A Criação do CND: o futebol a serviço do Estado Novo

13/06/2021

Maurício Drumond

No dia 10 de novembro de 1937, Getúlio Vargas fechou o Congresso e instaurou um novo regime conhecido como Estado Novo, fortalecendo seu poder e passando a investir ainda mais em uma política de centralização e união nacional. No campo esportivo, essa postura levaria a uma maior aproximação do governo com o esporte, que já poderia ser observada na ocasião da III Copa do Mundo, realizada na França em 1938.

Ciente da popularidade do esporte e de sua importância como símbolo nacional, o novo regime concede vultosa subvenção à delegação brasileira para se apresentar no evento – Tomás Mazzoni (1941, p. 16) chega a destacar o “interesse do ministro das Relações Exteriores à delegação que esteve na III Taça do Mundo”. Deve-se somar a isso o fato de que a CBD permanecia como responsável pela representação brasileira no certame, e que Luiz Aranha era seu presidente desde 1936 e sua proximidade pessoal com a alta cúpula do governo, sobretudo com o referido ministro das Relações Exteriores no período do evento, Oswaldo Aranha, seu irmão. A imagem do governo é ainda mais intimamente associada ao escrete brasileiro com a declaração de que Alzira Vargas, filha de Getúlio, receberia o simbólico título de madrinha da seleção nacional.

Alzira Vargas, a madrinha da Seleção Nacional de 1938, e os atletas do escrete brasileiro.

Antes do embarque para a França, a seleção foi recebida pelo Presidente da República, que fez questão de cumprimentar os jogadores, um a um. Pela primeira vez, o Brasil contava com sua força máxima em uma Copa do Mundo. A miscigenação racial da equipe brasileira era vista no Brasil como o verdadeiro retrato de nossa democracia racial, o que servia de forma perfeita aos ideais de ufanismo nacional e harmonia social propagandeados pelo Estado Novo. 

Apesar da derrota para a Itália na semifinal, a destacada apresentação dos jogadores brasileiros na Europa eram vistos como prova do sucesso esportivo e da capacidade física nacional. Até mesmo Getúlio Vargas acompanhou a Copa e se surpreendeu com a reação popular frente à derrota para os italianos, escrevendo em seu diário: “A perda do team brasileiro para o italiano causou uma grande decepção e tristeza no espírito público, como se tratasse de uma desgraça nacional” (Vargas, 1995, v.2, p. 140). De volta ao Brasil, a seleção foi recebida nas ruas como “campeã moral” do campeonato, sob a alegação de que sua derrota teria sido fruto de um pênalti ilegal.  “Queira ou não queira a FIFA, somos campeões do mundo”, estampava o Jornal dos Sports, logo após a conquista do terceiro lugar (JORNAL DOS SPORTS, 20 jun. 1938, p. 1).

O sucesso popular da Copa do Mundo foi mais um sinal para o governo da importância de controlar mais de perto o futebol no Brasil. Menos de três anos mais tarde, Getúlio assinaria o decreto-lei que oficializou a intervenção governamental nos esportes e colocou o grupo de Luiz Aranha de volta ao comando do futebol nacional. No dia 16 de abril de 1941 o Diário Oficial da União trazia em suas páginas o decreto-lei que criava o Conselho Nacional de Desportos (CND), no Ministério da Educação e Saúde, que teria como função “orientar, fiscalizar e incentivar a prática dos desportos em todo o país” (BRASIL, 1941). Em outras palavras, o conselho detinha o controle total dos esportes.

O Decreto-Lei n. 3.199 vai além da criação do CND.  Toda a estrutura da organização desportiva brasileira é alterada. De acordo com o decreto, cada esporte, ou grupo de esportes, poderia se organizar em apenas uma confederação em todo território nacional, sendo essa, necessariamente filiada à entidade internacional de seu ramo desportivo. Cada unidade territorial brasileira – Distrito Federal, estados e territórios – teria apenas uma federação filiada a cada uma das seis confederações esportivas reconhecidas pelo decreto-lei: Confederação Brasileira de Desportos; Confederação Brasileira de Basquetebol; Confederação Brasileira de Pugilismo, Confederação Brasileira de Vela e Motor; Confederação Brasileira de Esgrima; e Confederação Brasileira de Xadrez. Uma nova confederação só poderia ser criada através de decreto presidencial.

Um dos principais jornalistas esportivos do país, Tomás Mazzoni, sob o pseudônimo Olímpicus, que utilizava em suas colunas esportivas, escreveu um livro em homenagem à intervenção no esporte, intitulado “O Esporte a Serviço da Pátria”, cujo prólogo é datado “abril-maio de 1941” (MAZZONI, 1941, p. 18). A obra, de grande teor apologético ao regime estadonovista, defende a oficialização do esporte:

Somente, pois, graças à oficialização e com o espírito de 10 de novembro, dentro da doutrina do Estado Novo, aplicando os princípios do regime atual, é que poderíamos tomar rumos novos! O 10 de novembro esportivo deve ser completo! Exterminar as tais “assembleias”, “judiciários”, “pactos”, “inquéritos”, “caciquismos” – é extinguir a política, o personalismo, o clubismo, é dar rumo certo e vida sã ao esporte! (MAZONI, 1941, p. 20).

A intervenção esporte, aludido por Mazzoni como “o 10 de novembro esportivo”, em referência à data de instauração do Estado Novo, seria assim a adequação do esporte ao ideal do regime vigente.  Assim como outros regimes do período, como a Alemanha nazista, Itália fascista, Espanha franquista e França de Vichy, o Brasil se adequava, segundo o jornalista, a um novo período do esporte mundial. Suas referências a “assembleias”, “pactos”, “caciquismos”, e “clubismo” são alusões nada veladas às disputas internas dos dirigentes brasileiros, no que definira algumas páginas depois como uma forma de dirigir o esporte “com a mentalidade do governante brasileiro de vinte anos atrás, (…) por parte dos políticos do velho regime”, em uma explícita referência à Primeira República, que terminara com o movimento militar que colocou Vargas no poder em 1930 (MAZZONI, 1941, p. 27).

A Confederação Brasileira de Desportos se estabeleceu então como a principal confederação desportiva do país, sendo responsável pela organização do futebol, do tênis, do atletismo, do remo, da natação, dos saltos, do polo aquático, do vôlei, do handebol e de qualquer outra modalidade desportiva que não se enquadrasse em nenhuma das outras confederações. As outras confederações tinham competência administrativa sobre as modalidades descritas em sua nomeação. Isso não significa que o futebol receberia o mesmo tratamento que as outras modalidades desportivas, visto que o próprio decreto-lei afirmava que “o futebol constitui o desporto básico e essencial da Confederação Brasileira de Desportos” (BRASIL, 1941, art. 16, §2º).

O CND detinha controle quase total não apenas sobre os esportes, como também sobre as entidades desportivas. Os estatutos das confederações e das federações a elas filiadas tinham que ser aprovados pelo CND, que poderia propor ao Ministro da Educação a criação ou a supressão de qualquer confederação. No tocante às competições internacionais, o Conselho Nacional de Desportos exercia um controle ainda mais rígido. A participação de qualquer clube ou entidade em uma competição internacional deveria ser previamente autorizada pelo CND. Caso o conselho decidisse pela participação de alguma equipe em um campeonato internacional, esta não poderia abster-se da convocação. Assim, os clubes que cedessem jogadores a esses campeonatos não poderiam pleitear qualquer indenização pela perda temporária de seus atletas, a não ser em caso de jogos amistosos.

Buscava-se controlar o esporte nacional, ainda que mantendo na direção do órgão estatal de controle paredros dirigentes conhecidos da elite desportiva brasileira. Mesmo com a intervenção do governo brasileiro sobre o esporte, pouco muda de forma efetiva em sua organização. No entanto, o Estado agora se equipava com a possibilidade de intervir em clubes e federações caso julgasse necessário, como ocorreu com o Corinthians ainda em 1941. A disputa entre o grupo do então presidente Manuel Correcher e da oposição, liderada por Ricardo R. de Moura e Saverio Nigro, levou o governo paulista a apontar Mário Henrique Almeida como interventor no clube, cargo que ocupou por pouco tempo (MAZZONI, 1950, p. 292).

Manuel Correcher (15) e Mário Henrique Almeida (16)

Na visão dos defensores da intervenção, como Tomás Mazzoni (1941, p. 17), os “políticos e arruaceiros terão, pois, suas azas cortadas”, não podendo mais assim “arrumar panelinhas e (…) se defender com prestígio equívoco”. A oficialização colocava em xeque a antiga ordem esportiva, mas ao mesmo tempo garantia a permanência daqueles que se adequassem aos novos tempos. O futebol estaria, assim, a serviço da pátria.

O sentimento nacional seria mobilizado com maior veemência com a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, em 1942. Dentro desse quadro de patriotismo exacerbado pelo envolvimento no conflito, o CND decretou que as associações esportivas – clubes ou outras agremiações – só poderiam ser presididas por brasileiros natos ou naturalizados. O conselho abria exceção apenas a estrangeiros radicados no Brasil há mais de vinte anos, que já tivessem exercido o cargo anteriormente, ou a portugueses que tivessem se destacado nos meios esportivos.  O CND já apontava para a importância cívica das associações esportivas no decreto-lei 3.199.  De acordo com o decreto, as entidades esportivas não poderiam gerar lucro para seus financiadores ou para seus dirigentes, visto que essas entidades exerciam uma função de caráter patriótico.

O esporte era então visto como um dos grandes símbolos da nação. Antes mesmo da declaração oficial de guerra contra o eixo, agentes do Departamento de Ordem Social e Política (DOPS) paulista começaram a pressionar a diretoria de clubes que apresentassem membros de nacionalidade estrangeira, especialmente italianos e alemães. A ação baseava-se no Decreto 383, de 18 de abril de 1938, que vedava a estrangeiros a atividade política no Brasil, incluindo a organização, criação e manutenção de “sociedades, fundações, companhias, clubes e quaisquer estabelecimentos de caráter político”, ou mesmo se associarem a tais agrupamentos (BRASIL, 1938). O próprio Decreto-Lei 3.199, que criou o CND, reforçava a ideia em seu artigo 51, atestando que “As diretorias das entidades desportivas serão compostas de brasileiros natos ou naturalizados; os seus conselhos deverão constituir-se de dois terços de brasileiros natos ou naturalizados pelo menos” (BRASIL, 1941).

A pressão sobre os clubes ligados a colônias estrangeiras aumentou com a publicação do decreto-lei 4.166, de 11 de março de 1942, que avultava a possibilidade do confisco de bens e direitos de cidadãos de nacionalidade alemã, japonesa e italiana, fossem pessoas físicas ou jurídicas. O confisco incluiria uma parte de todos os depósitos bancários e patrimoniais superiores a dois contos de réis (BRASIL, 1942). Para os clubes de futebol, pessoas jurídicas sob o jugo do decreto-lei, havia o risco do confisco de sua sede e de seu estádio, além de boa parte de seus depósitos bancários. Dessa maneira, os paredros dos clubes de colônias decidiram mudar o nome de suas agremiações que fizessem referência direta a um dos países do eixo.

Em São Paulo, o Palestra Itália, que em março de 1942 passou a se chamar apenas Palestra de São Paulo, mudou sua denominação para Sociedade Esportiva Palmeiras ainda em setembro do mesmo ano. Já o Germânia, clube que lançara Arthur Friedenreich no futebol, mas que não aderira ao profissionalismo nos anos 1930, mudou seu nome para Pinheiros, após passar por uma intervenção governamental. Em Belo Horizonte, no mesmo ano, o Palestra Itália passou ser conhecido como Esporte Clube Cruzeiro, adotando o nome de um dos maiores símbolos brasileiros. Em Curitiba, o Savóia – nome da família real italiana – mudou de nome para Esporte Clube Brasil, em uma afirmação hiperbólica do nacionalismo de sua diretoria.

Nos anos seguintes, o CND se estabeleceu como a principal entidade de supervisão e controle do esporte, sobrevivendo ao final do Estado Novo. O conselho detinha controle quase total não apenas sobre os esportes, como também sobre as entidades desportivas. Os estatutos das confederações e das federações a elas filiadas tinham que ser aprovados pelo CND, que poderia propor ao Ministro da Educação a criação ou a supressão de qualquer confederação. No tocante às competições internacionais, o Conselho Nacional de Desportos exercia um controle ainda mais rígido. A participação de qualquer clube ou entidade em uma competição internacional deveria ser previamente autorizada pelo CND, que também era responsável pelas delegações que acompanhavam a seleção brasileira de futebol.

Mesmo após o fim do Estado Novo e o restabelecimento da democracia, o Conselho Nacional de Desportos não sofreu grandes alterações. A entidade ainda detinha a prerrogativa de regular os clubes, federações e competições esportivas nacionais, indicava os chefes de delegações que acompanhavam a seleção brasileira em competições no exterior e pairava sobre toda a organização esportiva nacional, ainda que não exercesse todas suas atribuições de forma regular. Foi apenas com a publicação da Lei Zico – Lei n. 8.672, de 6 de julho de 1993 – que o Conselho Nacional de Desportos foi extinto, tendo durado mais de 50 anos.

Referências:

BRASIL. Decreto-lei n. 383, de 18 de abril de 1938. Diário Oficial da União, 19 abr. 1938, p. 7357.

BRASIL. Decreto-Lei n. 3.199, de 14 de abril de 1941.  Diário Oficial da União, 16 abr. 1941, p. 7453.

BRASIL. Decreto-Lei n. 4.166, de 11 de março de 1942. Diário Oficial da União, 12 mar. 1942, p. 3918.

MAZZONI, Tomás. O esporte a serviço da pátria. São Paulo: [s.n.], 1941.

MAZZONI, Tomás.  História do futebol no Brasil: 1894-19550. São Paulo: Edições Leia, 1950.

VARGAS, Getúlio. Diário.  2V.  São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: FGV, 1995.


Publicado novo número de Recorde: Revista de História do Esporte

01/02/2020

Em dezembro foi publicado o número mais recente de Recorde: Revista de História do Esporte – confira abaixo o sumário. Com ele completaram-se doze anos de publicação contínua da primeira revista da América Latina dedicada à História do Esporte e das Práticas Corporais Institucionalizadas. O periódico recebe artigos e resenhas em fluxo contínuo.

 

v. 12, n. 2 (2019)

Sumário

Artigos

Leonardo Brandão, Giancarlo Marques Carraro Machado
Onésimo Rodríguez Aguilar, Luis Diego Soto Kiewit, Cindy Zúñiga Valerio
Juliana Carneiro
Kelen Katia Prates Silva
Tiago Sales de Lima Figueiredo
Narayana Astra van Amstel, Carlos Alberto Bueno dos Reis Júnior, Leonardo do Couto Gomes, Ricardo João Sonoda Nunes
Ivo Lopes Müller Junior, André Mendes Capraro
Everton de Souza da Silva
Samuel Ribeiro dos Santos Neto, Edivaldo Góis Junior
Rogério Othon Teixeira Alves, Georgino Jorge de Souza Neto, Luciano Pereira da Silva
Luiz Antonio C. Norder

Resenhas

Mariana de Paula, Letícia Cristina Lima Moraes, Leonardo do Couto Gomes, Marcelo Moraes e Silva
Leonardo do Couto Gomes, Duilio Queiroz de Almeida, Marcelo Moraes e Silva
Miguel Archanjo de Freitas Junior, Edilson de Oliveira, Tatiane Perucelli, Bruno Pedroso

Com a foice e o martelo dentro de campo

20/01/2019

por Fabio Peres

Bandiera rossa la trionferà / Evviva il comunismo e la libertà!”.

A tradicional música comunista entoada pela torcida da Associazone Sportiva Livorno Calcio poderia muito bem ressoar em estádios brasileiros sem causar estranhamento; pelo menos, na cidade de Santo André, em São Paulo.

Desde 2015, o município conta com um clube em homenagem às mulheres e homens que lutaram na Guerrilha do Araguaia contra a ditadura militar, iniciada com o golpe de 1964: a Associação Esportiva Araguaia. Para conhecer um pouco mais sobre a agremiação, entrevistamos, entre os dias 8 e 16/1/2019,  Renato Ramos, um dos fundadores e treinador do clube.

Fabio Peres: Renato, conte um pouco sobre você, sua história, e como ela se envolve com a Associação Esportiva Araguaia (AEA).

Renato Ramos: Bom meu nome é Renato Ramos, tenho 33 anos, sou nascido e criado em Santo André, região do Grande ABC Paulista. Assim como todo jovem brasileiro tive o sonho de ser um atleta de futebol profissional, joguei nas categorias de base dos 12 aos 17, foi um período bastante importante para minha formação como cidadão, como ser social membro da sociedade, enfim um período bastante positivo e de bastante aprendizado. Cursei administração de empresas, me formei em futebol pela Faculdade Carlos Drummond de Andrade, e atualmente curso pós graduação em psicologia aplicada às organizações. Sou um dos fundadores da Associação Esportiva Araguaia em 2015, atualmente ocupo a Vice-Presidência e sou treinador das categorias de base da equipe.

Fabio Peres: E como surgiu a ideia de fundar a AEA?

Renato Ramos: A ideia de fundação do Araguaia surgiu em 2007 num debate do grupo de esportes do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) em Santo André na época. Por diversos motivos a ideia ficou engavetada até colocarmos em prática no ano de 2015.

Fabio Peres: Então, diferente de outras associações esportivas, a AEA possui uma vinculação, uma identidade, histórica e política, bastante clara e delineada. Como essa vinculação se reflete no cotidiano do clube?

Renato Ramos: Olha mesmo no momento que atravessamos com o crescimento do fascismo, da direita brasileira, temos crescido a todo momento, e quando eu digo em crescimento é dentro do trabalho esportivo principalmente através do futebol. Como observo o crescimento, por exemplo da torcida, atraindo cada vez mais militantes da esquerda, comunistas, pessoas ligadas aos movimentos sociais, partidos, enfim todos que constroem o nosso campo. O time é uma homenagem a Guerrilha do Araguaia, aos homens e mulheres que lutaram ela retomada da democracia no Brasil, sempre fazemos questão de deixar isso claro. Nosso mascote, inclusive, é o Osvaldão, em homenagem a um dos líderes da Guerrilha do Araguaia, esportista e comunista.

Osvaldo Orlando da Costa, o Osvaldão, é o mascote da AEA. Foi a forma encontrada pela agremiação de homenagear e manter viva a memória do guerrilheiro, membro do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e campeão de boxe pelo Vasco, assassinado em 1974 na Guerrilha do Araguaia. Um pouco da história de Osvaldão pode ser vista em filme resgatado em Praga, disponibilizado pela Fundação Maurício Grabois.

Fabio Peres: Mas, AEA possui torcida?

Renato Ramos: Sim, nossa equipe tem um grande apoio principalmente dos setores mais à esquerda da nossa sociedade pela identificação óbvia com a história da fundação do clube e nossas posições enquanto diretoria.

Fabio Peres: E, qual é, na sua opinião, a motivação principal que os torcedores possuem para se torcer pela AEA? Conte  um pouco como é a relação com eles.

Renato Ramos: A principal motivação é a representatividade que temos em campo, no nosso dia a dia com a esquerda, com os movimentos sociais e pautas progressistas e populares da nossa sociedade. A relação com a torcida é próxima, tanto com os que a distância nos apoiam como os que apoiam no dia a dia dos jogos no campo, inclusive no final do ano [de 2018] foi fundada a Tuga – Torcida Uniformizada Guerrilha do Araguaia.

Tuga, Torcida Uniformizada Guerrilha do Araguaia, em um dos jogos da Associação Esportiva Araguaia

 

Fabio Peres: E como as pessoas e a torcida acompanham o clube? Como é a divulgação da AEA? 

Renato Ramos: Nossa principal estratégia é através das novas redes: nosso canal no youtube (a TV Araguaia), grupos de atletas, pais de whatsapp, instagram, flickr  e, principalmente, o Facebook.

Fabio Peres: Mas, voltando a questão da representatividade e da motivação dos torcedores, o que é feito para manter viva essa identidade do clube?

A candidata à vice-presidência Manuela D’Ávila (PCdoB) com a camisa da Associação Esportiva Araguaia (19/09/2018)

Renato Ramos: Sempre valorizar as nossas origens, nossa identidade visual e nossa história. Afinal conhecer o passado é premissa básica para não se repetir os erros históricos no futuro (por mais que isso esteja ocorrendo). Mas, fazemos nosso papel de vanguarda, de ser uma entidade que combate a xenofobia, a homofobia, o racismo, o machismo.

Fabio Peres: Mas, o fato da AEA carregar essas bandeiras tem alguma implicação na forma de trabalhar? Em outras  palavras, o fato de possuir essas bandeiras o diferencia em relação a outros clubes no que tange, por exemplo, ao treinamento, performance, à maneira de lidar com os atletas etc.?

Renato Ramos: Na verdade, não. Nossa forma de trabalho é exclusivamente voltada ao futebol, pensando em fazer o melhor trabalho com as condições que temos, sempre buscando bons resultados e uma boa formação dos garotos como atletas e bons cidadãos.

Fabio Peres: Quais são as principais expectativas e metas que a AEA possui?

Renato Ramos: Bom, não escondemos de ninguém que nossos sonhos e metas são crescer dentro do cenário do futebol. Como alcançar esses objetivos e metas ainda depende de algumas circunstâncias que estamos trabalhando para estruturar. E no momento certo estaremos colocando num debate mais amplo ao conjunto das forças da esquerda e dos esportivas que estão cada vez mais apoiando nosso projeto.

Fabio Peres: Quais campeonatos e em quais categorias que a AEA já participou? Quais foram as principais conquistas?

Renato Ramos: O Araguaia participa desde sua fundação das competições municipais de Santo André organizadas pela liga local. Já disputamos a taça cidade de São Paulo, competição organizada pela prefeitura de São Paulo, Copa Zico, Copa Kagiva e outras. Em 2019 esperamos participar das competições da associação paulista de futebol. Nossas principais conquistas no principal foram a Copa amizade 2016 e da base a Copa Andrezinho 2018 na categoria sub-16.

Equipe sub-16 na conquista da Copa Andrezinho 2018

 

Fabio Peres: E os desafios? Quais os principais desafios que um clube como AEA possui? Esses desafios (ou quais deles) são decorrentes da vinculação histórica e política da AEA?

Renato Ramos: Sinceramente não enfrentamos até hoje nenhuma resistência. Pois, trabalhamos sério, atendemos a população, no nosso caso a juventude que busca uma oportunidade dentro do futebol. Já realizamos amistoso por exemplo com o Santos no CT Rei Pelé. Levar a foice e o martelo do futebol num dos maiores templos do futebol brasileiro é prova de trabalho sério, de futebol de verdade e de jovens sonhadores e determinados.

Fabio Peres: E como a AEA se mantém? Quais são as principais formas de financiamento?

Renato Ramos: Nos mantemos da fundação até o momento com venda de materiais: camisas, adesivos, e doações. Para 2019 conseguimos aprovar pela primeira vez um projeto pela lei de incentivo do governo federal, e estamos na luta para concretizar a captação para ter um 2019 mais tranquilo e com melhor estrutura.

Renato Ramos

Fabio Peres: Há mais alguma coisa que você  gostaria de adicionar?

Renato Ramos: Gostaria de agradecer pela oportunidade de falar um pouco do nosso projeto, e pedir para que todos sigam nossas redes, participe do nosso dia a dia e vamos juntos buscar gerar oportunidades aos nossos jovens através do esporte, no nosso caso, o futebol.

Fabio Peres: Nós que agradecemos: não só pela entrevista, mas também por manter o esporte tão vivo, plural e interessante. Obrigado!    


A História de uma Policronofonia: críticas (bem-humoradas) à prática de esportes e exercícios físicos no Rio de Janeiro do século XIX

01/02/2016

A presença e a força dos discursos médicos e pedagógicos no final daquele século eram incontestáveis. O desfio era convencer a população a efetivamente praticá-los no dia-a-dia, sem que antes ela duvidasse de certos argumentos e prescrições.  

por Fabio Peres

A história começa com um sonho esplendido, quase idílico. Naquele 24 de maio de 1895, dia da inauguração do Prado Brasileiro, a multidão se amontoava em torno da arena da nova sociedade esportiva, localizada provisoriamente na Praia de Botafogo, n.171 (sede do Bellódromo Guanabara). O céu era “de um azul lavado e fresco” (A Cigarra, 30/5/1895)[i].

Anúncio do Prado Brasileiro (O Paiz, 22/5/1895, p.8)

Anúncio do Prado Brasileiro (O Paiz, 22/5/1895, p.8)

Voando em pensamento, o cronista entregou a “alma a um sonho radiante”, viajou “para outro clima e para outra idade”. Viu área de jogos, piscinas de mármore, homens fortes, “robustecidos pelo exercício violente”, além de corridas a pé, carruagens, atletas, saltos, lutas e arremessos. Estava definitivamente na “jovem Grécia”.

O deleite provocado pelo sonho, seguido por um desanimo ao despertar, foram depois de um tempo sopesados:

Meu Deus! Cada roca com o seu fuso, e cada século com os seus exercícios. O culpado d’esses sonhos, d’essas saudades ansiosas que o jornalismo fluminense de hoje, de vez em quando, diz sentir pela rija educação física dos tempos heroicos,— o culpado dessa mania é Sr. Ramalho Ortigão que vive a fazer, em livros e artigos, a apologia da ginástica (A Cigarra, 30/05/1895, p.2)[ii].

Dialogando diretamente com os preceitos de saúde e educação física da época, o autor – em tom zombeteiro – chamava atenção para incompatibilidade e mesmo anacronismo entre os discursos de promoção e estimulo de práticas corporais, pautados por uma idealização da Grécia Antiga, e as práticas esportivas adequadas a um carioca de 1895, “com o câmbio a 8 e uma guerra civil de quatro anos de idade”. Tal modo de vida da Antiguidade não seria factível com as obrigações e condições de vida de um cidadão da “era moderna”:

Apanhem-me um honesto burguês destes desventurados tempos modernos. O homem é empregado público: o emprego rende-lhe duzentos mil réis. Mas o desgraçado tem oito filhas que precisam de marido: querem vestir-se, querem piano, fitas, teteias, teatros. E o infeliz, mesmo arranjando para a noite qualquer trabalho suplementar com que se estrompe a ganhar a vida, não consegue, no fim do mês, pagar todos os seus compromissos, Metam agora na cabeça desse burguês a convicção de que, para viver muito, o exercício físico é indispensável: mandem-no perder, de manhã, duas horas em ginástica de quarto, – de tarde, outras duas em corridas a pé, – de noite, outras duas em velocipedia. E digam-me que tempo lhe ficará para ganhar o pão de cada mês. O’ néscios! O problema capital da vida não é viver muito: é viver! Não é ter saúde: é ter dinheiro! Não é ser belo: é comer! (op. cit.)

De acordo com o bem-humorado cronista, o esporte moderno é bem concebido justamente pelo fato da prática ficar restrita somente aos que se “empregam nele, e se divertem quem tem tempo e dinheiro” para assistir. E, por fim, sentencia em clara oposição aos argumentos que “vestem” determinados contextos “com as roupas talhadas em outras épocas” [iii] e em outros lugares:

Nós não somos feitos para essas façanhas, amigos! Contentemo-nos com o que o século nos dá. E, em matéria de sport limitemo-nos a apostar neste ou naquele corredor, neste ou naquele cavalo, neste ou naquele pelotari. A idade heroica foi a dos jogos olímpicos. A idade moderna é a dos jogos de poules. E eu prefiro perder dinheiro, vendo correrem os outros, a ganhá-lo, correndo eu, para que os outros me vejam (A Cigarra, 30/05/1895, p.3).

Uma das chaves para compreender a prática de esportes e exercícios físicos na cidade do Rio de Janeiro do século XIX passa, por certo, pelos discursos pedagógicos e médico-higienistas. Contudo, esses discursos nem sempre, ou muitas vezes, se materializavam ipsis litteris na vida social da cidade.

Em 1892, aliás, um estrangeiro de velocípedes no Passeio Público foi alvo de chacotas: “corre nenê!”. De acordo com o comentarista, a prática de exercícios físicos em determinados espaços da cidade ainda era censurada pela população, onde “moços do Rio de Janeiro, salvas poucas exceções, não têm força muscular”[iv]; algo que certamente mudaria. Mas essa história ficará para um próximo post.

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[i] Havia nos periódicos fluminenses uma certa expectativa em torno da estreia do empreendimento. Nos dias seguintes, porém, as matérias sobre o evento foram marcadas por controvérsias e críticas, sobretudo, em relação à qualidade técnica das provas (O Paiz, 25/5/1895, p.2; O Paiz, 26/5/1895, p.2).

[ii] Vale destacar que em 4/1/1888, a Gazeta de Notícias fazia uma promoção e oferecia livros aos que renovassem sua assinatura, entre os quais “Ginástica de quarto”, a obra de Schreber traduzida pelo renomado Ramalho Ortigão, que já fizera várias referências ao autor em seu “As Farpas: Crônica Mensal da Politica, das Letras e dos Costumes”.

[iii]  ALENCASTRO, Luiz Felipe. “Não sabem dizer coisa certa”.  Revista Brasileira de Ciências Sociais, n. 16, jun. 1991, p. 64. 14.

[iv] O Paiz, 10/6/1892, p.1


Greve de surfistas

24/08/2009

Fonte da imagem: http://josiasdesouza.folha. blog.uol.com.br/images/Greve.jpg

Por Rafael Fortes

“Os sindicatos fazem greve/Porque  ninguém é consultado”, cantam os Titãs em “Desordem” (Sérgio Britto/Marcelo Fromer/Charles Gavin). A música – minha favorita na longa discografia da banda – apareceu no disco Jesus não tem dentes no país dos banguelas, de 1987.

Uma das características marcantes dos anos 1980 no Brasil – sobretudo quando se olha para os dias atuais – é a capacidade de mobilização dos trabalhadores. Tal fenômeno estava articulado a um longo e difícil processo de reorganização de instâncias coletivas da sociedade brasileira, que avançou a partir dos últimos anos da década de 1970. Durante os governos de um general (João Figueiredo), e de um civil (José Sarney, cuja carreira política se desenvolveu no seio da ditadura e da Aliança Renovadora Nacional – Arena – e cujo nome tem estado em voga na mídia nos últimos meses), trabalhadores, moradores e sem-teto, gays, mulheres, negros, jovens, católicos, povos indígenas, agricultores com e sem terra, estudantes, seringueiros, praticantes de religiões perseguidas, vítimas de discriminação e muitos mais se (re)organizaram em partidos, associações, sindicatos, movimentos, grupos, ligas, comunidades, clubes, centrais, agrupamentos, uniões. O próprio ato de reunir-se continha um significado político. Tratava-se, em boa parte dos casos, não apenas da defesa de interesses de grupo ou corporativos, mas de reivindicar direitos.

No caso das entidades representativas dos trabalhadores, a greve constituía o instrumento mais radical e, ao mesmo tempo, mais poderoso de luta por aumento salarial, por direitos e por melhores condições de trabalho e de vida. E as greves aconteciam com frequência que, ao se observar o presente, parece impressionante. Os defensores de uma certa ordem vigente – entre os quais encontram-se os meios de comunicação corporativos -, encaravam tais manifestações como desordem – a ótima letra da música citada trava justamente esta discussão. Você, leitor, deve estar se perguntando: mas o que isso tem a ver com esporte?

Em março de 1988, Fluir publicou um artigo intitulado “Primeira greve no surf brasileiro”. Começava assim:

Os surfistas profissionais brasileiros, durante a realização da primeira etapa do 2º Circuito Brasileiro de Surf, cruzaram os braços e se declararam em greve, pleiteando uma maior premiação. Essa situação tomou a manchete dos maiores jornais do país e a pauta dos noticiários esportivos de rádios e TVs.

Como em qualquer categoria houve negociação, concessões de parte a parte e um acordo celebrado.

O longo texto prossegue com informações sobre premiação, contratos, reivindicações dos atletas e argumentos das várias partes envolvidas. A complicada disputa envolvia surfistas, empresas patrocinadoras das etapas, Rede Globo (que comprara a exclusividade de cobertura do circuito) e organizadores. Nos cinco parágrafos da “conclusão”, chama os envolvidos ao “bom senso”. A revista diferencia as empresas que investem no surfe (citando como exemplo as que se dispuseram a patrocinar etapas do primeiro circuito, realizado em 1987) dos “novos oportunistas” – estes, sim, deveriam sofrer cobranças.

A adoção de uma postura classista pelos atletas reunidos no Rio de Janeiro para a etapa inaugural do Circuito Brasileiro 1988 não ocorre no vácuo, mas em meio a dois processos mais amplos. Primeiro, o de comercialização e profissionalização do surfe no país. A realização do segundo circuito, os acordos comerciais fechados em torno do mesmo e o possível crescimento das cifras formam o quadro em que os atletas decidiram reivindicar aumento na premiação. Neste caso, Fluir intercede colocando panos quentes no conflito entre atletas e empresas do ramo (a visão da publicação a respeito do papel desempenhado pelas empresas é assunto para outro artigo).

Segundo, o processo de mobilização da sociedade brasileira, ao qual me referi no início do texto.

Como a história também é feita de acontecimentos fortuitos, cabe acrescentar uma curiosidade: segundo Fluir, um dos fatores que contribuíram para a tomada de consciência e a mobilização da “categoria” por melhores premiações foi a falta de ondas por vários dias consecutivos.

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Duas observações para encerrar:

Um dos grandes baratos de estudar história do esporte é justamente relacioná-lo com o contexto e o tempo social em que se insere e se desenvolve. É nesta perspectiva – compartilhada por todos que fazem parte do Sport – que busco desenvolver meu trabalho.

A relação entre música e surfe dá pano para manga. Seja nos anos 1980, antes ou depois; no Brasil e em outros cantos deste vasto mundo. Voltarei ao assunto posteriormente.

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Para saber mais:

Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Publicado pelo CPDOC/FGV, possui diversos verbetes disponíveis para consulta na internet – mediante cadastro -, entre eles “José Sarney” e “ARENA”.

NEVES, Lucília de Almeida (1989). Democracia, República e cidadania hoje. Análise e Conjuntura, Belo Horizonte, v. 4, n. 2-3, maio/dez., p. 339-347.

REIS FILHO, Daniel Aarão (2002). Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Coleção Descobrindo o Brasil)