dos Pais” em que o periódico assinalava “o agradecimento sincero dos que o querem de coração”; seus pais, esposa e filha “estavam lá, emocionados e comovidos (mais do que nós)”[xxiv].

Última Hora, 14/12/1956, p.16 e Última Hora, 14/12/1956, Tabloide, p.1

Algumas vezes os laços familiares figuravam associados à origem “humilde” e, apesar disso, à educação tanto formal como informal do atleta. A edição especial dos Dia das Mães da revista O Cruzeiro em maio daquele ano, por exemplo, publicou uma matéria “Mães do Brasil”. Com o subtítulo “Os filhos são famosos. Delas foi o sacrifício”, a fotografia da mãe de Adhemar pendurando roupas no varal aparecia entre fotografias de mães de outras personalidades como de César Lattes, célebre físico e pesquisador brasileiro, e de Vinícius de Moraes, já na época diplomata, dramaturgo e compositor. A legenda que acompanhava a foto destacava “O filho, Adhemar Ferreira da Silva, é campeão olímpico. Lavando roupa, D. Augusta educou-o. Antes de bater recordes na Europa, ele estudou escultura”[xxv]. Essa, na realidade, era uma outra dimensão ressaltada nos jornais. A coluna-homenagem do Última Hora mencionada anteriormente, prossegue apresentando características do atleta:  

Falando corretamente francês e inglês, nunca sai para o estrangeiro sem aprender os elementos da língua da nação em que vai competir. Sabia expressar-se (e cantar) em alemão quando foi a Dortmund para os Campeonatos Mundiais Universitários, e em finlandês quando foi conquistar sua primeira medalha de ouro em Helsinque. E até quando foi saltar em Tóquio, surpreendeu felizmente a todos quando, no centro do gramado do estádio principal da capital japonesa, apresentado ao antigo campeão olímpico e “recordman” mundial de salto triplo Tamura, em vez de usar o aperto de mão internacional, cumprimentou o veterano a moda do país, usando os gestos tradicionais e a língua nipônica. O estádio inteiro irrompeu em ovações frenéticas e todo um povo achou que brasileiro era realmente gente amável e cortes, gostando de agradar a todos.

A formação cultural e o caráter “diplomático” de Adhemar eram recorrentemente salientados nos jornais. Por ocasião de uma excursão pelos Estados Unidos, patrocinada pelo programa estudantil do Departamento de Estado do país, para “tomar parte em provas atléticas e conhecer o país – se apresentava “sob o braço” com o livro Abraham Lincoln, do biografo Emil Ludwing, escrito em “inglês, idioma que fala fluentemente”[xxvi]. Na mesma língua saudou os que o esperavam, bem como deu uma entrevista em espanhol ao correspondente da United Press, demonstrando seu contentamento por estar nos Estados Unidos e, especialmente, ressaltando que a viagem tinha menos a ver com vitórias e recordes: “participarei […] animado de um espírito esportivo fraternal. Naturalmente, procurarei vencer […] porém o principal será competir e intercambiar com os atletas norte-americanos”.

Em 1956, já formado em artes, era aluno da Escola de Educação Física de São Paulo, escultor, jornalista, radialista, além de atleta amador[xxvii]. Quando perguntado sobre o que gostava de ler, foi categórico: Érico Veríssimo, um dos principais escritores brasileiros do século XX. De forma humilde e generosa disse que, na sua opinião, os atletas brasileiros mais completos eram seus companheiros de atletismo José Telles da Conceição (salto triplo, salto em altura e provas de velocidade) e Ary Façanha de Sá (salto em distância)[xxviii].

O atleta sabia construir sua imagem pública. Ao voltar de Melbourne, “fez questão de endereçar” uma carta de próprio punho para agradecer o “povo brasileiro”, publicada na íntegra, no Última Hora, juntamente com uma fotografia[xxix]. Até mesmo por isso, foi ampliando suas redes sociais.

Última Hora, 14/12/1956, p.8.

Em 1956, foi convidado para atuar numa peça de teatro que posteriormente se tornou célebre, “Orfeu da Conceição”, escrita por Vinícius de Moraes, com trilha sonora composta por Tom Jobim e cenário por Oscar Niemeyer[xxx]. Ainda que tenha desempenhado um papel secundário, fora lembrado para integrar o até então considerado “maior elenco negro” da dramaturgia brasileira[xxxi].

Diário de Notícias, 23/09/1956, Suplemento Especial, p.5 e Última Hora, 22/09/1956, p.8.

A admiração por Adhemar chegou até mesmo às camadas mais restritas da sociedade. Poucos dias antes da viagem para Melbourne, por ocasião de um jantar promovido pela Sociedade de Teatro e Arte, um grupo de sócios do exclusivo Rio de Janeiro Country Club, agremiação da alta elite da cidade, o homenageou com um escudo e flâmula[xxxii].

Correio da Manhã, 4/11/1956, 2º Caderno, p.4

O célebre jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues dedicou uma coluna para fazer um “retrato” de Adhemar em que destacou que o atleta, apesar das adversidades, tinha antes de tudo “estado de alma”[xxxiii]. O jornalista Marc Gauldichau, em reportagem especial direto de Melbourne, sugeriu que o “escultural atleta negro” era um autêntico Deus em um “recital”[xxxiv].

Para os jornais, as qualidades de Adhemar eram intermináveis, como o Última Hora em sua coluna-homenagem queria destacar:

Mas a lista seria muito longa se quiséssemos contar aqui todos esses pequenos fatos que, de qualquer modo, nos levariam à mesma conclusão: Adhemar sabe sempre agir em qualquer ocasião, como um “sportman” de verdade, um “gentleman” que respeita o espírito esportivo do “fair play”, granjeando simpatias unânimes em favor do Brasil. Eis por que, todos nós de ULTIMA HORA, desde Samuel Wainer até o mais humilde dos colaboradores deste jornal, que estamos em contato diário com esse homem de verdade, simples e sorridente, trabalhador e talentoso nas suas atividades de jornalista esportivo, responsável pela nossa seção de atletismo e esportes amadoristas, como o é nas pistas de competição, nos orgulhamos hoje com o triunfo magnífico do nosso amigo, bicampeão olímpico, “recordman” olímpico e “recordman” do mundo, que mais uma vez fez tremular a bandeira do Brasil no mastro maior do Estádio Olímpico, em Melbourne. Muito bem, querido Adhemar, o muito obrigado de TODOS NÓS[xxxv].

O “espírito esportivo” de Adhemar se estendia para além das caixas de areia. A preocupação com as condições da prática esportiva, bem como a solidariedade com os atletas e técnicos, podem ser vistas em diversas matérias tanto escritas pelo próprio esportista como por outros jornalistas. Ele denunciava constantemente a precariedade da estrutura do atletismo, bem como das instituições responsáveis pela sua organização[xxxvi].   

De fato, esse sentimento de “classe” ou de “corporação” esteve presente em vários momentos de sua carreira. Nas primeiras entrevistas publicadas após a vitória em Melbourne, o Última Hora chamou atenção para a frase “Dedico minha vitória a todos os desportistas do Brasil”. Além disso, declarou: “tenho sobretudo que confessar que devo minha vitória aos meus técnicos”[xxxvii]. Esse traço do atleta chamou atenção do jornalista Marques Rebelo:

Chegou Adhemar! Compridão, modesto, delicado, biolímpico, o melhor dos camaradas, e decente, tão decente que nunca se esquece depois dos seus êxitos espetaculares de falar no seu velho treinador e de repartir com ele o mérito das suas conquistas. Chegou Adhemar, o homem do ano! Não desembarcou com as medalhas de ouro no peito; o que no peito trouxe foi o coração de ouro mais nobre […][xxxviii].

Quando foi recebido no Palácio do Catete, ao retornar ao país, fugiu do protocolo de apenas ouvir os agradecimentos do presidente da República e fez um apelo para que continuasse “olhando e amparando a infância e os desportos”[xxxix]. Demonstrava, assim, sua preocupação com o futuro do país, com uma vida melhor para os mais populares, o estrato social do qual emergiu e nunca negou.

Adhemar, em síntese, era representado como uma imagem daquilo que o Brasil gostaria de fazer prevalecer internamente, mas, sobretudo, para o mundo como forma de autoafirmação. Adhemar seria “sem dúvida alguma […] uma das raríssimas instituições do Brasil, que não decepcionam nem se contentam com vices…”[xl]. Mais do que isso, Adhemar – no olhar dos periódicos – seria o portador de um elemento cultural identitário brasileiro original e virtuoso:

Assim é o brasileiro. Quando põe a funcionar o sentimento, ninguém o contém, ninguém o segura, ninguém o amarra. Amigos, permitam-me um esgar de patriotismo, à maneira do Olavo Bilac dos reservistas: – Com sua vitória olímpica. Adhemar Ferreira da Silva esfregou na cara do mundo a alma de todos nós e cada um de nós, o que equivale dizei: — a alma do Brasil[xli].

 Adhemar era a materialização de um grande projeto para o Brasil. A esperança pouco precisa de ser algo que, lamentavelmente, o país ainda não é e deve seguir perseguindo ser, não somente nas construções idealizadas ao redor de um grande atleta, mas como realidade concreta para sua população.


* Texto publicado originalmente em PERES, Fabio de Faria; MELO, Victor Andrade de. Adhemar Ferreira da Silva: Representations of the Brazilian Olympic Hero. In: Antonio Sotomayor; Cesar R Torres. (Org.). Olimpismo: The Olympic Movement in the Making of Latin America and the Caribbean. Fayetteville: University of Arkansas Press, 2020, p. 95-110.

[i] Última Hora, 14 dez. 1956, Tabloide, p. 1.

[ii] Diário Carioca, 19 dez, 1956, p. 6.

[iii] Diário da Noite, 10 dez. 1956, 2ª Seção, p. 6.

[iv] Última Hora, 14 dez. 1956, p. 1. Logo após a conquista da medalha, Juscelino e o vice-presidente João Goulart já haviam telegrafado ao atleta congratulando-o pela conquista (Diário Carioca, 2 dez. 1956, 3ª Seção, Suplemento Dominical, p. 2).

[v] Para mais informações sobre o período, ver: FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida N. (org.). O Brasil Republicano – O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

[vi] Mundo Esportivo, 14 dez. 1956, p. 6.

[vii] Mundo Esportivo, 14 dez. 1956, p. 6.

[viii] Última Hora, 22 nov. 1956, p. 16.

[ix] O recorde mundial de Adhemar só foi definitivamente homologado na reunião da Federação Internacional de Atletismo em Melbourne, durante os Jogos Olímpicos.

[x] O Globo, 19 mar. 1955, segunda seção, p. 1.

[xi] Mundo Esportivo, 30 dez. 1956, p. 13

[xii] Última Hora, 9 nov. 1956, p. 16.

[xiii] Jornal do Brasil, 25 out. 1956, p. 13.

[xiv] Última Hora, 20 nov. 1956, p.8. De acordo com o jornal, Jesse Owens estava em Melbourne como um dos representantes do presidente norte-americano Eisenhower.

[xv] Diário Carioca, 27 nov. 1956, p. 1 e 9.

[xvi] O Globo, 27 nov. 1956, p. 1; Última Hora, 27 nov. 1956, p. 1.

[xvii] Por exemplo, no Mundo Esportivo, na coluna Perguntas e Respostas – dedicada a entrevistar personalidades esportivas, em sua maioria do futebol – comumente perguntava-se “qual é a maior expressão esportiva do Brasil?”. Com frequência os atletas escolhiam o nome de Adhemar, às vezes seguido de termos como “indiscutivelmente” (ver edições de 23 mar. 1956, p. 2; 27 abr. 1956, p. 2; 11 mai. 1956, p. 2; 25 mai. 1956, p. 15; 15 jun. 1956, p. 3).

[xviii] O Cruzeiro, 12 mai. 1956, p. 118.

[xix] A Noite, 31 ago. 1956, 2º Caderno, p. 2.

[xx] Última Hora, 28 ago. 1956, p. 8.

[xxi] Para mais informações, ver: MELO, Victor Andrade; PERES, Fabio de Faria. Primeiros ventos olímpicos em terras tupiniquins. Revista USP, São Paulo, n. 108, p. 39-48, 2016.

[xxii] Última Hora, 28 nov. 1956, p. 16

[xxiii] O Globo, 14/12/1956, p.18.

[xxiv] Última Hora, 14/12/1956, p.8.

[xxv] O Cruzeiro, 12/05/1956, p.118.

[xxvi] O Globo, 26 abr. 1955, p. 12.

[xxvii] Nos anos 1960, Adhemar atuaria também como adido cultural na Embaixada da Nigéria.

[xxviii] A Noite, 31 ago. 1956, p. 3.

[xxix] Última Hora, 14 dez. 1956, p. 8.

[xxx] Correio da Manhã, 22 set. 1956, p. 13.

[xxxi] Correio da Manhã, 22 set. 1956, p. 13.

[xxxii] Correio da Manhã, 4 nov. 1956, 2º Caderno, p. 4.

[xxxiii] Última Hora, 28 nov. 1956, p. 24.

[xxxiv] Última Hora, 28 nov. 1956, p. 8.

[xxxv] Última Hora, 28 nov. 1956, p. 16

[xxxvi] Exemplos das colunas de Adhemar podem ser vistas nas edições do Última Hora de 5 jun. 1956, p. 8, 6 jun. 1956, p. 8, 21 ago. 1956, p. 8 e 29 ago. 1956, p. 8.

[xxxvii] Última Hora, 27 nov. 1956, p.6.

[xxxviii] Última Hora, 18 nov. 1956, p.1

[xxxix] Última Hora, 25 nov. 1956, p.6.

[xl] Última Hora, 14 dez. 1956, p. 6.

[xli] Última Hora, 14 dez. 1956, p. 6.


Adhemar Ferreira da Silva: representações de um herói olímpico (parte 2)

11/07/2021

Fabio Peres e Victor Melo[i]

Após a vitória 1952, em Helsinque, as notícias veiculadas nos periódicos revelavam, mesmo sem querer, nuances e ambiguidades – pouco visíveis e invisibilizadas – da construção da nossa identidade nacional.

No olhar de muitos cronistas, as representações sobre Adhemar orgulhavam mais por serem ecoadas pelas agências internacionais de notícias, que o descreviam como “um negro alto, de longas pernas” que:

“[…] obteve ainda um grande sucesso de simpatia quando, depois de receber sua medalha de ouro, efetuou espontaneamente uma volta na pista, cumprimentando a multidão, encantada com a maneira pitoresca pelo qual o atleta brasileiro expandiu sua alegria”[ii].

Em outra ocasião, uma agência ressaltou a “modéstia” do atleta: “Limitei-me a fazer o possível”, “não contava fazer nada parecido com isso”[iii], afirmara Adhemar.

Na representação da imprensa do Brasil, os surpreendidos olhos estrangeiros acabavam por confirmar algumas características do caráter brasileiro, pacífico e mestiço, à moda do que tinha sido categorizado por Gilberto Freyre, cujo pensamento na altura já gozava de grande prestígio[iv]. Porém, esses mesmos olhares jogavam luz, de forma não intencional, sobre diferenças na “construção social da cor”.

A célebre cantora e dançarina Josephine Baker, que se encontrava no país para apresentar seu espetáculo, em entrevista intitulada “Quero dar um beijo em Adhemar da Silva”, afirmou que: “uma vitória de um homem de cor é também a minha[v].

Josephine Baker durante sua passagem pelo Brasil na década de 1950 Foto: Theopompo do Amaral/28-08-1952. Fonte: O Globo.

A artista, que gostava “muito de esporte”, amiga de Joe Louis e Sugar Ray Robinson (boxeadores negros americanos)[vi], era ativista dos Direitos Civis e chamava atenção pela sua atitude política, estilo de vida e preferências sociais. Josephine Baker participava de diversas organizações que lutavam contra a discriminação racial. Em sua visita ao Brasil se reuniu com intelectuais, entre eles Edgard Santana (médico, que em parte participava de forma “vacilante” do que foi conhecido como “contra-ideologia racial”), para debater o racismo e articular formas de apoio aos grupos locais[vii].

Para ela, era “muito normal” a admiração que os finlandeses expressaram por Adhemar “porque […] como todos os escandinavos, estão na vanguarda do movimento contra as discriminações raciais”. O que a surpreendeu foi a imprensa brasileira dedicar muitas páginas para um atleta de “cor”. O jornal destacou que a cantora exaltou a consolidação da democracia brasileira:

Mandarei logo 50 exemplares da Última Hora para todos os amigos nos quatro cantos do mundo para mostrar como os jornais de um país democrático dedicam uma justa recompensa a um dos seus grandes filhos. […] A vitória de Adhemar reforça ainda o grande amor que tenho para o Brasil, o país que eu levo no meu coração como o símbolo da democracia das Américas. E quando Adhemar estiver de volta, dar-lhe-ei um grande abraço para agradecer estas emoções que fizeram o dia de hoje o mais feliz dia desde que cheguei no Brasil. Eu sabia que neste país uma coisa maravilhosa via me acontecer. Deus ajuda todos que lutam para um ideal puro [viii].

De maneira ambígua, Adhemar acabava sendo eleito a representante de algo que, de fato, não existia e nunca existiu no Brasil – o mito da harmonia de raças. A valorização de suas conquistas não conseguia mascarar as injustiças de várias ordens que cercavam a população brasileira, inclusive de natureza racial.

Devemos atentar para as nuances que permeavam a vida social brasileira na naquele momento, algo que começara a se gestar na década de 1930, mas que ganhou corpo na década de 1950. No plano cultural, Adhemar e outras celebridades negras ou pardas não eram associados a termos como “negro”, “preto” ou “colored”. Na imprensa e nos meios de comunicação, em geral, essas conotações eram usadas com sentido pejorativo, evidenciando o racismo, ora mais, ora menos, tácito. Adhemar e as demais personalidades eram tratados como “ilustres brasileiros”, sendo suas respectivas “negritudes”, por assim dizer, “visíveis” apenas aos olhos estrangeiros.

De toda forma, o prestígio do país no cenário internacional, de acordo com os periódicos, não era nada trivial. No dia seguinte à vitória, o Correio da Manhã fez questão de registrar que Adhemar não apenas havia sido aclamado como herói pela conquista da medalha, como também por ter realizado um “fato inédito nos anais olímpicos”[ix], bater o recorde mundial por quatro vezes seguidas no mesmo certame. Para o cronista, o feito ajudava a deixar claro o valor do Brasil para o mundo.

O aplauso do público e de outras delegações foi encarado como suposto reconhecimento das qualidades nacionais – a cordialidade, empatia, modéstia:

O Hino Brasileiro foi entoado em coro por todos os torcedores de Adhemar Ferreira da Silva. Em seguida, o titular do segundo lugar nessa prova, o russo Scherbakov, fez questão de demonstrar ao brasileiro sua indizível admiração […] E quando o brasileiro, (…), lançou-se na pista, da qual fez uma volta completa, sob as ovações dos espectadores que o aclamavam e se levantavam à sua passagem; teve-se a impressão de que nem mesmo Zatopek teve tão grande triunfo, em sua vitória na corrida dos 10 mil metros. O público guardará por muito tempo no espirito a imagem do triunfador, detendo-se em meio à corrida para abraçar uma loura admiradora cujo entusiasmo a colocara na linha de frente[x].

José Brígido, do Diário de Notícias, conclamou os leitores a celebrar a conquista da medalha de ouro com “o maior entusiasmo possível, pois fez projetar o nome do nosso país no mais importante certame do mundo e de maneira verdadeiramente sensacional”[xi]. As expectativas de difusão internacional de uma boa imagem do Brasil estavam longe de serem modestas e, mais do que isso, incluíam todos os compatriotas como participes da conquista:

Não resta a menor dúvida que o feito de Adhemar valeu todos os sacrifícios que fizeram os brasileiros para participar deste grande certame, valerá ainda mais porque hoje em todas as páginas, de todos os jornais do mundo, seu nome ao lado do Brasil, estará estampado, todas as difusoras do mundo falarão de sua proeza e o cinema e a televisão reproduzirão as cenas principais de sua prova e tudo isso valerá como grande propaganda da nossa terra e da nossa gente[xii].

O técnico da delegação, Osvaldo Gonçalves, chegou a declarar que, dada a importância do feito para o Brasil, não havia menino que não quisesse se transformar “num Adhemar”[xiii]. Independentemente dos exageros típicos de uma cobertura ufanista, pode-se dizer que o Brasil largamente se irmanou ao redor da vitória de Adhemar:

os aplausos e vivas partem de todos os lados, não só dos desportistas como de todos os funcionários das empresas aéreas e do aeroporto, desde os mais modestos até aos chefes. Era a manifestação de agradecimento de milhões de brasileiros, através de cerca de setenta pessoas, ao maior campeão brasileiro de todos os tempos, autor de uma façanha senão impossível, dificílima de ser igualada por qualquer atleta do mundo[xiv].

Os jornais buscaram sintetizar o orgulho do país construindo laços simbólicos entre o indivíduo e a nação. Adhemar, o “campeão olímpico que assombrou o mundo”, declarou “Venci porque sou brasileiro” [xv]. O herói se punha a serviço da nação.

Última Hora, 11/8/1952, p.7

Quatro anos depois, tais traços da construção da identidade nacional ganharam novas cores e roupagens com a conquista da segunda medalha de ouro. Mas essa história ficará para o próximo post.


[i] Texto publicado originalmente em PERES, Fabio de Faria; MELO, Victor Andrade de. Adhemar Ferreira da Silva: Representations of the Brazilian Olympic Hero. In: Antonio Sotomayor; Cesar R Torres. (Org.). Olimpismo: The Olympic Movement in the Making of Latin America and the Caribbean. Fayetteville: University of Arkansas Press, 2020, p. 95-110.

[ii] Diário de Notícias, 24 jul. 1952, 3ª Seção, p. 3.

[iii] Correio da Manhã, 25 jul. 1952, 2º Caderno, p. 1.

[iv] Para mais informações, ver: GIUCCI, Guillermo; LARRETA, Enrique Rodríguez. Gilberto Freyre, uma biografia cultural: a formação de um intelectual brasileiro (1930-1936). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

[v] Última Hora, 2 ago.1952, 2º Caderno, p. 4.

[vi] Última Hora, 2 ago.1952, 2º Caderno, p. 4.

[vii] Última Hora, 21 jul. 1952, 2º Caderno, p. 12. Sobre contra-ideologia racial, ver FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes (vol 2). São Paulo: Globo, 2008.

[viii] Última Hora, 2 ago.1952, 2º Caderno, p. 4.

[ix] Correio da Manhã, 24 jul. 1952, 2º Caderno, p. 1.

[x] Correio da Manhã, 24 jul. 1952, 2º Caderno, p. 1.

[xi] Diário de Notícias, 24 jul. 1952, 3ª Seção, p. 1.

[xii] Diário de Notícias, 31 jul. 1952, 3ª Seção, p. 3.

[xiii] Correio da Manhã, 25 jul. 1952, 2º Caderno, p. 1.

[xiv] Última Hora, 11 ago. 1952, p. 7.

[xv] Última Hora, 2 ago. 1952, 2º Caderno, p. 3; 11 ago. 1952, p. 7.


Adhemar Ferreira da Silva: representações de um herói olímpico (parte 1)

27/09/2020

por Fabio Peres e Victor Melo[i]

Adhemar Ferreira da Silva destacou-se no movimento olímpico internacional por se sagrar bicampeão na prova do salto triplo (Helsinque/1952 e Melbourne/1956). Suas conquistas tiveram grande repercussão no cenário brasileiro. Na década de 1950, o Brasil estava há 32 anos sem ganhar uma medalha de ouro olímpica (desde a edição de 1920, quando uma delegação do país participou pela primeira vez do evento[ii]).

Naquele momento, o Brasil tentava se afirmar no cenário esportivo internacional, mas lidava com a “tragédia” da Copa do Mundo de Futebol de 1950, quando a seleção nacional foi derrotada pelo selecionado uruguaio em pleno Maracanã. No olhar do jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, esse fracasso se converteu em um ethos que anos mais tarde seria ironicamente denominado de “complexo de vira-latas”, um certo “pudor em acreditar em si mesmo” mesclado com o “medo da desilusão”; em outras palavras, um sentimento de “inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”[iii].

Naquela década, politicamente, o país passava por um momento de transição democrática, depois de viver 15 anos sobre a presidência de um mesmo líder (1930-1945), que governou de forma ditatorial durante oito anos (1937-1945) – Getúlio Vargas, que voltou ao cargo pela via eleitoral em 1951. Do ponto de vista econômico, passos mais seguros eram dados no caminho da industrialização, modificando-se a estrutura societária nacional. As cidades cresceram bastante, diversificando-se o perfil de seus habitantes. O fortalecimento dos meios de comunicação contribuiu tanto para expor as crises identitárias pelas quais passava o Brasil quanto para mobilizar mais intensamente os brasileiros ao redor da ideia de nação[iv].

Nesse contexto, deve-se considerar que Adhemar Ferreira da Silva tinha um perfil típico de boa parte da população brasileira. Negro, nascido na maior cidade do Brasil (São Paulo), era membro de uma família de camada popular (filho de um operário com uma cozinheira) que conseguiu melhorar sua condição socioeconômica. Não fora o primeiro grande atleta a receber atenção do país, nem tampouco o primeiro esportista negro a tornar-se reconhecido (o antecedeu, por exemplo, o notável futebolista Leônidas da Silva). Mas foi certamente o que maior fama obteve até então, antecipando a espetacular repercussão que outro personagem teria a partir da década de 1960, o Pelé.

Mas quais foram as representações veiculadas na imprensa do Rio e de São Paulo sobre as conquistas olímpicas de Adhemar? Como elas se cruzavam com as questões nacionais, com os conflitos e desejos de uma nação que passava por rápidas e intensas mudanças e, ao mesmo tempo, mantinha contradições históricas? Como elas nos ajudam a ter um olhar um pouco mais complexo sobre o campo esportivo brasileiro?

Divido em três partes, abordaremos neste e nos próximos posts estas questões e as histórias que enredam as conquistas de 1952 e 1956 de Adhemar.

1952: “Venci Porque Sou Brasileiro”, o encanto de uma comunidade imaginada que “assombrou o mundo”

Pouco tempo antes de embarcar para Helsinque, a fim de disputar os Jogos Olímpicos de 1952, uma parte da imprensa brasileira, ainda que de forma cautelosa, depositava em Adhemar a esperança de conquista da medalha de ouro que o Brasil não ganhava desde 1920. Naquela altura, o atleta já havia igualado o recorde mundial do salto triplo (em 1950) e vencido os campeonatos pan-americano de 1951 e sul-americano de 1952.

O periódico Última Hora chegou a recorrer à opinião de especialistas para avaliar a “representação brasileira” que participaria dos Jogos Olímpicos. Osvaldo Gonçalves, catedrático da cadeira de atletismo na Escola Nacional de Educação Física e treinador da equipe que iria para Helsinque, considerado “um dos maiores técnicos nacionais”, asseverou:

É na realidade a seleção dos maiores valores do atletismo nacional. Todos possuindo performances e técnica a altura da grandeza dos Jogos Olímpicos. Contudo, passar pelas duas eliminatórias contra os expoentes do atletismo mundial, para classificar-se até o 6º lugar na final, não é tarefa fácil ou coisa que se espere que aconteça como proteção da sorte ou por simples “chance” oferecida por erros de fortes concorrentes. Nos jogos Olímpicos participarão os maiores campeões com os mesmos desejos de uma medalha até o 3° lugar. Uma classificação assim tão honrosa, exige do atleta esforço, treinamento, capacidade física e muito apuro de técnica[v].

Tratava-se, de acordo com o técnico, de uma perspectiva realista considerando as marcas e os desempenhos obtidos por cada membro da equipe no decorrer daquele ano[vi]. Alcançar a classificação para a final já era considerado um “grande feito”. De todo modo, Adhemar era cotado pelo treinador como um dos prováveis vencedores. Oswaldo Gonçalves considerava que o brasileiro se encontrava no mesmo patamar que outros atletas já consagrados mundialmente:

Poucas são as provas em que se poderão apontar os possíveis vencedores. Neste caso, já não são mais campeões e sim campeoníssimos. Dos atletas nacionais, Ademar Ferreira, no Triplo Salto, está nessa classificação, juntamente com Jim Fuchs, recordista mundial do Peso com 17m95; com Zatopeck nos 10.000 metros, com 29m02s […].[vii]

A despeito dessa análise, o técnico posteriormente foi mais comedido, sugerindo esperar uma “honrosa colocação”. A prudência era justificável. Não apenas os obstáculos para uma melhor preparação de atletas amadores eram significativos, como o Brasil já havia sofrido a “traumática” perda da Copa do Mundo de Futebol de 1950. O excesso de confiança e a falta de modéstia pareciam ser vistos com desconfiança por determinados atores do campo esportivo, incluindo, jornalistas e treinadores.

Em todo caso, o Última Hora fez questão de reverenciar os competidores brasileiros do atletismo, contrastando com o estilo ponderado do catedrático. O jornal estampou no dia do embarque a manchete em letras garrafais “ESTES ATLETAS DEFENDERÃO O BRASIL”[viii]. Os termos usados na matéria não eram casuais. As ideias de defesa e elogio da nação eram posturas valorizadas no contexto histórico pelo qual o país atravessava (e que ainda persistem como chaves interpretativas da história, em especial, política e econômica brasileiras[ix]).

Destaque para os atletas que representariam o Brasil no atletismo (Última Hora, 7 jul. 1952, p.8.)

Os periódicos, naquele momento, de fato, davam grande repercussão à luta entre os partidários do “nacionalismo” e os do que foram pejorativamente chamados de “entreguistas”. Eram correntes que defendiam modelos conflitantes de desenvolvimento do Brasil, de um lado, com uso de capital e usufruto exclusivamente nacionais com monopólio estatal, de outro, com a participação do capital privado, sobretudo internacional, e exploração das “riquezas” nacionais por grupos estrangeiros[x].

Neste sentido, a discussão sobre o papel que o Estado deveria ocupar na “modernização” do país delineava projetos distintos de nação. O então presidente Getúlio Vargas (1951-1954), vale sublinhar, ganhou as eleições com uma plataforma que propunha a independência e soberania econômica através da nacionalização progressiva da indústria vis-à-vis à superação do modelo agroexportador[xi].

Não surpreende, portanto, a natureza dos discursos dos periódicos acerca da vitória de Adhemar. Quase todos os jornais estamparam fotografias do atleta acompanhadas de textos com tom ufanista. A conquista da medalha de ouro se colocou acima de disputas políticas, com diferentes e mesmo divergentes grupos buscando se vincular ao feito. A busca pela legitimação internacional do país era por todos desejada, ainda que com interesses e apropriações distintas no que tange à construção de narrativas sobre a nação[xii]

De toda forma, as representações sobre a conquista da medalha de ouro de Adhemar Ferreira pareciam se alinhar mais aos discursos que inflavam o valor do nacional em detrimento de possíveis estrangeirismos. A propósito, as instituições esportivas brasileiras – a Confederação Brasileira de Desportos (CBD), regida desde 1941 pelo Conselho Nacional de Desportos (CND)[xiii], assim como o Comitê Olímpico Brasileiro – eram diretamente ligadas ao Estado, que no momento defendia a “bandeira nacionalista”[xiv] – o que não impedia apropriações diversas.

Propaganda da Esso por ocasião da medalha nos Jogos Olímpicos – Standard Oil

Para a imprensa, Adhemar era um exemplo da abdicação e dedicação que caracterizam os mártires nacionais. Um cronista sugeriu que o atleta “prometera tudo fazer, não pela projeção individual do seu nome, mas, para projetar ainda mais, no cenário esportivo mundial, o nome do Brasil” [xv]. A sua índole e sua devoção à nação adquiriam maior dimensão, em especial, pela origem “pobre e modesta” de seus pais[xvi]. O esportista, a propósito, constantemente enfatizava as dificuldades de ser um esportista amador. De fato, a trajetória de Adhemar reflete em parte as tensões presentes no amadorismo brasileiro, sobretudo, para aqueles oriundos das camadas populares: desde o começo de sua carreira, o atleta teve que conciliar diversas ocupações profissionais com o treinamento e viagens para competições nacionais e internacionais. Uma das situações mais emblemáticas das contradições da condição de amador foi quando, mesmo já tendo ganho sua medalha de ouro em 1952, Adhemar teve seus vencimentos descontados durante 18 dias por ter comparecido aos Jogos Sul-americanos de 1953, sendo, depois, dispensado do cargo que ocupava na Prefeitura de São Paulo pelo então prefeito Jânio Quadros[xvii]. Na época houve protestos contra a medida. Parte inclusive de sua transferência de São Paulo para o Rio de Janeiro se deve justamente por questões laborais e financeiras[xviii].

Todavia, não poucas vezes, fazia questão de destacar sua principal motivação para superá-las – seu compromisso com o país:

Confiava em minhas possibilidades, apesar de reconhecer que encontraria grandes adversários. Mas, além disso, havia o desejo de não decepcionar os meus patrícios. E, pensando no Brasil, somente no Brasil, parti para a caixa de areia onde consegui o maior resultado de toda a minha carreira (grifos nossos)[xix].

O sentimento de pertencimento à nação demarcava, nos seus discursos, o auge de suas experiências: “Quando tocaram o Hino Nacional brasileiro senti que estava vivendo o maior momento de minha vida”[xx]. Sensação semelhante se repetira ao chegar no refeitório da Vila Olímpica, quando atletas de todos os países da América Latina levantaram-se e gritaram “Brasil! Brasil!”, ovacionando Adhemar[xxi].

Dias depois de sua vitória, o olhar estrangeiro, ao dar ênfase a um aspecto invisibilizado (ou visível em outros termos), iria contrastar com o olhar da imprensa brasileira: a “cor” de Adhemar. Mas essa história ficará para o próximo post.


[i] Texto publicado originalmente em PERES, Fabio de Faria; MELO, Victor Andrade de. Adhemar Ferreira da Silva: Representations of the Brazilian Olympic Hero. In: Antonio Sotomayor; Cesar R Torres. (Org.). Olimpismo: The Olympic Movement in the Making of Latin America and the Caribbean. Fayetteville: University of Arkansas Press, 2020, p. 95-110.

[ii] Guilherme Paraense conquistou uma medalha de ouro na prova de tiro (pistola de velocidade ou tiro rápido).

[iii] Manchete Esportiva, 31 mai. 1958, p. 4. Meses antes, o autor já havia se referido a tal sentimento de inferioridade no jornal Última Hora (7 fev. 1958, p. 14). Para mais informações, ver: ANTUNES, Fátima Martin Rodrigues Ferreira. “Com brasileiro, não há quem possa!”. São Paulo: Editora da Unesp, 2004.

[iv] Para mais informações sobre o período histórico, ver: FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida N. (org.). O Brasil Republicano – O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

[v] Última Hora, 21 jun. 1952, Suplemento Esportivo, p. 2.

[vi] A delegação brasileira de atletismo era composta por Wanda dos Santos (80 metros com barreira e salto em distância), Ary Façanha de Sá (salto em distância e 4 x 100), José Teles da Conceição (salto em altura, salto triplo e 4 x 100), Helena Cardoso de Menezes (100 metros e salto em distância), Devse Jurdelína de Castro (200 metros e salto em altura), Wilson Gomes Carneiro (110 e 400 metros com barreira e 4 x 100), Argemiro Roque (400 e 800 metros), Hélcio Buck Silva (salto com vara), Geraldo de Oliveira (salto em distância, triplo e 4 x 100), além de Adhemar Ferreira da Silva.

[vii] Última Hora, 21 jun. 1952, Suplemento Esportivo, p. 2.

[viii] Última Hora, 7 jul. 1952, p. 8.

[ix] Como consequência desse contexto, o Brasil viu surgir uma série de intelectuais que buscariam interpretar e mesmo nomear o “lugar” ocupado pelo país no sistema capitalista, entre os quais, Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Celso Furtado. Para mais informações, ver: SAMPAIO Jr., Plínio de Arruda. Entre a nação e a barbárie: uma leitura de Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Celso Furtado à crítica do capitalismo dependente. Tese (Doutorado em Economia) – Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1997.

[x] Para mais informações sobre o período histórico, ver: FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucilia de Almeida N. (org.). O Brasil Republicano – O tempo da experiência democrática. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

[xi] Dias antes da viagem da delegação de atletismo para a Finlândia, o Última Hora publicou na capa – por ocasião do avanço na extração de petróleo em Candeias (no estado da Bahia) – com grandes letras que ocupavam mais que ¼ da página a fala do presidente: “Ninguém arrebata das minhas mãos a bandeira nacionalista”. O texto era antecedido por uma explicação de importante valor simbólico “Vargas mergulhou a mão no petróleo e a estendeu aos técnicos e trabalhadores”, sendo acompanhado por uma fotografia do próprio presidente com uma das mãos estendida para o alto, na qual se lia a seguinte legenda: “Presidente sob aplauso da multidão: ‘Nada pedimos ao estrangeiro. Dele, nada precisamos’”. Última Hora, 24/6/1952, p.1. Vale destacar que o debate entorno da exploração dos bens nacionais, inclusive, do petróleo já vinha desde a década de 1930, quando Vargas também era presidente. Em outubro de 1953, foi aprovada e sancionada por Vargas que dispôs sobre a Política Nacional do Petróleo e definiu as atribuições do Conselho Nacional do Petróleo, instituiu a Sociedade Anônima Petróleo Brasileiro S. A. (que usaria a sigla Petrobrás). Em síntese, a lei garantia o monopólio estatal na exploração, produção, refino e transporte do petróleo no Brasil.

[xii] A própria realização da Copa do Mundo de Futebol de 1950 era vista pelo governo e demais autoridades brasileiras – naquele momento em posição contrária ao monopólio estatal na exploração dos recursos considerados estratégicos para o país – como forma de projetar a imagem do Brasil no exterior. Maiores informações ver: CABO, Alvaro Vicente. Copa do Mundo de 1950: Brasil X Uruguai — uma análise comparada do discurso da imprensa. In MELO, Victor Andrade (org.). História comparada do esporte. Rio de Janeiro: Shape, 2007, p. 47-60.

[xiii] Brasil. Decreto-lei nº 3.199, April 14,1941, accessed May 23, 2017.,http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del3199.htm

[xiv] Em uma cerimônia realizada na Finlândia, o ministro brasileiro das relações exteriores, Jorge Latour, declarou: “Esta noite, nós brasileiros, sentimo-nos particularmente felizes pela vitória de Ademar Ferreira, que atleta modesto e simples, recebeu a consagração espontânea do público que assistiu sua brilhante vitória […]” (Correio da Manhã, 24 jul. 1952, 2º Caderno, p. 1).

[xv] Correio da Manhã, 24 jul. 1952, 2º Caderno, p. 2.

[xvi] Na cidade de São Paulo, chegou-se a organizar uma iniciativa para oferecer uma casa para a família de Adhemar (Diário de Notícias, 24 jul. 1952, 3ª Seção, p. 1.) A doação, porém, ao fim não se concretizou, pois acreditava-se que poderia se configurar como pagamento, o que iria de encontro ao status de amador do atleta.

[xvii] Mundo Esportivo,São Paulo, May 12, 1953, 2; Imprensa Popular, Rio de Janeiro, January 1, 7.

[xviii] Revista do Rádio, Rio de Janeiro, April 14, 1956, 14.

[xix] Última Hora, 11 ago. 1952, p. 7.

[xx] Correio da Manhã, 25 jul. 1952, 2º Caderno, p. 1.

[xxi] Correio da Manhã, 25 jul. 1952, 2º Caderno, p. 1.


O dia em que o Maracanã reverenciou o “maior atleta do mundo”: histórias das (des)construções de uma identidade nacional

10/09/2017

por Fabio Peres[i]

A história é fascinante e cheia de nuances. No dia 19 de março de 1955, o leitor do jornal O Globo era informado sobre uma exibição prevista para ocorrer em abril no Maracanã. O evento se daria antes de uma partida de futebol, o match entre Rio-São Paulo. A ocasião não parecia ser trivial. Uma medalha de ouro, inclusive, estaria sendo cunhada especialmente para a ocasião.

O “grande campeão” a ser homenageado, porém, não era ligado (pelo menos diretamente) ao “mundo” do futebol; já na época o esporte mais popular do Brasil. Mas sim ao atletismo. O triplista Adhemar Ferreira da Silva, campeão olímpico em 1952 (Helsinque), havia conquistado mais uma façanha: bateu o recorde mundial no salto triplo nos Jogos Pan-americanos da Cidade do México com a marca de 16,56m – uma diferença de 33 centímetros a mais, que os periódicos buscavam quase sempre registrar, do seu rival russo Leonid Scherbakov. Diante do contexto da época não parece casual o reforço da suposta rivalidade entre Brasil e Rússia (algo que merece ser melhor investigado).

O Globo fez questão de publicar uma matéria especial, de página inteira, similar aos infográficos atuais, com vários dados sobre Adhemar (ver figura 1)[ii].

Figura 1: O Globo, 19/3/1955, segunda seção, p.1.

 

Na perspectiva do periódico carioca não se tratava de um feito que seria rapidamente esquecido, mas sim um marco histórico do atletismo. Uma das manchetes destacava que “OS TÉCNICOS E OS LIVROS EM 16 M 48 O MÁXIMO A SER ALCANÇADO POR QUALQUER ATLETA – FEITO SUPERIOR A [Roger] BANNISTER[iii] AO ULTRAPASSAR A ‘BARREIRA DO SOM’ NA MILHA”. Até mesmo uma charge brincava com a ideia da necessidade de nomear uma avenida com o nome do atleta (ver figura 2).

Figura 2: Charge de Constantino, O Globo, 19/3/1955, 2ª Seção, p.1. No texto superior à direita lê-se: Quando Bob Mathias ganhou o decatlo dos Jogos Olímpicos [o decatleta ganhou ouro nas Olímpiadas de 1948 (Londres) e de 1952 (Helsinque)] , a pequena cidade norte-americana de Tulare – onde nasceu Mathias – resolveu mudar o nome em MATHIASVILLE.
Abaixo da imagem lê-se: TURISTA – Ó mister guarda, pode me indicar a Avenida Ademar Ferreira da Silva?

 

 

A conquista, porém, não se dera sem um tom dramático. Dias antes, Adhemar havia sido desclassificado no salto em distância (Última Hora, 15/3/1955, p.12). Certa expectativa cercava, então, o desempenho do triplista. Talvez por isso, a notícia de sua vitória ganhou um colorido de catarse. Os jornais não apenas destacavam que aos “soluços” o atleta dissera que poderia ter saltado mais, como “ninguém parecia acreditar no que a fita métrica afirmava”.  A manchete do Última Hora refletia e, ao mesmo tempo, reforçava os sentimentos de orgulho, identidade e pertencimento compartilhados pela “comunidade imaginada” (Anderson, 2008) ao dar destaque a fala do “grande campeão do mundo”: “VENCI NÃO PARA MIM; MAS PARA O BRASIL” (Última Hora, 17/3/1955, p.12). A importância ao feito era tão grande que o jornal publicou a sequência de fotografias que resultou recorde (ver Figura 3).

Figura 3: Última Hora, 17/3/1955, p.12

 

Dias depois, o Última Hora fazia questão de publicar a opinião do técnico americano Don King que afirmava que o Brasil nas Olímpiadas de 1960 só ficaria atrás dos Estados Unidos e da Rússia; expressando assim que tal sentimento de nacionalidade também passava pelo reconhecimento do olhar do outro, não qualquer estrangeiro, mas o estrangeiro “qualificado” (Última Hora, 19/3/1955, 2º Caderno, p.1).

Isso não significava, por sua vez, que esse sentimento não era alvo de críticas. Uma coluna não assinada destacava em seu título: “BRASIL ENVERGONHA NO MÉXICO”. O texto destacava:

O noticiário aí está diário, doloroso, triste para todos os brasileiros. Nós, que temos a péssima moda de achar que nosso avanço esportivo em determinados setores é ultra espetacular, somos forçados a reconhecer que ainda não atingimos a expressão de outras nações, que somos discípulos, ainda, em esportes que nos julgávamos senhores de primazia (Mundo Esportivo, 25/3/1955, p.2).

O desempenho dos atletas brasileiros, de acordo com a análise, não correspondia às expectativas, à “propaganda” que se torna “ruinosa”, mostrando para nós e – vale destacar – principalmente para o mundo “a nossa inferioridade esportiva” que “mais se acentua entre os países que lá estão representados” (op. cit.). A coluna não deixava de sublinhar a decepção com os resultados dos demais atletas brasileiros, ainda que enfatizasse a importância de Adhemar e do boxeador Luiz Ignácio, responsáveis pelas únicas medalhas de ouro que o Brasil conquistou no México:

Tiremos o chapéu ao fabuloso Adhemar Ferreira da Silva. Saudemos Luiz Ignácio, do boxe, outro campeão, que forma, com o campeão do salto triplo, a dupla que se recomenda na delegação brasileira. Estes dois falam bem do Brasil. […] Verdade dura, duríssima, fruto único da ilusão criada de que nossos índices são compatíveis com o avanço internacional no terreno esportivo. […] Nossas equipes envergonham no México. (Mundo Esportivo, 25/3/1955, p.2).

 

As matérias, por conseguinte, acabavam por reforçar os méritos de Adhemar como também por valorizar as competições internacionais como forma de projeção nacional. Por outro lado, as colunas no jornal Mundo Esportivo contrastam com um sentimento ufanista presente em determinadas coberturas sobre a atuação dos atletas brasileiros. Isso se deu, inclusive, no bicampeonato olímpico de Ademar no ano seguinte em Melbourne (1956). Poucos dias após a notícia de sua vitória, uma pequena nota no jornal esportivo já chamava atenção para apropriação política em torno da exaltação exagerada da nação. Na seção Galeria Branca e Negra, em que eram apresentados os piores e melhores da semana, a “pior coisa” escolhida pelo periódico eram os “urubus e demagogos”; “abutres” que revestiam a conquista de Adhemar com “frases ocas, enfeitadas, demagógicas, estarrecedoras falando em bandeiras, patriotadas etc.” (Mundo Esportivo, 30/12/1956, p.13). De fato, não foram poucas as manifestações, inclusive de políticos, exaltando o feito.

Em todo caso e a despeito de alguns contrastes, prevaleceu um tom festivo e celebratório ao redor do herói e, por associação, da nação. A popularidade e o prestígio de Adhemar, não é demais assinalar, se tornaram bastante expressivos no intervalo entre as duas Olimpíadas. Além da repercussão das conquistas de 1952 e no Pan-americano de 1955, seu nome era frequentemente citado como o maior esportista do Brasil, inclusive por atletas de outras modalidades como o futebol[iv]. Matérias e colunas de jornais sobre “famosos”[v], vi] e “personalidades”[vii], mesmo fora do campo esportivo, se referiam a ele.

Figura 4: Vitória de Luiz Ignácio no boxe (Última Hora, 28/3/1955, p.1).

 

O retorno do triplista ao Brasil não poderia ser menos noticiado. A capa do Última Hora do dia 31/3/1955 saudava o campeão que chegara no dia anterior na cidade do Rio de Janeiro, dando mais um destaque à fala daquele que “abalou os meios esportivos do mundo inteiro, pondo em dúvida até o princípio da lei da gravidade”: “NÃO PODIA FALTAR À CONFIANÇA DO MEU POVO”.

Figura 5: capa do Última Hora do dia 31/3/1955.

 

O Globo, por sua vez, destacava que “O BRASIL AGRADECE AO SEU CAMPEÃO” estampando uma fotografia do então presidente Café Filho apertando a mão do triplista. A recepção foi marcada por uma solicitação do atleta ao presidente, que o tratava o triplista por “meu herói”, de que o governo “ajude o esporte cada vez mais”.

Figura 6: O Globo, 1/4/1955, p.10.

 

Não se sabe ao certo o que aconteceu com a exibição do salto de Adhemar, que seria organizado pelo O Globo. Vale lembrar que o atleta se tornou também repórter do Última Hora. De todo modo, Adhemar de terno deu (talvez a primeira) volta olímpica do Maracanã na final do torneio Rio-São Paulo:

Nem tudo foi tristeza para os cariocas, na noite de football no Maracanã. A presença de Ademar Ferreira da Silva, que fez a volta olímpica sob a ovação da assistência, foi uma nota marcante do espetáculo de ontem. Foram torcedores, cariocas e paulistas, irmanados na homenagem ao grande recordista mundial do salto triplo (O Globo, 1/4/1955, p.12).

Figura 7: O Globo, 1/4/1955, p.12.

 

As construções dos sentimentos de nacionalidades através do esporte é cheia matizes. Passaram também por outras modalidades, além do futebol, merecendo ser melhor investigadas, assim como o uso político do esporte e o uso esportivo da política. Mas esse debate ficará para um próximo post.

***

EM TEMPO: esse post é dedicado à memória de Oswaldo Sérvulo de Faria, que não nos deixava esquecer – mesmo diante das adversidades – de mantermos sempre a esperança, e que possuía grande orgulho de Adhemar ter vestido as cores de seu time, o Clube de Regatas Vasco da Gama.

____________________________

[i] Uma pequena parte dessa história foi escrita com Victor Melo e está inserida no capítulo “Adhemar Fereira da Silva: Representations of the Brazilian Olympic Hero” do livro organizado por Antonio Sotomayor e Cesar Torres, que será lançado em breve.

[ii] O Globo, 19/03/1955, segunda seção, p.1.

[iii] Por exemplo, no Mundo Esportivo a coluna Perguntas e Respostas – dedicada a entrevistar personalidades esportivas, em sua maioria do futebol – comumente perguntava “qual é a maior expressão esportiva do Brasil?”. Com frequência os atletas escolhiam o nome de Adhemar, às vezes seguido de termos como “indiscutivelmente” (ver edições de 23/3/1956, p.2; 27/4/1956, p.2; 11/5/1956, p.2; 25/5/1956, p.15; 15/6/1956, p.3).

[iv] O Cruzeiro, 12/05/1956, p.118.

[v] Última Hora, 12/10/1956, Caderno 2, p.3.

[vi] A Noite, 31/08/1956, 2º Caderno, p.2.