A invenção do skate vertical

22/04/2019

Por Leonardo Brandão

Como surgiu o skate vertical? Esse que é praticado em rampas no formato de “U”? Uma explicação relevante acerca de seu surgimento pode ser conferida no vídeo-documentário Dogtown and Z-Boys, dirigido por Stacy Peralta e lançado no ano de 2001. Esse filme traz imagens raras sobre o início da prática do skate nos EUA, enfatizando uma equipe de skatistas norte-americana conhecida como Z-Boys, exibindo suas primeiras manobras e espaços percorridos.

A equipe Z-Boys, abreviatura de Zephyr (uma loja montada para surfe e skate), era composta de doze pessoas, surfistas na sua origem, mas que acabaram fazendo do skate sua prática principal. Com exceção de um, Chris Cahill, todos os demais foram localizados pelo produtor do documentário, o norte-americano Stacy Peralta, o qual também fazia parte dessa equipe de skatistas. A única mulher do grupo era a skatista Peggy Oky. Compunham o restante da equipe os skatistas Shogo Kubo, Bob Biniak, Nathan Pratt, Jim Muir, Allen Sarlo, Tony Alva, Paul Constantineau, Jay Adams e Wentzle Ruml.

Stacy Peralta, ex-skatista profissional e atual diretor de documentários, conseguiu reencontrar praticamente todos esses skatistas da década de 1970, os quais tomaram caminhos díspares na vida, e desde o final da referida época não tinham mais se encontrado. Hoje eles são empresários, a maioria casada e alguns ainda praticam o skate regularmente. Através de entrevistas, conversas e depoimentos, Stacy Peralta foi estruturando seu documentário, fazendo da atual memória desses skatistas o fio condutor de sua história.

A explicação sobre o surgimento do skate vertical aparece na parte final deste documentário. Sabemos que, dentre as modalidades existentes atualmente na prática do skate, a de maior popularidade junto ao grande público é o skate vertical. Constantemente exibido pelos canais televisivos, muitas vezes em campeonatos “Ao Vivo”, como os transmitidos pelo programa Esporte Espetacular da Rede Globo, o skate vertical se caracteriza por ser uma modalidade onde o skate é praticado em grandes rampas de madeira ou cimento, com aproximadamente quatro metros de altura e denominadas “half-pipe” (“meio tubo” em português) ou em pistas com rampas no formato de uma bacia “bowl”. Nessas rampas, que podem ser representadas pela letra “U”, os skatistas executam inúmeras manobras, mas as que normalmente mais chamam a atenção são os saltos, chamados de aéreos, onde tanto o skate quanto o corpo do skatista permanecem no ar por alguns segundos até retornarem novamente o contato com a rampa.

De acordo como o vídeo-documentário Dogtown and Z-Boys, o surgimento do skate vertical foi possível após a conjugação de dois fatores: de um lado, houve a apropriação dos movimentos do surfe na prática do skate, e, de outro, ocorreu uma grande seca no Estado da Califórnia em meados de 1970.

Segundo relatam os depoentes desse filme, “a prefeitura não permitia molhar o jardim e nem se podia servir água em restaurante, então, o que aconteceu, foi que todas as piscinas abundantes no sul da Califórnia estavam secando”. Por isso: “a seca da Califórnia atuou como parteira da revolução do skate, enquanto centenas de piscinas de Los Angeles foram deixadas vazias e sem uso”.

O aspecto pitoresco dessa história encontra-se na arquitetura das piscinas californianas, pois elas não se assemelham com as encontradas no Brasil. Aqui as piscinas são quadradas, retangulares, com as paredes retas, as quais formam um ângulo de 90º graus com o solo. Na Califórnia, as piscinas exibidas no filme possuíam um formato oval, redondo. As paredes dessas piscinas continham transições, que lembravam as ondas do mar, com ondulações simétricas e perfeitas. Foi essa “rampa” nas paredes das piscinas californianas, somada à habilidade e à técnica dos skatistas de Dogtown, sobretudo os da equipe Z-Boys, que forneceram às piscinas vazias uma outra utilidade nunca antes pensada: elas viraram as primeiras pistas de skate vertical.

De acordo com o filme, foram esses skatistas que, ao praticarem skate em piscinas vazias revolucionaram essa atividade, apontando para horizontes nunca antes imaginados, e tornando possível, anos depois, a montagem de rampas verticais (half-pipes) que passariam a imitar as paredes inclinadas das piscinas californianas. Segundo os membros da equipe Zephyr, eles foram os primeiros a andarem em piscinas vazias, e nem imaginavam o que era possível fazer. Em seus relatos, eles dizem:

A primeira meta no primeiro dia foi passar acima da lâmpada (que fica na parede inclinada da piscina). Depois começamos com arcos duplos (andar com dois skatistas de uma só vez), chegando ao ladrilho da piscina dos dois lados. A meta era chegar à beirada, bater a roda na beirada.

Tony Alva, considerado um dos mais habilidosos skatistas da equipe, lembra o fato de que só foi possível realizarem tal feito por terem sido, antes de skatistas, surfistas. Pois os mesmos movimentos que faziam com suas pranchas na onda do mar, eram os necessários para subirem com seus skates nas paredes curvas das piscinas. Segundo seu relato: “era completamente fora dos padrões, mental e fisicamente. Mas, por sermos surfistas sabíamos os movimentos necessários, só não sabíamos se eram possíveis”. Ainda de acordo com Alva, o pioneirismo da equipe Z-Boys foi algo marcante na exploração desse novo terreno. Para ele, “definitivamente fomos os primeiros a andar numa piscina”, e finaliza lembrando: “é preciso entender que o que fazíamos nunca havia sido feito, aquilo simplesmente não existia”.

Figura 1: Uso do skate nas ondulações de uma piscina na Califórnia no início da década de 1970. Fonte: Imagem do filme Dogtown and Z-boys.

O que os Z-boys chamavam de andar “com o eixo baixo”, ou seja, com o corpo mais abaixado, tal como faziam nas ondas, forneceu a eles a possibilidade de executarem manobras diferenciadas e em lugares até então inusitados, como nas ondulações das piscinas. Eles, enquanto surfistas, transportaram seus movimentos para o skate. Não se trata de skatistas que se espelharam em surfistas, mas de surfistas que se fizeram skatistas.

Na invenção cultural de utilizar piscinas vazias como lugares possíveis de se praticar skate, houve tanto uma representação quanto uma apropriação. Representação porque a piscina passou a ser vista não como um tanque de água para banhos e mergulhos, mas sim como um lugar de exercícios físicos e acrobáticos para o skate. Mudaram-se, pois, os sentidos, as representações. Deste modo, a invenção do skate vertical se deu por meio de práticas de reutilização, efetivando as representações como apropriações. A piscina foi, mais do que pensada de uma forma diferente do usual, experimentada em sua concretude. Os skatistas não só a significaram de um modo diferente, mas também a utilizaram com outras finalidades.

Para saber mais:

Dogtown and Z-Boys. Ficha Técnica: Título Original: Dogtown and Z-Boys. Gênero: Documentário. Tempo de Duração: 87 minutos. Ano de Lançamento (EUA): 2001. Site Oficial: http://www.dogtownmovie.com. Estúdio: Agi Orsi Productions / Vans Off the Wall. Distribuição: Sony Pictures Classics / Imagem Filmes. Direção: Stacy Peralta. Roteiro: Stacy Peralta e Craig Stecyk. Produção: Agi Orsi. Música: Paul Crowder e Terry Wilson. Fotografia: Peter Pilafian. Desenho de Produção: Craig Stecyk. Edição: Paul Crowder.

Referências

BRANDÃO, Leonardo. Para além do esporte: uma história do skate no Brasil. Blumenau: Edifurb, 2014.

BRANDÃO, Leonardo. Prazeres sobre pranchas: o lúdico e o corpo nos esportes californianos. In: Recorde: Revista de História do Esporte. Vol. 2, n. 2, dezembro de 2009, p. 1 – 29.


Aventuras juvenis, ficção e a cultura do surfe

11/11/2018

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

The Grommets: The Secret of Turtle Cave é um livro ficcional ilustrado voltado para o público infanto-juvenil. Foi escrito por Mark-Robert Bluemel e publicado de forma independente/amadora em 2007. Teve uma sequência em 2014, com o título The Grommets: Big Island Justice. O autor é um advogado e surfista que vive em San Diego (Califórnia, EUA). Trata-se da estreia do autor no universo ficcional. Embora eu tenha classificado a produção como independente/amadora (em função de características do projeto gráfico, erros de revisão etc.), o exemplar que li integra a segunda edição, o que sugere que a primeira foi vendida até se esgotar.

A obra conta uma história envolvendo três adolescentes: Buzz (o narrador), Oz e Jimbo. A história não menciona uma cidade ou ano em que se situe, mas uma série de elementos sugerem o Sul da Califórnia e o início dos anos 1990 como espaço e tempo da trama. No caso do litoral Sul da Califórnia: a diferença de temperatura do mar entre o verão e o inverno; a existência de encostas com pedras e cavernas no litoral; a descrição das origens étnico-raciais dos adolescentes (algo muito relevante na sociedade estadunidense como um todo, não apenas no estado em questão): um descendente de peruanos, outro de “nórdicos”; o fundo de areia sobre o qual quebram as ondas; a casa “amarela com telhado em estilo espanhol” em que o protagonista Buzz vive com os pais (p. 13); o crowd de surfistas no mar; a ideia de recorrer aos livros disponíveis na biblioteca pública local quando precisam buscar informações sobre um assunto (a presença de cavernas no litoral).

Quanto à época em que se passa a trama, ainda não existiam telefones celulares: boa parte dos contatos entre as pessoas se dão com ligações entre telefones fixos. Frequentemente, com interferências indesejadas (para os adolescentes) por parte dos pais, que atendem as ligações e controlam o acesso aos aparelhos, quase sempre localizados na sala das residências. Tampouco há computadores para uso pessoal nas casas, nem menção à existência de internet. Mas há um aparelho de TV que, acoplado a um videocassete, permite aos adolescentes “assistir ao boletim das ondas e vídeos de surfe” (p. 49).

Dois deles residem próximo ao litoral (levam 10 minutos de bicicleta, enquanto o terceiro leva 45) e um deles pretende passar o verão auxiliando o pai em tarefas em troca de pagamento de forma a juntar dinheiro para comprar uma prancha nova. A vitrine da surf shop local é uma referência importante de consumo e de desejo para os adolescentes, que sonham em especial com as pranchas novas expostas. No quarto do protagonista, que narra o livro em primeira pessoa, há “nas paredes pôsteres de revistas de surfe” (p. 13).

Lendo a obra, especialmente as passagens relativas a sensações experimentadas ao surfar, lembrei-me de artigos em que o historiador Douglas Booth argumenta que a história do esporte dedica escasso tempo e atenção a essa questão (como este). Em The Grommets há descrição de várias sensações envolvidas no ato de surfar: ao descer ondas, realizar manobras, furar ondas. Refiro-me não apenas a uma descrição dos movimentos corpóreos realizados, mas daquilo que o surfista sente: prazer, alegria, êxtase, hesitação, medo. Ou cansaço: ao voltar para casa de bicicleta, com a prancha debaixo do braço, após horas de esforço físico surfando. Logo no início, o narrador afirma: “você realmente tem que amar o esporte para acordar de madrugada e pular na água gelada” (p. 1).

Na tentativa de transmitir ao leitor tais sensações, o autor lança mão de expressões comuns no universo do surfe: a comparação com uma “boneca de pano dentro de uma máquina de lavar” para emular as sensações que um surfista tem ao levar um caldo violento; a afirmação de que o tempo parece parar quando se está dentro do tubo; a sensação de voar ao descer a onda e ao realizar certas manobras (mesmo sem dar aéreos, manobra restrita ao repertório de poucos surfistas amadores naquela época). Ainda nesse âmbito, há características que remetem à experiência pessoal vivenciada no esporte. Por exemplo, a noção de que há dias bons e dias ruins. Nos primeiros, têm-se a sensação de que tudo dá certo e a confiança adquirida ajuda a acertar ainda mais. Nos últimos, acontece o contrário, e a perda de confiança em geral estimula a piora de desempenho.

Há também descrições/explicações mais técnicas: movimentos e manobras e de como muitos destes têm nomes específicos (dentro de um vocabulário corrente da modalidade, como acontece com outras práticas corporais); da formação das ondas. Algumas passagens misturam uma descrição de características do esporte com um tom de advertência em relação a possíveis riscos, como no caso das correntes/correntezas (um potencial risco à vida de nadadores e surfistas que não as percebam e nadem na direção contrária). As recomendações e conselhos sobre o que fazer e que não fazer, noções de certo e errado e afins, na maioria das vezes, aparecem em falas do pai de Buzz. Mas, às vezes, nas do protagonista, como quando diz que um surfista nunca deve rabear outro (p. 17). Em três ou quatro momentos, recomenda-se que surfistas novatos devem evitar os dias em que o mar está muito forte, com ondas grandes. Isso os faz evitar riscos desnecessários para si próprios e para os demais surfistas. Em The Grommets é possível encontrar recomendações como não mentir para os país, não desapontá-los etc., o que me parece ser comum neste tipo de literatura. No caso, os riscos e problemas decorrentes da desobediência às vezes têm a ver diretamente com o surfe – como Buzz desrespeitar a proibição de pegar onda próximo a pedras e falésias.

A narrativa se desenvolve praticamente toda em torno de um verão. As férias escolares, o sol e o calor permitem ao protagonista aproveitar o tempo livre com uma série de atividades com seus melhores amigos – e, imagino, ao autor elaborar uma narrativa que também seja uma leitura atraente para adolescentes (de férias ou não, californianos ou não). Segundo May (2002), desde meados dos anos 1950, houve na sociedade estadunidense – sobretudo na indústria cultural, mas não só – um intenso processo de construção da Califórnia como o destino de sonho nos Estados Unidos. Tal imagem de lugar onde se deseja viver e/ou passar as férias permanece muito forte no imaginário do país. Particularmente o Sul daquele estado – cidades como San Diego – é um dos lugares mais procurados no turismo interno do país. Trata-se de uma obra divertida e leve. Talvez possa também ser usado como livro livro paradidático, pois conta com passagens e elementos que podem ser facilmente apropriados para aulas de matérias como Biologia, Geografia, Física e História. No caso da última, por exemplo, há referências ao enriquecimento de contrabandistas (traficantes) durante o período da Lei Seca. O que me interessa aqui, na linha de outros textos que venho escrevendo neste blogue, é traçar alguns apontamentos que permitam observar essa obra e esse tipo de obra – obras literárias para o público infanto-juvenil – como uma fonte histórica para a história do esporte.

O foco da trama são peripécias na exploração de uma caverna. Secundariamente, a relação de amizade que os três estabelecem com Nana, a idosa que vive à beira-mar e que é salva por eles de se afogar. Nana fazia exercícios matinais de natação e teve cãimbras em ambas as pernas. O episódio diz respeito a um aspecto comum do universo do surfe, mas pouco presente em suas representações artísticas e midiáticas: tanto a presença física dos surfistas no mar ajuda a perceber situações de afogamento (às vezes difíceis de enxergar desde a praia) como o fato de usarem pranchas facilita o salvamento (a prancha é um objeto flutuante ao qual a pessoa que está se afogando pode se agarrar, evitando colocar em risco a vida de quem tenta resgatá-la).

O enredo não tem propriamente vilões, apenas um antagonista com escassa presença. Também é surfista, mas, na situação em que é apresentado, usa uma camisa de um time de futebol americano. Tampouco há conflitos entre surfistas de diferentes grupos (geracionais, longboarders x shortboarders, exímios x iniciantes, etc.).

O surfe ocupa papel central na vida do trio de adolescentes (e não só porque estão de férias) e o consumo midiático é parte importante do processo. Buzz fica excitadíssimo quando recebe pelo correio, a cada mês, a edição da revista Surfer’s World, da qual tem uma assinatura. A principal punição recebida dos pais quando faz algo errado é ficar impedido de surfar por uma certa quantidade de dias (em se tratando de algo grave, geralmente é combinada com proibição de ver TV, falar no telefone e encontrar os amigos). O protagonista adora passar tempo com amigos no próprio quarto, lendo “revistas de surfe” e assistindo vídeos sobre surfe.

Quando não há ondas, uma das atividades favoritas de Buzz, Oz e Jimmy é andar de skate. Eles consideram que o skate permite emular os movimentos corporais e manobras do surfe – e, em alguma medida, as sensações proporcionadas. “Temos alguns amigos que amam o skate e só surfam ocasionalmente, por brincadeira. Somos exatamente o contrário. Meus amigos e eu preferimos surfar todo dia!” (p. 53) A comparação ressalta a diferença quando se cai: no skate, geralmente o corpo atinge o asfalto. Por isso, “é sempre necessário para qualquer um usar equipamentos de segurança e um capacete quando você anda no cimento”. Natação (no mar), skate (shortboard e longboard), mergulho, pesca submarina, remo, andar de bicicleta e escalar cordas também são mencionados na trama, embora quase sempre como exercícios, atividades de lazer ou parte da rotina, mas não propriamente como esportes.

Perto do fim da trama, evidentemente, a aproximação do fim das férias de verão – e do retorno das aulas escolares – apavora os adolescentes. No entanto, como esperado, há um final feliz – surfisticamente falando, inclusive. Graças a uma recompensa recebida, realizam o desejo de comprar uma prancha nova e uma nova roupa de neoprene – mas os pais os obrigam a depositar a maior parte do valor numa poupança com o objetivo de juntarem dinheiro para pagar a universidade. Coisas de um país que não conta com ensino superior público e integralmente financiado pelo estado, como (ainda) é o caso do Brasil.

Referências bibliográficas

BOOTH, Douglas. História, cultura e surfe: explorando relações historiográficas. Recorde, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 1-24, jan./jun. 2015. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/Recorde/article/view/2307/1951 .

MAY, Kirse Granat. Golden State, Golden Youth: The California Image in Popular Culture, 1955-1966. Chapel Hill, London: The University of North Carolina Press, 2002.

Para saber mais

  • Um exemplo de livro infanto-juvenil brasileiro abordando temática dos esportes radicais: Nas ondas do surf, de Edith Modesto. Apesar do título, a trama é sobre bodyboard, e não surfe.
  • Victor Melo tem publicado artigos e livros abordando livros de ficção como objeto e fonte histórica. Ver, por exemplo, este artigo a respeito de Os Maias.
  • Douglas Booth tem publicado artigos com diversas provocações a respeito da necessidade de o historiador lançar mão de sensações, sentimentos, emoções e afetos na escrita da história do esporte.

Videoclipe como fonte histórica

27/11/2017

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

A ideia deste texto surgiu meses atrás, num papo com o colega Leonardo Brandão, professor de História na FURB, em Blumenau (SC). Ele pesquisa história do skate no Brasil há muitos anos – e em 2018 junta-se à equipe do blogue. É muito legal que os esportes radicais – ou californianos, como ele denomina – sejam o foco principal de outro pesquisador por aqui.

Faço neste texto alguns apontamentos sobre o potencial do videoclipe como fonte histórica.

Dark Necessities – o clipe e a Califórnia

Eis o clipe de Dark Necessities, do Red Hot Chili Peppers:

O clipe é gravado na Califórnia, estrelado por gente que lá vive (a banda e as skatistas) e dirigido pela atriz hollywoodiana Olivia Wilde – que, segundo o verbete da Wikipedia, “vive e trabalha em Venice e Los Angeles“. Venice é um distrito de Los Angeles com forte presença de artistas, esportistas, hippies etc., sendo, junto com a vizinha Santa Monica, importantes em termos de lançar modas e estilos; e lugares onde o skate tem uma enorme presença e relevância. Abundam no vídeo as referências às subculturas locais.

A Califórnia e, particularmente, a região metropolitana de Los Angeles são temas constantes nas músicas da banda, desde o uso de heroína sob viadutos em áreas degradadas do Centro (Under the Bridge) a brincadeiras com as representações do estado em relação a outros (Dani California). Para além de gostar de um punhado de canções, a banda tem para mim um significado especial, pois foi muito importante na formação, no amadurecimento e na manutenção de outra que me é muito cara, o Pearl Jam.

Voltando ao clipe… Estão lá as palmeiras; as avenidas e ruas; a imensa quantidade de asfalto (uma das características do Sul da Califórnia, onde está Los Angeles); a prática de skate por diversos cantos da cidade – facilitada, em alguma medida, pelas quantidades expressivas de superfície cobertas por asfalto, concreto e cimento; os amplos corredores de supermercado; os estúdios de tatuagem.

Ao mesmo tempo em que é o estado mais populoso e rico dos EUA e sede de boa parte das empresas ligadas a internet e tecnologia (provedores de acesso, Intel, Google, Facebook, indústria pornográfica, desenvolvedores de websites e empresas que os hospedam estão lá; mais fácil é listar as gigantes que não estão: Amazon e Microsoft, ambas no outro extremo da Costa Oeste, na região metropolitana de Seattle), o Sul da Califórnia também representa, nos Estados Unidos, ao menos desde meados do século XX, o paraíso sonhado para se viver, se passar férias ou se mudar após a aposentadoria. Muita gente que para lá viaja acaba decidindo ficar. Se mal compararmos com o caso brasileiro, os estereótipos em torno da Califórnia e algumas de suas características unem boa parte do que, no senso comum brasileiro, se associa ao Rio de Janeiro, ao litoral do Nordeste e a São Paulo.

Os corpos

Estão lá os corpos. Movimentam-se cantando, dançando e brincando (banda) ou rodando no carrinho pela cidade (elas skatistas). Mas não se trata apenas de andar de skate: ali está incorporado um certo estilo associado ao Sul da Califórnia e a grupos que lá vivem, especialmente jovens. Mais: há um recorte de estilo dentro do próprio skate: são longboarders, o que implica a construção de representação de formas de andar de skate distintas de outras. Diferença que se estabelece não apenas pelo tamanho do skate, mas também por como se anda, em que lugares da cidade, o que se faz sobre ele, que tipos de manobras e ações são enfatizadas. Os corpos e seus movimentos são centrais neste produto audiovisual.

Eles – ou melhor, a pele – estão à mostra. Carregam e exibem muitas, muitas tatuagens. Tatuagens que fazem parte de diversos estilos de vida, culturas e subculturas, grupos/segmentos californianos: skatistas, surfistas, artistas, hippies, junkies, latinos, negros e/ou muitos outros.

Os corpos ostentam piercings, pulseiras, brincos, cabelos longos. Estão lá os bonés de aba reta, as camisas de flanela, os shorts, shortinhos, calças e bermudas.

Os corpos da banda exibem marcas da idade: rugas.

Os corpos delas, das skatistas, contém também ralados, machucados, roxos, cicatrizes, cascas de ferida, remendos com esparadrapo.

Estão lá quatro garotas fazendo o que querem com seus corpos. Um texto da jornalista Jéssica Oliveira considerou essa a principal característica do vídeo: estar sintonizado com os tempos atuais e com os progressos na luta das mulheres para se libertar de padrões impostos pelos homens, pela sociedade e/ou pelo machismo. Trata-se de uma leitura muito interessante do videoclipe.

Uma das skatistas faz uma tatuagem no interior da boca. O clipe representa tal escolha como não apenas um feito individual, mas parte de um ritual coletivo. Afinal, quando falamos da cultura em torno de um esporte – e particularmente nos casos em que este evolve para um estilo de vida -, não se trata apenas de praticá-lo, mas de compartilhar uma série de vivências com o grupo do qual se faz parte (por isso alguns autores preferem usar o conceito de tribo ou tribo urbana para se referir aos skatistas). E a vivência em grupos, em especial durante a adolescência, significa se submeter a um conjunto de normas, em busca de ser aceito. Portanto, a meu ver o ato de fazer tal tatuagem pode ser compreendido de diversas formas, desde o prisma da escolha e liberdade individual até a inserção num contexto coletivo mais amplo, com as expectativas, demandas e desejos de participação, integração, reconhecimento e, também, submissão.

Ao mesmo tempo em que tem traços característicos de muitos outros clipes do RHCP – como a própria banda aparecer tocando/cantando/dançando -, é uma ode às mulheres e, a meu ver, também à Califórnia e ao skate.

Videoclipe como fonte histórica

Propor o videoclipe como fonte história significa levar em consideração elementos dos produtos baseados em imagens em movimento (cinema, televisão etc.): os formatos e gêneros; montagem, sonorização, edição, fotografia etc.; ângulos de câmera, enquadramento, duração dos planos, ritmo e tipo de cortes etc. Não analisei tais elementos na seção acima, mas deixo alguns apontamentos: a) o uso de câmeras em movimento para gravar as cenas de skate; b) o close e os enquadramentos para mostrar os corpos femininos (tatuagens, cicatrizes etc., bastante distintos das lógicas de erotização que geralmente cercam a filmagem destes corpos); c) os cortes dados pela música: num padrão até 0’43”, noutro a partir daí, quando entra o baixo tocado por Flea (a partir daí é que as skatistas entram em ação).

A noção de videoclipe como fonte história não se descola, é claro, da música como fonte histórica – outra fonte pouco explorada na história do esporte. No caso das canções, cabe analisar a letra (coisa que tampouco fiz com o clipe acima – entre outros motivos, porque a letra não é explicitamente sobre mulheres, skate ou Califórnia). Penso, por exemplo, na representação de hábitos e atividades de lazer num domingo “típico” do Rio em Eu quero ver gol, do Rappa ou Jesualda, de Jorge Ben Jor (canções que falam de esporte, de hábitos culturais, das clivagens de classe social, de zonas geográficas e de asfalto x morro; ambas permitem discutir gênero). Ou nos três primeiros discos do Rappa e do Planet Hemp como fontes ricas para se analisar representações do Rio de Janeiro nos anos 1990 – infelizmente, boa parte delas, tão verazes e atuais naquela época como hoje (Tumulto, Miséria S.A., Tribunal de rua, Mão na cabeça, Todo camburão tem um pouco de navio negreiro, Legalize já, Hey Joe e Zerovinteum). Não se trataria, evidentemente, de analisar apenas as letras. Pode-se abordar também: as melodias; a forma de cantar; as sirenes de polícia e muitos outros efeitos sonoros; diálogo com gêneros e formas musicais (no caso, influências do dub, do reggae, do hardcore, de Jorge Ben Jor; os samplers de outros artistas e recursos eletrônicos; ritmo; instrumentos e formas de tocá-los.

Ou seja, é possível ter em conta, na análise, forma, conteúdo, aspectos técnicos da música, da letra e das imagens que aparecem no videoclipe; a trama do videoclipe, o contar ou não de uma história, os estilos/gêneros cinematográficos ou televisivos a que remete: ficção, documentário, colagem, desenho animado, experimentações gráficas ou visuais. Feito para consumo massificado ou conceitual, para disputar prêmios em festivais? Ou ambos?

Do ponto de vista cronológico e temporal, penso ser possível estabelecer pelo menos três referências: 1) o ano/época/contexto/lugar em que a música foi produzida; 2) o ano/época/contexto/lugar em que o videoclipe foi produzido (geralmente muito próximo ou idêntico ao da música, mas nem sempre); 3) o ano/época/contexto/lugar em que se passa a trama, ou aos quais ela remete.

Finalizo com dois exemplos. No primeiro, que nada tem a ver com esporte, mas também é do Chili Peppers, a trama homenageia/remete a diferentes bandas, artistas e épocas/décadas (cabelos, maquiagens, roupas, modo dos músicos se portarem no palco, instrumentos tocados, equipamentos de som etc.). A música é Dani California, à qual já me referi antes. Tal com em “Dark Necessities”, as imagens não buscam representar a letra.

Segundo, É Brasil, Representa (Brazilian Storm), de Gabriel O Pensador, Apollo Nove e Alex Freitas Gomes. Lançados este ano, o clipe e a música são uma ode ao surfe brasileiro: destacam uma série de nomes, datas e acontecimentos do passado, ao mesmo tempo em que celebram a presença significativa de brasileiros (em quantidade e em termos de resultados) nos anos recentes no Circuito Mundial profissional masculino, incluindo os títulos conquistados por Gabriel Medina (2014) e Adriano de Souza (2015).

Embora com objetivos, estilos e diálogos bem distintos, ambos representam o passado (mais o primeiro que o segundo) e o presente a partir do presente.

Para saber mais

  • Sobre o uso de fontes ligadas à arte e à mídia para a pesquisa histórica: MELO, Victor A.; DRUMOND, Mauricio; FORTES, Rafael; MALAIA, João. Pesquisa histórica e história do esporte. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.
  • Textos deste blogue que contendo a palavra clipe.

Mais sobre a cultura do surfe no Sul da Califórnia

29/05/2017

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

Esta postagem completa uma trilogia iniciada por “Pesquisando história do surfe no Sul da Califórnia” e “Os museus de surfe da Califórnia“. Diferentemente do que geralmente faço, foco é mais em imagens que no texto. Todas as fotos são de minha autoria.

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A lista de surf shops, marcas, empresas, shapers e oficinas de produção de materiais e equipamentos originários do Sul da Califórnia é enorme. Cito algumas: Clark Foam, Dewey Weber, Gordon & Smith, Hobie, Infinity Surfboards, Mark Diffenderfer, Pat Curren, Rusty, Ventura Surf Shop, (há listas extensas na internet, como esta).

Em entrevista [em inglês] ao projeto Sport in the Cold War (Esporte na Guerra Fria), o historiador Mark Dyreson afirma que os Jogos Olímpicos foram arenas para a divulgação de produtos, hábitos, práticas, modalidades esportivas e valores associados à Califórnia: camisas “havaianas”, calças jeans, filmes de Hollywood, praia, natação, vôlei de praia, mountain bike. Isto se deu em diferentes momentos do século XX, em especial nos anos 1930 e nos anos 1980, quando Los Angeles sediou as Olimpíadas de verão, em 1932 e 1984. Na mesma cidade encontram-se os estúdios hollywoodianos, cujos filmes cumpriram uma dupla função: produtos de exportação, também funcionaram como instrumentos de propaganda de uma série de elementos do que se convencionou chamar de culturas californianas, tanto para consumo interno (para públicos dentro do país e tropas espalhadas pelo planeta) quanto em escala mundial.

Esta postagem está organizada por cidade/localidade, começando pelo Condado de San Diego.

San Diego

Entre os diversos centros culturais, museus e galerias do Balboa Park está o San Diego Hall of Champions. Um dos atrativos é um Hall da Fama homenageando atletas nascidos na cidade e/ou no condado. O skatista Tony Hawk, de Carlsbad (no norte do condado), é um dos homenageados no Hall da Fama.

San Diego é uma das capitais da cerveja e das cervejarias artesanais nos EUA. Algumas têm referências a praia (e se localizam próximas à praia) e/ou ao surfe, como Rip Current. De uma lista de cinco cervejas temáticas de surfe disponível no site da revista Surfer, duas são de cervejarias localizadas no Condado de San Diego (em San Diego e San Marcos). E outra da Surf Brewery de Ventura, outra importante cidade de surfe californiana.

Ao sul de San Diego encontra-se Imperial Beach, a última cidade e uma das últimas praias da Costa Oeste do país. Como de costume, o píer favorece a formação de boas ondas dos dois lados. Além de humanos, Imperial Beach também recebe surfistas caninos, que contam com um apoio de seus donos para dropar nas ondas. Até campeonato de surfe de cachorros eu tive oportunidade de assistir (uma boa onda está em 3’14”). Note-se que a gravação foi disponibilizada num site chamado Dog Sports News, algo como Notícias de Esportes Caninos. Havia um conjunto de barraquinhas com produtos especializados, venda de petiscos e cervejas, brinquedos e brincadeiras para crianças etc. O campeonato contava com palanque, sistema de som, chamada de competidores e distribuição de camisetas antes do início de cada bateria etc.

Ao norte do condado, Oceanside, sede do California Surf Museum, é outra cidade que respira surfe. Tal como Imperial Beach, tem seu píer.

Huntington Beach

Esta pequena cidade considera a si mesma a capital do surfe competitivo na Califórnia. Motivos não faltam, como se pode ver nas fotos e legendas acima. Campeonatos, história, passado, campeões, ídolos, comércio, turismo e outros elementos formam uma notória e especial relação entre surfe, território, cultura e economia. Os lados do píer são um importante pico de surfe, assim como da prática de vôlei de praia – a Califórnia é o principal celeiro de jogadores(as) de vôlei de praia dos EUA. Atravessando a rua a partir do píer, chega-se à Calçada da Fama do Surfe, inaugurada em 1978 (mais informações nas legendas das fotos). Nela há uma estátua de Duke Kahanamoku.

Cerca de Los Angeles: DE Santa Monica a Venice

Embora haja um predomínio do surfe no litoral, o skate também é muito praticado. Em cidades como Santa Monica e Venice, a quantidade de cartazes e placas proibindo o skate é um indicativo de sua relevância e ubiquidade.

Santa Cruz

Santa Cruz é outra surf city importante. Localizada bem mais ao norte, é também conhecida pelas águas geladas. Na colina da qual se desce para pegar onda em Steamer Lane encontra-se a placa acima – o tipo de artefato cultural que enche os olhos de um pesquisador de humanidades. Nele lê-se o seguinte (tradução minha):

– O primeiro surfista na onda [ou seja, a ficar de pé sobre a prancha] tem a preferência

– Reme dando a volta na onda, não pelo meio dela

– Controle sua prancha

– Ajude os outros surfistas

Por Sam Reid

O estabelecimento de regras – e os métodos e iniciativas para tentar garantir que sejam cumpridas e obedecidas – são uma característica importante do surfe, ainda que objeto de muita controvérsia. Na visão de muitos de seus praticantes, devido ao número limitado de ondas (sobretudo de ondas boas e de fácil acesso), é preciso estabelecer critérios de preferência e convivência de forma a reduzir a ocorrência de conflitos.

San Clemente

Abaixo estão outras fotos do Surfing Heritage and Culture Center:

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Este texto já estava pronto quando soube da notícia da morte de John Severson, aos 83 anos.”Nascido e criado em Pasadena e San Clemente” [ambas na Califórnia], em 1960  Severson publicou um impresso para divulgar um filme que produzira. Chamava-se The Surfer, depois virou Surfer. Transformou para sempre esta notável atividade sobre a qual escrevo desde 2004, além de ter inspirado praticamente todos os periódicos congêneres de surfe do mundo. Severson vendeu a revista na primeira metade dos anos 1970, mas sempre se manteve próximo ao surfe, inclusive em sua produção artística. Surfline, Liga Mundial de Surfe e a Surfer publicaram belos necrológios. Outros virão.


Os museus de surfe da Califórnia

06/02/2017

Por Rafael Fortes (raffortes@hotmail.com)

Como prometi, hoje trato dos cinco museus de surfe localizados na Califórnia. Neste texto, estou usando a categoria nativa, ou seja, considero museus de surfe as cinco instituições que se classificam como tais. Eles se estendem desde Oceanside, no sul do estado, até Santa Cruz. Seguirei este trajeto sul-norte na ordem de apresentação. Todas as fotos sem crédito de autor foram feitas por mim. Informações específicas sobre itens dos acervos estão nas legendas das fotos.

California Surf Museum (CSM, Oceanside)

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Foi o museu em que estive mais vezes. Fica perto da estação de trem e do píer onde surfam e treinam locais e/ou profissionais – o píer aparece constamentemente em séries do canal Off.

Tem uma excelente coleção de revistas, que ficam numa sala confortável e exclusiva para pesquisadores. A pesquisa neste museu fez parte de uma experiência maior, daquelas que não têm preço nessa vida: durante o ano em que vivi na Califórnia, fui respeitado como pesquisador de história do surfe e da mídia do surfe de uma forma como raramente aconteceu noutros lugares – incluindo o Rio de Janeiro e o Brasil – em mais de dez anos dedicados ao tema.

Comandada pela historiadora Jane Schmauss, a equipe é prestativa e simpática – quando solicitadas por mim, as pessoas sorriam e se interessavam pelo meu trabalho, em vez de rosnarem, como acontece noutros lugares e cidades por aí. Conta com voluntários e trabalhadores assalariados. Segundo me explicou Jane, o museu recebe cerca de 25 mil visitantes anuais. O imóvel onde está há alguns anos pertence à Prefeitura de Oceanside – cuja sede fica próxima -, que o alugado a preço subsidiado. Ali pertinho também está a biblioteca municipal (a visita à biblioteca da cidade é um programa bacana, assim como em várias cidades e bairros californianos).

O forte do acervo, como em três outros museus, são as pranchas. Entre doações, empréstimos, exposição permanente e temporária, é possível ter contato com boa parte da produção de pranchas do sul da Califórnia desde os anos 1950. Há também exemplares mais antigos: paipos havaianos, pranchas para salvamento no mar etc. Mas o foco está nos shapers da própria região – vários dos quais são sócios contribuintes do próprio museu e doaram e/ou emprestaram pranchas de sua lavra. Algumas estão autografadas pelos shapers, outras, pelos que as surfaram. Há doações de Kelly Slater e de outros atletas famosos do esporte profissional e/ou das ondas grandes (nas ocasiões em que estive lá, a exposição temporária era sobre surfe em ondas grandes; preparava-se uma exposição sobre surfe durante a Guerra entre os EUA e o Vietnã). Há também seções dedicadas a outros aspectos, como bodyboard e surfe de peito. Tem uma vitrine muito interessante com jogos e brinquedos que têm o surfe como tema – de Barbie a Banco Imobiliário – e outra com dezenas de parafinas.

Sou suspeito para falar, pois nesse museu fiz parte de minha pesquisa de pós-doutorado. Além disso, tive uma experiência bacana como usuário (e não como pesquisador) em todas as ocasiões em que estive lá. Isso porque está em exibição a prancha de Bethany Hamilton – de quem eu nunca ouvira falar até recentemente. Trata-se de uma havaiana, de uma família de surfistas, que teve um braço arrancado por um tubarão enquanto pegava onda com uma amiga, aos 12 anos de idade. A história está contada em dois filmes (um documentário e um de ficção) e um livro. Bethany tornou-se ícone dos e das adolescentes e tem sua própria linha de produtos de beleza. Além disso, o que mais me impressionou: continuou surfando. E bem: embora não corra o circuito mundial, volta e meia participa de um etapa como convidada. Em 2016, chegou à semifinal da de Fiji – é bom lembrar, Bethany surfa com a desvantagem de não ter um braço para remar, se equilibrar e, dependendo do lado para o qual a onda quebra, adequar a velocidade colocando a mão na parede da onda e/ou segurando a borda da prancha.

Enfim, a experiência definitiva de visitante é ficar sentado num pufe, perto da prancha de Bethany, e esperar para ver alguma criança se aproximar (a Califórnia é cheia de crianças, tanto locais quanto turistas). A cara de surpresa que as crianças fazem é indescritível. Cobrem a boca com a mão, mordem os dedos, andam para trás, correm para chamar a atenção de alguém. Ao que parece, todas conhecem a história de Bethany (e por isso a reação). Fica a dica: se você, leitor(a) um dia for ao CSM, e a prancha de Bethany ainda estiver lá, fique uns minutos na área central, como quem não quer nada, até que chegue uma criança ou grupo de crianças à parte dedicada à surfista. A reação delas valerá a visita.

Surfing Heritage and Culture Center (SHACC, San Clemente)

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Para quem vem do sul, San Clemente é a primeira cidade litorânea do Condado de Orange (vulgo OC). Nesta importante cidade de surfe está o SHACC. A entrada para a exposição, que consiste basicamente de pranchas (ver informações no álbum de fotos), custa US$ 5. Para fazer pesquisa no acervo, que conta com revistas, livros e outros documentos, como cartas, é preciso ser membro da associação, o que custa US$ 50 por ano. A reprodução de materiais (uso de scanner etc.) é paga à parte.

Assim como o congênere de Oceanside, o museu é obra do esforço de um conjunto de surfistas, boa parte deles sócios que doam tempo e/ou dinheiro para a manutenção e desenvolvimento do local. Servem também como espaço para a realização de lançamentos de livros e filmes, homenagens, leilões (nos quais se leiloam pranchas e outros objetos para arrecadar recursos para o próprio museu), jantares de homenagem e/ou de arrecadação de fundos para as próprias entidades e para outros fins. Quando estive lá, fui atendido de forma muito simpática por Barry Haun, que, de bermuda e chinelo, me deu informações, forneceu contatos que poderiam ser úteis à minha pesquisa e, enquanto eu fazia a visita, fez a gentileza de telefonar para uma das pessoas para avisar que eu entraria em contato.

International Surfing Museum (Huntington Beach)

Este é o museu em que fui recebido com menos simpatia. Talvez as condições fossem desfavoráveis: era um domingo, ali pela hora do almoço, e havia dezenas de torcedores ruidosos do San Francisco 49ers tocando o terror assistindo ao jogo num pub em frente. (Tocando o terror nos padrões dos EUA, evidentemente; brincadeira de criança, quando se compara com as torcidas de futebol no Brasil.) O que me pareceu mais interessante do acervo foram itens específicos do surfe na própria cidade, sede de importantes campeonatos ao longo de décadas.

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Santa Cruz Surf Museum (Santa Cruz)

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O Santa Cruz Surf Museum é tão pequeno que não daria para o acervo focar em pranchas – elas não caberiam no local. Contudo, tem seus atrativos. O primeiro deles é ficar dentro de um farol. Segundo, fica num lugar belíssimo, à beira-mar, em cima da ponta onde, logo abaixo, está Steamer Lane, uma das ondas mais famosas da Califórnia. Ou seja, a visita ao museu pode ser combinada com uma sessão nas gélidas águas locais – ou, em casos como o meu, com a assistência. O mesmo estacionamento é usado pelos visitantes do museu e pelos surfistas. Terceiro, tem entrada gratuita. Quarto, o acervo tem algumas fotos interessantes, assim como informações sobre aspectos do surfe local, como… ataques de tubarão.

Além de importante cidade de surfe californiana, conhecida pelas boas ondas e pelo mar frio, Santa Cruz é o lugar de origem de um dos principais fabricantes de roupas térmicas para surfe do mundo: O’Neill.

Santa Barbara Surf Museum (Santa Barbara)

Deste, não sei por que, não consegui encontrar as fotos. Assim como o de Santa Cruz, o forte são as pranchas. Há também muitas capas de discos e cartazes de filmes. De todos, foi o que me pareceu mais amador: na verdade, parece uma iniciativa pessoal de um apaixonado pelo surfe. O inacreditável: no domingo em que estive lá, não vi ninguém no museu. Isso mesmo: desde o momento que cheguei até a hora em que saí, não havia absolutamente ninguém lá dentro. O museu não cobra entrada, e é possível levar um adesivo deixando numa caixinha, em troca, uma doação de US$ 1. A casa onde funciona é meio difícil de achar, pois fica numa daquelas ruas meio estranhas: termina do nada numa linha de trem e recomeça do outro lado, só que você olha e não sabe por onde atravessar (pois há grades e muros). E uma vantagem, sem dúvida, é ficar na linda Santa Barbara.