Do turismo aos títulos Mundiais: apontamentos sobre Automobilismo e política na Argentina (1904-1955)

25/01/2021

por Maurício Drumond

Em meios a tantas leituras e anotações decorrentes da produção de um artigo acadêmico, por vezes nos deparamos com assuntos e ideias que acabam não se desenvolvendo ao longo do trabalho. Os motivos para isso variam. Por vezes, o recorte do artigo foge um pouco ao material encontrado. Em outros casos, as ideias não se enquadram exatamente ao escopo da análise proposta no artigo. Isso é ainda mais comum ao escrevermos com limite máximo de páginas ou palavras, onde temos menos espaço para olhares tangenciais que contribuem para a compreensão do objeto, mas que não são essenciais e acabam ficando de fora da edição final. 

Muitas vezes, separamos essa informação com a intenção de utilizá-la em um novo artigo, no futuro. No entanto, são raras as oportunidades em que esse novo trabalho acaba por se concretizar. Eventualmente, damos a sorte de ter uma postagem agendada no blogue no momento em que isso ocorre. É por isso que aproveito minha postagem dessa semana para estabelecer alguns apontamentos sobre automobilismo e política na Argentina durante a primeira metade do século XX, fruto de um trabalho de História Comparada em andamento que acabará por não abarcar todos os elementos aqui presentes. 

Origens do automobilismo argentino – as primeiras décadas do século XX

O automobilismo começa a tomar corpo na Argentina a partir de Buenos Aires, ainda no início do século XX. Os registros históricos apontam que os primeiros automóveis com motor de combustão interna, movidos à gasolina, chegaram à capital argentina entre 1896 e 1898. Dalmiro Varela Castex importou da Europa um triciclo De Dion Bouton e foi o primeiro portenho a ter um registro com permissão para conduzir o automóvel.

Não demorou para que a nova máquina se popularizasse entre a elite local. De acordo com a historiadora Melina Piglia (2014), por volta de 1900 já havia mais de cem carros na cidade, e dez anos depois o número já chegava a quase 5.000 veículos. É nesse período que Dalmiro Varela Castex lidera, em novembro de 1904, a criação do Automóvil Club Argentino (ACA), uma instituição voltada para a organização, o incentivo e a fiscalização do automobilismo esportivo no país. Sua primeira corrida oficial foi realizada em dezembro de 1906, no já desaparecido hipódromo de Nuñez, que assim como o hipódromo do Derby Clube no Rio de Janeiro, deu lugar ao maior estádio de seu país. Nessas primeiras corridas, se enfrentavam renomados membros da elite afeita à modernidades e importadores de automóveis, como Juan Cassoulet.

Em 1910, o ACA organizou a primeira edição do Grand Premio de la Argentina, uma prova de resistência e velocidade ligando as cidades de Buenos Aires e Córdoba, passando por Rosário. De acordo com Eduardo Archetti (2001, p. 69), os carros demoraram dez horas para chegar em Rosário, e o primeiro a alcançar Córdoba demorou quatro dias. O último a chegar o fez apenas uma semana após a largada. a ausência de estradas, o desconhecimento do trajeto e inúmeros problemas mecânicos faziam do Grand Premio de la Argentina uma empreitada única para seu tempo. No entanto, já era possível observar elementos que caracterizaram as famosas corridas de Turismo Carretera que marcariam o automobilismo anos depois: “caminhos pobres, público curioso, pilotos cheios de coragem, verdadeiros aventureiros, e acompanhantes mecânicos capazes dos mais insólitos consertos” (ARCHETTI, 2001, p. 70).

Nas décadas de 1910 e 1920, era possível encontrar muitos pilotos de origens mais modestas, em geral mecânicos, e do interior do país. Alguns competiam empregados por empresas importadoras de carros e peças, ou por alguma revendedora local dos grandes fabricantes. No entanto, muitos outros eram pilotos independentes, que coletavam dinheiro para sua participação em suas cidades ou patrocinadores, em busca dos prêmios em dinheiro, cada vez maiores. A popularização do automóvel também impulsionava o esporte a novas fronteiras. Em 1920, a frota do país já alcançava o impressionante número de 1 automóvel para cada 160 habitantes, proporção maior do que na França (que tinha 1 para cada 169). Sete anos mais tarde, a proporção na Argentina vai  para 1 carro para cada 49 pessoas, com aproximadamente 200 mil veículos, o dobro da frota do Brasil, que possuía o triplo da população (FONTE: PIGLIA, 2018). 

O automobilismo argentino cresceu e se diversificou ao longo dessas décadas iniciais, dando origem a diferentes modalidades. Corridas de velocidade, tanto em circuitos fechados, geralmente disputadas em autódromos, como em circuitos abertos, em trechos de estradas, reuníam carros rápidos e especiais para corridas. No entanto, tornaram-se cada vez mais populares as corridas de regularidade, com grandes distâncias percorridas ao longo de dias, ou semanas. Havia ainda modalidades específicas para veículos com mecânica nacional ou importada, com diferentes cilindradas, ou com carros de corrida ou carros de passeio. 

Ao longo dos anos 1930 e 40 ganha popularidade uma modalidade tipicamente argentina. Corridas de resistência, disputadas em várias etapas em estradas não necessariamente fechadas para o trânsito. A partir de 1937, essas corridas seriam disputadas por automóveis de passeio (ou de turismo, como eram chamados) ligeiramente modificados. Essa modalidade ficou conhecida como Turismo Carretera

Turismo Carretera: Automobilismo e Turismo nas décadas de 1930 e 40

As ações do governo tiveram forte impacto no automobilismo argentino durante a chamada Década Infame. Se, por um lado, as ações do governo em manutenção e obras de melhoramento nas estradas criaram condições de ampliação do alcance do esporte, por outro, diversos empecilhos foram criados a fim de controlar os riscos presentes em sua prática. O já tradicional Grand Premio de la Argentina, organizado pelo ACA, não se limitava mais ao trajeto Buenos Aires-Córdoba, sendo realizado em trajetos diferentes a cada ano entre 1933 e 1943. Já as provas de velocidade, apesar de populares, acabaram  sofrendo embargo do governo em 1934, através da Dirección Nacional de Vialidad (DNV,  Administração Nacional de Rodovias), que proíbe a modalidade após recorrentes mortes em corridas locais. 

Com a proibição de provas de velocidade em território nacional, o Grande Prêmio do ACA é convertido no Primeiro Grande Prêmio Internacional, em 1935, unindo Buenos Aires a Santiago, Chile. O trajeto de cerca de 5.000 km era composto por cinco etapas (Buenos Aires-Mendoza; Mendoza-Santiago de Chile; Santiago de Chile-Neuquén; Neuquén-Bahía Blanca; e Bahía Blanca-Buenos Aires), disputadas por pilotos de ambos países,. A prova era travada com limite de velocidade em território argentino, e velocidade em território chileno. No ano seguinte, o trajeto foi expandido para mais de 6.000 kms e marcas como Chevrolet e Plumouth participam. 

Em maio de 1937, utilizando o argumento de que pretendia privilegiar a circulação de veículos de passeio, a DNV proibiu a realização de provas oficiais em rodovias nacionais, com exceção daquelas que “por seu caráter, busquem difundir o conhecimento do país e fomentem o turismo dentro do mesmo, mediante adequada utilização de estradas argentinas” (citado por PIGLIA, 2018). É nesse contexto em que aparece a nova modalidade de Turismo Carretera.

  O Grand Premio Argentino de Turismo Carretera (TC) foi realizado entre os dias 5 e 15 de agosto de 1937. A bandeirada de largada foi dada pelo presidente argentino, general Augustín Justo, e aparece como destaque o nome do jovem piloto Oscar Gálvez, que se tornaria uma das lendas do automobilismo no país, juntamente com Juan Manuel Fangio, que se iniciou no TC do ano seguinte. 

A própria concepção das TC foram forjadas pelo Estado argentino, através da DNV. Uma série de normas estabelecia que poderiam participar apenas carros de passeio (com poucas modificações permitidas), com chassis e motores da mesma marca, capota fechada, e velocidade máxima de 120 km/h. Todos os carros deveriam seguir as orientações gerais de trânsito e deveriam estar dentro das normas para rodar pelas cidades do país. 

O Estado buscava assim assegurar um propósito de integração nacional e de apoio ao turismo proporcionado pelo automobilismo. O esporte serviria como propaganda do turismo interno, estimulando viajantes a percorrer os mesmos trajetos com seus próprios carros, a visitar locais antes desconhecidos e a conhecer e confiar na rede de vias rodoviárias do interior do país. O fato dos automóveis que corriam nessas provas serem veículos de passeio faria com que turistas se sentissem mais confiantes na segurança das estradas. O limite de velocidade relativamente baixo tornava as corridas mais seguras para pilotos e para as pessoas que se aglomeravam ao lado das pistas para assistir. O menor número de acidentes fatais era fundamental para construir a confiança do público nas estradas. 

As provas internacionais levavam essas propostas a patamares ainda maiores. Inicialmente organizadas entre Argentina e Chile, em 1940 o ACA passa a organizar novas empreitadas que se coadunavam com o ideal Pan Americanista que ganhava força com a Segunda Guerra Mundial. A Argentina, país com tradição de neutralidade, reforçava suas relações com seus vizinhos hispanófonos da América. Nessa ocasião, foi organizado o Grande Prêmio Internacional do Norte,  ligando Buenos Aires a Lima, passando por La Paz. Juan Manuel Fangio, correndo com um Chevrolet, foi o vencedor da prova, com tempo total de 109 horas, 36 minutos e 16 segundos. 

O sucesso da prova foi tanto que o ACA planejava ampliá-la, planejando sua extensão à Caracas em 1941 e Nova York em 1942. No entanto, a escalada da guerra e a posterior entrada dos Estados Unidos após o ataque japonês em Pearl Harbor levaram ao cancelamento das provas até 1948. Os custos para os pilotos participantes era muito elevado. As provas duravam muitos dias e exigiam muito de pilotos e seus carros. Uma grande equipe de mecânicos e quantidade de peças era fundamental para resistir a todos os problemas que surgiriam durante a jornada. A dificuldade em conseguir peças, combustível e dinheiro para a participação levou ao cancelamento das principais provas, que foram sendo retomadas gradativamente após o final da guerra. 

Em 1948, já sob o governo de Juan Perón, a prova Buenos Aires-Caracas é realizada. Entre os 141 participantes, contavam-se 8 peruanos, 5 chilenos, 5 bolivianos, 3 venezuelanos, 1 uruguaio e 119 argentinos (ARCHETTI, 2001, p. 80). O trajeto, com 9,580 km, foi percorrido em 20 dias, com 5 dias de descanso. No entanto, o TC já começava a perder espaço para outra modalidade do automobilismo, as corridas de velocidade. Com a chegada de Perón ao governo, novos ideais passaram a reger o ideal do automobilismo como esporte e seu potencial serviço à nação. 

Um Novo Automobilismo na Nova Argentina de Perón.

O governo de Juan Domingo Perón estabelece uma nova relação entre Estado e os diversos campos esportivos na Argentina. Com aporte financeiro do Estado, o Automóvil Club Argentino adquire carros de corrida para formar uma equipe para disputar provas na Europa. Correndo com uma Maserati, Fangio venceu quatro provas na Europa em 1949. No ano seguinte, Fangio e José Froilán González estrearam na Fórmula 1 Internacional. A popularidade e habilidade dos pilotos argentinos era agora posta na vitrine internacional, em disputas com os melhores pilotos do mundo. A Nova Argentina de Perón exibia seus frutos, demonstrando a capacidade do povo argentino quando propriamente guiado, diria a propaganda do governo. 

E o resultado não poderia ter sido muito melhor. Fangio foi campeão mundial de Fórmula 1 em 1951, 1954 e 1955, durante o período peronista, e ainda em 1956 e 1957, já depois da queda do Presidente argentino. Já González foi vice-campeão em 1954 e ficou marcado por ter conseguido a primeira vitória da Ferrari em uma corrida de Fórmula 1, em 1951. A equipe argentina era acompanhada por jornalistas que transmitiriam as vitórias nacionais para a América. 

Em 1950, ao receber os pilotos que voltavam de sua temporada na Europa, Perón teria perguntado se os visitantes precisavam de alguma ajuda de seu governo. Fangio teria tomado a palavra ao afirmar: “Precisamos de um autódromo, general” (LUPO, 2004, p. 308). Sendo verdadeira ou não essa versão dos acontecimentos, o fato é que em janeiro de 1951, a cidade de Buenos Aires anunciou o início da construção do novo autódromo municipal, que ficaria pronto 15 meses depois. O autódromo, com diversos circuitos e capacidade para mais de 100 mil pessoas, seria um dos maiores símbolos dessa nova relação entre o automobilismo e o Estado argentino. 

Imagens do Grande Premio de Buenos Aires de 1953. Vale notar a presença de Perón nas imagens do evento.

Nomeado inicialmente como Autódromo 17 de Outubro, em homenagem a uma importante data do Peronismo, o dia da Lealdade, o circuito marcou o ingresso da Argentina no calendário oficial do circo da Formula 1, como a primeira prova do ano a partir de 1953. 

Considerações Finais

O Turismo Carretera Marcou uma importante fase no automobilismo argentino. Em um período em que as ambições políticas de projeção internacional do governo argentino tinham como maior ênfase sua relação de supremacia com seus vizinhos de língua espanhola (ou seja, excetuando-se o Brasil), a modalidade serviu tanto para o incentivo de uma política interna de unidade territorial e de difusão do turismo doméstico, como um mecanismo de afirmação da superioridade do país em uma área profundamente ligada à tecnologia e à modernidade como o automobilismo. 

A realização das provas internacionais fortaleceram esses laços, com provas de múltiplos trajetos unindo diversos países da América do Sul. Argentina, Chile, Peru, Bolívia e até Colômbia receberam os pilotos de Turismo Carretera, e mais países ainda tiveram pilotos participantes das provas, em geral dominadas por argentinos. 

Com o final da Segunda Guerra Mundial e a ascensão de Juan Perón, uma nova visão política sobre a Argentina e o esporte passa a vigorar no país. O final da primeira metade do século XX vê assim uma profunda mudança no automobilismo do país.O Turismo Carretera perde espaço para as provas de velocidade em circuitos fechados. Com financiamento do governo peronista, uma equipe argentina passa a disputar o principal campeonato do mundo e se destaca com as vitórias daquele que foi considerado por muito tempo o melhor piloto da história: Juan Manuel Fangio. Para completar, o novo governo argentino constrói um novo circuito para a cidade de Buenos Aires, que passa a abrigar provas internacionais de Fórmula 1. De referência regional, a Argentina se torna um símbolo mundial para o esporte. 

Referências:

Archetti, Eduardo P. (2001). El potrero, La Pista y el Ring: las Patrias del Deporte Argenitno [The Paddock, The Racetrack and the Ring: the Homelands of Argentine Sport]. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica.

Lupo, Victor (2004). Historia política del deporte argentino (1610-2002) [Political History of Argentine Sport (1610-2002)]. Buenos Aires: Corregidor.

Piglia, Melina (2014). Autos, rutas y turismo. El Automóvil Club Argentino y el Estado [Cars, Routes and Tourism. The Automobile Club of Argentina and the state]. Buenos Aires: Siglo XXI Editores.


Rugby, de Manuel Soriano

17/03/2019

Por Rafael Fortes

Rugby é o título de uma novela do escritor argentino Manuel Soriano (para saber mais sobre o autor, ver esta entrevista); depois de ter lido o livro, mas antes de escrever esse texto, esbarrei com uma referência a um outro texto de Soriano no episódio 4 do Podcast Stadium), publicada em 2010. Não conhecia o livro, com o qual esbarrei num sebo de Buenos Aires. Embora abordar questões de forma, estrutura e narrativa literárias a respeito do esporte seja terreno de outros autores deste blogue – André Couto, Edônio Alves, Elcio Cornelsen e Victor Melo -, me aventuro a mais um texto a respeito de uma obra ficcional.

A trama é narrada em primeira pessoa por Mocho, 22 anos, advogado (tal qual o autor) que joga rugby numa equipe amadora, formada em sua maioria por ex-alunos de uma escola tradicional da Grande Buenos Aires. A trama oferece dezenas de oportunidades para discutir-se as relações entre o esporte e a sociedade, notadamente no que diz respeito aos diferentes grupos sociais. Abaixo cito algumas.

a) Racismo e preconceito

Há uma conversa em que vários dos envolvidos associam uma excursão à África do Sul para jogar rubgy à possibilidade de “comer uma negra”, e também ao risco de contrair HIV – mas, claro, afirma um deles, os sul-africanos é que são racistas. Nas conversas do terceiro tempo, há também piadas relacionadas a judeus e coreanos.

À parte a questão esportiva, há muitos outros trechos notáveis, inclusive combinando racismo com preconceito de classe, como o ato de se confundir com “bolivianos” membros de povos autóctones das províncias de Salta e Jujuy (eu mesmo já cometi esse erro na primeira vez que estive na Argentina, ao comprar uma bata na Feirinha de San Telmo).

b) O jovem de classe média-alta revoltado

“Se ouve mais cumbia em Barrio Parque e Recoleta que na própria favela”. “Há uma idade, digamos os quinze ou dezesseis, em que é uma coisa bem vista renegar sua classe. É parte da rebeldia adolescente.” “Os de San Isidro se tornam torcedores do Tigre. Brabões de torcida desde criancinha. Os de Belgrano, de Excursionistas ou Defensores (melhor Excursionistas, porque são chamados “os favelados”)” (p. 54).

“Mas tudo isso é passageiro. É coisa da adolescência. A rebeldia se desvanece facilmente porque na realidade nunca existiu. Com os anos aparece um trabalho e sua gravata, as madeixas, voltam os esses e as palavras em inglês, aparecem as namoradas, as aulas de tênis e as saladinha de rúcula. Tudo isso se sucede com total naturalidade. Fiquem tranquilos, pais: não se desesperem. Seus filhos vão se parecer com vocês. Os melões do sistema se acomodam sozinhos.” (p. 55)

Aqui, a escolha de times que raramente disputam a primeira divisão do campeonato argentino é uma das maneiras de ser – ou, ao menos, de parecer – diferente. Tommy, um amigo yuppie de Mocho que decide torcer pelo Huracán no futebol para ser diferentão entre os amigos, diz: “Todos nós aspirantes a milionários temos uma [excentricidade].” E fazer aula de tênis é um dos indícios de conformidade com a normalidade.

c) Esporte na escola

Mocho estudou na Christian School (o nome é assim mesmo, em inglês), um “colégio inglês e misto” localizado entre os bairros de classe alta de Palermo e Nuñez. Nele,

“o esporte é muito importante, mais do que a História e as Matemáticas. Para os homens há duas opções: o rugby ou o vôlei. Esta decisão parece insignificante mas determina a vida social de cada aluno. O vôlei é para os maricas, aqueles que gostam de poesia, os que têm medo das pancadas. O rugby é para os que não são maricas, os que não têm medo das bordoadas. Com as mulheres acontece mais ou menos o mesmo, mas com o hóquei: elas são as lindas, as de sainha curta e pernas bronzeadas, e as do vôlei são as feias, as gordas e as de óculos” (p. 21).

Tais afirmações não estão lá para reforçar tal estado de coisas, mas para expor as vísceras de uma sociedade extremamente preconceituosa, a partir de dentro. Mocho não se identifica com tais valores, embora em alguma medida compartilhe deles e se beneficie do meio social em que foi criado e circula. Há muito sarcasmo e ironia ao longo de toda a narrativa.

O colégio é administrado pelos filhos dos fundadores, que têm o rugby em alta estima: “Se a equipe ganha (…) até te deixam faltar na manhã seguinte”. “Não é casualidade que o futebol não seja uma opção. Os donos têm medo que tire gente do rugby. Um ano fizeram um teste e saiu meio time. Todos nós gostamos do futebol”. Há uma estratificação de jogadores/alunos na escola entre os da equipe principal e os do segundo time. Uniformes distintos, ônibus com ou sem ar-condicionado para deslocamento até os campos de jogo etc.

d) O círculo de contatos e o esporte na vida adulta como mecanismos que auxiliam a perpetuação de privilégios

Uma rede de relações é estabelecida entre companheiros e ex-companheiros de time, extensiva a amigos próximos e familiares. O Christian Old Boys Rugby & Hockey Club, pelo qual Mocho joga no presente da trama, é um clube fundado para ser frequentado exclusivamente por ex-alunos e ex-alunas da Christian School. Após alguns anos, passa a aceitar sócios que não sejam ex-aluno, porque precisa de gente para completar os times e porque está mal financeiramente. E aí aparecem figuras completamente estranhas ao convívio social dos ex-alunos, como o gerente de um camelódromo em Avellaneda, “que sempre anda com peça” (ou seja, armado “com um 38 carregado debaixo do assento”).

Eis a caracterização do lugar do clube na liga:

“O clube compete na terceira divisão da União de Rugby de Buenos Aires. O ascenso está sempre próximo, mas nunca se concretiza. Nesta categoria de rugby é mais digno que glamouroso. Nunca rola de jogar em San Isidro ou em Pilar, nem há modelos nos olhando nas arquibancadas. O mais comum é visitar lugares como Florencio Varela, Ciudad Evita, Lanús ou Ituzaingó; lugares com nome de estação de trem, campos sem grama, de terra dura e sangue nos joelhos, banhos de água fria (…)”

Na narrativa sobre o passado construída aos 22 anos de idade pelo protagonista, ficam claras as relações sociais proporcionadas pelo ambiente escolar e pelo time, que incluem as famílias dos colegas. O rugby funciona dentro desta teia de relações: no fim das contas, o protagonista consegue um estágio num escritório de direito porque o entrevistador também foi rugbier a vida inteira.

e) Atribuição de apelidos, iniciação sexual e trotes

Aqueles que de alguma forma desviam de certas normas e convenções recebem tratamento específico e um apelido: Cristãozinho, o colega com deficiência que é “incluído” na turma, à custa de piadas sobre o tamanho de seu membro e outras zoações; “China” [Chino], o colega de time cujo apelido não é considerado uma ofensa, “desde que o cara não seja chinês de verdade”.

A iniciação sexual de vários membros do time da escola com uma mesma prostituta, durante uma viagem à província de Tucumán, sob os auspícios do técnico: “muitos vão a este tour como garotos e voltarão como homens”.

As noções normativas de masculinidade e heterossexualidade que se cruzam com o caráter de classe. A “estreia” sexual dos filhos homens da classe alta com as mulheres trabalhadoras domésticas. No time adulto, os “trotes” com os novatos, como uma ocasião em que um deles é deitado no no chão e obrigado a beber cerveja que escorre pelo peito, barriga e genitais de um colega de time; depois, companheiros de equipe lhe enfiam um desodorante pelo ânus.

f) Crimes contra o patrimônio como principal forma de violência

Um árbitro que, dirigindo seu automóvel rumo a uma partida de fim de semana, erra uma saída na autopista e vai parar na entrada de uma “favela fudidíssima”, sofre um sequestro-relâmpago.

Mocho e seu amigo Ariel, também colega de equipe, vivem no mesmo bairro de classe média alta, “cheio de embaixadas e mansões, mas […] muito próximo da Favela 31”. Ao contrário do narrador, Ariel já foi assaltado várias vezes. Conta uma delas: “Me cercaram três negros de merda na praça e roubaram meu iPod e o celular”. (A trama se passa em 2007). Nem todos, contudo, são assim. Os “cartoneros” (o nome vem das caixas de papelão que recolhem e vendem para atravessadores do mercado de reciclagem), designação daqueles que catam lixo, “são bons negros. Exemplares. Ensinam o ofício a seus filhos. Estão mostrando a eles seu futuro. Antes trabalhavam com carros puxados por cavalos, mas a sensibilidade da Sociedade Protetora dos Animais acabou com isso. É um esforço desumano para um cavalo, argumentaram. Agora as pessoas puxam seus próprios carros” (p. 11). A esses bons negros se contrapõem os maus: os viciados em crack. “Esses negros são os piores. Um negro desesperado é um negro perigoso” (p. 12).

Há a participação de famílias de bem em passeatas e manifestações “por mais segurança”. Na prática, demandam mais policiamento e punições mais duras para condenados por crimes dos quais se veem como vítimas – mas não para todos os crimes, cometidos por quaisquer pessoas, como fica claro ao longo da própria trama.

g) A atribuição de valores a uma modalidade esportiva (e a suposição de que são exclusivos dela)

– A associação das pessoas às posições em que jogam, incluindo elaborações pseudo-psicológicas e sociais a respeito de por que cada um joga em tal posição, e o que isso significa a respeito do perfil e do caráter do indivíduo. (O leitor atento e afeito a outros esportes perceberá que esta lógica e os próprios atributos não são exclusivos do rugby, mas, pelo contrário, comuns a muitas modalidades esportivas. Mas, para ter tal percepção, é preciso conhecer a historiografia disponível sobre outras modalidades.). Tais explicações, por um lado, emulam/reproduzem um certo senso comum do rugby, funcionando como uma rica chave de leitura para interpretação do pesquisador. Por outro, trazem uma visão própria do narrador, às vezes ácida e repleta de críticas a este mesmo senso comum.

– Marcas no corpo: a situação “miserável” da coluna cervical causada pelos impactos do jogo; a orelha deformada como símbolo de coragem e de dedicação ao esporte.

– A (suposta) coragem necessária para praticar o jogo: “Muito cedo em minha vida me dei conta de que era um covarde”. Isto não impede Mocho de ter uma extensa carreira no esporte, mas o expõe a situações em que sua masculinidade e companheirismo são postos à prova. Em dado momento, adversários o perseguem por todo o campo gritando: “Cagão! Cagão!”

“Simplesmente não gostava do contato. De qualquer forma, o rugby é um esporte muito mais tático e estratégico do que se pensa.  É possível ser bom usando a cabeça, entendendo o jogo, e deixando para os gordos e os brutos a parte das pancadas”.

– Além da coragem, há noção de sacrifício, explicitada pelas discussões com o preparador físico. “Não me dou muito bem com ele. É jovem mas tem alma e cabeça de milico. Ele diz que eu não jogo para o time, que jogo para mim, que não gosto de me sacrificar. Claro que não. Quem gosta de se sacrificar? Se eu gostasse, já não seria sacrifício.”

“Hernán Perdomo é o nome do preparador físico. Foi um jogador bem bom de Primeira, mas destruiu um joelho e teve que largar antes da hora. É daí que deve vir o ressentimento. Daí e de não poder ter feito carreira militar. Duchas frias de madrugada, o indivíduo não é nada, o time é tudo, saltos de rã, obediência devida. Esse seria seu paraíso. A disciplina e a convicção são essenciais para a vida militar e para o rugby. Não há êxito sem disciplina e não há disciplina dem a mais cega obediência. É “raro” que os alemães não tenham gostado deste esporte” (p. 49-50).

– Inclusão de biotipos e corpos marginalizados: “o rugby é especialmente amável com os gordos”

– A chatice dos treinamentos e de certas partes do jogo: “O único que me cansa é treinar o scrum, sem dúvida uma das coisas mais estúpidas do esporte mundial, junto com o arremesso de martelo. (…) Se o scrum é absurdo durante um jogo, muito mais embaraçante é treiná-lo”. Há frases maravilhosas para aqueles que, como eu, já treinaram, mesmo odiando fazê-lo: “Há algo de curativo nisto de correr como um imbecil ao redor de um campo.”

– A marcada diferença, ao menos no discurso do narrador, entre o olhar para o juiz no rugby em relação ao do futebol. O árbitro é convidado e participa da confraternização pós-jogo (terceiro tempo).

– O consumo abusivo de álcool. “No rugby pega mal não beber, é como ser viado ou vegetariano”. No episódio principal narrado, os jogadores começaram a beber já no vestiário, após uma “derrota humilhante” que não “murchou o clima de euforia” com a festa que viria a seguir.

– A violência e as agressões como parte do jogo e da intimidação psicológica do adversário. Nunca joguei rugby, mas já competi em vôlei, basquete, futebol, futsal, futebol soçaite e tênis e em todas estas há mecanismos semelhantes. No surfe, que pesquiso há anos, tais práticas também acontecem em competições.

– Aturar o discurso motivador do capitão na roda de jogadores antes de entrar em campo. O capitão em questão gostava de discursar sobre a família e os valores cristãos, mas era um bandido capaz de cometer “todas as infrações possíveis”, inclusive pedofilia. (Um típico cidadão de bem ou humano direito…). Mocho considera esse discurso motivador dos capitães um dos maiores sofrimentos de sua “carreira rugbística”. Contudo, o contraste é brutal em relação ao capitão até o ano anterior, “um grande jogador e uma ótima pessoa”, que foi jogar “em um clube da segunda divisão da Itália. A prática, contudo, se estende a outras modalidades. E o caso específico da hipocrisia do capitão não é exclusivo do rugby, nem do esporte: trata-se de algo presente em toda a sociedade.

– As relações com os técnicos.

“Espécie rara, os técnicos de rugby. Nunca conheci gente com tanta vocação para o que fazem; estão convencidos de que se pode construir um mundo melhor à base de tackles, rucks e malls. Tive de tudo: bons, maus, autoritários, estudiosos, socialistas, compreensivos, moralistas, dogmáticos, gritões e silenciosos. Mas todos compartilham essa convicção de que o rugby te faz uma pessoa melhor, o rugby formador de sujeitos, escola de vida, como se joga se vive. Até tive um no colégio que falava conosco em inglês” (p. 70-1).

Um deles “parecia saído de um desses filmes ianques em que um técnico obstinado torna um grupo de inúteis campeões do mundo”.

– Outras referências a outros esportes. O uso de quadras de tênis pelo narrador-jogador como unidade de medida para informar ao leitor o tamanho do salão do clube onde os jogadores almoçam antes das partidas. Embora alguns pesquisadores brasileiros reproduzam o senso comum de que “tênis é um esporte de elite” (já ouvi isso várias vezes), na Argentina ele é um dos esportes mais populares, tal qual em países como Estados Unidos e França. Há referências a outras modalidades: um jogador muito inteligente “é como Juan Román Riquelme” e “pode pensar como um enxadrista”.

h) Confraternizações e festas em torno do esporte

O acontecimento fundamental da trama é o terceiro tempo de uma partida de rugby que acontece na véspera da semifinal histórica à qual a seleção argentina da modalidade havia se classificado, na Copa do Mundo de 2007, contra a África do Sul. Há uma extensa narrativa dos procedimentos.

O almoço de equipe antes da partida, “um compromisso inadiável”. Nas conversas à mesa, o assunto inevitável da partida da seleção. Uns dizem acreditar ser possível vencer os favoritos sul-africanos. Outro dispara: “- Fico de saco cheio das propagandas dos Pumas [seleção argentina de rugby]. […] Prefiro que perdam para não seguir suportanto essa tortura.” Fiquei pensando nas propagandas envolvendo jogadores, seleção e técnico brasileiros antes e durante as copas do mundo de futebol.

A preparação para o terceiro tempo:

“Esse dia estávamos nos preparando para uma festa. Estava tudo pronto: engradados de cerveja, iluminação e som, litros de fernet [bebida popular na Argentina, geralmente tomada junto com coca-cola] e até uma máquina de fumaça. Não preparávamos festa em todos os terceiros tempos, mas o sucesso dos Pumas nos tinha contagiado e essa era uma ocasião especial. Havíamos combinado com as MINITAS do hóquei. Elas jogavam fora, mas viriam assim que terminasse sua partida. Nunca há muitas mulheres em nossos terceiros tempos: namoradas, algumas amigas e pare de contar.”

O narrador explica também o que é o terceiro tempo:

“O terceiro tempo é o orgulho do rugby. É o momento em que os membros das duas equipes, que haviam se matado de lutar dentro do campo, se unem para compartilhar um espaço de diversão e camaradagem. É o momento de ser cavalheiros, de distinguir-se do futebol, de fazer brincadeiras com os rivais e o árbitro, de ser um pouquinho ingleses”.