Medicina, ginástica e saúde no Rio de Janeiro do século XIX

28/03/2022

Fabio Peres e Victor Melo*

Em posts anteriores1, 2, 3, contamos um pouco sobre a história do processo de legitimação, institucionalização e difusão do saber médico a respeito das práticas corporais, em especial a ginástica, no Rio de Janeiro do século XIX.

Uma das premissas principais dessa história é que a relação entre exercícios corporais e saúde não era a princípio tão óbvia e muito menos incontestada. Tratou-se de uma construção que se deu de forma lenta, paulatina e muitas vezes pouca harmônica entre agentes, instituições, práticas e saberes que configuravam o campo médico-científico nos oitocentos. Uma relação que se consolidou no decorrer daquele século, apesar de inúmeras controvérsias. Não apenas a comunidade médica teve que “lutar” pela legitimação de suas práticas e saberes junto ao Estado e à sociedade, como também teve que lidar internamente com a regulação dos conflitos e dilemas dessa mesma comunidade pari passu em que o campo científico também mudava.

Os primeiros indícios desse processo se deram nos anos 1830, conforme apresentado nos posts anteriores. Porém, ainda na década de 1830, é possível identificar algumas modificações no trato do tema nos periódicos médicos científicos.

Novos objetos, abordagens e legitimidades

Mesmo que ainda persistissem alguns traços identificados no Semanário de Saúde Pública (1831-1833), a abordagem sobre a ginástica ganhou maior especificidade. Diferente do caráter mais geral e informativo, começou-se a publicar estudos mais detalhados, ao mesmo tempo em que a autoridade e a legitimidade médica se expandiram para outras esferas.

Embora se perceba a permanência de textos com características ensaísticas – um padrão narrativo no qual há, em geral, uma mistura entre opiniões, reconstrução histórica, julgamentos morais e projetos políticos -, alguns artigos já apresentavam feições, consideradas hoje, por assim dizer mais científicas, cuja audiência principal seria a própria comunidade médica[1]. Tais escritos abordaram de maneira mais detalhada os benefícios da ginástica, sejam eles biológicos ou sociais.

O processo de institucionalização da ginástica passou a progressivamente contar com importantes fundamentos e alicerces das ciências médicas. Isso, todavia, não significou que no interior do campo médico havia consenso absoluto. Valerá prospectar os debates publicados na Revista Médica Fluminense (1835-1841) e na Revista Médica Brasileira (1841-1843), ambas editadas pela antiga SMRJ, já transformada em Academia Imperial de Medicina[2], bem como em outros periódicos médicos da ocasião.

Importa assinalar que naquele momento começaram a circular, em alguns jornais da Corte, algumas matérias sobre a ginástica, nas quais há referências a sua importância para a saúde. Um exemplo é o artigo “Da Ginástica”, publicado em duas ocasiões: no Diário do Rio de Janeiro[3] e no Museu Universal[4]. Além do destaque ao estabelecimento de ensino dirigido por Francisco Amoros[5], na França, o texto salienta que, em 1780, o médico Tissot escreveu a obra Ginástica Medica, em que estabeleceu regras e métodos para os exercícios corporais. De acordo com o artigo, a prática contribuiria para educar homens vigorosos, revertendo a má dirigida educação física da primeira infância, que formaria “arlequins” e “afeminados”.

Em abril de 1836, a Revista Médica Fluminense publica um pequeno trecho da obra Essai general d’education physique, morale et intellectuelle, escrito por Jullien de Paris[6].  O autor, ao defender a necessidade de o médico conhecer o homem físico e moral, sugere que a ginástica é uma estratégia eficiente para manter o equilíbrio do corpo humano.

Mesmo não sendo médico, a preocupação do autor francês com as relações entre saúde e educação acabava por reiterar a importância da medicina no que tange à instrução da infância e da juventude. Na Revista Médica Fluminense já houvera antes uma aproximação entre a ginástica e a formação de crianças e da “mocidade”. Nesse caso, todavia, se tratava de uma obra reconhecida no campo educacional, aprovada e adotada pelo Conselho Real de Instrução Pública francês. O periódico, nesse sentido, procura endossar a autoridade do saber médico a partir do reconhecimento da legitimidade que outras áreas lhe conferem.

Alguns anos depois, em 1839, um artigo sobre pneumonia tuberculosa, de autoria de Mr. Fourcault, é publicado na Revista Médica Fluminense[7]. Ao tratar da influência do clima e dos lugares nas afecções ligadas à doença, o autor destaca o problema da falta de exercícios (passeios, corridas, ginástica, dança e esgrima):

É sobretudo na segunda infância, e ao tocar a época da puberdade, que se deve prevenir a incubação lenta e graduada das moléstias tuberculosas; desditosos os meninos débeis e linfáticos, cuja inteligência prematura se cultiva à custa das forças físicas! Os estudos porfiados, a falta de exercício ao ar livre, alteram sua constituição, e os dispõe às mais graves afecções. Os passeios frequentes, as carreiras, a ginástica, a esgrima, a dança etc., são pois indispensáveis na tenra idade para manter o equilíbrio de uma importante função (p. 112).

A ginástica – entendida como um conjunto específico de técnicas corporais ou como sinônimo de qualquer exercício – passaria, no decorrer do século XIX, a ser citada em diversos estudos associados ao tratamento de moléstias de diferentes naturezas: enxaqueca[8], anemia[9], tísica[10],[11], paralisia[12], ortopedia[13], alienação mental[14], doenças crônicas do coração[15] etc.

Ainda em 1839, um médico publicaria um artigo sobre os benefícios da ginástica em terras brasileiras. Mas essa história ficará para um próximo post.


* Parte do texto foi publicado originalmente em: PERES, Fabio de Faria e MELO, Victor Andrade de. O trato da gymnastica nas revistas médicas do Rio de Janeiro na primeira metade do século 19. História da Educação [online]. 2015, v. 19, n. 46, pp. 167-185. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/2236-3459/46494&gt;. ISSN 2236-3459.

[1] A linguagem, o formato, a análise de dados, a citação de referências e pesquisas acadêmicas no corpo do texto, entre outros, são aspectos que os diferem do gênero ensaio.

[2] Brasil. Decreto de 8 de Maio de 1835. Converte a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro em Academia, com o titulo de Academia Imperial de Medicina do Rio de Janeiro; e dá-lhe estatutos. Na ocasião, a Academia passou a receber recursos do Tesouro público.

[3] Diário do Rio de Janeiro, 09/03/1838, p. 1.

[4] Museu Universal, ed. 43, 28/04/1838, p. 341.

[5] Além de diretor do Ginásio Normal de Paris, Francisco Amoros (Valência, 1770 – Paris, 1848) é considerado um dos precursores da Educação Física moderna e um dos difusores do ensino da ginástica na França. Para mais informações, ver Sirvent (2005) e Arnal (2009).

[6] Revista Médica Fluminense, ed. 1, vol. II, abril de 1836, p. 237-243.

[7] Revista Médica Fluminense, ed. 3, junho de 1839, p. 103-112.

[8] Arquivo Médico Brasileiro, dezembro de 1846, p. 89.

[9] Arquivo Médico Brasileiro, janeiro de 1848, p. 73-77.

[10] Arquivo Médico Brasileiro, abril de 1847, p. 175.

[11] O Progresso Médico, 1877, p. 449-457.

[12] Annaes Brasilienses de Medicina, abril de 1852, p. 172-177.

[13] Annaes Brasilienses de Medicina, outubro de 1853, p. 13-16.

[14] Annaes de Medicina Brasiliense, julho de 1848, p. 12-16

[15] O Brasil Médico, setembro de 1888, p. 266-269.