A arte de jogar e a arte de narrar

08/04/2012

Por Edônio Alves

O futebol é um jogo (para não dizer uma arte) visceral. Tanto para quem joga quanto para quem aprecia. A arte de narrar idem; embora tal envolvimento nesse campo, por parte do escritor, seja bem mais contundente do que para o leitor, que o aprecia. Em sendo assim, tanto jogar quanto narrar exige do seu participante ativo (o escritor ou o jogador) uma entrega quase que incondicional. Por isso é que muitos dos analistas dos dois campos veem nestas profissões uma atividade existencial por excelência. Viver é jogar e jogar é viver. Assim como viver é escrever e escrever é viver.

É com esta interpretação do jogo e da arte de narrar que analiso o conto abaixo, intitulado, Campeonato de futebol, de autoria do escritor baiano Luiz Henrique, dentro daquela nossa proposta de sempre ligar, nesse espaço, o futebol com a literatura. Nessa narrativa, por exemplo, o contista vai jogando junto com os jogadores propriamente ditos ao narrar. Por isso mesmo, vai expondo as ligações sutis e secretas da literatura com o futebol, pelas páginas em branco e os verdes gramados do Brasil.

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Campeonato de futebol

Luiz Henrique

 Essa é uma história rápida, curtíssima, que narra as jogadas-proeza de uma dupla de ataque de um time qualquer, de um bairro qualquer, de uma cidade qualquer do Brasil, país do futebol. O texto é veloz e instantâneo como a figurar a própria fugacidade dos dribles e fintas dos dois personagens que quer destacar para o leitor, através de um testemunho em terceira pessoa comandado por uma reminiscência admirada com o que conta e com a distância do tempo que decorreu do que conta. Daí o texto fixar-se no motivo do talento de um tipo de futebol que talvez já tenha se perdido na poeira da sua própria história: o nosso tão decantado futebol-arte.

Por aqueles tempos, a velocidade do jogo não se contrapunha ainda as suas potencialidades criativas. À sua demanda artística – melhor dizendo -, que o narrador transfigura como elemento do próprio texto narrativo para dar ritmo ao transcorrer das ações: “Tô Falando com a bola. Ele era um jogador bom de negaças e um corredor. Ele corria com disposição. Quando pegava uma reta, a bola nos pés, ninguém o alcançava. Certa feita Português tentou parar Tô Falando e Tô Falando fez o seguinte: levou a bola até a linha de gol do adversário, não chutou, mas deu uma queda de corpo, algo lindo! Enganou Fausto e Faustino, levou Chuteirão à grama, depois subiu para a própria área. Português correndo atrás e segurando nos lados, lá nele, cai-não-cai, Tô Falando fez um arco, tá entendendo? Fez um arco e deu uma bola e tanto pra Didiu e Didiu cometeu a sua especialidade: bateu com o pé esquerdo e foi gol”.

A história se adianta nesse ritmo frenético e veloz. Registre-se que Tô Falando é o nome inusitado do companheiro de Didiu, com quem compõe a dupla de ataque infernal. Assim como no universo do erotismo existe a figura da fêmea fatal, no não menos “incendiário” mundo do futebol existe também a figura do jogador fatal, aquele que ao receber a bola de jogo sob determinadas condições já era, é só correr pro abraço, a bola está lá no fundo das redes e gol.

“Naquela partida Tô Falando suspendeu a bola. Taí, ninguém entendeu! Mas a gente logo viu a treta. A bola subiu para a esquerda e desceu nos pés de Didiu, uma bola 5, nova, novinha, de modo que foi descendo pela esquerda, cada vez mais pela esquerda, superou Cagão e Torresmo, fez Sossegado de bobo, parou, um rei! Olhou o campo e chutou. Gol, claro! Quem ia pegar aquela bola?”

Assim a narrativa de Luiz Henrique vai contando os prodígios daqueles jogadores do seu tempo numa prosa simples, mas eficiente no que tem de artístico. Vai encaminhando seu texto no ritmo do jogo que narra, o proseado fluindo ao sabor das jogadas relembradas com teor de crônica. A destacar ainda nesse conto curto como um drible de Romário (verdadeiro jogador fatal!), só mais duas coisas, para encerrar: o efeito cômico criado pela homonímia dos jogadores (Cagão, Torresmo, Zé de Viu, Adrenalina) e o seu arremate memorialístico eficiente.

Sobre a primeira, deve-se assinalar que a ficção não é mais extravagante do que a realidade. Como exemplo, vejam-se os nomes de jogadores que disputaram a Copa do Brasil de 1990, numa pesquisa curiosa feita pelos jornalistas, Alex Escobar e Marcelo Migueres, entre as fichas técnicas dos jogos dos clubes participantes deste campeonato de caráter nacional (ver: 20 anos da Copa do Brasil, 2009, p.174, 176). Para cada ano da disputa, os jornalistas escolheram um time de nomes esquisitos. Assim é que em 1990 entrou em campo pelo Brasil afora o seguinte esquadrão: Marega, Balu, Chicletão, Lúcio Surubim e Mingo; Chico Monte Alegre, Tanta, Miolinho e Erijânio; Ibateguara, Gulliver e Limão. O ano de 1995 não fica atrás em matéria de nomes estranhos: Isoton, Bocage, Gelásio, Gilberto Corneta e Nemias; Barata, Adalberon, Caçote e Petrólio; Nailson Xororó, Testinha e Zé Rebite.

Sobre a segunda observação, exemplificaríamos com o próprio texto o aspecto que queremos ressaltar, quando após outro gol fenomenal de Didiu, o narrador fecha a conta com essa: “Foi aí que o dono da bola correu para o campo e recolheu a bola. Ele era do lado que estava perdendo. E estava uma fúria. – Vão ganhar na… Todos tínhamos 12 anos e embolamos no Campo da Cuia”.

 Quem é Luiz Henrique:

O autor nasceu em Nazaré das Farinhas (BA), em 25 de janeiro de 1926. É contista, novelista, cronista e romancista. Doutor em História do Brasil e Professor Emérito da Universidade Federal da Bahia. Publicou, entre outros livros, História da Bahia (1987); Moça sozinha na sala (1961), com o qual ganhou o Prêmio Carlos de Laet da Academia Brasileira de Letras, e Almoço posto na mesa (1990). A história curta, Campeonato de futebol, está na coletânea, Contos brasileiros de futebol, organizada em 2005 por Cyro de Matos, sob os auspícios da Editora LGE, de Brasília.


A ficção da bola aos pés

16/03/2010

O FUTEBOL PELA REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA

Edônio Alves

No seu magistral livro “Veneno remédio: o futebol e o Brasil“, em que ousa uma interpretação do Brasil fecunda e original, através da leitura de um dos seus mais vigorosos elementos culturais, o futebol, o crítico literário e músico José Miguel Wisnik, a certa altura, nos diz, antecipando a chave resolutiva do seu trabalho, baseado na sugestão de um artigo que lera na década de 1970 de autoria do cineasta italiano Pierre Paolo Pasolini, que fazia correlações entre o futebol e a literatura (a prosa e a poesia) e que se encantara com a Seleção de Pelé e companhia, aquela que ganhou o tricampeonato mundial de futebol no México:

“Pazzolini sugeria com isso, pela via estética, uma maneira de  abordar o jogo por dentro, e nos dava, de quebra, uma chave original para tratar a singularidade do futebol brasileiro. (…)  Ou de constatar, na literatura como no futebol, que a ‘prosa’ pode ser bela, íntegra, articulada e fluente, ou burocrática e anódina, e a ‘poesia’, imprevista, fulgurante e eficaz, ou firula retórica sem nervos e sem alvo. Pois a mais importante conseqüência da sua rápida semiologia exploratória, a meu ver, é de que o futebol é o esporte que comporta múltiplos registros, sintaxes diversas, estilos diferentes e opostos e gêneros narrativos, a ponto de parecer conter vários jogos dentro de um único jogo. A sua narratividade aberta ás diferenças terá relação, muito possivelmente, com o fato de ter se tornado o esporte mais jogado no mundo inteiro, como um modelo racional e universalmente acessível que fosse guiado por uma ampla margem de diversidade interna, capaz de absorver e expressar culturas. (…) O grande teatro e o rito da presença, expondo ao vivo, em corpo e espírito, um largo espectro da escala humana. Sendo assim, uma zona de contatos lúdicos, primária e refinada, física e metafísica, que desafia e desencadeia o desnudamento da existência autêntica”. Págs. 12 a 15.

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Pois bem! Dentro dessa filosofia de ver o o jogo de futebol – e também dando continuidade a uma série de pequenos ensaios escritos para este blog sobre a relação futebol e literatura:(ver aqui textos no blog) -, oferecemos, abaixo, uma leitura de um conto de ficção em que o futebol é representado, pela via literária, na sua condição de metáfora total; isto é, o jogo da vida dentro do jogo da bola, um ao mesmo tempo se identificando e se diferenciando do outro. Boa leitura.

Jogo encoberto

Aércio Consolin

 Um gol contra figurando um perturbador ato falho faz a correlação temática entre o jogo de futebol e o jogo da vida, neste belo conto de Aércio Consolin. Narrado em primeira pessoa, marca textual dos encaminhamentos ficcionais de viés memorialístico, o texto apresenta, através de Zé Pedro, quarto-zagueiro de um time de amigos de uma cidadezinha do interior paulista, um quadro psicológico que remói o remorso vivido por um personagem que admirava outro no plano do mundo do futebol, mas que teve que traí-lo no plano da vida prática, ao apaixonar-se pela namorada do amigo, e parece que correspondido.

Com uma prosa segura e sem floreio algum, necessária a esta situação narrativa em que de logo o narrador conclui que “o jogo da bola é um e o da vida é outro”, e que “nessa época aprendi que é sempre possível ser leal nas disputas do futebol e que o mesmo não ocorre nas disputas da vida”, repetindo, a sua maneira, a observação de Albert Camus de que (“a maior parte de tudo que sei da vida aprendi jogando futebol”)*, Aércio Consolin vai expondo paralelismos conceituais entre o futebol e a vida, para narrar o desconforto psicológico do zagueiro que por ironia do destino é obrigado a disputar dois jogos simultâneos num mesmo dia: o de futebol em que tem a função de auxiliar seu amigo goleiro, Severo, ajudando-o a evitar o objetivo do adversário que é o gol, e o outro da vida, em que transformado ele mesmo em adversário do goleiro amigo, está prestes a chegar ao objetivo principal de sua vida até então, isto é, conquistar definitivamente a namorada do companheiro por quem se apaixonara.

Pronto, estão aí o achamento e a situação que no dizer de Alfredo Bosi estruturam uma estória curta quando comparada à narrativa mais longa, extensiva e horizontal do romance. Diz ele: “Se o romance é um trançado de eventos, o conto tende a cumprir-se na visada intensa de uma situação, real ou imaginária, para a qual convergem signos de pessoas e de ações e um discurso que os amarra”.

Pois esse conto é fincado no achamento de uma situação que torna seu entrecho severamente inventivo. Zé Pedro é um zagueiro que se define como limitado: “Eu não era mais que um jogador correto, postando-me à frente da zaga. O bom quarto zagueiro sabe sair jogando e eu não sabia, embora tivesse a sabedoria de logo soltar a bola, procurando quem cuidasse dela com maior competência.

Já Severo, o goleiro, é definido pelo companheiro como um dos “cobras” da turma ao lado do meia Ciça: “O nome calhava à luva naquele rapaz bonito, o mais bonito de todos, vantagem que lhe garantia um sucesso com as garotas do qual não se aproveitava como achávamos que se podia aproveitar.” E quanto as suas qualidades propriamente de goleiro, seu amigo Zé Pedro o tem como “ágil, destemido, guardião do espaço para onde se concretizavam vitórias e derrotas na posição maldita de goleiro, quase infalível, pisando o chão onde a relva não medrava”.

Alegórico, sugestivo, o discurso ficcional de Aércio Consolin vai amarrando uma trama em que o aleatório, como é típico num jogo de futebol, vai opondo o elemento reconhecido como superior (aqui, no plano individual, o goleiro Severo com seus excelentes atributos de homem e de jogador; e no plano coletivo, o time adversário, reconhecido por Zé Pedro como “um time melhor que o nosso”) ao elemento inferior, isto é, Zé Pedro em comparação a Severo, e o time dos dois, que naquela partida decisiva de domingo tinha que se dobrar ao fato de que “a qualidade superior do adversário, impunha-se”.

Mas o jogo da vida é um e o jogo de futebol é outro, como assevera o narrador quarto- zagueiro. E o que pode ser vantagem num campo pode ser desvantagem no outro. Observando, ao expor suas limitações de zagueiro, que era daqueles que não sabia sair jogando, mas que, mesmo assim, tinha a sabedoria de logo soltar a bola, procurando quem cuidasse dela com maior competência, o narrador sugere que no plano da vida, o zagueiro poderia ser melhor que o goleiro.

O desfecho dessa sugestão narrativa é o que vai compor a situação estrutural do conto: um jogador que disputa dois jogos simultâneos diferentes, em tempos e espaços diferentes, contra adversários diferentes e com resultados finais diferentes. Repleto de representações típicas do mundo do futebol e que têm repercussões diretas no mundo da sociedade real, como a observação do narrador de que o futebol, para aquele grupo, abolia preconceitos sociais, ou a da passagem em que se unem, num só bloco narrativo, as qualidades do personagem Severo e a maldição da sua posição de goleiro, como a se firmar a idéia, recorrente no meio, de que os goleiros são uma espécie de anti-heróis (o primeiro jogador do ataque de um time e o último da sua defesa, daí não poder falhar jamais), este conto de Aércio Consolin firma-se entre as boas narrativas de estórias curtas sobre o futebol na literatura brasileira.

Como exemplo do que está acima sugerido, deixemos ao leitor duas passagens do próprio texto. Um tanto longas, é verdade, mas operacionalmente úteis no que elas têm de conteúdo alegórico, sugestivo e representativo das situações que quase sempre ligam, num paralelismo impressionante, as coisas do futebol com as coisas da vida. Como o crítico Alfredo Bosi assegura, para a garantia de fatura de um bom conto, só cabe ao bom escritor encontrar um discurso que as amarrem. E este é um desses casos (ou causos) bem sucedidos:

“O futebol abolia preconceitos sociais. Ciça, o meia-esquerda, um escurinho, que durante a semana trabalhava duro como servente de pedreiro, era um portento, num quadradinho de grama fazia misérias, ninguém lhe tomava a bola. Chutava com a direita e esquerda e cabeceava bem, mesmo baixinho como era. Adivinhava os espaços por onde progrediam as jogadas. Comandava com gestos. Ele e Severo eram os cobras”.

(…)

“Severo no vôo onde o corpo se arqueava, seguindo a curva da bola, o admirável cálculo mental acompanhando a parábola que se arrematava em suas mãos, o couro trazido de encontro ao peito enquanto o corpo procedia à aterrissagem como se pousasse num tapete macio. Terminado o solo virtuoso, Severo erguia-se e olhava o campo à frente, o sol animando a silhueta no uniforme negro, àquele tempo a maldição dos goleiros se espantava também na roupa preta que vestiam. Severo raramente largava um rebote. Colocava-se sob as traves com perfeita intuição. Fechava os ângulos com um ou dois passos à frente, crescendo diante do atacante. Quando saía do gol para enfrentar o adversário, avançando livre com a bola nos pés, parecia adivinhar o ato alheio e a direção que o outro se derivaria, não permitindo ser driblado e atirando-se com os braços compridos para apanhar a bola. Severo pairando acima do emaranhado de jogadores, saltando para segurar a bola vinda do escanteio e que ele arrebatava sobranceiro”.

Para maior aprofundamento, ler:

CONTOS BRASILEIROS DE FUTEBOL. Cyro de Mattos, Org. Brasília: LGE, 2005.