Com a foice e o martelo dentro de campo

20/01/2019

por Fabio Peres

Bandiera rossa la trionferà / Evviva il comunismo e la libertà!”.

A tradicional música comunista entoada pela torcida da Associazone Sportiva Livorno Calcio poderia muito bem ressoar em estádios brasileiros sem causar estranhamento; pelo menos, na cidade de Santo André, em São Paulo.

Desde 2015, o município conta com um clube em homenagem às mulheres e homens que lutaram na Guerrilha do Araguaia contra a ditadura militar, iniciada com o golpe de 1964: a Associação Esportiva Araguaia. Para conhecer um pouco mais sobre a agremiação, entrevistamos, entre os dias 8 e 16/1/2019,  Renato Ramos, um dos fundadores e treinador do clube.

Fabio Peres: Renato, conte um pouco sobre você, sua história, e como ela se envolve com a Associação Esportiva Araguaia (AEA).

Renato Ramos: Bom meu nome é Renato Ramos, tenho 33 anos, sou nascido e criado em Santo André, região do Grande ABC Paulista. Assim como todo jovem brasileiro tive o sonho de ser um atleta de futebol profissional, joguei nas categorias de base dos 12 aos 17, foi um período bastante importante para minha formação como cidadão, como ser social membro da sociedade, enfim um período bastante positivo e de bastante aprendizado. Cursei administração de empresas, me formei em futebol pela Faculdade Carlos Drummond de Andrade, e atualmente curso pós graduação em psicologia aplicada às organizações. Sou um dos fundadores da Associação Esportiva Araguaia em 2015, atualmente ocupo a Vice-Presidência e sou treinador das categorias de base da equipe.

Fabio Peres: E como surgiu a ideia de fundar a AEA?

Renato Ramos: A ideia de fundação do Araguaia surgiu em 2007 num debate do grupo de esportes do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) em Santo André na época. Por diversos motivos a ideia ficou engavetada até colocarmos em prática no ano de 2015.

Fabio Peres: Então, diferente de outras associações esportivas, a AEA possui uma vinculação, uma identidade, histórica e política, bastante clara e delineada. Como essa vinculação se reflete no cotidiano do clube?

Renato Ramos: Olha mesmo no momento que atravessamos com o crescimento do fascismo, da direita brasileira, temos crescido a todo momento, e quando eu digo em crescimento é dentro do trabalho esportivo principalmente através do futebol. Como observo o crescimento, por exemplo da torcida, atraindo cada vez mais militantes da esquerda, comunistas, pessoas ligadas aos movimentos sociais, partidos, enfim todos que constroem o nosso campo. O time é uma homenagem a Guerrilha do Araguaia, aos homens e mulheres que lutaram ela retomada da democracia no Brasil, sempre fazemos questão de deixar isso claro. Nosso mascote, inclusive, é o Osvaldão, em homenagem a um dos líderes da Guerrilha do Araguaia, esportista e comunista.

Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, é o mascote da AEA. Foi a forma encontrada pela agremiação de homenagear e manter viva a memória do guerrilheiro, membro do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e campeão de boxe pelo Vasco, assassinado em 1974 na Guerrilha do Araguaia. Um pouco da história de Osvaldão pode ser vista em filme resgatado em Praga, disponibilizado pela Fundação Maurício Grabois.

Fabio Peres: Mas, AEA possui torcida?

Renato Ramos: Sim, nossa equipe tem um grande apoio principalmente dos setores mais à esquerda da nossa sociedade pela identificação óbvia com a história da fundação do clube e nossas posições enquanto diretoria.

Fabio Peres: E, qual é, na sua opinião, a motivação principal que os torcedores possuem para se torcer pela AEA? Conte  um pouco como é a relação com eles.

Renato Ramos: A principal motivação é a representatividade que temos em campo, no nosso dia a dia com a esquerda, com os movimentos sociais e pautas progressistas e populares da nossa sociedade. A relação com a torcida é próxima, tanto com os que a distância nos apoiam como os que apoiam no dia a dia dos jogos no campo, inclusive no final do ano [de 2018] foi fundada a Tuga – Torcida Uniformizada Guerrilha do Araguaia.

Tuga, Torcida Uniformizada Guerrilha do Araguaia, em um dos jogos da Associação Esportiva Araguaia

 

Fabio Peres: E como as pessoas e a torcida acompanham o clube? Como é a divulgação da AEA? 

Renato Ramos: Nossa principal estratégia é através das novas redes: nosso canal no youtube (a TV Araguaia), grupos de atletas, pais de whatsapp, instagram, flickr  e, principalmente, o Facebook.

Fabio Peres: Mas, voltando a questão da representatividade e da motivação dos torcedores, o que é feito para manter viva essa identidade do clube?

A candidata à vice-presidência Manuela D’Ávila (PCdoB) com a camisa da Associação Esportiva Araguaia (19/09/2018)

Renato Ramos: Sempre valorizar as nossas origens, nossa identidade visual e nossa história. Afinal conhecer o passado é premissa básica para não se repetir os erros históricos no futuro (por mais que isso esteja ocorrendo). Mas, fazemos nosso papel de vanguarda, de ser uma entidade que combate a xenofobia, a homofobia, o racismo, o machismo.

Fabio Peres: Mas, o fato da AEA carregar essas bandeiras tem alguma implicação na forma de trabalhar? Em outras  palavras, o fato de possuir essas bandeiras o diferencia em relação a outros clubes no que tange, por exemplo, ao treinamento, performance, à maneira de lidar com os atletas etc.?

Renato Ramos: Na verdade, não. Nossa forma de trabalho é exclusivamente voltada ao futebol, pensando em fazer o melhor trabalho com as condições que temos, sempre buscando bons resultados e uma boa formação dos garotos como atletas e bons cidadãos.

Fabio Peres: Quais são as principais expectativas e metas que a AEA possui?

Renato Ramos: Bom, não escondemos de ninguém que nossos sonhos e metas são crescer dentro do cenário do futebol. Como alcançar esses objetivos e metas ainda depende de algumas circunstâncias que estamos trabalhando para estruturar. E no momento certo estaremos colocando num debate mais amplo ao conjunto das forças da esquerda e dos esportivas que estão cada vez mais apoiando nosso projeto.

Fabio Peres: Quais campeonatos e em quais categorias que a AEA já participou? Quais foram as principais conquistas?

Renato Ramos: O Araguaia participa desde sua fundação das competições municipais de Santo André organizadas pela liga local. Já disputamos a taça cidade de São Paulo, competição organizada pela prefeitura de São Paulo, Copa Zico, Copa Kagiva e outras. Em 2019 esperamos participar das competições da associação paulista de futebol. Nossas principais conquistas no principal foram a Copa amizade 2016 e da base a Copa Andrezinho 2018 na categoria sub-16.

Equipe sub-16 na conquista da Copa Andrezinho 2018

 

Fabio Peres: E os desafios? Quais os principais desafios que um clube como AEA possui? Esses desafios (ou quais deles) são decorrentes da vinculação histórica e política da AEA?

Renato Ramos: Sinceramente não enfrentamos até hoje nenhuma resistência. Pois, trabalhamos sério, atendemos a população, no nosso caso a juventude que busca uma oportunidade dentro do futebol. Já realizamos amistoso por exemplo com o Santos no CT Rei Pelé. Levar a foice e o martelo do futebol num dos maiores templos do futebol brasileiro é prova de trabalho sério, de futebol de verdade e de jovens sonhadores e determinados.

Fabio Peres: E como a AEA se mantém? Quais são as principais formas de financiamento?

Renato Ramos: Nos mantemos da fundação até o momento com venda de materiais: camisas, adesivos, e doações. Para 2019 conseguimos aprovar pela primeira vez um projeto pela lei de incentivo do governo federal, e estamos na luta para concretizar a captação para ter um 2019 mais tranquilo e com melhor estrutura.

Renato Ramos

Fabio Peres: Há mais alguma coisa que você  gostaria de adicionar?

Renato Ramos: Gostaria de agradecer pela oportunidade de falar um pouco do nosso projeto, e pedir para que todos sigam nossas redes, participe do nosso dia a dia e vamos juntos buscar gerar oportunidades aos nossos jovens através do esporte, no nosso caso, o futebol.

Fabio Peres: Nós que agradecemos: não só pela entrevista, mas também por manter o esporte tão vivo, plural e interessante. Obrigado!    


Esporte, Política e Humor: o Golpe de 2016 (parte 2)

20/08/2018

por Fabio Peres

As práticas esportivas parecem ser “boas para pensar” a vida política brasileira. Mesmo em situações difíceis, vários artistas lançam mão do esporte – com muito bom humor – para explicitar ainda mais o tom crítico com que vêem a conjuntura social e política.

Isto, aliás, não é uma novidade dos nossos tempos. Ao que tudo leva a crer, humor e política estiveram desde a gestão do campo esportivo associados às diferentes modalidades e aos contextos culturais que lhe conferiam sentido.

De fato, no século XIX o esporte (aqui entendido como práticas corporais institucionalizadas) “ajudava” a jogar uma nova luz – seja por meio de contraste zombeteiro, seja por incongruência irônica – sobre o mundo político.  Joaquim Manuel de Macedo (em 1855), Machado de Assis (1894) e Artur Azevedo (1885), apenas para citar alguns entre tantos cronistas do século XIX, escreveram sobre política tendo como argumento humorístico o esporte. Mesmo de maneira mais sutil e ampla, a política aparece em narrativas que tratam ou fazem uso do tema. Ou longe disso, quando a intenção é justamente articular de forma mais contundente humor, política e esporte; como no caso do grande espetáculo, em 1837,  de “equilíbrios gymnasticos” entre a Madame Injustiça e Mr. Patronato.

Mesmo que esta relação não corresponda ipis litteris  a uma realidade objetiva e absoluta, o que para importa para nós é que todos estes autores tinham a expectativa de que seus interlocutores compreendessem as nuances  simbólicas que garantiriam o humor, a graça e, justamente por isso, a crítica.

Em tempos de profundo esgarçamento das instituições democráticas, talvez não seja por acaso o aumento considerável de produções jornalísticas e/ou artísticas que procuram “valer-se” do esporte para expressar irreverências políticas. Sobretudo, quando a “história junta Olimpíadas, Copa do Mundo e Golpe.

O uso da camisa da seleção brasileira, não apenas produziu versões vermelhas da amarelinha, mas também gerou debates similares 1, 2, 3, 4 aos que ocorreram na Ditadura Civil-Militar (1964-1985); algo retratado em diversos relatos, romances e filmes que tratam do período ( exemplos podem ser vistos no filme O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias de Cao Hamburger, no romance A Resistência de Julián Fuks e na crônica de Luís Fernando Veríssimo, Nosso Time). Nesse contexto, bastou a Copa do Mundo da Rússia (2018) ter início, logo surgiram cartuns e charges sobre a (re)apropriação da camisa da seleção:

Maíra Colares, Hexou, 15 de junho de 2018.

 

 

Autor não identificado, 1(?) de junho de 2018.

 

As representações esportivas da crise econômica e política também procuraram, seja através do futebol, seja através de outras modalidades, criticar ironicamente as ações do governo :

Hubert. Folha de São Paulo, 6 de junho de 2018.

 

 

Jaguar. Folha de São Paulo, 15 de junho de 2018.

 

 

André Dahmer, Facebook do autor, 17 de junho de 2018.

 

 

Mor. Folha de São Paulo, 22 de junho de 2018.

 

 

A performance de Neymar também não passou despercebida. Metáforas e trocadilhos foram usados por artistas em conglomerados de mídia e comunicação que apoiaram o Golpe:

André Dahmer. O Globo, 27 de junho de 2018.

 

Bennett. Folha de São Paulo, 25 de junho de 2018.

 

A Justiça desacreditada, em função de sua participação e manutenção do Golpe de 2016, foi duramente criticada por meio de analogias com a atuação dos árbitros de futebol:

Laerte. Folha de São Paulo, 19 de junho de 2018.

 

 

Maíra Colares, Arbitrariedade, 15 de junho de 2018.

 

Até mesmo a infame entrevista da, então pré-candidata à presidência, Manuela D’Ávila (PCdoB) no programa Roda Viva (TV Cultura), não deixou de ser relacionada ao futebol:

 

Montanaro. Folha de São Paulo, 28 de junho de 2018.

 

 

As 62 interrupções que a deputada sofreu, não apenas evidenciaram o machismo e as desigualdades de gênero que as candidatas mulheres progressistas são alvo, mas especialmente as estratégias que as forças políticas conservadoras lançam mão:

No caso de Manuela, o mais grave nem foi a montagem de um pelotão de fuzilamento, que evidentemente excluía a diversidade eticamente necessária em programas que desejem promover um debate esclarecedor, mas a ocultação da filiação ideológica de alguns dos convidados. Coube à candidata apontar o vínculo de Frederico d’Ávila, apresentado apenas como diretor da Sociedade Rural Brasileira, com a campanha de Jair Bolsonaro (Sylvia Moretzsohn, The Intercept, 27 de Julho de 2018).

De acordo com o colunista da Folha, Maurício Stycer, foi um dos “piores momentos” da história do Roda Viva. O caso talvez tenha ajudado a aproximar ainda mais Chico Buarque, que em 2016 desautorizou o uso de sua música pelo programa homônimo, da deputada que atualmente compõe a candidatura de Lula. No último domingo (19), Manuela, além de postar fotos com o compositor, compartilhou uma fotografia de Chico segurando uma camisa vermelha, onde se lê:

Mas essa é uma outra história…

 

 

 

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* As opiniões aqui emitidas são exclusivamente de responsabilidade do autor da postagem, não correspondendo as intenções e/ou representações dos artistas mencionados.


Esporte, Política e Humor: o Golpe de 16 (parte 1)

27/06/2016

As relações entre esporte e política são múltiplas. O que talvez possa passar despercebido no contexto atual é que o esporte também permeia (sem perder o bom humor) a luta política.

por Fabio Peres

Desde o acirramento da crise política em 2015, incontáveis manifestações relacionaram política e esporte. Faixas – pró e contra o impeachment – foram exibidas em jogos de futebol. Torcidas procuraram se organizar em torno da luta contra o golpe. Proliferaram-se memes fazendo referência ao mundo do esporte. Torcedores invadiram campos e treinos de times de futebol. Camisas da seleção (ou da CBF como alguns discursos procuram sublinhar) [i], não apenas foram utilizadas em manifestações, como também foram personalizadas com dizeres “Fora Dilma” ou “Fora PT”.  Houve até mesmo torcida homenageando juiz.

O clássico fla X flu, aliás, ganhou corpo em diversas análises como metáfora da polarização política. O que chama atenção nesse caso é a força simbólica que a disputa carioca ainda possui no imaginário social. Não se tem conhecimento, pelo menos com a mesma eficiência semântica, de uso de outras contendas para ilustrar tal conjuntura (não se falou no Derby Paulista e muito menos em Barcelona X Real Madrid).

Política e esporte definitivamente estavam imbricados em todas essas ocasiões.

O que pode parecer inusitado é que – apesar da seriedade da crise (ou justamente por conta disso) – também houve uma profusão de referências, cujo traço comum era o humor.

Com o início do processo de impeachment, jornalistas, artistas e coletivos sociais utilizaram de forma bem-humorada as práticas esportivas para explicitar e questionar o momento político que estamos atravessando.

Na Folha de S. Paulo, por exemplo, Gregório Duvivier (na crônica Festa Estranha com Gente Esquisita, 21/12/2015) colocou em xeque – utilizando para isso modalidades esportivas – a representatividade do Congresso Nacional, a premissa de que o poder legislativo reflete a sociedade brasileira:

Se tem alguém que não está presente no Congresso nacional (além dos deputados que, de modo geral, preferem trabalhar de casa) é o povo brasileiro. As mulheres são quase 52% da população. No entanto, você consegue encontrar mais mulheres jogando rúgbi do que na Câmara dos Deputados. O povo brasileiro se declara, em sua maioria, negro ou pardo (53%). O Senado brasileiro tem menos negros que o Senado da Suécia (não é uma expressão, é um fato). Quanto aos jovens, melhor procurar num jogo de bocha. Jovens com até 34 anos são 39% do eleitorado e 10% do Congresso (grifos nossos).

 

A reflexão continua acentuando ironicamente o perfil elitista do Congresso em contraponto ao da população:

Muito se fala sobre a tal festa da democracia. Que festa estranha com gente esquisita. Eu não tô legal. O Congresso brasileiro parece o salão de jogos do Country Club: uma versão mais masculina, mais branca, mais hétero, mais velha e mais empresária do Brasil. Mas por quê? Será que o brasileiro só confia em homem branco hétero velho empresário? Uma rápida pesquisa revela que eleger um deputado custa, em média, R$ 6 milhões. Uma rápida pesquisa revela que quem tem R$ 6 milhões no Brasil é homem branco hétero velho empresário. O Congresso brasileiro não é a cara do Brasil. Ele é a cara da elite do Brasil. Não é o povo brasileiro que é conservador. É o dinheiro brasileiro que é conservador. Pense no lado bom: talvez o Brasil não seja um país intrinsecamente corrupto ou reacionário. Ou talvez seja. Isso a gente ainda não sabe. Pra isso seria preciso uma coisa inédita: democracia. Por enquanto, pra participar da festa, só com pulseirinha VIP de R$ 6 milhões (mas relaxa que tem consumação).

 

No dia 03 de abril, Juca Kfouri, por sua vez, abriu sua crônica com a seguinte questão: “Nestes dias uma questão paira sobre o Brasil: impeachment de Dilma Rousseff é golpe ou não é golpe?” (Folha de S. Paulo, 03/04/2016).  O futebol é usado para responder de maneira cômica a questão (o artigo completo pode ser encontrado aqui). Rico em figuras de linguagem, o texto conclui:

Só não esqueça que a vitória roubada não é legítima, que sem respeito às regras não tem jogo. E que uma expulsão ilegal, nestas alturas do campeonato, pode virar um tremendo quebra­pau no estádio, pode virar tragédia. Se você acha que vale arriscar só para ver o rival derrotado, lamento dizer que não estamos no mesmo time.

 

Com narração do próprio Juca Kfouri, a crônica foi dramatizada em vídeo pelo coletivo[ii] Um à Esquerda:

 

O coletivo voltaria a usar esse mesmo recurso, também com narração de Juca Kfouri, para falar de possíveis perdas dos direitos trabalhistas – naquela época, num eventual governo interino Temer. O vídeo faz uma analogia entre 7 projetos de lei que buscam “flexibilizar” a CLT e os 7 gols que a seleção brasileira tomou contra a Alemanha na Copa do Mundo de 2014.

 

 

O gol de honra do “Brasil” só apareceria em outro vídeo, quando o ministro do STF Teori Zavascki determinou o afastamento de Eduardo Cunha (PMDB-RJ) do mandato de deputado federal e, consequentemente, da presidência da Casa, em 05/05/2016.

 

 

Mas mesmo antes da infame votação no dia 17 de abril, quando ainda não se tinha certeza se o impeachment passaria na Câmara, o colunista Celso Rocha de Barros da Folha de S. Paulo alertava para os riscos de dá-lo como certo, ainda que bastante provável. De maneira espirituosa, a coluna O Cenário Deivid (04/04/2016) lembrava do insólito gol perdido pelo jogador do Flamengo, na disputa da Taça Guanabara de 2012, contra o Vasco (veja o lance no vídeo abaixo). Embora o “sim” já aparecesse com franca maioria nas análises divulgadas por parte da mídia, recomendava-se um pouco cautela:

Enfim, o gol está aberto para a oposição. Mas gol aberto é hora de lembrar de Deivid, ótimo centroavante que jogou nos maiores times do Brasil e na seleção. Dentro de uma carreira cheia de títulos e artilharias, o gol perdido por Deivid na semifinal da Taça Guanabara de 2012 é só um episódio pitoresco. Mas ninguém esquece: a poucos centímetros da linha do gol, sem goleiro, Deivid chutou na trave. Como seria um momento Deivid da turma que quer derrubar Dilma?

 

 

Fazendo uso de outras referências ao futebol, o colunista chama atenção para o papel cada vez mais decisivo que o chamado baixo clero possuiria na votação na Câmara, o que ainda conferia uma pequeníssima dose de imprevisibilidade à disputa pelos votos (tanto para o “sim” como para “não”, tanto para direita como para a direita) de “partidos que são pouco mais que máquinas de extração de rendas (o PMDB incluso)”:

Um governo Temer continua muito provável […] Mas é bom lembrar que, embora a zaga petista tenha se distraído do jogo olhando aquela grama toda tão apetitosa, o atacante adversário está sob cerrada marcação da natureza. Agora olhem para todos esses cenários com PMDB e PP e me expliquem de novo por que valeu a pena começar a guerra do impeachment.

 

Com humor mais escrachado, artistas criaram o projeto Supletivão, no qual o golpe é explicado através de aulas de disciplinas diversas: lógica, português, história e educação física. Nessa última, o ciclismo (em suas diversas modalidades) é usado para explicitar as intempéries, para não dizer, bizarrices político-jurídicas de uma democracia em risco:

 

 

Após a votação no Senado, aprovando a abertura de processo de impeachment, Gregório Duvivier voltou a fazer analogias entre esporte e política.  Em Faltou combinar com os russos (Folha de S. Paulo, 16/05/2016), o colunista lembra da folclórica conversa entre Garrinha e o técnico Feola, na Copa de 1958, para retratar a ingenuidade, as ambiguidades e mesmo contradições daqueles que apoiaram o impeachment, alguns provavelmente neófitos na participação política (e talvez no futebol):

Reza a lenda que na Copa de 58, o técnico Feola bolou um esquema infalível contra a seleção soviética: Nilton Santos lançaria a bola pela esquerda para Garrincha, que driblaria três russos e cruzaria para Mazzola marcar de cabeça. Garrincha ouviu o professor atentamente: “Tá legal, seu Feola, mas o senhor combinou com os russos?”. “Primeiro a gente tira a Dilma”, dizia o pessoal do impeachment. “Depois a gente derruba o Temer. Aí a gente prende o Cunha. Quando ele cair, a gente cassa o Renan. Daí pronto: eleições gerais.” O plano era infalível. Só esqueceram de combinar com os russos. No poder, o presidente interino (não pronunciarei mais seu nome) já mostrou que não tem a menor intenção de renunciar –apesar de ter assinado as mesmas pedaladas que derrubaram Dilma. Parabéns a todos os que produziram o efeito dominó mais curto do mundo: parou na primeira peça.

 

Já com o governo interino em curso, talvez o cenário se afastasse bastante daquele imaginado pelas pessoas que, 5 dias antes, comemoraram o afastamento da presidente:

Os russos roubaram a bola antes dela chegar ao ataque e fizeram sete gols. O secretario de segurança genocida foi premiado com a Justiça. A Educação ficou com o PFL (me recuso a chamar de Democratas) –partido que foi contra o ProUni, o Fies, os royalties para educação. A Cultura foi pro mesmo lugar que a democracia: debaixo da terra. Ou do PFL. O que é pior. Serra no Exterior –um sujeito que não tem sequer um amigo vai cuidar da diplomacia. Mudaram a CGU –e junto com ela a torneira da Lava Jato. Achei que aqueles que eram contra a corrupção iriam às ruas contra o primeiro presidente brasileiro que já assume com a ficha suja. Não foram. Achei que fossem contra a indicação de ministros citados na Lava Jato. Tampouco foram. O pato da Fiesp acordou rouco. As panelas voltaram à cozinha. Durante o discurso do vampiro embalsamado que nos governa, tudo o que se ouvia era um silêncio ensurdecedor. Cheguei a ouvir: “ao menos esse presidente fala bem o português”. A vontade é enorme de gostar do mordomo interino. Pode roubar, matar, e esconder cadáver, mas pelo menos não erra o plural.

 

O autor de maneira provocativa e irreverente conclui:

Não se esqueçam do Carlos Lacerda, que fez o que pôde pro governo de Jango cair. Quando o golpe chegou, teve os direitos políticos cassados. Tentou reclamar –era tarde demais. “Mas não era isso que você queria?”, poderiam argumentar os militares. O golpe chegou. Vale lembrar de Lacerda. Quem pediu o golpe não estará imune a ele. É o momento de deixar claro que não era isso que vocês queriam. Com esse silêncio todo, fica parecendo que era.

 

Assim como no caso de outros literatos – como Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade e Joaquim Manuel de Macedo (comentados anteriormente aqui no blog) –  jornalistas, artistas e coletivos sociais “deslocaram” os sentidos habituais do esporte para provocar riso, wit  ou ironia (a despeito da distinções conceituais entre cada um deles)[iii].

Sem dúvida, devemos considerar o caráter relativo do humor, mas não é recomendado abrir mão do “contextualismo linguístico” de produção das narrativas.

De todo modo, o esporte parece cumprir com eficácia o requisito de “familiaridade com os códigos e as normas que ditam a (de)codificação da mensagem humorística” (ERMIDA, 2002, p.76).

Ora mais, ora menos irônica, ora mais, ora menos sútil, as práticas esportivas em todos esses casos foram mobilizadas com sensibilidade cômica para refletir sobre a crise (vale ressaltar multiplamente adjetivada; o que evidencia ainda mais a sua gravidade). Mais do que isso, o esporte também é usado para “demarcar campo”, para se posicionar na disputa política.

Em outras palavras, as práticas esportivas parecem, não apenas ser “boas para pensar” o mundo político, mas – como causa ou consequência disso – parecem também ser “boas para agir” – com bom humor – na vida social e política.

Alguns cartunistas parecem concordar com essa ideia. Articulando referências e linguagens múltiplas (fotografia, música, esporte, entre outras), Aroeira por exemplo desenhou o Impávido que Nem Muhammad Ali:

o Impávido que Nem Muhammad Ali (Aroeira, 06/06/2016)

 

A homenagem sugere um eco que de alguma forma repercuti no contexto político atual:

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos

Surpreenderá a todos não por ser exótico

Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto

Quando terá sido o óbvio

(Um índio, Caetano Veloso. A música pode ser escutada aqui)

 

Mas essa história vai ficar para o próximo post.

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[i] Vale notar que a expressão “camisa da CBF” tem sido utilizada para denotar e sublinhar o tom crítico a tais manifestações.

[ii] Estamos usando a denominação utilizada por Juca Kfouri.

[iii] Maiores informações ver: ERMIDA, Isabel Cristina da Costa Alves. Humor, Linguagem e Narrativa: para uma Análise do Discurso Literário Humorístico. Tese (Doutorado em Ciências da Linguagem). Universidade do Minho, Braga, 2002.